I. A passagem de cabos de condução de energia elétrica de média tensão sobre uma propriedade a coberto de uma servidão administrativa a favor da entidade responsável pela Rede de Distribuição de Energia Elétrica Nacional, mesmo que não seja impeditiva da sua utilização e fruição habitual, é susceptível de gerar direito a indemnização do titular do direito de propriedade, se dela resultar a desvalorização comercial do prédio;
II. Não se provando o valor concreto da desvalorização sofrida pelo prédio em decorrência da passagem dos mencionados cabos num percurso de 110 metros, a uma altura sempre superior a 19 metros e – em projeção horizontal – a uma distância de 5,70 da construção mais próxima, sem compromisso da possibilidade de utilização habitual do solo ou de realização de obras de construção e ampliação de edifícios existentes na propriedade, é ajustada a compensar a desvalorização comercial do prédio resultante da restrição do direito de propriedade a fixação equitativa de uma indemnização no valor de 15.00,00 euros.
EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:
Parte I – Introdução
1) AA demandou em acção declarativa sob a forma de processo comum EDP – Serviço Universal, S.A., (actualmente SU Eletricidade, SA) pedindo a sua condenação a retirar de uma propriedade do autor, que identifica, os cabos de condução de energia elétrica em alta tensão que a atravessam ou, em alternativa, no pagamento de uma indemnização conexa com a respectiva desvalorização actual (artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 43335, de 19 de novembro de 1960), em valor nunca inferior a € 15.000,00, susceptível d
Alegou, em síntese, ser dono e legítimo proprietário de um prédio urbano composto por uma casa de habitação de cave, R/C e logradouro, sito na Rua ... em ..., no qual não tem residência permanente pois que se encontra emigrado na Suíça, tendo constatado que a ré tinha passado cabos elétricos de alta tensão sobre a sua propriedade sem a sua autorização e sem nunca o ter indemnizado por tal acto expropriativo.
2) A ré contestou o pedido, arguindo, além do mais, a sua ilegitimidade, por a matéria em causa respeitar ao operador da rede, isto é, à EDP – Distribuição Energia, SA e não ao comercializador da energia.
A requerimento do autor foi deferida a intervenção principal provocada de EDP Distribuição – Energia, SA, (actualmente designada E-Redes Distribuição de Eletricidade, SA) na qualidade de associada da ré, tendo ela sido citada e apresentado contestação.
3) Na contestação, a interveniente exceciona a constituição de servidão administrativa sobre o prédio do autor desde 3 de novembro de 2003 e que obteve autorização de todos os proprietários à data identificados, desconhecendo que o autor fosse proprietário do imóvel em causa.
Mais alega que não existe um único apoio implantado no terreno do autor e que a menor distância da linha ao solo medida no prédio do autor, é de 19 metros, cumprindo todas as distâncias mínimas regulamentares dos condutores aos edifícios e todas as regras de segurança previstas em matéria de exposição a campos elétricos e magnéticos.
Nega ser devida ao autor a indemnização peticionada.
4) Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade passiva.
Teve lugar a audiência de julgamento sendo proferida sentença em primeira instância que julgou improcedente a acção e absolveu as rés do pedido.
O autor interpôs recurso de apelação de tal decisão, tendo o Tribunal da Relação decidido “anular a decisão proferida na 1.ª instância, determinando-se que a perícia seja complementada com resposta às dúvidas supra suscitadas, seguindo-se, posteriormente, os demais trâmites processuais adequados”.
5) Prestados no Tribunal de primeira instância os esclarecimentos por parte dos peritos, foi pelo autor requerida, na acta da audiência que teve lugar no dia 4 de maio de 2023, a ampliação do pedido para valor nunca inferior a 51.600 euros, “acrescido de juros vencidos desde a data da citação até à data do pagamento integral efectivo”.
A requerida ampliação do pedido foi admitida, com a consequente alteração do valor da causa.
Foi proferida nova sentença que julgou improcedentes todos os pedidos formulados pelo autor, absolvendo as rés em conformidade.
6) O autor voltou a interpor recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação de Guimarães decidido, em acórdão de 11 de janeiro de 2024, julgar parcialmente procedente o recurso e revogar a sentença recorrida que substituiu pela decisão de condenação da ré/interveniente E-Redes-Distribuição de Eletricidade, SA a pagar ao autor AA a quantia de € 15.000,00, sendo a ré EDP Serviço Universal, SA (SU Eletricidade, SA) absolvida de todos os pedidos.
