REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
QUESTÕES DE PARTICULAR IMPORTÂNCIA
Sumário

I - As questões de particular importância para a vida do filho, mesmo encontrando-se os pais separados, são, em princípio, decididas em conjunto.
II - O ingresso em escola de regime particular que acarreta para o pai um acréscimo de despesa mensal de €18,22 e a frequência de atelier de tempos livres após o horário escolar por a criança não poder ficar sozinha em casa enquanto a mãe trabalha não constituem decisões que careçam da anuência prévia do pai.
III - A terapia da fala recomendada pela escola e por profissional da área e tratamentos dentário, tratando-se de cuidados de saúde cuja realização tem um momento adequado e que são antecedidos de aconselhamento especializado, por via de regra, não corresponderão a questões de particular importância que devam ser decididas em conjunto pelos pais e que dependam do consentimento de ambos, sob pena de, previsivelmente, se retardar no tempo a prestação de cuidados essenciais.

Texto Integral

Proc. 2869/16.8T8AVR.P1

Sumário
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Relatora: Teresa Fonseca
1.º Adjunto: Carlos Gil
2.º adjunto: José Eusébio Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
AA suscitou incidente de incumprimento do regime das responsabilidades parentais referente a seu filho menor, BB, sendo requerido o pai, CC.
Realizadas conferências de pais foi possível alcançar acordo com exceção do que se refere às despesas com o valor das mensalidades da escola, do dentista e da terapia da fala.
A requerente alegou que o R. não pagou a sua quota-parte discriminada nas despesas descritas que lhe foram devidamente comunicadas.
Notificado, o requerido opôs-se, sustentando que foi a requerente quem decidiu pela contratação de tais serviços, sendo que havia alternativas prestadas no setor público menos onerosas.
Em articulado superveniente, a requerente ampliou o pedido. Peticionou a condenação do requerido no pagamento de despesas da natureza das reclamadas entretanto também já vencidas, fixando o valor total do pedido em € 4.558,52.
Notificado, o requerido impugnou os termos da ampliação.
Teve lugar audiência de julgamento.
Foi proferida sentença que julgou verificado o incumprimento parcial da obrigação de alimentos do requerido no que respeita a despesas de saúde e educação, condenando este a pagar a AA €3.033,71 e absolvendo-o do demais peticionado.

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Inconformado, o requerido interpôs o presente recurso, rematando com as conclusões que se seguem.
A - Dão-se aqui por integralmente reproduzidos os factos e fundamentos supra apresentados, que por economia de espaço e tempo não se reproduzem.
B - Por sentença proferida no âmbito dos autos principais do presente processo (…) foi homologado acordo nos termos do qual o menor fica confiado à guarda e cuidados da mãe, com a qual ficará a residir, competindo o exercícios das responsabilidades parentais, nas questões de particular importância, a ambos os progenitores, sendo que, quanto aos atos da vida corrente, tal exercício competirá ao progenitor que em casa momento tiver o menor consigo.
C - Ainda nos termos desse acordo, ficou estabelecido que as despesas médicas, medicamentosas e escolares curriculares não comparticipadas do menor ficam a cargo de ambos os pais, na proporção de metade para cada um, mediante a apresentação dos respetivos comprovativos e recibos, devidamente identificados com nome e número de contribuinte do menor.
D - Ora, não consta do acordo de regulação das responsabilidades parentais em vigor que o menor deva frequentar uma instituição de ensino privada, ou deva frequentar obrigatoriamente consultas de terapia da fala e dentária a suportar pelo Requerido, em quaisquer circunstâncias.
E - Nos presentes autos a Requerente reclama do Requerido, aqui pai do BB, a comparticipação de metade em despesas para as quais era necessário e imprescindível o seu acordo expresso, conforme referido no acordo de regulação parental, nomeadamente despesas com o estabelecimento de ensino particular, consultas não urgentes,…
F - A Requerente não fez, como lhe competia, qualquer prova nos autos que alguma vez, antecipada ou oportunamente, tenha consultado o Recorrente sobre tais despesas, ou de que este, de alguma forma, tenha dado o seu acordo às concretas decisões que tomou e despesas inerentes que acabou por assumir sozinha e de forma arbitrária.
