INVENTÁRIO
EXCLUSÃO DE BEM
INTERVENÇÃO DE TERCEIRO
Sumário

O terceiro que se arrogue titular de bens relacionados pelo cabeça de casal tem legitimidade para pedir no inventário a exclusão desse bem.

Texto Integral

Proc. n.º 1197/22.4T8VCD-D.P1 – Apelação em separado
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível de ... – Juiz 1



Relatora: Carla Fraga Torres
1.º Adjunto: Ana Olívia Esteves Silva Loureiro
2.º Adjunto: Miguel Fernando Baldaia Correia de Morais



Acordam os juízes subscritores deste acórdão da 5.ª Secção Judicial/3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:





I. Relatório.
Recorrente: AA
Recorridos: BB e outros



AA
apresentou contra BB; CC; DD; Associação Recreativa do Rancho Regional ...; Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários ...; Delegação de ... da Cruz Vermelha Portuguesa; Centro Social e Paroquial de ...; Junta de Freguesia ...; EE e FF,
requerimento a que, invocando os arts. 333.º do CPC e 1105.º igualmente do CPC (e não C.Civil como certamente por lapso foi mencionado) chamou de Oposição no inventário por óbito de GG que constitui os autos principais, alegando, em síntese, que o cabeça de casal HH relacionou como bem da herança um prédio urbano sito na Rua ... em ..., com 54,46 m2, com implantação de arrumos/cozinha, a confrontar com prédios urbanos de nascente, poente e sul, e com estrada de norte, com o artigo matricial ...63, na freguesia ..., concelho ... – € 6.160,00, valor patrimonial na inscrição matricial, que corresponde à parcela de terreno que, há mais de 30 anos, foi incorporada, e como tal passou a ser utilizada com o conhecimento de todos, pelo falecido, pelo seu irmão e pela mãe de ambos num prédio que lhes pertencia - o prédio urbano composto de casa de dois andares e quintal, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...51 e inscrito no art.º ...3 da respectiva matriz urbana -, cuja raiz veio a ser-lhe doada por escritura pelos dois referidos irmãos.
Termina assim, pedindo a exclusão da relação de bens da verba identificada na respectiva al. a) e no Ponto 2-a) do seu Requerimento por fazer parte integrante do seu prédio identificado no Ponto 3 do mesmo Requerimento.
Notificados todos os herdeiros e o cabeça de casal/testamenteiro, a interessada BB e o cabeça de casal que a secundou responderam invocando, além do mais, a ilegitimidade processual da Requerente, ao que esta respondeu, pugnando pela improcedência da excepção.
Em sede de saneamento do processo, o Tribunal absolveu todos os herdeiros testamentários da instância por ilegitimidade activa da Opoente AA.
Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a mencionada Opoente AA, que, a terminar as respectivas alegações, terminou pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que considere ter a recorrente legitimidade para intervir no inventário, ao abrigo do art. 1105, nº 5, do C.P.C. e que ordene o prosseguimento dos termos subsequentes do incidente, com vista a ser proferida decisão final em conformidade com o regime legal aplicável.
Adrede, formulou as seguintes conclusões:
“1.º A recorrente não deduziu “oposição ao inventário”, nos termos pretensamente
configurados na decisão recorrida.
2ª - Mas apenas um “incidente no inventário”, consistente na apresentação de uma
oposição ou reclamação contra a relação de bens, ao abrigo do art. 1105, nº5, do Cód. Proc. Civil.
3ª – Por ser um terceiro que se arroga ser dona de um prédio relacionado, pretendendo a sua exclusão da relação de bens e da partilha no inventário pendente.
4 ª – A recorrente tem legitimidade para, nessa situação e qualidade, intervir no inventário e requerer a exclusão do aludido prédio.
5ª – As alternativas decisórias, neste caso, só podem ser duas:
- decisão definitiva, no próprio inventário, da questão suscitada da titularidade do prédio,
- ou, não sendo possível decidir tal questão dentro do inventário face à sua complexidade, ser proferida decisão a remeter os interessados para os meios comuns, com a determinação da não inclusão do prédio litigioso no inventário pendente e do prosseguimento dos seus termos apenas quanto aos demais bens.
6ª – Foi violado o disposto no art. 1105, nº 5, do Cód. Proc. Civil”.

