A responsabilidade civil, inclusive contratual, não se basta com a alegação e prova de um dano exigindo-se igualmente para responsabilizar a contraparte que esta (ou um seu representante legal ou auxiliar no cumprimento) seja autora de uma conduta à qual se podem imputar tais danos.
Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,
Relatório
AA, Autor na presente ação declarativa de condenação emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, contra Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, E.P.E.R veio interpor recurso de revista, ao abrigo do disposto no artigo 671.º do Código do Processo Civil (doravante designado CPC) e revista excecional do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27-09-2023.
A Ré contra-alegou.
O recurso ao abrigo do artigo 671.º não foi admitido por existir “dupla conformidade”.
A revista excecional foi admitida por Acórdão da Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 do CPC junto desta Secção Social a 05-06-2024.
No referido Acórdão pode ler-se:
“O Recorrente, como questão fundamental para a apreciação pelo STJ, em termos de revista excecional, elege a “temática dos danos por perda de rendimentos e perdas de chances profissionais na esfera jurídica de um ex-trabalhador por força da atitude e atuação da uma anterior entidade empregadora”.
Concomitantemente, arvora como determinantes as questões de quando se deve considerar “que (i) existe um nexo de causalidade adequada entre comportamentos, por ação e ou omissão, adotados e acolhidos pelas entidades empregadores e seus reflexos sobre os direitos/garantias dos (ex)trabalhadores, quando se deve considerar (ii) que é operativo e oponível esse nexo de causalidade, que tipo de prova é necessária em juízo para se aferir dessa relação causal, no mundo empírico dos eventos, quando se deve considerar (iii) que montante é justo e equitativo em termos de ressarcimento de dano por privação de rendimentos gerados pela afetação das qualidades, reputação e bom nome profissional do trabalhador, que padrão ou medidor deve ser usado – por referência a rendimentos médios de que período temporal, por exemplo”.
Questões que, a nosso ver e não tendo até ao momento sido objecto de abundante tratamento doutrinal e jurisprudencial, implicam a clarificação e densificação de conceitos, revelando-se, efectivamente, da maior acuidade, sendo certo que nos encontramos perante uma situação com indiscutível dimensão paradigmática.
Vale por dizer que in casu a intervenção do STJ é susceptível de se traduzir numa melhor aplicação do direito, reforçando a segurança, certeza e previsibilidade na sua interpretação e aplicação e dessa forma contribuindo para minimizar – numa matéria da maior relevância prática e jurídica – indesejáveis contradições entre decisões judiciais- cfr. citado acórdão de 27/09/2023”.
Em cumprimento do disposto no artigo 87.º n.º 3 do Código do Processo de Trabalho o Ministério Público emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.
O Recorrente respondeu ao Parecer.
Fundamentação
De Facto
As instâncias consideraram provados os seguintes factos:
1. Com início em 7 de Outubro de 2013, AA e Hospital ..., EPER ajustaram, por escrito, um acordo denominado “Contrato de Comissão de Serviço”, ao abrigo do qual o Autor era admitido “para exercer, em comissão de serviço, as funções de ... do Serviço de Informática do Hospital…”.
1.1. Consta das cláusulas 5ª e 6ª:
“Cláusula 5ª
(Cessação da Comissão de Serviço)
1 – Qualquer um dos outorgantes pode pôr termo (…), mediante comunicação escrita, à outra parte, com aviso prévio de trinta dias, se a sua duração for inferior a dois anos e de sessenta dias se a sua duração for igual ou superior a dois anos.
2 – A falta de aviso prévio não obsta à cessação da comissão de serviço, constituindo a parte faltosa na obrigação de indemnizar a contraparte nos termos do art. 401º do Código do Trabalho.