G - A decisão proferida pelo tribunal a quo, ignorando tais factos, viola o princípio do ónus da prova e viola mesmo o estabelecido e acordado pelos progenitores em sede de Acordo de responsabilidades Parentais.
H - E a escolha dos serviços privados, com o custo elevado de tais serviços, em detrimento dos serviços públicos, a preço bem menores ou gratuitos, que existem na mesma localidade daqueles, é uma questão relevante que deve ser não só do conhecimento, mas também do consentimento e anuência do requerido.
I - A sentença recorrida em momento algum faz referência à violação do estabelecido no acordo das responsabilidades parentais quanto à tomada de decisões das questões de relevante importância relativamente à vida do menor, o que é o caso.
J - Não existe prova nos autos de que as decisões da progenitora relativas às questões acima assinaladas, e de que tratam os presentes, tenham sido submetidas ao parecer, consulta ou aprovação do requerido.
Assim, tem que ser dado como provado:
K - Que as despesas reclamadas nestes autos pela Requerente exigiam o acordo ou assentimento do Requerido.
L - Que esse acordo nunca foi solicitado ou dado.
M - Que as despesas, quer com a instituição de ensino, quer com as consultas de terapia da fala e dentária, foram efetuadas à revelia do requerido e sem o seu conhecimento ou acordo.
N - Que o pai nunca foi informado ou consultado atempadamente sobre a concreta necessidade e oportunidade das consultas de terapia da fala e de dentária, cujo pagamento é reclamado nos presentes autos.
O - Que tais consultas/tratamentos são consideradas consultas não urgentes.
P - Que as decisões que a requerente tomou, e que resultaram nas despesas e encargos reclamados nestes autos, impunham o acordo prévio de ambos os progenitores por se tratar de matéria de especial importância na vida do menor que não pode ser subtraída ao conhecimento e concordância do pai, nos termos e conforme o disposto na Regulação das responsabilidades parentais em vigor, que para todos os efeitos, obriga ambos os progenitores.
Q - Que tal acordo nunca foi solicitado e nunca existiu.
R - Que a progenitora agiu sem o conhecimento e contra a vontade expressa do progenitor, pelo menos no que se refere à escolha do estabelecimento de ensino.
S - Que por assim ter agido, o que claramente resulta dos autos, é a única responsável pelo pagamento das despesas reclamadas, efetuadas sem o conhecimento, sem acordo e à revelia do Progenitor.
T - Não estando o aqui Requerido obrigado a comparticipar do seu pagamento.
U - Não colhe o argumento ínsito na sentença, como fundamento da decisão de condenação, que o ponto de partida para a decisão terá de ser o que atrás se explicitou como sendo alimentos e, por outro lado, aquilo que especificadamente foi decidido como regime de repartição dos alimentos, tal como definido pelo acordo homologado. Ora, como se viu, no acordo previu-se a esse propósito: as despesas médicas, medicamentosas e escolares curriculares não comparticipadas do menor ficam a cargo de ambos os pais, na proporção de metade para cada um, mediante apresentação dos respetivos comprovativos e recibos.
V - Fazendo tal sentença tábua rasa de outra cláusula do mesmo acordo de responsabilidade parentais que refere que o menor fica confiado à guarda e cuidados da mãe, com a qual ficará a residir competindo o exercícios das responsabilidades parentais, nas questões de particular importância, a ambos os progenitores, sendo que, quanto aos atos da vida corrente, tal exercício competirá ao progenitor que em casa momento tiver o menor consigo.
W - O acordo da regulação das responsabilidades parentais do menor BB sempre salvaguardou a necessidade de o progenitor ser ouvido e participar das decisões de particular importância para a vida do seu filho.
X - O que só tem sentido relativamente a decisões e opções de vida subsequentes e futuras.
Y - Precisamente as específicas matérias em que se inscreve a presente pendência.
Z - Relativamente às quais, comprovadamente, o pai não foi consultado, nem deu o seu acordo, nem tão pouco teve conhecimento atempado das mesmas,
AA - Pelo que não é por elas responsável a qualquer título.