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7) Inconformado o autor interpôs recurso de revista do acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça, formulando, a rematar as suas alegações, as CONCLUSÕES que se transcrevem:
“A. O aqui Recorrente/Autor não se conforma com uma parte da decisão tendo por base o art.º 722.º n.º 1 a) e n.º 2 do CPC, ou seja, com fundamento específico na violação da lei substantiva;
B. Preceitua o art.º 566.º n.º 2 do CC que “a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.”
C. O tribunal “a quo” não atentou à data mais recente para a atribuição da indemnização arbitrada, isto porque nos critérios que foram referidos para fundamentar o valor da indemnização, para além das regras de experiência comum, foi tomado em conta um parecer de promotor imobiliário apresentado pelo recorrente em 06 de outubro de 2021. A indemnização atribuída também refletiu integralmente o valor inicialmente pedido na petição inicial (que deu entrada em maio de 2019);
D. Assim, concluindo-se que a indemnização de €15.000,00 foi influenciada por referência ao valor da ação em maio de 2019, bem como pelo valor atribuído à desvalorização do imóvel em outubro de 2021, será necessário, em modesto entender, existir uma atualização desse valor, de acordo com a evolução média dos preços por m2 em Portugal, desde maio de 2019 até janeiro de 2024, para que haja respeito pelo estipulado no art.º 566.º n.º 2 CC.
E. Por outro lado, também se considera que a indemnização atribuída se encontra desajustada aos valores de mercado atuais, sendo razoável a atualização suscitada, tendo por base o artigo 62.º n.º 2 da Constituição – direito a uma indemnização justa.
F. Refira-se, por fim, que o Supremo Tribunal tem competência, por ser matéria de direito, para interpretar uma sentença/acórdão, pelo que terá competência para interpretar e avaliar os fundamentos que levaram o tribunal “a quo” a atribuir a indemnização de €15.000,00 ao recorrente, podendo também atualizar essa mesma indemnização, e tomar, em modesto entender, como referência os valores de atualização propostos pelo Recorrente.
H. Este requerimento foi deferido tendo sido, assim, deferida a requerida contabilização dos juros.
I. Tendo agora sido atribuída pelo Tribunal da Relação de Guimarães uma indemnização ao Recorrente, deveria nessa decisão vir também a referência da condenação nos juros vencidos e vincendos desde a data da citação até à data do pagamento integral e efetivo–o que não aconteceu.
J. Tal questão não se colocou antes porquanto a decisão de 1.ª instância julgou improcedente todos os pedidos formulados pelo Autor, motivo pelo qual nunca poderiam ter sido referidos nessa decisão os juros vencidos e vincendos.
K. Desta forma o Recorrente vem arguir a nulidade do Acórdão proferido em 2.ª instância, por ter existido omissão de pronúncia quanto à omissão da referência na decisão proferida aos juros vencidos e vincendos desde a data da citação até integral e efetivo pagamento, nos termos do art.º 615.º n.º 1 d) do CPC.
Nestes termos, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a decisão recorrida, nomeadamente o segmento decisório que condenou a recorrida a pagar ao Recorrente a quantia de €15.000,00, substituindo-se, neste particular, a decisão por outra que atualize a quantia indemnizatória nos termos alegados.”
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“A. O recorrente apresentou recurso de revista quanto ao acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães que condenou a recorrente a pagar-lhe a quantia de € 15.000,00, alegando, em síntese, violação de lei substantiva e nulidade por omissão de pronúncia.
B. De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 627.º do CPC, o recurso de revista é classificado como recurso ordinário, determinando o n.º 1 do artigo 629.º do CPC que “o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao Recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal (…)”.
C. Embora o Recorrente não tenha indicado o valor do recurso, se atendermos - no limite – ao valor da condenação, isto é, ao montante de € 15.000,00, sempre se conclui que não está verificado o critério da sucumbência previsto no n.º 2 do artigo 627.º do CPC.