Cláusula 6ª
(Efeitos da Cessação da Comissão de Serviço)
1 – A cessação da comissão de serviço, por iniciativa do Primeiro Outorgante, que não corresponda a despedimento por facto imputável ao Segundo Outorgante, confere-lhe direito à indemnização prevista na al. c) do art. 164º do Código do Trabalho e calculada nos termos do art. 366º do Código do Trabalho.
2 – A cessação do presente contrato de comissão de serviço não confere quaisquer outros direitos ao Segundo Outorgante, sendo, portanto, posto termo à relação laboral entre ambos os Outorgantes”.
2. Ao abrigo deste acordo, o Autor auferia, de forma mensal, uma retribuição base no valor de € 2987,25, com acréscimo de subsídio de refeição, no valor diário de € 4,77, e de despesas de representação, no valor mensal de € 312,02.
3. Também com efeitos a partir de 7 de outubro de 2013, o Autor e a Ré mais ajustaram, por escrito, um acordo ao abrigo do qual era atribuída ao Autor ‘isenção de horário de trabalho’.
3.1. Auferindo o Autor, por conta desta ‘isenção’, uma retribuição no valor mensal de € 379,06.
4. No funcionamento do Hospital ..., EPER (H...), pelo menos à data de 15 de julho de 2021, o ‘... de informática’ correspondia a um cargo de ‘atividade permanente’, tendo como referência o incremento da informatização da medicinae da gestão hospitalar.
5. O serviço de informática do H... era composto por 9 funcionários, incluindo o Autor.
6. Tendo o H... mais de mil postos de trabalho.
7. O Autor, ao longo do tempo em que exerceu este cargo, foi sendo reconhecido pelos seus colegas e superiores hierárquicos como um profissional competente e dedicado.
8. E procurou, ao longo deste tempo, modernizar a rede informática do H... e torná-la mais eficaz e utilitária.
9. O Autor elaborava os planos de atividades anuais, com as adaptações indicadas pelo conselho de administração.
10. Os quais, depois, eram aprovados pelo conselho de administração.
11. A partir de cada plano de atividades, o Autor procurava manter os projetos que não seriam ‘trabalhados’, com vista a ‘recuperá-los’ em momento posterior.
12. E costumava realizar reuniões com as administrações para discutir as necessidades do serviço de informática do H....
13. No ano de 2017, o Autor apresentou candidatura num procedimento concursal para admissão de três ‘especialistas de informática’ no H..., tendo ficado classificado em primeiro lugar.
14. Mas não chegando a aceitar a sua admissão, por a mesma corresponder a uma categoria e a um nível remuneratório abaixo das condições de que então dispunha.
15. Em 22 de Janeiro de 2021, com a nomeação do novo conselho de administração, o Autor comunicou ao mesmo a sua disponibilidade para explicar o plano de actividades em curso e as prioridades do departamento que chefiava (serviço de informática).
16. E, em Fevereiro de 2021, realizou uma reunião com o conselho de administração sobre orientações estratégicas, envolvendo um dos fornecedores do H... (G...).
17. Em 23 de Fevereiro de 2021, com efeitos a partir de 1 de março seguinte, o conselho de administração da Ré, por escrito, declarou a cessação de todos os acordos de isenção de horário de trabalho em vigor, entre eles o do Autor.
18. Em 5 de Março seguinte, o Autor, por escrito, instou o conselho de administração da Ré a respeito da decisão mencionada no número anterior, alegando a necessidade de manutenção da isenção no âmbito do exercício da sua atividade.
19. O Autor, por determinação ou, pelo menos, com o conhecimento da Ré, continuou a prestar funções, quando necessário, para lá de qualquer hora fixada para o início e o término da sua atividade diária.
20. A partir de 1 de março de 2021, nos termos definidos no número anterior, o Autor, no âmbito do exercício da sua atividade ao serviço da Ré, continuou a prestar funções com ‘disponibilidade extra horária’.
21. Em 5, 16 e 18 de março de 2021, o Autor enviou emails à presidente do conselho de administração da Ré, apresentando sugestões sobre a implementação de tecnologia.
