ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
FALTA DE CAUSA DE ATRIBUIÇÃO PATRIMONIAL
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I - A existência de um documento particular relativo a interpelação para pagamento, redigido por mandatário forense, em representação das autoras, não é capaz, desacompanhado de outros elementos, de comprovar qualquer solicitação da contraparte para a realização de transferências bancárias e sob o propósito de restituição das quantias transferidas.
II - Na obrigação de restituir com fundamento em enriquecimento sem causa, constitui ónus do autor alegar e provar, entre os demais requisitos previstos na lei, e através do acervo factual e probatório necessário para o efeito, o facto negativo da falta de causa da atribuição patrimonial, não bastando para esse efeito, segundo as regras gerais do ónus da prova, que não se demonstre a existência de uma causa da atribuição.
III - Na falta de alegação na petição inicial, com propriedade, de quaisquer factos autónomos justificativos do enriquecimento sem causa, deve concluir-se que não foi deduzido pedido subsidiário com esse fundamento, tendo existido apenas a invocação de um argumento jurídico, ou razão de direito, nos termos do art. 552.º/1, al. d), do CPC, embora secundário, susceptível de alicerçar o pedido de restituição que as autoras deduziram a título principal com base na nulidade do contrato de mútuo por inobservância da forma legal.
IV - Todavia, no nosso ordenamento jurídico, as regras do enriquecimento sem causa não têm aplicação ao caso de um contrato de mútuo nulo por falta de forma.

Texto Integral

Acção Comum nº19216/22.2T8PRT.P1

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO (3.ª SECÇÃO CÍVEL):

Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
1.º Adjunto: Anabela Mendes Morais
2.º Adjunto: Miguel Fernando Baldaia Correia de Matos

RELATÓRIO.
A..., S.A., com sede na Rua ..., n.º ..., 4.º sala ..., no Porto, e B..., UNIPESSOAL LDA., com sede na Rua ..., ..., também no Porto, propuseram a presente acção declarativa, com processo comum, contra AA, titular do NIF ......, residente na Rua ..., Hab ..., no Porto, BB, portadora do NIF ......, residente na mesma morada, e C..., LDA., sociedade comercial com o NIPC ..., sediada na Rua ..., na ....
Pediram que, julgados nulos os contratos de mútuo identificados na petição inicial, sejam os dois primeiros réus condenados, de forma solidária, a restituir as quantias de € 12.505,98 à autora A... e de € 6.255,98 e € 7.500,00 à autora B..., Unipessoal, Lda., S.A., bem assim, sejam todos os réus condenados a restituir a quantia de € 4.000,00 à autora B..., Unipessoal, Lda..
Subsidiariamente, pediram que, julgando-se verificada a existência de enriquecimento sem causa, sejam os réus condenados a restituírem às autoras, nos termos supramencionados, os montantes com que injustamente se locupletaram.
Na contestação, os réus reconheceram a veracidade de parte da alegação constante na petição inicial, impugnando a restante, e no mais, em resumo, afirmaram que o réu AA manteve relacionamento comercial com o representante legal das autoras, com ele constituindo uma sociedade de facto que comprava e vendia imoveis e mediava negócios imobiliários, resultando as transferências a seu favor de acertos de contas nesse âmbito.
As autoras apresentaram articulado de resposta, reiterando todo o alegado na petição inicial e respetivos documentos, nomeadamente quanto à transferência dos montantes constantes nos autos para as contas das Rés e, bem assim, à outorga dos contratos de mútuos.
Findos os articulados, foi proferido despacho saneador, que procedeu, sem reclamações, à fixação do objecto do litígio e dos temas da prova.
Após a junção de novos documentos pelas partes, realizou-se a audiência de julgamento e foi proferida sentença que julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo os réus do pedido.
E foi dessa sentença que, inconformadas, as autoras interpuseram recurso de apelação, admitido com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo, rematando com as seguintes conclusões:
a) Do teor da petição inicial e da contestação, bem como da prova produzida nos presentes autos, foram dados como provados e como não provados os factos constantes na sentença com referência citius 458796090 e que aqui se deverão dar como integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais.
b) Face aos factos provados e não provados, decidiu o tribunal ora recorrido julgar a ação intentada improcedente. - Salvo o devido respeito por opinião contrária, não podem as Autoras, ora Recorrentes aceitar a decisão proferida, o que motivou a interposição do presente recurso.