D. Com efeito e conforme previsto no n.º 1 do artigo 44.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, a alçada do Tribunal da Relação de Guimarães é de € 30.000,00, o que significa que o presente recurso só seria admissível se a decisão em crise fosse desfavorável ao Recorrente em valor superior a € 15.000,00. O que não é o caso!
E. Sempre se dirá ainda que não ocorrem no presente caso nenhuma das exceções previstas no n.º 2 do artigo 629.º do CPC,
F. E ainda que as disposições constantes do artigo 671.º do CPC – referente às decisões que comportam revista – e do artigo 674.º do CPC – referente aos fundamentos da revista - têm como pressuposto o cumprimento dos requisitos legais respeitantes ao valor da causa e da sucumbência.
G. A Recorrida discorda igualmente dos fundamentos expendidos pelo Recorrente para alegar a violação de lei substantiva por parte do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães.
H. Com efeito, resulta do Acórdão que a indemnização foi única e exclusivamente fixada por equidade, sendo certo que o relatório pericial e o parecer junto pelo Recorrente foram considerados para dar como provada a existência da desvalorização e não o seu montante.
I. Ora, tendo a indemnização sido fixada exclusivamente por equidade não pode – como é óbvio – haver lugar a qualquer “atualização”, uma vez que à equidade não é aplicável qualquer indexante de preços ou de valores, nem mesmo qualquer taxa.
J. Por outro lado, o Recorrente pede que essa atualização seja feita como base em “parâmetros do senso comum e tendo por base a subida acentuada do valor do m2 nos últimos anos”, pedindo ao Supremo Tribunal de Justiça que conheça factos que não foram apreciados em qualquer uma das instâncias e relativamente aos quais nenhum contraditório, nem nenhuma prova foi produzida.
K. Este pedido do Recorrente é ofensivo das mais basilares regras aplicáveis ao recurso de revista que – como bem sabemos –é um recurso vocacionado para a apreciação de matéria de Direito, pelo que, também quanto a este ponto, deve ser indeferida a pretensão do Recorrente.
L. Por último, e no que contende à nulidade por omissão de pronúncia no que respeita à condenação em juros, a Recorrida reitera o que acima deixou consignado relativamente à inadmissibilidade da revista, atenta a não verificação do critério da sucumbência.
M. Ora, não sendo o recurso de revista admissível, então deveria o Recorrente ter arguido esta nulidade perante o Tribunal da Relação, conforme determina o n.º 4 do artigo 615.º do CPC.
N. Não tendo feito essa arguição no tempo e no modo processualmente devidos, então também deverá ser rejeitada a apreciação desta matéria em sede de recurso de revista.
Concluiu defendendo a inadmissibilidade do recurso de revista interposto ou, em todo o caso, a sua improcedência.
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10) Colhidos os vistos legais dos Senhores Juízes Conselheiros que subscrevem o presente acórdão, importa decidir sobre o mérito da revista interposta pelo autor.
Tendo em conta o teor das conclusões das alegações apresentadas que delimitam, em princípio e sem embargo do conhecimento oficioso de qualquer questão, o objecto da revista, e resolvida que está a questão suscitada pelo recorrentes nas Conclusões G a K, o que está em causa é saber se deve ser alterado o valor da indemnização arbitrada ao autor, nomeadamente por efeito do disposto no artigo 566.º n.º 2 do Código Civil, que manda atender na fixação do montante da indemnização à diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.
Vejamos, em primeiro lugar, o elenco dos factos apurados.
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Parte I – Os Factos
Factos provados
No acórdão recorrido foram considerados provados os seguintes factos:
1- Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial o prédio rústico denominado de M... situado em ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...36 denominado de terreno de cultivo com 11.000m2, pinhal com 6.160m2 e casa agrícola com s.c. 40m2, o qual confronta de Norte e Sul, com caminho público, Nascente, BB, poente, com a estrada.
2- A aquisição do direito de propriedade sobre tal prédio, mostra-se pela AP n.º 2 de 1993/07/22 e tem como causa “partilha subsequente a divórcio”, encontrando-se inscrito em nome de AA.
3- Mostra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo...85, que teve origem no artigo ...36, com a área de 1.000,0000m2, um prédio em propriedade total, inscrito na matriz urbana no ano de 2003, sendo o seu valor patrimonial atual determinado no ano de 2018, que confronta de Norte com caminho público a sul com caminho público, Nascente BB e a Poente Estrada Nacional, sendo o seu titular AA.