22. E sugerindo, ainda, a realização de reuniões quinzenais entre ambos.
23. À data de 16 de junho de 2021, o sistema informático do H... estava integrado numa rede alargada da administração regional, cuja gestão incumbe à Direção Regional das Comunicações (DRCom).
24. Cabia à DRCom o acesso ao suporte técnico da Microsoft, detentora da tecnologia de base onde assenta e se desenvolve o sistema do H....
25. E incumbia à DRCom participar na gestão da cibersegurança desta rede alargada, adquirindo ferramentas e aplicações para instalação nos sistemas desta rede.
26. Em 28 de maio de 2021, o Autor e o serviço de informática do H... depararam-se com uma avaria no sistema Oracle.
27. Na altura, no H..., havia falta de licenciamento deste programa e atualização desta versão (Oracle).
28. Em 16 de março deste ano, o Autor havia alertado o conselho de administração da Ré, por email, para esta falta de licenciamento / atualização.
29. Em 16 de junho de 2021, o H... foi alvo de um ataque informático.
30. Este ataque informático, segundo a informação prestada pelo sistema, consistiu na execução de uma ferramenta com capacidade para obter credenciais do administrador do domínio, ganhando, deste último, privilégios que permitiam a alteração ou destruição de informação.
31. Nos termos definidos nos dois números anteriores, a partir de 16 de junho de 2021, o serviço da informática do H... e os serviços da Direção Regional das Comunicações (DRCom) e da Direção Regional da Saúde (DRS) foram informados pelo sistema, instalado em toda a rede alargada da administração regional, de alertas para a execução de atividade suspeita em computadores do H....
32. Nestas circunstâncias, de 16 a 19 de junho de 2021, o Autor, em conjunto com alguns técnicos da sua equipa no H..., procurou debelar este ataque informático.
33. Alterando a password de administrador.
34. E retirando todos os privilégios de administração de todas as outras contas, refazendo as mesmas contas em si.
35. Os responsáveis pelos departamentos informáticos desta rede alargada da administração regional, demonstrando preocupação, procuraram trocar informação entre si.
36. Em 19 de junho de 2021, o Autor comunicou à presidente do conselho de administração da Ré a ocorrência deste ataque informático.
37. Em 20 de junho, a presidente do conselho de administração da Ré envia ao Autor um email com o seguinte teor:
“Agradeço o V empenho e em particular ao Eng. BB.
Queiram reportar se é necessário o H... adquirir outros serviços na área da Cibersegurança”.
38. A partir de 19 de junho de 2021, deixou de haver alertas de atividade suspeita.
39. Na mesma data, o Autor comunicou à presidente do conselho de administração da Ré, por email:
“(…) Neste momento em concreto não podemos dizer ter controlo completo da situação e já estamos há largas horas a investigar com os meios que temos. O risco é assim incerto neste momento, mas acreditamos que vá diminuindo à medida que vamos avaliando cada um dos servidores e entendendo como o vírus se propaga. A ameaça foi detetada, mas não existe ainda cura (antivírus) anunciada…”.
40. Em 20 de junho de 2021, através de email enviado à presidente do conselho de administração da Ré, o Autor fez referência ao facto 38).
41. Declarou o Autor no referido e-mail:
Bom dia
Após a fantástica dedicação do BB na execução de várias ferramentas de antivírus mais clonagem e recuperação de servidores RDS, parece-me efetivamente pelos meus testes aqui no H... que está tudo estabilizado.
Naturalmente ainda poderão ocorrer alguns problemas pontuais essencialmente pela mudança de privilégios de certas contas onde temos de ser cada vez mais apertados e pela falta de definições em detalhe de exclusão no sistema córtex da DRCOM que pode bloquear executáveis que não deveria, mas que só podemos ir intervindo à medida que os problemas forem sendo reportados.