Da errada apreciação da prova;
c) Referem desde já as Recorrentes nada ter a opor quanto à fixação da factualidade dada como provada, na medida em que da prova produzida resulta claro que as transferências foram feitas para os Réus. “(…)
D) A Autora A..., S.A. transferiu a quantia de 12.505,98(doze mil, quinhentos e cinco euros e noventa e oito cêntimos), para a conta da esposa do Réu, AA (também Ré), número ..., da Banco 1... S.A..
E) A Autora B..., Unipessoal, Lda., transferiu para a conta do réu AA, número ..., da Banco 1... S.A., a quantia de 6.255,98 (seis mil, duzentos e cinquenta e cinco euros e noventa e oito cêntimos) e depois de 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros).”
d) Quanto aos factos dados como não provados, nomeadamente os factos a) e c) não podem as Recorrentes aceitar que sejam fixados como não provados, quando na verdade foi produzida prova bastante, suficiente e adequada a dar os mesmos como provados. Vejamos:
a) As quantias referidas em D) e E) dos factos assentes foram entregues, por solicitação verbal, aos réus AA e BB com o propósito de que fossem restituídas às autoras.
(…)
c) Os réus foram interpelados para proceder à restituição das quantias referidas em D) e E) dos factos assentes e do Ponto 2.”
e) Resulta do documento junto com a petição inicial – documento 4- interpelação para pagamento enviada por carta registada com AR e por carta registada entregue a 30 de setembro de 2022, que as Autoras interpelaram os Réus para restituição dos montantes mutuados. Pelo que, da análise de tais documentos juntos aos autos, dúvidas não podem restar que o mútuo verbal, ainda que nulo, foi celebrado, tendo as Autoras procedido ao empréstimo aos Réus, o que fizeram através das transferências dadas como provadas nos presentes autos, com o intuito de tais montantes lhe serem restituídos.
f) Prova disso foi a interpelação efetuada e devidamente demonstrada nos presentes autos, interpelação para restituição dos montantes que não foi devidamente impugnada.
g) Perante o exposto, devem ser dados como provados os factos a) e c) dos factos não provados.
Quanto ao preenchimento dos requisitos do mútuo,
h) Atenta a prova produzida e a conversão dos factos não provados constantes das alíneas a) e c) em factos provados encontram-se, salvo devido respeito por opinião contrária, preenchidos os elementos de facto para que se tenha por celebrado o contrato de mutuo invocado pelas Autoras, nomeadamente, resulta provado nos presentes autos que os montantes (constantes das transferências efetuadas – factos provados) foram entregues aos Réus a titulo de empréstimo, e com o propósito de serem restituídos – tal como resulta da prova documental junta aos autos e que aqui se deverá dar como integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais.
i) Tal como resultou dos articulados da petição inicial apresentada pelas ora Recorrentes, o aludido contrato de mútuo será sempre nulo por falta de forma- contrato verbal, o que implica necessariamente e consequentemente a restituição dos montantes emprestados às ora recorrentes sob pena de enriquecimento sem causa.
j) Tais montantes não foram objeto de uma doação; Tais montantes não foram objeto de um acerto de contas, aliás, nenhuma prova foi apresentada nesse sentido, tendo inclusive os Réus prescindido da prova a produzir em sede de audiência de julgamento. – atente-se que foram dados como não provados (e bem) os factos d) e e) da sentença recorrida.
Quanto à prova do enriquecimento sem causa,
k) Reiteramos que foram dados como provadas as transferências das Autoras para os Réus das quantias de 26.261,96 (vinte e seis mil, duzentos e sessenta e um euros).
l) Aliás, tal como já referido, mas que ora reiteramos, tais montantes não foram objeto de um acerto de contas como alegado, mas não provado pelos Réus, assim, nenhuma prova foi apresentada nesse sentido, tendo inclusive os Réus prescindido da prova a produzir em sede de audiência de julgamento.
m) quanto aos factos não provados resulta o seguinte:
d) As transferências referidas nos Pontos 1. e 2. entre as Autoras e o Réu resultaram de acertos de contas entre ambos mercê da relação comercial que de facto existia entre o réu e o legal representante das autoras.
e) Nomeadamente, porque o réu AA usava um cartão de visita onde se pode ler que era “...” da Autora B... imobiliários e tinha sido nomeado procurador das Autoras.” FACTOS NÃO PROVADOS.
