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INSOLVÊNCIA PESSOA SINGULAR
DISPENSA DE LIQUIDAÇÃO DA MASSA
APURAMENTO DO VALOR DO BEM
AVALIAÇÃO OFICIOSA
Sumário
A dispensa de liquidação prevista no artº 171º do CIRE, não prevendo, embora, a avaliação prévia do bem por iniciativa do juiz, não proíbe a mesma. Tendo sido efetuada tal avaliação, não deverá a mesma ser desconsiderada, não se podendo concluir pela nulidade dos atos, nos termos e para os efeitos do artº 195º, nº1, do CPC ex vi artº 17º do CIRE.
Texto Integral
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I – Relatório:
Em 2 de fevereiro de 2024 foi prolatado no apenso C um despacho onde se decidiu: Ora, tudo visto e face ao que ficou supra referido, tendo em conta a avaliação efetuada nos autos, afigura-se-nos que o valor do quinhão hereditário deverá ser fixado em função do seu valor de mercado afixado pela avaliação realizada, portanto, pelo valor de €43.050,00 (refª ...19, de 24-05-2023). Resta saber que valor deve ser fixado para se dispensar a liquidação da massa, tendo em conta que o valor a fixar não deverá ser inferior à que resultaria dessa liquidação. Tal como já referiu o senhor AI, no presente caso deverá ser considerando que o direito a um quinhão hereditário normalmente tem interesse para poucos, tendendo a liquidação a demorar vários meses. Ainda assim, afigura-se-nos que fixar o valor do mesmo em 64% abaixo do seu valor real não será benéfico para os credores. A dificuldade está em encontrar o valor justo e que resultaria da liquidação. Assim, decide-se dispensar a venda do quinhão em causa pelo valor referente a 85% do seu valor real, ou seja, pelo valor de €36.500,00. Pelo exposto, autorizo a dispensa de liquidação, nos termos do disposto no artigo 171º do CIRE, contra a entrega à massa insolvente pelo insolvente do valor de €36.500,00. Notifique.
Inconformado com a decisão, o insolvente apelou, formulando as seguintes conclusões:
1ª A decisão (documento com a referência ...68) na origem da presente apelação resulta da discordância do recorrente quanto ao facto de nos termos do artº 171º nº 1 do CIRE, se o devedor for uma pessoa singular e a massa insolvente não compreender uma empresa, o juiz pode dispensar a liquidação da massa, no todo ou em parte, desde que o devedor entregue ao administrador de insolvência uma importância em dinheiro não inferior à que resultaria dessa liquidação.
2ª A dispensa da liquidação supõe uma solicitação nesse sentido por parte do AI, com o acordo prévio do devedor.
3ª Através do invocado regime, permite-se que o processo de insolvência tenha um carácter mais célere e eficiente, evitando-se a prática de diligência que poderiam agravar custos e das despesas, salvaguardando-se a perceção de rendimentos.
4ª A decisão judicial de autorização de dispensa da liquidação não depende da anuência prévia da assembleia ou da comissão de credores, e máxime no entender do recorrente dos credores, os quais poderão ter perceções divergentes e diferenciadas.
5ª Com efeito, a anuência dos credores não releva, nem é obrigatória.
6ª O AI, referiu em parecer, que no presente caso, deverá ser considerado que o direito a um quinhão hereditário normalmente tem interesse para poucos, tendendo a liquidação a demorar vários meses.
7ª Ora, o despacho em crise, que decidiu dispensar a venda do quinhão hereditário em causa pelo valor referente a 85%, valor dito real, ou seja, pelo valor de 36.500,00 €, ao não ter em conta o valor proposto pelo liquidatário, 27.500,00 € que apreciou nos termos do critério estabelecido no artigo 171º do CIRE, e tendo notificado os credores, que em prazo, nada disseram, violou o artigo 171º do CIRE.
8ª E violou o disposto no artigo 171º do CIRE, porque o critério que aplicou, 85% do valor dito real, é o que consta no preceito relativo à venda de imóveis mediante propostas de carta fechada, nas execuções comuns, designadamente o que consta no artigo 816º, nº 2 do CPC.
9ª Com efeito, se fosse essa a intenção do legislador, teria sido fixado na referida norma, artigo 171º do CIRE, a percentagem referida no artigo 816º, nº 2 do CPC. Pelo contrário, o que legislador pretendeu fixar como critério a importância em dinheiro não inferior à que resultaria dessa liquidação.
10ª Importância, essa, ponderada e proposta pelo AI.
11ª O Insolvente manifestou o interesse em exercer o direito contido no artº 171º do CIRE, propondo o valor de 27.500,00, para assim, ser dispensada a liquidação do direito apreendido.
12ª A referida proposta foi dada a conhecer aos credores, que em tempo, nada disseram.
13ª O despacho recorrido violou o disposto no artigo 171º do CIRE. Termos em que deve a apelação ser procedente, por consequência ser revogado o despacho com a referência ...68, mantendo-se o valor de 27.500,00 €, aceite pelo AI, em cumprimento do disposto no artigo 171º do CIRE.