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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado (a menção a “subida nos próprios autos” é um lapso como resulta do próprio despacho que ordena a instrução do respectivo apenso em separado) e com efeito meramente devolutivo.
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Recebido o processo nesta Relação, proferiu-se despacho a considerar o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com o efeito e o modo de subida adequados.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a única questão que se coloca a este Tribunal é a de saber se a Requerente, arrogando-se titular de um bem relacionado no inventário, pode deduzir a sua pretensão nos respectivos autos.
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III. Fundamentação de facto.
Além dos factos que resultam do relatório que antecede, importa considerar os factos a que o Tribunal recorrido atendeu:
- No dia 19.10.2011, GG e II outorgaram escritura de doação na qual declararam doar com reserva de usufruto para eles, doadores, de forma simultânea e sucessiva – por inteiro à morte do primeiro, a raiz ou nua propriedade, a AA, para além do mais, do prédio urbano sito na Rua ..., composto de casa de dois andares e quintal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...3 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...51 da freguesia ....
- GG, faleceu no dia ../../2021, no estado de solteiro e sem deixar ascendentes ou descendentes vivos. O falecido, em 30.03.2020, outorgou testamento e deixou como herdeiros universais, com as seguintes proporções:
1. BB com 50%.
2. CC com 5%.
3. DD com 2%.
4. Associação Recreativa do Rancho Regional ... com 30%.
5. Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários ... com 2%.
6. Delegação de ... da Cruz Vermelha Portuguesa com 2%.
7. Centro Social e Paroquial de ... com 2%.
8. Junta de Freguesia ... com 3%.
9. EE com 2%.
10. FF com 2%.
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IV. Fundamentação de direito.
Delimitada a questão essencial a decidir, nos termos sobreditos sob o ponto II, cumpre apreciá-la.
Através do requerimento que cunhou de Oposição, a Recorrente pede que seja excluído da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal o prédio supra identificado por o mesmo ter sido incorporado e utilizado pelo falecido GG, pelo irmão deste e pela mãe de ambos num outro prédio, cuja raiz lhe foi doada a si Recorrente, com reserva de usufruto, pelos dois irmãos.
Verifica-se, pois, que a Recorrente se apresenta no inventário por óbito de GG não como herdeira, legatária ou donatária, mas como terceira que se arroga proprietária de um dos bens relacionados pelo cabeça-de-casal, como bem da herança.
Verdade que a legitimidade para requerer processo de inventário sucessório e para nele intervir como parte principal, está limitada, por força do art. 1085.º do CPC, a quem tenha determinada qualidade, mormente a quem seja interessado directo na partilha, (n.º 1 al. a) – ou seja herdeiros directamente beneficiados pela partilha (art. 2101.º, n.º 1 do CC), que, a par do Ministério Público quando tenha intervenção principal, têm à disposição e, por regra, em exclusivo, os meios de tutela previstos no art. 1104.º do CPC, para defenderem os seus interesses e para suscitarem as questões que importa resolver em ordem a alcançar a partilha da herança.
Como explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa “A legitimidade direta, além de se manifestar através da possibilidade de promover a abertura do processo de inventário, permite ainda ao interessado a intervenção principal espontânea ou provocada em qualquer altura do processo, facultando o acesso aos meios de tutela previstos no art. 1104º e a outras intervenções processuais…” (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, Almedina, pág. 533).