n) Ou seja, cabendo aos Autores fazer prova de existência de uma causa, tendo os réus invocado uma e não a provado, a contrario, deve o tribunal considerar e ter ficado convencido que não houve nenhuma causa que justifique tais transferências.
o) Caso se entenda que não houve mútuo (seja este válido ou inválido), dúvidas não poderão restar que estamos perante um enriquecimento sem causa dos Réus, na medida em que: as Autoras transferiram para a conta dos Réus a quantia de 26.261,96 (vinte e seis mil, duzentos e sessenta e um euros); sendo que, no que ora se discute, sem causa justificativa – não resultam dos factos provados causa justificativa para a transferência dos aludidos montantes, resultando, pelo contrário dos factos dados como não provados; com a transferência de tais montantes verifica-se um empobrecimento das Autoras; Contrariamente, com a transferência de tais montantes verifica-se um enriquecimento, sem causa justificativa dos Réus; e a lei não faculta ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado.
p) Pelo que é nosso entendimento encontrarem-se preenchidos nos presentes autos os requisitos para a aplicação do instituto do enriquecimento sem causa, razão pela qual deverá ser ordenada pelo douto tribunal a restituição dos montantes transferidos para as Autoras.
Finalizaram pedindo que, pela procedência do recurso, os pedidos formulados pelas autoras sejam julgados procedentes.
Os réus ofereceram resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência e na qual, em síntese, afirmaram que as autoras não cumpriram o disposto no art. 640.º do CPC para impugnar a matérias de facto, que esta foi correctamente decidida em primeira instância, e que as apelantes partem de uma premissa errónea do que sucede no processo, pois não são os factos constitutivos alegados pelos, aqui, recorrentes que têm de prevalecer para que a acção seja julgada procedente, são os factos constitutivos do direito que as autoras, aqui apelantes, se arrogam que têm de ser provados por aquelas.
Terminaram com a elaboração de conclusões, em número de cinquenta e quatro e que, não evidenciando préstimo para a finalidade que lhes está subjacente, de sintetizar a argumentação da parte relativamente ao recurso, e dada a sua injustificada extensão, nos vamos abster de reproduzir.
Nada obsta ao conhecimento do recurso, o qual foi admitido com o efeito e no regime de subida apropriados.

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OBJECTO DO RECURSO.
Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões, as quais, assim, definem e delimitam o objeto do recurso (arts. 635º/4 e 639º/1 do CPC).
Assim sendo, importa em especial apreciar:
a) se foi validamente deduzida e procede a impugnação da matéria de facto, quanto aos factos indicados nas alíneas a) e c) da sentença, de modo a que eles sejam julgados provados (conclusões C a G);
b) se estão verificados os elementos necessários para que se tenham por celebrados entre as partes os contratos de mútuo invocados na petição inicial (conclusões H a J);
c) na negativa à segunda questão, se estão preenchidos os requisitos do enriquecimento sem causa (conclusões K a P).
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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Em sede de factualidade relevante julgada provada em primeira instância, nenhum ponto foi colocado em crise no recurso, embora as recorrentes tenham defendido a existência de outros merecedores, a seu ver, de resposta idêntica, relativos às alíneas a) e c) da matéria não provada, cujo conhecimento por este Tribunal da Relação será averiguado mais adiante.
Assim, sem prejuízo da subsequente consideração dessa alegação, está apurada nos autos a seguinte matéria factual, extraída da decisão recorrida e que não foi impugnada pelas partes:
1. Autora D..., S.A, alterou a designação da firma para A..., S.A.
2. A Autora A..., S.A é uma sociedade comercial que se dedica à compra, venda e revenda de imóveis; atividades de consultoria, orientação e assistência operacional a empresas ou organismos, nomeadamente nos domínios do planeamento estratégico, organizacional, gestionário e administrativo; atividades de gestão de patrimónios; atividades de intermediários de seguros; atividades gestoras de participações sociais não financeiras.
3. A Autora B..., Unipessoal, Lda., é uma sociedade comercial que se dedica à compra e venda de bens imobiliários.
4. A Autora A..., S.A. transferiu a quantia de € 12.505,98 (doze mil, quinhentos e cinco euros e noventa e oito cêntimos), para a conta da esposa do Réu, AA (também Ré), número ..., da Banco 1... S.A..