De qualquer forma, para já, não estamos a receber mais alertas de alto risco. Contudo, em relação aos serviços, não deixaria a preocupação de estarem em alerta e sempre preparados, pois analiticamente neste momento não podemos garantir 100% de tudo ok nem que possa haver aqui alguma recaída. Os próximos dias vão ser fundamentais neste acompanhamento.”
Obrigado”1
42. Os serviços de informática da DRCom e da DRS, na altura, mostravam preocupação sobre a possibilidade de ficheiros com instruções maliciosas poderem propagar-se do H... para a restante rede alargada, exterior a este último.
43. A A..., que fornecia os serviços de ‘Datacenter’ ao H..., não procedeu ao ‘desligamento’ desta rede.
44. No final do dia 23 de junho de 2021, a DRCom abriu ‘incidentes oficiais de suporte’ na Microsoft.
45. Pelas 02h30-02h50 do dia 24 de junho de 2021, por decisão da Direção Regional das Comunicações (DRCOM), em conjunto com a Direção Regional da Saúde (DRS), o H... foi “desligado” da internet.”2
46. Determinando-se, nestes termos, o isolamento de todas as comunicações do H....
47. Sem que o conselho de administração do H... tenha feito qualquer comunicação prévia sobre este ‘desligamento’.
48. Esta decisão, após, foi dada ao conhecimento do Autor.
49. O qual discordava da mesma.
50. Tal decisão implicou a paragem total dos sistemas de informação do H....
51. Deixando de haver acesso ao plano de medicação dos doentes internados.
52. Deixando de haver acesso ao registo informático do historial dos doentes.
53. E deixando os equipamentos de monitorização de sinais vitais de poder enviar mensagens às estações de controlo e servidores centrais de processamento.
54. Na altura, estava inscrito no plano de atividades do H..., mas sem implementação, um módulo da G... para eliminação de risco clínico em caso de avaria no sistema hospitalar.
55. Ainda em 24 de junho de 2021, às 14:00 horas, a ... do conselho de administração da Ré, por email, entrou em contacto com o Autor, informando-o que o técnico da DRCom, Eng. CC, passaria a liderar o projeto, devendo o Autor disponibilizar toda a informação necessária.
56. E emitiu uma nota interna, com o nº.../CA/2021, que também foi tornada pública3, com o seguinte teor:
“Assunto: Detetada tentativa de intrusão externa no sistema informático do H... (cibertarque)
A rede informática do H... foi alvo nos últimos dias de uma tentativa externa de intrusão, vulgo ciberataque através da utilização de um malware.
Dada a gravidade do ataque, o CA do H... acionou de imediato protocolo instituído para situações desse género, o que passou por isolar a rede informática interna para evitar que daqui possam resultar danos extensíveis aos sistemas Serviço Regional de Saúde em geral.
Foram acionados os planos de contingência, o que significa que poderão existir aumentos do tempo de espera em certos serviços, com atraso no acesso a informação clínica dos doentes e na utilização de muitos outros serviços baseados em computadores que hoje tomamos como adquiridos.
O acesso interno a internet também foi suspenso temporariamente.
Dada a gravidade do problema, que ultrapassou a nossa capacidade interna, foi necessária a intervenção de técnicos do Governo Regional, que neste momento gerem as operações de resgate do sistema.
Não sabemos durante quanto tempo as limitações dos serviços estarão em vigor, mas pedimos que todos adotem uma atitude de ainda maior solidariedade, uma vez que se prevê um aumento da dificuldade na execução de determinadas tarefas, muitas das quais terão de ser realizadas de novo em papel.
Pedimos igualmente compreensão aos utentes do nosso Hospital, pois é uma situação que é de todo incontrolável neste momento e que vai exigir um esforço extra de todos.
É a segunda vez no espaço de apenas 1 mês que o H... é alvo de um colapso informático, e não sabemos se os dois eventos estão relacionados. Ainda.