Por outro lado, “A legitimidade para a dedução de alguma oposição, impugnação ou reclamação prevista no art. 1104º - salientam os mesmos autores – é reservada aos interessados diretos (para além do cônjuge meeiro, tendo em conta o disposto no art. 1085º, nº 1, al. a)) e ao Min. Público. Quanto aos legatários e donatários, as posições que assumam terão de cingir-se ao que disser respeito aos seus direitos e interesses (n.º 3)” (in loc. cit., pág. 569).
É certo que a Requerente não é nem invoca a qualidade de herdeira, e a reconhecida qualidade de donatária, como bem sublinhou o Tribunal a quo, não lhe confere “legitimidade para intervir no processo de inventário ao abrigo do disposto no art. 1085.º, n.º 2, al. a) – nem, acrescenta-se, do art. 1104.º, n.º 3 do CPC) -, porquanto não há herdeiros legitimários (definidos no art. 2157.º do Código Civil) e como tal a doação não afectará, como não afecta, a legítima (inexistente nestes autos), nem determinará qualquer eventual redução da doação”.
Nesta medida, a Recorrente não foi citada nem tinha de o ser (cfr. além do já citado art. 1104.º, n.º 3, os arts. 1100.º, n.º 2 e 1088.º, n.º 2 do CPC).
De resto, como também foi salientado na decisão recorrida, o fundamento da Oposição da Recorrente “não constitui um dos fundamentos legais para deduzir oposição ao inventário, pois a eventual procedência do alegado pela Opoente nunca determinaria a extinção dos autos, mas apenas e só, a eliminação de uma verba do acervo hereditário”.
O que sucede no caso concreto é que, apesar de o ter apelidado de Oposição, o objecto do requerimento da Recorrente corresponde justamente à pretensão de um terceiro que se arroga titular de bem relacionado e como tal deduz pedido de exclusão do mesmo da relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal.
Ora, o art. 1105.º, n.º 5 do CPC dispõe que se estiver em causa reclamação deduzida contra a relação de bens ou pretensão deduzida por terceiro que se arrogue titular dos bens relacionados e se os interessados tiverem sido remetidos para os meios comuns, o processo prossegue os seus termos quanto aos demais bens. Deste preceito, extrai-se, portanto, como Domingos Silva Carvalho Sá sublinha, que “Confere a lei adjetiva a qualquer interessado na partilha ou a qualquer terceiro a possibilidade, desde que tenham legítimo interesse nisso, de pedir a exclusão do inventário de qualquer bem que tenha sido relacionado pelo cabeça-de-casal como fazendo parte da herança, o que poderão fazer a todo o tempo, isto é, até à conferência de interessados” (in “Do Inventário Descrever, Avaliar e Partir”, 8.ª Edição Revista e Actualizada, Almedina, pág. 145).
Na situação em apreço, da factualidade alegada pela Recorrente resulta o seu legítimo interesse na pretensão que deduziu de o identificado prédio ser excluído do inventário, o que, em termos processuais, encontra abrigo, nos termos sobreditos, numa das disposições do art. 1105.º do CPC, de resto, mencionado, como tal, pela Requerente no seu Requerimento.
Assim, e ao abrigo do art. 30.º do CPC, à Recorrente assiste legitimidade para nos autos principais de inventário pedir que se exclua da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal o bem de que se arroga titular, e, consequentemente, para aí iniciar o incidente correspondente.
Pelo exposto, impõe-se revogar a decisão recorrida e, em conformidade, ordenar, nada obstando, o prosseguimento do incidente deduzido pela Recorrente de exclusão de bens relacionados.
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):
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V. Decisão
Perante o exposto, concedendo provimento à apelação, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em reconhecer à Recorrente legitimidade para nos autos principais de inventário deduzir pedido de exclusão de bens relacionados, e, consequentemente, em ordenar, nada obstando, o prosseguimento do incidente correspondente, e, em, como tal, revogar a decisão recorrida.

Custas do recurso pelos Recorridos/Habilitados.

Notifique.






Porto, 21/10/2024.
Carla Fraga Torres
Ana Olívia Loureiro
Miguel Baldaia de Morais