5. A Autora B..., Unipessoal, Lda., transferiu para a conta do réu AA, número ..., da Banco 1... S.A., a quantia de € 6.255,98 (seis mil, duzentos e cinquenta e cinco euros e noventa e oito cêntimos) e depois de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros).
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IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Como se sabe, a admissibilidade do recurso em matéria de facto depende do cumprimento de alguns ónus.
De acordo com o disposto no artigo 640º/1 do Código de Processo Civil, é imposto ao recorrente que especifique:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas
Enquanto o número 2 prevê que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
A análise do recurso demonstra, ao contrário do entendimento dos réus, que as recorrentes cumpriram as referidas exigências, indicando os concretos pontos de facto que, a seu ver, foram incorretamente julgados – as alíneas a) e c) da matéria não provada, os meios probatórios que, na mesma perspectiva, justificarão outra resposta – o documento nº4 junto com a petição inicial, e a decisão diversa que entendem adequada – a resposta afirmativa, no sentido de que os referidos factos sejam julgados provados.
Devendo destacar-se, a respeito da observância do único ónus em que tal poderia ser discutido, acima referido em primeiro lugar, que, não obstante a impugnação em conjunto de dois factos, a matéria impugnada está indissociavelmente ligada entre si e a sua apreciação global tem respaldo nos mesmos meios de prova, o que satisfaz à exigência legal para a admissibilidade da impugnação factual deduzida.
Neste sentido, por exemplo, decidiu o Supremo Tribunal de Justiça que “tendo em conta os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ínsitos no conceito de processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), nada obsta a que a impugnação da matéria de facto seja efetuada por “blocos de factos”, quando os pontos integrantes de cada um desses blocos apresentem entre si evidente conexão e, para além disso - tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, nomeadamente, o número de factos impugnados e a extensão e conexão dos meios de prova - o conteúdo da impugnação seja perfeitamente compreensível pela parte contrária e pelo tribunal” (cfr. Acórdão de 1/6/2022, relatado por Mário Belo Morgado, no processo nº1104/18.9T8LMG, e disponível na base de dados acima identificada).
Todavia, o cumprimento formal do regime previsto no art. 640.º do CPC não determina, por si só, muito naturalmente, a procedência do recurso na parte relativa à impugnação da matéria de facto.
Para o efeito, é ainda indispensável, como é manifesto, que o tribunal ad quem fique convencido de que a prova indicada pelo recorrente, e outra que eventualmente resulte dos autos com relevância, justifica a pretensão factual que ele deduziu.
Em suma, como refere doutrina qualificada a respeito da questão, “nesta fase da admissão formal do recurso de apelação em que é impugnada a matéria de facto, importa que se estabeleça uma clara separação entre os requisitos formais e os ligados ao mérito ou demérito da pretensão que será avaliado em momento posterior” (cfr. A. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., p. 208).
É mister, em consequência, que seja apresentado, ou se vislumbre nos autos, um quadro probatório que espolete a aplicação do comando previsto no art. 662.º/1 do CPC e, assim, permita à Relação a conclusão de que os factos assentes, a prova produzida ou os documentos juntos impõem decisão diversa quanto aos pontos concretamente impugnados.
No caso dos autos, as recorrentes insurgem-se contra a resposta negativa dada à seguinte factualidade:
a) As quantias referidas em D) e E) dos factos assentes foram entregues, por solicitação verbal, aos réus AA e BB com o propósito de que fossem restituídas às autoras;
c) Os réus foram interpelados para proceder à restituição das quantias referidas em D) e E) dos factos assentes e do Ponto 2.
E, para o efeito, invocam em especial o documento nº4 que acompanhou a petição inicial e que, na verdade, não foi objecto de impugnação pelos réus na contestação, conjugadamente com a restante prova documental referente às transferências bancárias.
Visto o referido documento, porém, é fácil concluir pela sua manifesta insuficiência para que os factos referidos nas alíneas a) e c) possam julgar-se demonstrados ou, em qualquer caso, para que mereçam resposta diversa daquela que sobre eles foi dada em primeira instância.
Na verdade, trata-se apenas de uma carta, denominada interpelação para pagamento, redigida por mandatário forense, em representação das autoras, apresentada juntamente com o talão de registo dos correios.
E que, desacompanhada de outros elementos, não é capaz, obviamente, de comprovar qualquer solicitação verbal dos réus para que as transferências tivessem sido realizadas, e muito menos que elas tenham sido feitas sob o propósito de restituição das quantias transferidas.