BB - Sob pena de ter de se declarar a inutilidade do acordo de regulação das responsabilidades parentais em vigor, homologado nos autos principais, por sentença judicial.
CC - Assim, não tendo entendido, violou a sentença o artigo 41.º, n.º 1 da Lei 141/2015, de 8 de setembro, os artigos 1901.º, 1906.º, 1911.º e 1912.º, todos do Código Civil, violando também o princípio de igualdade dos pais.
Nestes termos e nos demais de direito, que V. exas suprirão, deverá: ser dado provimento ao recurso; ser revogada a sentença recorrida, sendo substituída por outra que o absolva do pedido formulado, com exceção do valor de 177,00€ relativo à aquisição dos óculos, que se compromete a pagar.
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O Digno Magistrado do Ministério Público contra-alegou, formulando as conclusões que se transcrevem.
1 - Não merece nenhuma censura a decisão recorrida e por isso se deve manter nos seus precisos termos e,
2 - Deverá manter-se a decisão recorrida, pois aquelas questões não eram e não são de particular importância a exigir o consenso dos dois progenitores.
3 - Assim se fará, a ambicionada Justiça!
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Tendo-se verificado que foi omitida a prolação do despacho a que se refere o n.º 3 do art.º 641.º do C.P.C., o processo foi remetido à 1.ª instância para fixação do valor da causa.
Foi proferido despacho que fixou o valor em € 30.000,01.
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Questões a dirimir:
a - da reapreciação da matéria de facto
b - se o pai de BB deve comparticipar nas despesas com a escola, terapia da fala e dentista.
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III - Fundamentação de facto
Factos provados na decisão de 1.ª instância
A) BB nasceu a ../../2013 e é filho de R.te e da R.da..
B) Nos autos de RRP apensos foi estabelecido quanto a alimentos o seguinte regime:
6º) A título de pensão de alimentos o progenitor compromete-se a contribuir com a quantia mensal de €90,00 (noventa euros), a ser paga até ao dia 8 (oito) de cada mês, para conta cujo IBAN já é do seu conhecimento. Aquela quantia será atualizada anual e automaticamente em €2,50 (dois euros e cinquenta cêntimos), com efeitos a partir de janeiro de 2018.
7º) As despesas médicas, medicamentosas e escolares curriculares não comparticipadas do menor ficam a cargo de ambos os pais, na proporção de metade para cada um, mediante a apresentação dos respetivos comprovativos e recibos, devidamente identificados com o nome e número de contribuinte do menor.
- Para efeitos de pagamento cada progenitor fará chegar ao outro os documentos que titulam as despesas no prazo máximo de 30 dias contados da data de cada documento. Por sua vez, cada progenitor fará chegar ao outro a importância correspondente ao pagamento da sua parte proporcional no prazo máximo de 30 dias contados a partir do recebimento dos documentos.
- Para comunicação daquelas despesas deixam consignados os seguintes contactos:
E-mail da progenitora: ..........@.....; Contacto telefónico: ...
E-mail do progenitor: ..........@......
C) Por iniciativa da R.te, a partir de dezembro de 2016 o BB passou a frequentar a Santa Casa da Misericórdia ..., pagando a quantia mensal de €164,34 até agosto de 2020.
D) No referido valor está incluída uma parcela referente a alimentação com o custo mensal de €91,44.
E) Na referida mensalidade estava incluído prolongamento de horário até às 18h30.
F) Para frequentar o referido estabelecimento em regime de ATL era necessária a inscrição na respetiva Associação de Pais e o pagamento de uma quota mensal de € 65,00
G) O BB frequentou a referida instituição em regime de ATL, a partir de setembro de 2020 e até outubro de 2022, tendo sido a mãe quem pagou a referida quota.
H) Na sequência de sinalização nesse sentido à R.te por parte da escola, o BB passou a frequentar terapia da fala a partir de dezembro de 2017.
I) Entre dezembro de 2017 e Julho de 2019, a mãe despendeu com as consultas da terapia da fala a quantia global de €1.560.
J) Na sequência de diagnóstico realizado por dentista a pedido da R.te, o BB realizou tratamentos dentários na clínica «A...».
