I - A alínea a) do nº 4 do artigo 340º do C. P. Penal foi revogada pelo artigo 14º, al. c), da Lei nº 94/2021, de 21/12 (lei que aprovou medidas previstas na “Estratégia Nacional Anticorrupção”), pelo que deixou de ser pressuposto de inadmissibilidade do requerimento de prova superveniente a indicação de provas que já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação.
II - O facto de a proprietária do restaurante “assaltado” não ter conseguido identificar o arguido, apesar do sistema de videovigilância que o restaurante de que é proprietária possuía, e o facto de o arguido se ter remetido ao silêncio na audiência de discussão e julgamento (direito que lhe assiste) tornaram indispensável a inquirição da testemunha indicada, na audiência, pelo Ministério Público - testemunha não arrolada na acusação (o agente da PSP que elaborou o auto de notícia) -, tendo em vista a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
III - A inquirição desse agente da PSP (que identificou o arguido através da visualização das imagens de CCTV e que abordou o arguido, no dia seguinte à prática dos factos, tendo o arguido assumido, perante ele, a prática de tais factos - antes de ser constituído arguido -), não constitui um meio de produção de prova irrelevante ou supérfluo.
Acordam em conferência na 2.ª Subsecção criminal do Tribunal da Relação de Évora:
No processo n.º 138/23.6PBBJA do Juízo Local Criminal de Beja, o arguido H foi absolvido, por sentença de 5.4.2024, da prática do crime de furto qualificado que lhe era imputado.
Na audiência de julgamento realizada no dia 5.4.2024, o MºPº requereu a audição de uma nova testemunha, tendo o Mmo Juiz indeferido a referida audição. O MºPº arguiu a nulidade de tal despacho, nulidade que foi indeferida.
Inconformado, recorreu o MºPº do despacho que indeferiu a audição de uma nova testemunha e da sentença absolutória, tendo concluído a sua motivação pela forma seguinte:
I) Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido nos autos em 05 de Abril de 2024 – cfr. Acta de Audiência de Julgamento - o qual, no decurso da audiência de julgamento realizada nesse dia, indeferiu o requerimento apresentado pelo Ministério Público, no sentido de proceder à inquirição da testemunha indicada no Aditamento ao Auto de notícia a fls. 21 a 23 dos autos - agente da PSP J - e da consequente sentença absolutória proferida nesse mesmo dia.
II) O requerimento fora formulado pelo Ministério Público nos termos do art. 340.º do Código de Processo Penal, no decurso da audiência de julgamento que teve lugar em 05.04.2024, por entender que perante a ausência de prova quanto à imputação da autoria dos factos àquele arguido, a inquirição daquela testemunha seria de grande utilidade para a prova da factualidade sob julgamento e inerente descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
III) A testemunha em causa é o órgão de polícia criminal que havia identificado o então suspeito, logo no dia seguinte à prática dos factos, no cumprimento das providências cautelares quanto aos meios de prova estabelecidas no artigo 249º do Código de Processo Penal e a quem o suspeito havia assumido a prática dos factos, resultando, nessa sequência, as apreensões feitas à ordem dos presentes autos, quer as efetuadas ao arguido (fls. 37 e 38), quer as apreensões efetuadas de objetos retirados do estabelecimento em causa (fls. 39 e 39v), efetuadas a outros intervenientes nos factos (que não foram acusados nestes autos dada a sua inimputabilidade em função da idade).