Da autoria de mandatário das autoras, a missiva apenas pode vincular e ser imputada a essa parte, não podendo responsabilizar os réus.
Tal como não pode expressar a concordância deles com o que quer que seja, sendo certo, ademais, que o teor desse documento particular não contém sequer referência expressa a empréstimo, restituição ou a outro qualquer fundamento capaz de justificar o pagamento ali solicitado.
Acresce, como acertadamente sustentam os réus, que os elementos em causa nem são susceptíveis de comprovar que a carta por aqueles tenha sido recebida, o que abala decisivamente a sua suficiência, não apenas quanto à matéria da alínea a), mas também para justificar resposta diversa da negativa a respeito do segundo facto questionado no recurso.
Finalmente, deve sublinhar-se que não se vislumbra qualquer outra prova constante nos autos com serventia para dar amparo, mínimo que seja, à pretensão factual das recorrentes, certo que não existem mais documentos relativos ao mútuo, por um lado e, por outro, que não houve lugar, sem oposição das partes, à produção de prova pessoal.
Não se confundindo com a prova da solicitação dos réus ou do propósito de restituição, próprios do mútuo, e como nos parece evidente, a junção dos extractos das transferências bancárias e cuja realização, na verdade, pode resultar de múltiplas circunstâncias diversas.
Improcedem, pois, quanto ao mérito, as alterações à matéria de facto preconizadas pelas autoras e, assim, as conclusões A a G do recurso.
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Segundo o art. 1142.º do Código Civil, mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
Sendo a obrigação de restituição, como resulta da referida noção legal, elemento essencial na caracterização do contrato de mútuo, não é necessária maior indagação para concluir que, face aos factos provados, não pode dar-se por verificada, in casu, a sua celebração.
De modo que, a outorga de semelhante contrato, uma vez que não ficou demonstrada, não pode servir de fundamento para o sucesso do recurso.
Improcedem, por isso, as conclusões H a J alinhadas pelas recorrentes.
Mais profunda averiguação, mas com idêntico resultado, como se verá, é justificada relativamente ao enriquecimento sem causa.
Os requisitos necessários para a aplicação do instituto estão previstos no art. 473.º do Cód. Civil.
Em atenção a essa disposição legal, a doutrina e a jurisprudência reconhecem que a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à custa alheia pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos: “(i) a existência de um enriquecimento; (ii) a falta de causa que o justifique; (iii) e que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem pretende a restituição” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, pp. 454ss, e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7/3/2022, tirado no processo nº867/20.6T8GDM e disponível em texto integral na base de dados da Dgsi em linha).
Por outro lado, a aplicação do enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária e, por isso, não tem cabimento se a situação conhecer regulação específica no âmbito de outro instituto ou regime jurídico, independentemente de nessa sede ser possível, ou não, a restituição que aquele visa, como resulta do disposto no art. 474.º do Código Civil.
Em face destes requisitos, considerou-se, na primeira instância, que “não resultou a prova do enriquecimento”.
A verdade, todavia, é que a verificação do requisito do enriquecimento, por parte dos réus, à vista dos factos provados nº4 e 5, é clara e indesmentível, atenta a deslocação pecuniária para as suas contas bancárias dos montantes de € 12.505,98, € 6.255,98 e € 7.500,00.
De modo que, segundo pensamos, o que está realmente em causa, para a eventual não aplicação do enriquecimento sem causa, é a questão de saber se é possível considerar adquirida a ausência de causa justificativa para a realização daquela deslocação pecuniária.
A este respeito, cumpre previamente registar que a inexistência de causa justificativa é a condição essencial ou verdadeiramente “caracterizadora da acção de locupletamento, uma vez que pressupõe ter havido um enriquecimento injusto, que se não fosse injusto não seria sem causa” (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I Vol., 3.ª ed., pp. 381-3).
Podendo assim dizer-se que, em geral, quando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa e quando, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece de causa.
Por outro lado, como refere a doutrina, a principal finalidade do nº2 do art. 473.º do Cód. Civil é auxiliar o julgador na interpretação do requisito da falta de causa justificativa, mediante “algumas indicações capazes de, como meros subsídios, auxiliarem a sua formulação” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Ob. loc. cit.).
Assim se compreendendo que, nos termos do referido art. 473.º/2 do Cód. Civil, a obrigação de restituir por enriquecimento sem causa tenha de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido em vista de um efeito que não se verificou.