A última falha informática está a ser averiguada, mas os primeiros relatórios detetaram situações de enorme fragilidade, quase incompreensíveis, em que o H... funcionou nos últimos anos, e que poderão ter facilitado ambos os eventos.
À Administração do Hospital ..., EPER resta esperar que as condicionantes referidas sejam levantadas com a reposição da normalidade, em tempo útil, com a segurança que se quer para o sistema informático desta Unidade de Saúde”.
57. A partir de 24 de junho de 2021, nas circunstâncias descritas em 55), os técnicos da DRCom utilizaram as instalações do serviço de informática do H... no exercício da sua atividade.
58. E realizaram reuniões nesse espaço.
59. Algumas dessas reuniões foram realizadas sem a presença do Autor.
60. Ainda em 24 de junho, a DRCom procedeu à negociação e aquisição, junto da Microsoft, de um projeto de análise deste incidente, de natureza forense.
61. Esta análise foi realizada entre 30 de junho e 7 de julho de 2021.
62. Concluindo-se com esta análise a não existência de mais ‘atividade suspeita’ a partir de 19 de junho de 2021.
63. E a necessidade de todos os ‘datacenters’ da rede alargada procederem aos mesmos trabalhos de melhoria.
64. Na sequência deste ataque informático, não houve destruição de informação ou pedido de resgate.
65. Em 30 de junho de 2021, por determinação da presidente do conselho de administração da Ré, o Autor entregou as passwords de administrador do sistema à técnica do serviço de informática H..., DD.
66. À data de 16 de junho de 2021, no sistema informático do H..., existiam equipamentos de firewall por instalar.
67. Havia necessidade de atualização da firewall existente.
68. Havia PC’s e servidores sem instalação de um programa antivírus, ‘Cortex XDR’.
69. Não estavam instituídos procedimentos que impedissem os técnicos de informática e os fornecedores de usar a mesma conta para acessos administrativos e não administrativos.
70. Havia um modelo de rede única de servidores e computadores,
71. Não estavam criados procedimentos que impedissem a existência de modelos de colaboração externa através de uma gateway de acesso via internet a todos os sistemas do H....
72. Não estava criado um procedimento de bloqueio de conta ao fim de um determinado número de tentativas de introdução de password.
73. E não estava implementado um procedimento de atualização das passwords de acesso ao sistema.
74. Existiam utilizadores ativos cujas passwords de acesso ao sistema não tinham alteração há mais de dez anos.
75. Sendo entendimento do Autor, no exercício das suas funções, que a alteração/atualização de passwords de utilizadores do sistema não constitui uma ‘medida eficaz de segurança’.
76. Também à data de 16 de junho de 2021, no sistema informático do H..., existiam sites de informação institucional do H... apenas acessíveis e controlados pelo Autor.
77. O Autor já havia solicitado um programador para esta área.
78. Assim estando indicado no plano de atividades do ano de 2021.
79. Ainda à data de 16 de junho de 2021, o H... estava sem ‘plano de contingência’ para incidentes informáticos, em especial de ciberataque.
80. O Autor já havia alertado para o descrito junto do conselho de administração da Ré.
81. Na mesma altura, o H... encontrava-se com servidores e computadores sem backups.
82. Em setembro de 2019, o Autor havia promovido a aquisição e instalação de um sistema de backup.
83. Esta medida, na altura, não foi aprovada pelos serviços da Direção Regional da Saúde.
84. Consta do relatório redigido pelos serviços da Microsoft no âmbito da investigação realizada a este ataque informático, nos termos definidos em 60) e 61), que:
a) no sistema do H... existiam várias contas de administrador “usadas em contexto não restrito”, sendo as mesmas a “primeira etapa na elevação de privilégios” nos sistemas informáticos;
b) existiam senhas “comuns” em várias contas;
c) havia senhas não encriptadas em 11 computadores, relativas a 14 utilizadores, sendo a utilização de palavras-passe em “texto não criptografado (…) arriscadas não apenas para a entidade exposta em questão, mas para toda a organização”.