IV) O Tribunal "a quo" indeferiu o requerido pelo Ministério Público, apresentando, para o efeito, os seguintes fundamentos: “O disposto no artigo 340º do Código de Processo Penal visa a realização de meios de prova supervenientes, cuja necessidade decorra da própria audiência de julgamento, o que não é o caso. O que se extrai do requerimento formulado pelo Ministério Público é que esse mesmo requerimento tem apenas por base uma diferente avaliação por parte do senhor Procurador presente nesta audiência relativamente à pertinência da prova carreada para os autos em sede de inquérito e avaliação diferente daquela que teve o respetivo titular que não considerou necessário indicar tal testemunha, mas apenas a proprietária do estabelecimento. Assim sendo, por não estar verificado o pressuposto que subjaz ao disposto no artigo 340º do Código de Processo Penal, vai indeferido. Sem prejuízo, sempre se dirá que a inquirição de um agente da PSP que não teve conhecimento direto dos factos sempre redundaria num acto inútil, porquanto o mesmo apenas, por um lado estar-lhe-ia vedado depor sobre factos que tivesse conhecimento de declarações produzidas pelo arguido e, por outro lado, seria sempre a sua convicção e não um resultado de prova direta incriminadora, nomeadamente do arguido aqui presente, sendo certo que nos próprios termos da própria acusação intervieram mais indivíduos no assalto em causa.”. - Cfr. Ata da Audiência de julgamento de 05-04-2024 e respetiva gravação através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal recorrido, tendo o seu início ocorrido pelas 11 horas e 04 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 08 minutos.
V) Em seguida foi proferida Sentença nesse mesmo dia, onde se absolveu o arguido dos factos de que vinha acusado, por falta de prova, por não ter sido possível proceder à identificação do arguido enquanto autor dos factos, quando, na verdade, não estavam esgotados todos os meios de prova necessários à boa decisão da causa.
VI) Pese embora o enorme respeito pelo Mmo. Juiz do Tribunal recorrido, não podemos concordar com tal posição vertida no douto despacho recorrido e respetivos fundamentos apresentados, nem com a subsequente Sentença absolutória que se seguiu.
VII) Decorre do artigo 340.º do Código de Processo Penal o estruturante princípio da investigação ou da verdade material, que impõe ao tribunal o poder-dever de investigar em audiência de julgamento todos os factos ocorridos, atendendo a todos os meios de prova não irrelevantes para a descoberta da verdade material, sustentados e balizados na razão de base de que o processo penal não é um processo de partes e que o propósito maior é a descoberta da verdade material e a boa decisão da causa.
VIII) Como tem vindo a ser entendimento consolidado na nossa jurisprudência, a aludida norma não impede que sejam ouvidas como testemunhas, na audiência de julgamento, pessoas que já podiam ter sido arroladas como testemunhas na acusação, bastando, para isso, que a inquirição requerida se apresente como necessária e indispensável para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, independentemente do entendimento do anterior Procurador titular do inquérito quanto à pertinência de arrolara testemunha em causa, uma vez que, nesta fase o processo já não se encontra em fase de inquérito, mas em fase de julgamento, onde vigoram as regras decorrentes do artigo 340º do Código de Processo Penal.
IX) Deste modo, o entendimento seguido pelo Tribunal recorrido afigura-se contrário à lei criminal, e aproxima-se do conceito civilista de preclusão, o qual é incompatível com o nosso sistema de acusatório, integrado pelo princípio da investigação.
X) Relativamente ao segundo fundamento apresentado pelo Tribunal recorrido, no sentido de que “a inquirição daquele agente da PSP sempre redundaria num acto inútil, porquanto o mesmo não teve conhecimento directo dos factos, estando-lhe vedado depor sobre factos que tivesse conhecimento de declarações produzidas pelo arguido e por outro lado, seria sempre a sua convicção e não um resultado de prova direta incriminadora (…)”, também este não é fundamento para indeferir a requerida produção de prova.
XI) A inquirição da testemunha em causa não redundaria num acto inútil, mas, ao invés, num acto de grande utilidade para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, independentemente do sentido da decisão final que viesse a ser tomada.
XII) A supra identificada testemunha cuja inquirição foi requerida e indeferida, enquanto órgão de polícia criminal, cabe-lhe colher notícias de crime, descobrir os seus agentes e praticar os atos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nomeadamente, colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime, identificar essas pessoas, e se necessário, efetuar as necessárias apreensões que daí decorram.