Constituindo, pois, uma linha de rumo interpretativa, acompanhada da enumeração exemplificativa de três situações típicas de enriquecimento desprovido de causa: a condictio in debiti, ou de repetição do indevido, a condictio ob causam finitam, ou de enriquecimento emergente de causa que deixou de existir, e a condictio ob causam datorum, ou de locupletamento em virtude da falta do resultado previsto.
Ora, à luz destas indicações, duas notas essenciais devem ser sublinhadas, em resultado da análise do recurso e dos autos, que concorrem decisivamente no sentido negativo quanto à aplicação do instituto do enriquecimento sem causa à situação em julgamento.
Em primeiro lugar, as recorrentes evidenciam o entendimento de que, provada que está a deslocação patrimonial, e como a causa justificativa alegada pelos réus, radicada em acerto de contas no âmbito da actividade de uma sociedade de facto, não ficou demonstrada, daí deverá resultar a convicção do tribunal de que não há causa para o enriquecimento.
No entanto e salvo o devido respeito, essa asserção está errada.
Com efeito, assim como a falta de prova de um facto não implica a demonstração do seu contrário, também a circunstância de os recorridos terem falhado na prova da causa das transferências que alegaram não significa que tenha ficado demonstrado que elas ocorreram sem justificação.
Por isso, está há muito sedimentada, na doutrina e na jurisprudência, a ideia de que a falta de causa justificativa, sendo requisito necessário para o enriquecimento sem causa, tem de ser alegada e comprovada pela parte interessada na sua aplicação e que nesse instituto fundamenta o invocado direito à restituição.
Trata-se de um natural corolário das regras relativas à distribuição do ónus da prova, consagradas nos arts. 342.º e seguintes do Código Civil.
E que, sob a influência da teoria das normas de Rosenberg (cfr. Elisabeth Fernandes, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I, pp. 823-8) e do princípio da substanciação, fazem recair sobre quem invoca o direito (no caso, à restituição) o encargo de alegar e comprovar os seus factos constitutivos ou, noutra terminologia, os requisitos previstos na norma jurídica de natureza substantiva (aqui, o art. 473.º do CC) indispensáveis para a sua aplicação.
Assim se explica, pois, que a jurisprudência venha decidindo que “na obrigação de indemnizar, com fundamento em enriquecimento sem causa, constitui um ónus do autor alegar e provar a falta de causa da atribuição patrimonial e não bastará para esse efeito, segundo as regras gerais do ónus da prova, que não se prove a existência de uma causa da atribuição”, sendo “preciso convencer o tribunal da falta de causa” (cfr. Acórdãos deste Tribunal da Relação do Porto de 15/12/2021, proferido no processo nº663/20.0T8PNF, relatado por Ana Paula Amorim, e de 3/11/2011, da autoria de Filipe Caroço, tirado no processo nº6557/09.3TBVNG, e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/3/2021, relator Pedro de Lima Gonçalves, processo nº3424/16.8 T8CSC, todos disponíveis na já citada base de dados em linha).
Tal como, identicamente, a doutrina venha sustentando que “é requisito de procedência da acção baseada no enriquecimento sem causa a prova da inexistência de causa para o enriquecimento” (cfr. L. P. Moitinho de Almeida, Enriquecimento Sem Causa, 2.ª ed., p. 77).
Em coerência, aliás, com a circunstância de a lei não prever a inversão do ónus da prova apenas por estar em causa um facto negativo, como emerge do disposto nos arts. 342.º e segs. do Código Civil, sem prejuízo dos contributos que, mercê de presunções ou de critérios de razoabilidade, possam auxiliar a parte e o tribunal na obtenção dessa prova.
Assim sendo, ao arrepio do entendimento das recorrentes, a verdade é que elas teriam de alegar e provar, através do acervo factual e probatório necessário para o efeito, a ausência de causa justificativa do enriquecimento, não bastando que a contraparte não tenha provado a causa que alegou.
Aqui entroncando a segunda nota essencial que, como acima se disse, merece destaque na apreciação do mérito do recurso.
É que, analisada devidamente a petição inicial, constata-se que as autoras não alegaram sequer a ausência de causa justificativa, de forma que, a nosso ver, aludiram ao enriquecimento sem causa somente a título de argumento jurídico subsidiário, ou como uma das razões de direito, no dizer do art. 552.º/1, al. d), do Código de Processo Civil, ali expostas para fundamentar o pedido de restituição dos valores que alegaram ter emprestado.