85. Em 15 de julho de 2021, o Autor encontrava-se nas instalações do H..., no exercício das suas funções.
86. Nas circunstâncias descritas no número anterior, o vogal do conselho de administração da Ré, EE, dirigiu-se ao Autor, acompanhado, pelo menos, de um segurança destas instalações, e entregou-lhe um escrito com o seguinte teor:
“Nos termos do art. 163º, nº 1, do Código do Trabalhador e da cláusula 4ª, do contrato de comissão de serviço celebrado em 2 de Outubro de 2013, vem o Conselho de Administração deste Hospital pôr termo à comissão de serviço que vem exercendo como Diretor do Serviço de Informática.
Nos termos das disposições invocadas (legal e contratual) a cessação da comissão de serviço produzirá efeitos no prazo de 60 (sessenta) dias, a contar da presente comunicação escrita”.
87. Nas mesmas circunstâncias, de forma verbal, o vogal do conselho de administração da Ré, EE, deu ordem ao Autor para abandonar, de forma imediata, as instalações do H....
88. E encaminhou o Autor para o exterior destas instalações, acompanhado do segurança, diante de colegas e utentes.
89. Na mesma altura, e por determinação da Ré, ao Autor foi retirado o acesso ao seu endereço eletrónico profissional.
90. A partir deste momento, e por determinação da Ré, nos termos descritos nos cinco números anteriores, o Autor não voltou a exercer funções de ‘diretor de informática’ no H....
91. Nos dias seguintes, em número não concretamente determinado, elementos do corpo de seguranças do H..., por determinação da Ré, manteve-se junto às instalações do serviço de informática, com vista a monitorizar o eventual regresso do Autor às mesmas.
92. Este ataque informático, a partir de 19 de junho de 2021, foi divulgado através de notícias publicadas em jornais e em programas de informação emitidos na televisão.
93. Sendo comentada na comunicação social, a partir de então, a prestação profissional do Autor.
94. A cessação de funções do Autor foi divulgada, pelo menos, em notícias publicadas em jornais.
95. Como consequência do descrito em 85) a 94), o Autor sentiu-se atingido na sua autoestima.
96. E sentiu-se atingido na sua dignidade pessoal e profissional.
97. Afastando-se de amigos e familiares.
98. Perdendo peso.
99. Necessitando de medicação.
100. E como consequência do descrito em 85) a 89), o Autor sofreu um agravamento das consequências descritas em 95) a 98).
101. Após a saída do Autor, DD, já em funções no serviço de informática do H... em data anterior, assumiu o cargo de ‘responsável’ deste departamento.
102. Tendo a Ré, na coordenação deste departamento, ainda recorrido a um ‘especialista informático externo’.
103. A Ré não providenciou, em favor do Autor, pela frequência de ações de formação.
104. Em 21, 22 e 29 de setembro e 8 de outubro de 2021, o Autor, por email, instou os serviços da Ré acerca do pagamento de prestações retributivas em falta.