4- O autor é dono e legítimo proprietário de um prédio urbano composto por uma casa de habitação de cave, R/C e logradouro, sito na Rua ..., freguesia de ... e concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana com o n.º...85.
5- Este prédio dispõe de uma área de terreno total de 1.000,000m2, tendo uma área bruta de construção de 528,0000m2.
6- O autor encontra-se há mais de 40 anos emigrado na Suíça, não tendo residência permanente em Portugal.
7- Apenas se desloca a Portugal ocasionalmente.
8- Numa dessas deslocações, o autor constatou que havia passagem de cabos elétricos sobre a sua propriedade.
9- Nas imediações do local de passagem da linha existem várias edificações que são parte integrante da propriedade do autor, nomeadamente a designada como “casa do caseiro”.
10- O autor teve um comprador interessado na propriedade e o negócio não chegou a ser concretizado precisamente pelo facto de a propriedade ser atravessada por uma linha de alta tensão.
11- Em 24 de Novembro de 2017 foi enviada carta registada para a ré.
12- Em 02 de Maio de 2018 foi enviada, novamente, carta registada para a ré.
13- A EDP Universal fez o encaminhamento das reclamações para a EDP Distribuição.
14- A reclamação apresentada pelo autor foi respondida pela EDP Distribuição.
15- A EDP Distribuição Energia, S. A. é concessionária da rede de distribuição de energia elétrica em alta tensão e média tensão e ainda concessionária da rede elétrica de baixa tensão em múltiplos concelhos, entre os quais o concelho de ....
16- A EDP Distribuição é titular da licença vinculada de distribuição e concessionária da rede nacional de distribuição (RND) em todo o país.
17- Por RND entende-se a rede nacional de distribuição de eletricidade em média e alta tensão, cuja concessão foi atribuída à EDP Distribuição por contrato outorgado pelo membro do Governo responsável pela área de energia, em representação do Estado.
18- No que concerne à rede de média tensão esta inclui, além do mais, as linhas de média tensão.
19- A atividade prosseguida pela Interveniente EDP Distribuição reveste-se de utilidade pública.
20- Sobre o prédio do autor encontra-se estabelecido o vão compreendido entre os apoios 7 e 8 da linha aérea de distribuição de energia elétrica em média tensão a 15 kV para o posto de transformação de distribuição (PTD) ... – Parque....
21- Trata-se de uma linha com o comprimento total de 1.515 metros, sendo 1.490 metros de linha aérea e 25 metros de linha subterrânea.
22- O PTD servido por esta linha elétrica abastece de energia o Parque....
23- A EDP Distribuição é titular da licença de estabelecimento da referida linha aérea de distribuição de energia elétrica em média tensão, conferida pela entidade administrativa competente.
24- A oneração do prédio versado nos autos está legitimada pela constituição da servidão elétrica, emergente da atribuição da Licença de Estabelecimento.
25- O que se verifica desde 3 de novembro de 2003.
26- Nos anos de 2001 e 2002, a Interveniente efetuou visitas e contactos com os proprietários dos terrenos visados, no âmbito do projeto e construção da linha.
27- Essas diligências foram feitas no local, através de contacto direto com os moradores e proprietários, com recurso a topografias e cartas militares.
28- No seguimento dessas diligências, a Interveniente EDPD elaborou uma listagem de todos esses proprietários, sendo certo que dessa lista não constava o nome do autor.
29- Os trabalhos decorreram à vista de todos e sem qualquer oposição, não tendo o projeto merecido qualquer reclamação ou oposição.
30- A Interveniente obteve o consentimento de todos os proprietários à data identificados, no seguimento dos contactos e pesquisas efetuadas.
31- Durante o processo de licenciamento da linha, correram éditos dando conta da apresentação do projeto da linha elétrica em apreço, fazendo-se menção expressa à possibilidade de apresentação de reclamação contra a aprovação desse projeto.
32- Tais éditos foram publicados no Diário da República.
33- A verdade é que nenhuma reclamação foi apresentada.
34- Não foi apresentada qualquer reclamação por parte do autor.
35- No ano de 2017 – volvidos mais de 14 anos – veio o autor apresentar a reclamação com fundamento na propriedade do prédio.