K) Por esses tratamentos a R.te pagou a quantia global de €1 692,92.
L) Por diagnóstico médico feito a pedido da mãe, o BB passou a usar óculos cuja aquisição (lentes e armações) foi inicialmente orçamentada em €354,00.
M) Não obstante, na fatura desses óculos foi também incluído o preço de uma consulta de oftalmologia, tendo a R.te suportado no total a quantia de €443,00.
N) O R.te não pagou qualquer importância referente às despesas referidas em L) e M). O) As despesas em causa foram comunicadas ao R.do.
P) O R.do não se opôs ao início da frequência da escola atrás referida.
Q) O R.do não se opôs à frequência pelo BB da terapia da fala contratada pela R.te.
R) No dia 7-11-2016, data da primeira conferência de pais realizada nos autos de RRP, o R.te teve conhecimento de que o BB frequentava o estabelecimento de ensino atrás referido, tendo-se oposto.
S) O R.te não aceitou o tratamento dentário referido.
T) Antes da aquisição dos óculos em causa foi enviado ao R.do o orçamento referido na alínea L).
U) O R.do não foi previamente consultado nem aceitou pagar a fatura referida em M).
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Factos não provados:
Os restantes alegados, nomeadamente:
- que existisse possibilidade de frequência pelo BB de terapia de fala em estabelecimento público;
- que as despesas reclamadas pelo tratamento dentário realizado ao BB estivessem abrangidas por cheque-dentista e/ou que existisse tratamento idóneo menos oneroso;
- que existisse na área da residência do BB no sistema público alternativa de frequência de pré-escola na área da residência da R.te. com horário compatível com a sua atividade profissional.
- que o R.do tenha aceite pagar o valor que lhe vem reclamado quanto aos óculos e que esse valor fosse essencial para a aquisição dos óculos necessários para o BB.
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IV - Fundamentação jurídica da causa
a - Da reapreciação da matéria de facto
O recorrente alega que deve ser dado como provado:
- que as despesas reclamadas nestes autos pela Requerente exigiam o acordo ou assentimento do Requerido;
- que esse acordo nunca foi, nem solicitado, nem dado;
- que as despesas, quer com a instituição de ensino, quer com as consultas de terapia da fala e dentária, foram efetuadas à revelia do requerido e sem o seu conhecimento ou acordo;
- que o pai nunca foi informado ou consultado atempadamente sobre a concreta necessidade e oportunidade das consultas de terapia da fala e dentárias, cujo pagamento é reclamado nos presentes autos.
- que tais consultas/tratamentos são consideradas consultas não urgentes;
- que as decisões que a requerente tomou e que resultaram nas despesas e encargos reclamados nestes autos impunham o acordo prévio de ambos os progenitores por se tratar de matéria de especial importância na vida do menor que não pode ser subtraída ao conhecimento e concordância do pai, nos termos e conforme o disposto na Regulação das responsabilidades parentais em vigor, que para todos os efeitos, obriga ambos os progenitores;
- que tal acordo nunca foi solicitado e nunca existiu.
- que a progenitora agiu sem o conhecimento e contra a vontade expressa do progenitor, pelo menos no que se refere à escolha do estabelecimento de ensino;
- que por assim ter agido, o que claramente resulta dos autos, é a única responsável pelo pagamento das despesas reclamadas, efetuadas sem o conhecimento, sem acordo e à revelia do Progenitor.
Relativamente à alegação de que as despesas reclamadas pela requerente - estão em causa despesas com a frequência do ensino pré-escolar em estabelecimento da Santa Casa da Misericórdia entre dezembro de 2016 e agosto de 2020, despesas com atelier de tempos livres (ATL) no mesmo estabelecimento entre setembro de 2020 e outubro de 2022, uma vez finda a fase do ensino pré-escolar, com terapia da fala e com dentista - exigiam o acordo ou assentimento do Requerido está em causa matéria de natureza conclusiva. O acordo alcançado entre os pais de BB prevê que cabe a ambos os progenitores o exercício da responsabilidade parental nas questões de particular importância (…) e que quanto aos atos da vida corrente, tal exercício competirá ao progenitor que em cada momento tiver o menor consigo. Com o pedido de reapreciação da matéria de facto visa o requerente definir que se trata de questões de particular importância, o que não integra a apreciação da matéria de facto.