Por terem relevância para o presente recurso transcrevem-se igualmente os factos dados como não provados:
a) tenha sido por causa do ‘afastamento de diretores de serviços’, ocorrido em março de 2021, que uma vogal do conselho de administração da Ré tenha apresentado a sua demissão;
b) em 3 de fevereiro de 2020, o Autor tenha suspendido um ‘plano de contingência’ da autoria da G...;
c) em 16 de junho de 2021, estivessem por implementar medidas de consciencialização, por parte dos funcionários do H..., de ‘boas práticas’ de segurança no uso dos sistemas informáticos;
d) em 19 de junho de 2021, o Autor, em articulação com outros técnicos da sua hierarquia e com os serviços da DRCom, tenha conseguido controlar esta intrusão informática;
e) a segurança e a integridade do sistema informático do H..., em 19 de junho de 2021, estivessem ‘fora de perigo’;
f) entre 20 e 24 de junho de 2021, o Autor tenha deixado de ser ouvido em qualquer tomada de decisão e de participar na adoção das medidas destinadas a debelar este ataque informático;
g) a partir de 20 de Junho de 2021, e até 15 de Julho seguinte, o conselho de administração da Ré tenha atribuído poderes e funções de ‘diretor’ a subalternos do Autor;
h) tenha deixado de responder aos emails e outros contactos que o Autor lhe fazia;
i) tenha afastado o Autor da realização de reuniões relativas ao serviço de informática;
j) tenha ficado convencido que o Autor era o próprio ‘mentor’ deste ataque informático;
l) tenha divulgado que o acordo descrito em 1) e 2) havia cessado por acordo das partes;
m) tenha, junto da comunicação social e das redes sociais, declarado que o Autor era ‘responsável’ pelo ataque informático e pelo ‘desligamento’ do H... à rede;
n) algum dos membros do conselho de administração da Ré tenha transmitido o descrito nas três alíneas anteriores junto da comunicação social, nas redes sociais e em sessões de comissão parlamentar de inquérito na Assembleia Legislativa Regional;
o) após 15 de julho de 2021, o Autor tenha deixado de ser admitido por outras empresas, para o exercício de funções de ‘especialista informático’/‘diretor’, como consequência do descrito nas quatro alíneas anteriores;
p) o Autor, na sequência do descrito nas nove alíneas anteriores, tenha sentido angústia, falta de ânimo e de autoestima;
q) tenha sofrido de depressão;
r) afastando-se de amigos e familiares;
s) e necessitando de medicação;
t) a partir de 20 de junho de 2021, o Autor tenha ‘dificultado’ a ação dos técnicos da DRCom na resposta a este ataque informático;
u) na sequência do descrito em 45) e 46), tenha havido a desmarcação de intervenções clínicas;
v) a Ré tenha entregue ao Autor qualquer quantia a título de retribuição de ‘isenção de horário de trabalho’ vencida a partir de 1 de março de 2021, compensação por ‘cessação de contrato’, retribuição do período de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal;
x) quaisquer outros factos com relevância na decisão da presente causa.
De Direito
A revista excecional foi admitida pela Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3 do Código do Processo Civil apenas no que toca ao recurso do segmento decisório do Acórdão recorrido que negou ao Autor e Recorrente qualquer indemnização pelo dano da perda de chance.
Será, pois, essa a única questão que é objeto do presente recurso.
Não existe qualquer razão para excluir liminarmente que nos danos que podem decorrer para um trabalhador da violação do seu contrato de trabalho (mesmo tratando-se de um contrato especial de trabalho como é o caso para um segmento da doutrina da comissão de serviço) possam constar danos de perda de chance mormente quando a empregabilidade futura do trabalhador é prejudicada em termos sérios. O trabalhador não terá, nesse caso, que provar que determinadas e concretas ofertas de emprego não lhe foram feitas ou foram retiradas – tal equivaleria à demonstração de um lucro cessante “clássico” – mas apenas que com forte probabilidade a sua empregabilidade e a sua carreira se ressentiram, por exemplo de uma difamação via imprensa. Como este Supremo Tribunal de Justiça teve ocasião de afirmar, a respeito da violação do mandato forense, no Recurso de Uniformização de Jurisprudência proferido no processo n.º 2313/23.4T8CBR.C1-A.S1, de 05-07-2021 (Relator Conselheiro António Barateiro), publicado no DR, I SÉRIE, 18, 26-01-2022, pp. 20-41, “o dano da perda de chance processual, fundamento da obrigação de indemnizar, tem de ser consistente e sério, cabendo ao lesado o ónus da prova de tal consistência e seriedade”.