36- A linha elétrica em apreço encontra-se em condições normais de exploração, dentro do seu tempo de vida útil e estabelecida de acordo com as regras técnicas e de segurança em vigor.
37- Por sua vez, os condutores da linha elétrica sobrepassam o terreno do autor cerca de 110 metros, entre os apoios 7 e 8.
38- Considerando o projeto elétrico, a menor distância da linha ao solo medida no prédio do A. é de 19 metros
39- Por seu turno, a distância dos condutores ao solo na zona da edificação como sendo a “Casa do ...”, é de 19,5 metros.
40- Por outro lado, verifica-se que é de 5,70 metros a distância do condutor exterior da linha a essa “Casa do ...”, obtida na projeção horizontal
41- Por sua vez, a distância do condutor central da linha é de 6,7 metros e a do condutor mais exterior é de 7,7 metros.
42- Os cabos de média tensão referidos no ponto 37 dos factos provados desvalorizam a propriedade do autor”. 1
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1) A questão colocada pelo autor recorrente reconduz-se a saber se foi adequadamente fixado o montante da indemnização arbitrada pela desvalorização, comprovadamente sofrida pela propriedade do autor com a colocação de cabos de transporte aéreo de energia elétrica de média tensão.
Não vem questionado o direito do autor à indemnização por violação do seu direito de propriedade sobre o imóvel a que os autos se referem tal como, face à modificação da matéria de facto, o Tribunal recorrido reconheceu.
Recorde-se que a sentença de primeira instância tinha considerado não provado (alínea 13 dos factos não provados) que os cabos de condução de energia elétrica que passam no espaço aéreo do prédio do autor se encontram “não só a desvalorizar a propriedade do autor, como a impedir a realização de obras de construção e ampliação de edifícios existentes na propriedade e contíguos à passagem desta linha” e que o acórdão recorrido alterou a decisão da matéria de facto estabelecendo que “os cabos de média tensão referidos no ponto 37 dos factos provados desvalorizam a propriedade do autor” – conforme facto 42 supre descrito, mas não impedem a realização de obras e ampliação dos edifícios existentes.
Diga-se, também, que em parte alguma da petição inicial ou do requerimento de ampliação do pedido o autor adianta um concreto valor do dano por si sofrido em decorrência da desvalorização do seu prédio.
2) A questão da existência de prejuízo inerente à desvalorização do prédio do autor decorrente da passagem dos cabos aéreos de condução de energia em média tensão sobre uma parte do prédio do autor foi claramente abordada no acórdão recorrido, analisando e valorizando criticamente os teores dos “relatórios periciais” juntos aos autos em conjugação com os depoimentos dos respectivos autores prestados em audiência e em articulação entre si.
Da avaliação da prova disponível - sujeita à livre, mas motivada, apreciação do Tribunal resultou no dizer do acórdão recorrido que “sopesadas todas essas provas, entendemos que nada há a alterar à decisão de facto da 1.ª instância quanto à 2.ª parte do facto não provado n.º 13, pois efetivamente não se provou que os cabos impeçam a realização de obras de construção e ampliação de edifícios existentes na propriedade e contíguos à passagem desta linha, mas o mesmo já não se poderá dizer quanto à desvalorização da propriedade do autor.”
3) Assente que ficou a existência de um prejuízo com tradução patrimonial do direito de propriedade do auto, o acórdão recorrido passou a abordar a questão, que é central neste recurso de revista, e se prende com a da determinação do valor do concreto prejuízo sofrido pelo autor, correspondente à diminuição do valor venal do prédio dos autos resultante da passagem dos cabos aéreos de média tensão:
“Não considerando credível, como já supra assinalámos o parecer elaborado pelo arquitecto CC, designadamente, tendo em conta as explicações e esclarecimentos que prestou em audiência sobre a forma como o mesmo foi elaborado, não podemos deixar de assinalar que, tendo em conta a experiência comum e as regras do normal acontecer, suportadas no parecer inicial do promotor imobiliário, no depoimento da testemunha DD (apesar de todas as limitações do mesmo já supra assinaladas) e nos esclarecimentos prestados pelos peritos em audiência de julgamento, após a elaboração do relatório complementar, em que acabam por aceitar que, apesar de não conseguirem ver prejuízos mensuráveis, estes, a existirem, dependerão sempre de uma avaliação subjetiva que pode conduzir a uma desvalorização comercial, dependendo da pessoa que pretenda adquirir a propriedade, teremos que concluir que a passagem dos cabos sobre a propriedade do autor, é, em si mesmo, um fator de desvalorização desta, quando comparada com outras em que tal passagem não se verifique. Trata-se de uma desvalorização do valor intrínseco do imóvel decorrente de estar onerado com uma servidão administrativa de passagem de cabos elétricos no seu espaço aéreo”.