Indefere-se, por isso, o requerido.
Quanto ao pedido de que seja fixado que esse acordo nunca foi solicitado ou dado, consta dos factos provados que o requerido não se opôs ao início da frequência da escola atrás referida (al. P) e que no dia 7-11-2016, data da primeira conferência de pais realizada nos autos de regulação de poder paternal, o R.te teve conhecimento de que o BB frequentava o estabelecimento de ensino atrás referido, tendo-se oposto (al. R). Existe contradição entre ambos os factos, ao que acresce que consta da al. C) que a frequência se iniciou em dezembro de 2016 e se prolongou até agosto de 2020. Ora se BB iniciou a frequência da creche da Santa Casa da Misericórdia em dezembro de 2016, em 7-11-2016 ainda não frequentaria a mesma.
Consultada a ata de 7-11-2016 do processo principal, nada consta a este respeito. Do depoimento do apelante emerge a sua oposição à frequência da creche da Santa Casa da Misericórdia .... Compulsadas, porém, as suas alegações de 2-7-2018, constata-se que a única objeção do progenitor se relaciona com a consideração de que não deve pagar qualquer quantia a título de alimentação do menor no infantário, uma vez que já paga prestação de alimentos. Trata-se de objeção que, aliás, foi levada em linha de conta na sentença recorrida.
Entende-se, assim, mais consentâneo com a realidade que foi possível apurar, reportada a data mais próxima dos eventos do que a da audição do ora recorrente, dar como adquirido que desde o seu conhecimento de que BB frequentava a creche da Santa Casa da Misericórdia ... objetou ao pagamento das despesas da creche referentes a alimentação.
Suprimem-se, assim, os factos P) e R), substituindo-se o facto identificado como P) por outro com o seguinte teor:
P) Desde o seu conhecimento de que BB frequentava a creche da Santa Casa da Misericórdia ..., o pai objetou ao pagamento das despesas da creche referentes a alimentação.
Quanto à realização das despesas com terapia da fala e dentista, está provado (al. Q)) que o R.do não se opôs à frequência pelo BB da terapia da fala contratada pela R.te. e que (al. S) o R.te não aceitou o tratamento dentário referido.
É notório que o apelante não deu assentimento prévio ao tratamento dentário.
Por referência à frequência da terapia da fala, embora se desconheça com precisão quando ocorreu a não oposição, sendo certo que esta não é sinónimo de anuência, afigura-se-nos irrelevante que figure, a par da não oposição à frequência pelo BB da terapia da fala, que o pai não deu assentimento prévio, já que parece que deu, pelo menos, assentimento posterior. Frisa-se que a terapeuta que seguiu o menor, a testemunha DD, depôs no sentido de que o requerente a contactou para estar presente, tendo procedido a ponto de situação da evolução do BB com este, sem que tivesse sido manifestada objeção à prossecução da terapia.
Indefere-se, nestes termos, a alteração solicitada.
Atente-se ainda em que o apelante requer que se dê como provado que nunca foi informado ou consultado atempadamente sobre a concreta necessidade e oportunidade das consultas de terapia da fala e do tratamento dentário. Supõe-se que atempadamente se refira a previamente ao início da terapia e do tratamento dentário. A apelada não alega ter discutido a questão com o apelante. Estão em causa factos negativos que se prendem com a questão - jurídica - de estarem ou não em causa decisões de particular relevo para a vida do menor e da (des)necessidade de intervenção do pai. Trata-se, pois, de inclusão que, em bom rigor, nada de relevante acrescenta à discussão.
Indefere-se, assim, o aditamento.
No tocante à introdução nos factos assentes de que as consultas/tratamentos são consideradas consultas não urgentes, está ainda em causa matéria conclusiva e de natureza genérica. A urgência, como não poderá deixar de ser, depende do caso concreto.