Todavia, a responsabilidade civil, inclusive contratual, não se basta com a alegação e prova de um dano exigindo-se igualmente para responsabilizar a contraparte que esta (ou um seu representante legal ou auxiliar no cumprimento) seja autora de uma conduta à qual se podem imputar tais danos.
Ora, no caso concreto e como bem sublinha o Parecer do Ministério Público junto aos autos neste Tribunal, da matéria de facto dada como provada não constam factos que permitam uma tal imputação. A nota interna a que se reporta o facto 56 foi, é certo tornada pública, mas não representa ela própria uma acusação ao Autor e uma desvalorização do mesmo na praça pública. Em parte trata-se de uma explicação ao público, sensibilizando-o e apelando para uma melhor compreensão dos problemas com que o hospital se debatia. É certo que se referem as situações de “enorme fragilidade” do sistema “quase incompreensíveis”, mas não se imputa diretamente ao Autor a responsabilidade, pelo menos primordial, por aquelas situações.
O facto 88 é humilhante – e a Ré foi condenada a pagar uma compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor em consequência – mas a publicidade do mesmo (o facto foi presenciado por colegas e utentes) foi limitada.
Na sua resposta ao Ministério Público o Recorrente invoca outros factos, mas trata-se de factos que não foram dados como provados, como resulta do elenco dos factos não provados, mormente m) e n). Assim, não se provou que o Conselho de Administração da Ré tenha, junto da comunicação social e das redes sociais, declarado que o Autor era ‘responsável’ pelo ataque informático e pelo ‘desligamento’ do H... à rede, nem tão-pouco que algum dos membros do conselho de administração da Ré tenha transmitido o descrito nas três alíneas anteriores junto da comunicação social, nas redes sociais e em sessões de comissão parlamentar de inquérito na ... Regional – ou seja, não se provou que algum dos membros do conselho de administração tenha transmitido que o Autor era o “mentor” ou o “responsável” pelo ataque informático.
No seu recurso de apelação, no segmento que incidia sobre a decisão em matéria de facto, o Recorrente tentou que tais factos fossem dados como provados, mas sem sucesso, ora porque o Tribunal da Relação, na livre apreciação da prova, insindicável por este Supremo Tribunal de Justiça, entendeu que não havia elementos de prova suficientes, ora por violação do disposto no artigo 640.º n.º 1 do CPC.
Há, pois, que concordar com o Parecer do Ministério Público quando este afirma que “deve entender-se que não ficou provada a prática pela recorrida de factos ilícitos e culposos causadores de perda de chance ao recorrente, pelo que não tem sustentação na matéria de facto a sua pretensão indemnizatória”.
Limitando-se este Supremo Tribunal, em princípio, a aplicar o Direito aos factos apurados nas instâncias, há que concluir que, na feliz expressão da sentença, não foi o empregador a desencadear o turbilhão mediático que terá prejudicado o Autor.
Decisão: Negada a revista, confirmando-se o Acórdão recorrido.
Custas do recurso pelo Recorrente.
Lisboa, 16 de outubro de 2024
Júlio Gomes (Relator)
José Eduardo Sapateiro
Domingos José de Morais
____________________________________________
1. Alterado pelo Tribunal da Relação. A redação original era: “Mais declarou, no mesmo email identificado no número anterior: “Contudo, em relação aos serviços, não deixaria a preocupação de estarem em alerta e sempre preparados, pois analiticamente neste momento não podemos garantir 100% de tudo ok nem que possa haver aqui alguma recaída”.↩︎
2. Alterado pelo Tribunal da Relação. A versão originária era a seguinte: “No início do dia 24 de junho seguinte, por decisão da Direção Regional das Comunicações (DRCom), em conjunto com a Direção Regional da Saúde (DRS), o H... foi ‘desligado’ da internet”↩︎
3. Alterado pelo Tribunal da Relação que acrescentou o inciso em itálico: “que também foi tornada pública”.↩︎