XIII) E foi precisamente essa a intervenção que o agente em causa teve nos presentes autos, no cumprimento das providencias cautelares quanto aos meios de prova a que se refere o artigo 249º do Código de Processo Penal, foi ele quem abordou e identificou o arguido em causa após a visualização das imagens de CCTV existentes nos autos, logo no dia seguinte à prática dos factos e a quem o então suspeito assumiu a prática dos factos, sem que existissem arguidos constituídos naquela fase preliminar, no que resultou ainda nas apreensões que se seguiram e que constam nos autos (fls. 37 a 39v).
XIV) Deste modo, e segundo o entendimento jurisprudencial dominante nesta matéria, as declarações de arguido só ocorrem após a constituição do suspeito como tal e desde que sujeitas ao formalismo do respectivo interrogatório, pelo que a proibição de “conversas informais” só deve abranger afirmações posteriores à constituição de arguido, pelo que, as declarações do agente do crime a um OPC antes de instaurado o respectivo inquérito e no decurso deste é meio de prova lícito, dada a sua conformidade com o comando do artigo 249.º do C.P.P., não sendo, por isso, proibido o seu relato em audiência -Cfr. Ac. TRC de 08-11-2023,pela Exma. Relatora ISABEL VALONGO no âmbito do proc. nº 49/22.2GBVIS.C1, disponível em www.dgsi.pt.
XV) Revelando-se tal inquirição de manifesta importância para apurar as circunstâncias em que o agente em causa identificou o arguido aqui em causa enquanto autor dos factos, do contexto em que o arguido lhe assumiu a prática dos factos, da colaboração prestada pelo arguido naquele momento, e demais informações que desencadearam as apreensões que se seguiram e, bem assim, em apurar o que foi determinante para que tais apreensões tivessem ocorrido.
XVI) A inquirição de agente autuante não viola o direito ao silêncio que o arguido assumiu em julgamento, pois que não se pretende a reprodução por terceiro da “confissão” do arguido, que neste caso não existe, mas tão somente, a inquirição de uma testemunha, que, dada a ampla e diversificada participação que teve na investigação dos factos sub judice e inerentes conhecimentos que daí obteve, a sua inquirição, em obediência ao principio da investigação, afigurar-se-ia de importância essencial e imprescindível para a descoberta da verdade, e desse modo, se obter uma decisão justa e com recurso a todos os meios de prova existentes e necessários para o efeito.
XVII) Solução que seria a mais conforme ao princípio da investigação, ao invés de se indeferir a requerida inquirição nos descritos moldes e em seguida ser proferida Sentença absolutória por falta de prova quanto à imputação da autoria dos factos ao arguido, sem que o Tribunal recorrido tenha previamente esgotado todas as vias de proceder ao cabal e necessário esclarecimento quanto à autoria dos factos ocorridos, ficando, assim, prejudicada a descoberta da verdade e a efetiva boa decisão da causa.
XVIII) A omissão de diligências que possam reputar-se essenciais para a descoberta da verdade material acarreta uma nulidade – art.120º, nº2, al. d) do Cód. Proc. Penal – vicio esse que foi arguido pelo Ministério Público aquando da prática do referido acto, antes do final da audiência de julgamento onde o mesmo se verificou, nos termos do artigo 120º, nº3, al. a) do Cód. de Processo Penal, o qual foi indeferido.
XIX) Como consequência, impõe-se declarar a nulidade do despacho interlocutório que indeferiu a requerida inquirição da testemunha supra indicada, e a sua consequente revogação, por violação do disposto no art. 340.º, n.º 1, do CPP, ao não considerar útil a inquirição requerida, quando afinal se revela necessária, face aos factos apontados e ao condicionalismo verificado.
XX) Essa revogação invalida os actos processuais posteriores praticados finda a produção da prova, nos termos do art.122º do Cód. Proc. Penal, nomeadamente a Sentença final e implica a continuação da audiência de julgamento, para produção da prova supra indicada, seguindo-se os demais termos processuais.