4) Finalmente, tendo expresso os parâmetros de avaliação do dano, em si mesmo insusceptível de uma determinação objectiva, o acórdão recorrido resolveu a dificuldade encontrada na fixação do valor da indemnização, pela forma seguinte: “Não sendo possível apurar o valor de tal desvalorização (face à subjetividade da mesma e às dificuldades comparativas supra assinaladas), teremos que recorrer à equidade para fixar esse valor (artigos 4.º, alínea a) e 566.º, n.º 3 do Código Civil) e, considerando tudo o que se disse, entende-se ajustado fixar o valor da desvalorização da propriedade em € 15.000,00.”
5) Recordam-se aqui os factos provados mais relevantes em termos de possível afectação do direito de propriedade do autor (artigo 1344.º n.º 1 do Código Civil):
9- Nas imediações do local de passagem da linha existem várias edificações que são parte integrante da propriedade do autor, nomeadamente a designada como “casa do caseiro”.
37- Por sua vez, os condutores da linha elétrica sobrepassam o terreno do autor cerca de 110 metros, entre os apoios 7 e 8.
38- Considerando o projeto elétrico, a menor distância da linha ao solo medida no prédio do A. é de 19 metros.
39- Por seu turno, a distância dos condutores ao solo na zona da edificação como sendo a “Casa do ...”, é de 19,5 metros.
40- Por outro lado, verifica-se que é de 5,70 metros a distância do condutor exterior da linha a essa “Casa do ...”, obtida na projeção horizontal
41- Por sua vez, a distância do condutor central da linha é de 6,7 metros e a do condutor mais exterior é de 7,7 metros.
42- Os cabos de média tensão referidos no ponto 37 dos factos provados desvalorizam a propriedade do autor”.
Ficou ainda provado (facto 10) que “o autor teve um comprador interessado na propriedade e o negócio não chegou a ser concretizado precisamente pelo facto de a propriedade ser atravessada por uma linha de alta tensão” tendo sido o depoimento de tal interessado inconclusivo quanto aos valores envolvidos.
6) Não tendo sido apurado o valor concreto do dano sofrido pelo autor, nem existindo elementos para o calcular, no presente ou no futuro, face à natureza subjectiva e intrinsecamente incerta da desvalorização em causa efectivamente sofrida, não seria coerente relegar para momento posterior a liquidação do dano.
De facto, não se afigura sequer previsível que em sede de posterior liquidação do dano pudesse ser encontrado o valor tendencialmente exacto do valor da desvalorização sofrida dada a multiplicidade de variantes que objectivamente interferem nessa avaliação e a ausência de parâmetros de comparação.
Também assim parece ter entendido o autor ora recorrente que não coloca em questão o recurso a critérios de equidade para determinação do valor da indemnização arbitrada, antes se manifesta exclusivamente contra o facto de, em seu entender, o acórdão recorrido não ter tido em consideração o momento mais próximo da decisão, como pressupõe o artigo 566.º n.º 2 do Código Civil, devendo a indemnização ser em montante superior.
7) Sobre a determinação do montante da indemnização em dinheiro quando a reparação natural do dano não seja possível, não repare integralmente o dano ou seja excessivamente onerosa para o devedor rege o artigo 566.º do Código Civil, em cujo n.º 2 se consagra a chamada Teoria da Diferença: a indemnização tem por medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal e a que ele teria nessa data se não tivesse sofrido o dano.
Ocorrendo dano, mas não se demonstrando a medida da repercussão patrimonial da conduta do lesante na esfera jurídica do titular do direito violado, nem sendo possível averiguar o seu exacto valor, o Tribunal deve julgar equitativamente dentro dos limites que tiver por provados, como estabelece o artigo 566.º n.º 3 invocado na decisão impugnada.