Foram apresentadas contra-alegações pugnando pela manutenção do decidido.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.
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II – Questões a decidir:
Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.
A questão a decidir é, assim, apurar a licitude da fixação do valor do quinhão hereditário na sequência de avaliação mandada efetuar pelo tribunal recorrido, e subsequente critério adotado para fixação do valor, face ao regime do artº 171º do CIRE.
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III – Fundamentação:
A. Fundamentos de facto:
Os factos provados com relevância para a decisão do presente recurso são os constantes do relatório deste acórdão.
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B. Fundamentos de direito.
O recorrente fundamenta a sua discordância na alegação de que a decisão de autorização de dispensa da liquidação não depende da anuência prévia da assembleia ou comissão de credores, sequer destes, a qual não releva nem é obrigatória.
Dispõe o artº 171º do CIRE: Pressupostos 1 - Se o devedor for uma pessoa singular e a massa insolvente não compreender uma empresa, o juiz pode dispensar a liquidação da massa, no todo ou em parte, desde que o devedor entregue ao administrador da insolvência uma importância em dinheiro não inferior à que resultaria dessa liquidação. 2 - A dispensa da liquidação supõe uma solicitação nesse sentido por parte do administrador da insolvência, com o acordo prévio do devedor, ficando a decisão sem efeito se o devedor não fizer entrega da importância fixada pelo juiz no prazo de oito dias.
Maria do Rosário Epifânio in “Manual de Direito da Insolvência”, 7ª edição, página 318, refere que “Na dispensa da liquidação nem sequer chega a haver liquidação, alcançando-se a satisfação dos interesses dos credores por outra via. Neste caso, o juiz, a solicitação do administrador da insolvência e com a prévia concordância do devedor, pode dispensar a liquidação da massa (total ou parcialmente), desde que o insolvente seja uma pessoa singular, a massa insolvente não integre uma empresa e, ainda, o devedor entregue ao administrador da insolvência uma quantia não inferior àquela que resultaria da liquidação (dentro do prazo de 8 dias a contar do momento em que é fixada pelo juiz.”
Trata-se de um instituto inspirado por razões de economia e celeridade processuais, bem como pela necessidade de proteger o devedor – Luís Carvalho Fernandes e João Labareda in “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 2008, página 570.
O recorrente tem razão quando alegou que a decisão de autorização de dispensa da liquidação não depende da anuência prévia da assembleia ou comissão de credores, sequer destes, a qual não releva nem é obrigatória. Todavia, tal em nada contende com os atos praticados pelo tribunal recorrido.
Com efeito, nada na lei impede que o juiz do processo ouça os credores, nem que diligencie pelo apuramento do valor de mercado do bem. É certo que o artº 153º do CIRE, no seu nº 3, estabelece, diferentemente do regime geral em que tal tarefa incumbe ao administrador da insolvência, que a avaliação dos bens ou direitos pode ser confiada a peritos quando tal avaliação for particularmente difícil. Não dispomos de elementos para saber se é este o caso. Mas, mesmo não o tendo sido, não resulta do preceito que tal avaliação já efetuada, porventura indevidamente, deva ser desconsiderada, não se podendo concluir pela nulidade dos atos, nos termos e para os efeitos do artº 195º, nº1, do CPC ex vi artº 17º do CIRE.
Repare-se que, de acordo com o artº 1º, nº1, do CIRE, a finalidade do processo de insolvência é a satisfação dos credores, que deverá ser buscada através da liquidação do património do insolvente e subsequente repartição do produto obtido pelos credores quando não seja possível a recuperação da empresa compreendida na massa insolvente.
Assim, a obtenção de um preço compatível com os valores de mercado satisfaz as exigências de justiça relativa, permitindo simultaneamente aos credores verem o seu interesse satisfeito, salvaguardando, de igual forma, o insolvente, que continua a ter a faculdade de ficar com o bem pelo seu justo valor, caso o pretenda.
Repare-se ainda que, se é certo que da avaliação efetuada resultou um valor superior ao proposto e sugerido pelo senhor administrador, até poderia concluir-se, em tese, por um valor inferior. E nada foi alegado que permita concluir pela inadequação do valor resultante da avaliação, designadamente por indevidamente inflacionado.
Por outro lado, contrariamente ao defendido pelo recorrente, a aplicação do critério de fixação do preço da venda tendo por referência 85% do valor de mercado não configura qualquer violação do disposto no artº 171º, tendo o tribunal recorrido lançado mão do disposto no artº 164º do CIRE e 816º, nº2, do CPC, fundamentando-se, por isso, nos preceitos da venda executiva, como permite o CIRE.
Inexiste assim qualquer fundamento para revogar o despacho recorrido, que se mantém, improcedendo integralmente o recurso interposto.
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V – Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente – artº 527º, nº1, e 2, do CPC.
Notifique.
Guimarães, 17 de outubro de 2024.
Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1ª Adjunta: Lígia Paula Venade.
2º Adjunto: José Alberto Martins Moreira Dias.