A melhor ilustração desta constatação resulta da sequência apresentada pelas autoras nos arts. 21 e segs. daquela peça processual.
Visto que, nesse ponto, e logo após a referência ao contrato de mútuo e às suas consequências (“a obrigação de restituição pelos mutuários da quantia mutuada, consiste numa obrigação solidária, pelo Primeiro e Segundo Réu quer respondem solidariamente pela totalidade do valor emprestado” e “assiste assim à Autora o direito de exigir dos Réus, a restituição da totalidade do montante mutuado”), imediatamente as autoras transitaram, sem novos factos, para a questão do enriquecimento sem causa (“ao não o fazer verifica- -se um enriquecimento dos aqui Réus, sem causa justificativa, tendo tal enriquecimento sido obtido à custa das aqui Autoras”).
Quer dizer: em termos de factos alegados, a celebração do empréstimo sem forma legal é tudo o que é fundamental para as autoras, nada mais de relevante a nível factual tendo elas afirmado como causa de pedir.
Porém, de seguida, em sede de enquadramento jurídico, ensaiaram a defesa, embora a título subsidiário, face à prioridade concedida à invalidade do contrato, do direito à restituição que, resultante dos mesmos factos, passaram já a fundamentar, normativamente, no enriquecimento sem causa.
De modo que, não existindo na petição inicial, com propriedade, factos autónomos para justificar o enriquecimento sem causa, do que se trata, se bem pensamos, não é de um verdadeiro pedido subsidiário com esse fundamento, nos termos do art. 554.º do CPC, mas apenas a invocação de uma razão jurídica, de acordo com o art. 552.º/1, al. d), do mesmo diploma, embora secundária, que poderia alicerçar o mesmo pedido de restituição.
Todavia, tem sido pacificamente entendido que o nosso ordenamento jurídico optou por afastar o direito à restituição potencialmente resultante da falta de forma do mútuo, do âmbito do enriquecimento sem causa, erigindo-o simplesmente como consequência da nulidade.
É o que resulta, muito claramente, do disposto no art. 289.º/1 do Código Civil, segundo o qual, tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente
Embora fosse possível, em tese, e como sublinha a doutrina, consagrar a invalidade do contrato como uma das circunstâncias susceptíveis de integrar a ausência de causa justificativa, própria do enriquecimento sem causa e do reconhecimento do direito à restituição com esse fundamento, é certo que não foi essa a opção do legislador português (cfr. Júlio Manuel Vieira Gomes, O Conceito de Enriquecimento, O Enriquecimento Forçado e os Vários Paradigmas do Enriquecimento Sem Causa, Teses, pp. 471 e segs.).
E por isso que jurisprudência e doutrina afirmem consensualmente que “as regras do enriquecimento sem causa não são aplicáveis ao caso de um mútuo nulo por falta de forma” (cfr., entre outros, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/2/1992, relatado por Cabral de Andrade no processo 080924, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2/5/2013, da autoria de Carlos Portela, tirado no processo nº 1785/11.4TBVFR.P1, ambos disponíveis no sítio em linha jurisprudencia.pt e, na doutrina, L. P. Moitinho de Almeida, citando Mário Júlio de Almeida Costa, Ob. cit., p. 85).
Em consequência, à luz da referida opção legislativa, carece de fundamento legal a ideia, manifestada pelas recorrentes, de convocar, mesmo subsidiariamente, as regras do enriquecimento sem causa a propósito da celebração (que invocaram mas não comprovaram) de um contrato de mútuo eivado de nulidade por falta de forma.
Razões pelas quais, também se mostram improcedentes as conclusões descritas nas alíneas K a P da motivação de recurso.
Justificando-se deixar reforçado, em qualquer caso, porque pode relevar no alcance do caso julgado, e como acima se disse, que o enriquecimento sem causa foi alegado na petição inicial, segundo entendemos, apenas a título de razão jurídica subsidiária para a restituição e sem respaldo em factos próprios, não consubstanciando, por isso, pedido e causa de pedir autónomos.
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DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão de absolvição dos réus do pedido.
Custas pelas recorrentes, atento o seu decaimento e segundo o disposto no art. 527.º do CPC.
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SUMÁRIO
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(o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico)

Porto, 21/10/2024
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Anabela Morais
Miguel Baldaia de Matos