8) O julgamento com recurso à equidade implica uma avaliação actualizada dos danos que a indemnização visa reparar, na exacta medida em que permite, a par da ponderação das circunstâncias do caso concreto, nomeadamente do grau de gravidade da lesão operada, e sem vinculação a estritos critérios normativos, uma abordagem que tenha em consideração a evolução da situação monetária para aferir da adequação da concreta medida da compensação.
A dúvida do autor recorrente que parece sustentar o entendimento contrário carece de fundamento sendo irrelevante a mera circunstância de o montante do valor da indemnização ter sido fixado em valor coincidente com o do pedido inicial. Decorre, aliás, do próprio texto do acórdão recorrido que foi nele ponderada a actualidade da desvalorização comercial do prédio do autor, independentemente do destino que lhe pretenda dar, mesmo que a desvalorização só venha a concretizar-se no futuro.
9) O que se extrai do acórdão recorrido é que, tendo em conta a gravidade objectiva da violação do direito de propriedade do autor sobre o prédio identificado nos autos, cujo espaço aéreo foi atravessado, numa extensão de 110 metros entre os apoios da linha elétrica 7 e 8 (ambos situados fora do prédio do autor), por cabos de condução de energia elétrica em média tensão, a mais de 19 metros de altura do solo, sendo de 19,50 metros na proximidade da construção mais próxima – a casa do caseiro - mas dela afastado – na projeção horizontal – 5,70 metros, sem compromisso de utilização habitual do solo ou de realização de obras de construção e ampliação de edifícios existentes na propriedade, a medida da desvalorização do valor venal do prédio era de fixar, equitativamente, no valor de 15.00,00 euros.
10) A reapreciação pelo tribunal superior dos juízos equitativos das instâncias há-de ter em conta a não vinculação do julgador a critérios de legalidade estrita normativa e a ausência de prova acerca do valor concreto do dano que caberia ao autor realizar, respeitando a sua margem de discricionariedade na ponderação das concretas circunstâncias do caso numa abordagem tendente ao tratamento equilibrado da compensação do autor pela restrição ao direito de propriedade que sempre implica a constituição de uma servidão administrativa por manifesto interesse público sobre bens imóveis privados.
Como se pondera no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de novembro de 2016 (revista 175/05.2TBPSR.E2.S1, de que foi relator o Sr. Juiz Conselheiro Lopes do Rego disponível em www.dgsi.pt), e constitui jurisprudência pacífica no Supremo Tribunal de Justiça, sendo o juízo de equidade alicerçado “não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, (…) tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade (…).”
Ou, como igualmente se extrai do sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de setembro de 2022 a propósito da decisão da revista 2374/20.8T8PNF-P1.S1, “na definição do quantum indemnizatório devido por danos que são apurados com recurso à equidade a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça deve ser limitada à verificação do cumprimento da lei, do recurso aos critérios habituais usados na aferição jurisprudencial e aos princípios do tratamento igualitário e não injustificado.”
11) Não extravasando a indemnização arbitrada ao autor a margem de discricionariedade permitida pelo legislador no artigo 566.º n.º 3 do Código Civil, com base na consideração das circunstâncias do caso e dentro dos limites dos factos apurados, nomeadamente a reduzida gravidade objectiva da violação do direito do autor, que não o impede de o usufruir e de tirar do prédio os proveitos inerentes à sua exploração habitual, sendo a restrição decorrente da passagem dos cabos de energia elétrica de média tensão justificada por razões de interesse público inerente à distribuição de energia elétrica, nada há a censurar ao acórdão recorrido.
12) Em conclusão a revista interposta pelo autor não merece provimento, devendo ser confirmado o acórdão recorrido.
O autor é responsável, nos termos gerais, pelo pagamento das custas da revista que interpôs e em que ficou vencido.
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Termos em que acordam em julgar improcedente a revista interposta pelo autor e confirmar o acórdão recorrido.
Condenam o autor no pagamento das custas da revista por si interposta.
Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 29 de outubro de 2024
Manuel José Aguiar Pereira (relator)
Jorge Manuel Leitão Leal
Nelson Paulo Martins de Borges Carneiro
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1. Facto provado aditado pelo acórdão recorrido e que se encontrava descrito entre os factos não provados.↩︎