A análise da informação escolar e da terapeuta da fala deixa, aliás, entrever que existe um momento próprio para a intervenção, já que existirá uma altura em que as trocas de fonemas se tornam desenquadradas à idade, sendo que a correção dificilmente poderá ter lugar a todo o tempo, ou pelo menos, se não se intervier precocemente, a recuperação será mais morosa ou de resultados mais duvidosos. Existirá um momento ideal, que se afigura ser o mais coincidente possível com a constatação do desvio da linguagem à norma. Nesse sentido, o início das sessões deveria ocorrer a breve trecho, o que não corresponde à qualificação do pai como sendo não urgente.
No que respeita ao tratamento dentário, os autos não contêm elementos tão específicos, não se podendo, em todo o caso, concluir que não eram urgentes. É do conhecimento comum que qualquer intervenção dentária tem o seu momento adequado, o que tem especial acuidade no que se refere às crianças, dadas as mudanças físicas aceleradas que caracterizam esta fase da vida.
Quanto à pretensão do apelante de que se dê como assente que as decisões que a requerente tomou e que resultaram nas despesas e encargos reclamados nestes autos impunham o acordo prévio de ambos os progenitores por se tratar de matéria de especial importância na vida do menor que não pode ser subtraída ao conhecimento e concordância do pai, nos termos e conforme o disposto na Regulação das responsabilidades parentais em vigor, que para todos os efeitos, obriga ambos os progenitores trata-se de matéria eminentemente conclusiva e não de facto.
No que tange a dar-se como assente que tal acordo nunca foi solicitado e que nunca existiu, consta da matéria assente o que se apurou a este propósito, sendo despicienda a inclusão de facto negativo neste particular.
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B - Do incumprimento pelo pai da obrigação de prestação de alimentos referente ao tocante ao pagamento da creche, excluída a alimentação, atelier de tempos livres (ATL), terapia da fala e tratamentos dentários.
A requerente deduziu o presente incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, nos termos do art.º 41.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8-9, contra o progenitor de BB.
A regulação das responsabilidades parentais, enquanto meio de suprimento da incapacidade de exercício de direitos do menor (art.º 124.º C.C.), deve disciplinar as relações e obrigações dos pais relativamente aos menores em três aspetos essenciais:
a) o destino dos menores quanto ao exercício das responsabilidades parentais e residência habitual;
b) o modelo de convívio com os pais;
c) os alimentos e o modo da sua prestação.
Prevê o art.º 1878.º/1 do Código Civil (C.C.) que compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens.
O alcance do dever de alimentos devidos a menores suplanta a dimensão dos alimentos em geral, já que, para além de englobar tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário, compreende a instrução e educação do alimentado (art.º 2003.º/1/2 do C.C.).
Sumaria-se do ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 22-10-2020 (proc. 2216/19.7T8BCL.G1, Maria da Conceição Sampaio), a essencialidade de que se reveste a prestação alimentar impõe ao tribunal que lhe confira o necessário conteúdo e lhe assegure o efetivo cumprimento, rodeando-a de defesas que a tornem imune às vicissitudes do relacionamento dos progenitores, aos seus acordos, acertos e desacertos, enfim, à volubilidade própria da vida relacional.
Com interesse para os termos do recurso, a ora apelada alegou que o requerido não cumpriu a obrigação de pagar alimentos ao filho no que concerne à prestação de serviços de pré-escola da Santa Casa da Misericórdia ... e de atelier de tempos livres (ATL) prestados pela mesma instituição, de terapia da fala e de dentista.
Está assente que no âmbito da regulação das responsabilidades parentais foi fixado que as despesas médicas e escolares curriculares não comparticipadas do menor ficariam a cargo de ambos os pais, na proporção de metade para cada um.
Do acordo firmado decorre a possibilidade de virem a existir despesas médicas e escolares não comparticipadas. Neste sentido, é de concluir que o requerido, ora apelante, estaria obrigado aos pagamentos peticionados, já que estes em nada extravasam o âmbito da regulação.
Objeta o recorrente que estão em causa despesas para cuja realização deveria ter sido consultado e que deveriam ter sido alvo do seu prévio assentimento.
Importa, assim, aferir se as decisões que acarretaram as despesas pedidas pela requerente integram as matérias de particular importância a que alude o art.º 1906.º/1 do C.C..
Preceitua esta norma que as responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores nos termos que vigoravam na constância do matrimónio, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.
Helena Bolieiro e Paulo Guerra (in A Criança e a Família - uma Questão de Direito(s), Coimbra Editora, pp. 271/272) integram neste núcleo as intervenções cirúrgicas, as viagens ao estrangeiro, a matrícula neste ou naquele estabelecimento de ensino e as opções em relação ao devir profissional do filho.
Maria Clara Sottomayor (Exercício conjunto das responsabilidades parentais: igualdade ou retorno ao patriarcado?, in E Foram Felizes Para Sempre - Uma Análise Crítica do Novo Regime Jurídico do Divórcio, coordenação: Maria Clara Sottomayor, Maria Teresa Féria de Almeida, Coimbra Editora, pp. 128/129), escreve: mesmo que se trate de um colégio privado e de decisões de transferência do ensino público para privado ou vice-versa, e da orientação profissional da criança, julgo necessário proteger a estabilidade da sua vida, conferindo poderes de decisão ao progenitor residente, que melhor conhece as necessidades da criança e o seu desenvolvimento, uma vez que o acompanha diariamente.
No ac. da Relação do Porto de 27-1-2020 (proc. 803/13.6T2OBR-D.P1, José Eusébio Almeida), citando extensa doutrina, lê-se o seguinte: Jorge Augusto Pais do Amaral entende que “deve optar-se por um critério objetivo em vez de lhe dar a importância subjetiva que lhe é atribuída por um dos progenitores” e refere, como exemplos, “a intervenção cirúrgica ou a simples necessidade de tratamento médico do filho e os atos de natureza patrimonial que necessitem de autorização do Ministério Público”. Jorge Duarte Pinheiro faz referência a ter apontado, em anterior edição, a “educação religiosa do filho menor com idade inferior a 16 anos; tratamento médico ou intervenção cirúrgica de alguma gravidade; atos patrimoniais que careçam de intervenção do Ministério Público; representação do menor em juízo”, acrescentando que a densificação do conceito “só pode ser preenchida mediante a valoração das circunstâncias concretas”. Tomé d’Almeida Ramião entende que tais questões “deverão estar relacionadas com questões existenciais graves, que pertençam ao núcleo essencial dos direitos do filho, as questões centrais e fundamentais para o seu desenvolvimento, segurança, saúde, educação e formação, todos os atos que se relacionem com o seu futuro, a avaliar em concreto e em função das suas circunstâncias”, enquanto José Augusto de França Pitão/Gustavo França Pitão, fazendo referência à doutrina e jurisprudência, indicam, além de outras, as situações de “escolha entre o ensino público e o ensino particular; mudança de escola; (...) orientação profissional do filho; participação em programas de televisão (...).
Analisemos a concreta situação dos autos a propósito de cada um dos custos pedidos.
Quanto à reclamada despesa com a frequência da pré-escola, a mesma corresponde a despesa prevista no acordo firmado entre as partes e homologado por sentença. Não se provou, além do mais, que existisse alternativa consentânea com os horários da mãe, com quem o menor reside.
Diga-se, ainda, que a objeção do pai a este respeito se centrou sempre no não pagamento das despesas de alimentação do estabelecimento da Santa Casa da Misericórdia .... Esta sua pretensão foi acolhida pelo tribunal de 1.ª instância e não permanece em discussão, tal como já foram ponderados e contemplados os pagamentos que o pai foi espontaneamente efetuando ao longo do tempo.
O caso concreto é apodítico relativamente à análise casuística que se impõe.
Repare-se que o valor da mensalidade suportada no pré-escolar era num total de €164,34, em que €91,44 correspondiam a alimentação. Mais se apurou que a quantia remanescente (€72,90) servia ainda o pagamento do prolongamento do horário até às 18.30 horas. Se, por simplicidade, ficcionarmos que metade de €72,90 (€36,45) correspondia ao pagamento do prolongamento, apuramos que a contrapartida do pré-escolar era de €36, 45. Cabendo ao R. suportar metade (€18,22), não se pode considerar, dentro de critérios de razoabilidade mínima, que a opção pela concreta creche sob discussão, ainda que de regime privado, acarretasse um esforço financeiro de relevo para o requerido. Como contraponto, sempre haveria que ponderar as vantagens para a criança decorrentes da possibilidade de permanecer até às 18.30 h, de acordo com as necessidades laborais da mãe.
Mantém-se, assim, a condenação a este título.
No que se refere à despesa com o ATL, trata-se de uma despesa de natureza essencial. O menor não poderia ficar sozinho em casa após o horário escolar obrigatório, pelo que se inclui necessariamente no conceito de alimentos.
Não pondo o recorrente em crise o valor fixado, mas sim a justeza do respetivo pagamento, nada há a alterar ao determinado.
Quanto às despesas com terapia da fala e dentista, estão em causa despesas de saúde abrangidas pelo acordo. Como se disse, previu-se a este propósito que as despesas médicas, medicamentosas e escolares curriculares não comparticipadas do menor ficam a cargo de ambos os pais, na proporção de metade para cada um, mediante a apresentação dos respetivos comprovativos e recibos.
Ademais, apurou-se que o requerido aceitou que a terapia da fala tivesse lugar, e, inclusivamente, manifestou interesse na mesma.
Apesar da falta de concretização da natureza das despesas com dentista, não é alvitrável que fossem desnecessárias. Nem sequer o recorrente o sugere, cingindo-se a invocar que se poderia ter recorrido ao serviço nacional de saúde. É, porém, do conhecimento geral que não existe uma rede pública de serviços médico-dentários que cubra a plêiade do que é atualmente tido como um padrão mínimo de cuidados de saúde oral.
Conclui-se que sessões de terapia da fala recomendada pela escola e por profissional da área e tratamento dentário, tratando-se de cuidados de saúde cuja realização tem um momento adequado e que passam por aconselhamento especializado, não correspondem a questões de particular importância que devam ser decididas em conjunto pelos pais e que dependam do consentimento de ambos. Entender-se desta forma equivaleria a retardar no tempo a prestação de cuidados essenciais, que passariam a poder depender, na ausência de entendimento, dos tempos e vicissitudes próprias do recurso aos tribunais.
Veja-se, ainda, que os valores envolvidos têm expressão monetária por corresponderam a cuidados de educação e de saúde durante um lapso temporal de vários anos.
Não se deixará de constatar o aparente paradoxo de, por um lado estarem em causa questões de relevo, que não devem ser adiadas e, por um outro, não serem tidas como matérias que implicam decisões conjuntas de ambos os pais. No que concerne às matérias de saúde, estas passam necessariamente por um crivo externo, que não as deixa ao sabor dos impulsos de um dos progenitores. Quanto às despesas com educação, realçou-se o valor diminuto do acréscimo. Em todo o caso, os pais podem sempre socorrer-se do tribunal, conforme ocorreu no caso vertente, para sancionar ou infirmar o caminho trilhado.
A obrigação de alimentos assume natureza creditícia (cf. Remédio Marques, Algumas Notas sobre Alimentos, Coimbra Editora, 2000, p. 282).
A obrigação extingue-se, pelo cumprimento, correspondente, no caso das obrigações pecuniárias, ao pagamento. Este consiste na realização integral da correspondente prestação debitória (arts. 762.º e 763.º do C.C.).
Sendo a realização da prestação debitória um facto extintivo da obrigação, o ónus de a provar recai sobre o devedor, nos termos do disposto no art.º 342.º/2 do C.C..
O requerido alegou não estar obrigado a prestar os alimentos pedidos, impendendo sobre si o ónus de o demonstrar, no que não foi bem sucedido.
A sentença recorrida ajuizou, pois, acertadamente no sentido da condenação do requerido a proceder ao pagamento do montante das prestações alimentares em causa, pelo que se mantém aquela.
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V - Dispositivo
Nos termos sobreditos, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se na íntegra a decisão recorrida
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As custas serão suportadas pelo apelante por ter decaído totalmente na sua pretensão (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).
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Porto, 21-10-2024
Teresa Fonseca
Carlos Gil
José Eusébio Almeida