Nestes termos, o presente recurso deve ser julgado procedente e, em consequência:
a) Ser declarada a nulidade do douto despacho de indeferimento da diligência de prova de inquirição da testemunha agente da PSP, J - melhor identificado a fls. 21 a 23 - proferido pelo Juízo Local Criminal de Beja no dia 05 de Abril de 2024, que havia sido requerida pelo Ministério Público ao abrigo do art. 340.º do CPP, o qual deverá ser revogado e substituído por outro ordene a realização da requerida diligência de inquirição da mencionada testemunha, por tal se mostrar imprescindível à descoberta da verdade dos factos e à boa decisão da causa;
b) Nessa conformidade, determinar-se a invalidação dos actos processuais posteriores que se seguiram, nos termos do art.122º do Cód. Proc. Penal, designadamente, a anulação da douta Sentença final proferida nestes autos, procedendo-se à reabertura da audiência para inquirição da mencionada testemunha.
V. EXAS, SRS. JUIZES DESEMBARGADORES, FARÃO, COMO É HABITUAL, A MELHOR JUSTIÇA.
Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2 do CPP o arguido nada disse.
Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência.
“O disposto no artigo 340º do Código de Processo Penal visa a realização de meios de prova supervenientes, cuja necessidade decorra da própria audiência de julgamento, o que não é o caso. O que se extrai do requerimento formulado pelo Ministério Público é que esse mesmo requerimento tem apenas por base uma diferente avaliação por parte do senhor Procurador presente nesta audiência relativamente à pertinência da prova carreada para os autos em sede de inquérito e avaliação diferente daquela que teve o respetivo titular que não considerou necessário indicar tal testemunha, mas apenas a proprietária do estabelecimento. Assim sendo, por não estar verificado o pressuposto que subjaz ao disposto no artigo 340º do Código de Processo Penal, vai indeferido. Sem prejuízo, sempre se dirá que a inquirição de um agente da PSP que não teve conhecimento direto dos factos sempre redundaria num acto inútil, porquanto o mesmo apenas, por um lado estar-lhe-ia vedado depor sobre factos que tivesse conhecimento de declarações produzidas pelo arguido e por outro lado, seria sempre a sua convicção e não um resultado de prova direta incriminadora, nomeadamente do arguido aqui presente, sendo certo que nos próprios termos da própria acusação intervieram mais indivíduos no assalto em causa.”
E a sentença recorrida tem o seguinte teor:
“Factos Provados:
Mostram-se provados os seguintes factos com interesse:
1. No dia 27.02.2023, entre as 02:00h e as 03:00h, três indivíduos cuja identidade não se logrou apurar dirigiram-se ao estabelecimento de restauração e bebidas denominado por “Lana Caprina”, sito na Rua Cidade de São Paulo, com o propósito de se introduzirem no interior das instalações e de se apoderarem de objectos e valores monetários que aí encontrassem.
2. Para o efeito, forçaram a janela do restaurante, logrando parti-la, o que permitiu que aí entrassem.
3. Já no interior do referido estabelecimento comercial, apropriaram-se de quantias existentes nas caixas registadoras e num mealheiro de gorjetas, num valor total não concretamente apurado, mas não inferior a €102,00, causando o correspondente prejuízo a F, proprietária do estabelecimento de restauração e bebidas designado por “Lana Caprina”.
4. Após, abandonaram as instalações do estabelecimento de restauração e bebidas na posse daquelas quantias, de uma das caixas e do mealheiro, integrando-as no seu património.
5. O arguido não tem antecedentes criminais.
***
Factos não provados:
Não se provou que:
- O arguido foi um dos intervenientes no assalto ao “Lana Caprina”;
- Deste estabelecimento foi subtraído um total de €1.150,00, mas apenas o que resultou provado.
***
Motivação:
A audiência decorreu com registo da prova. Tal circunstância que também nesta fase se deve revestir de utilidade, dispensa o relatório detalhado das declarações, depoimentos e esclarecimentos nela prestados.
O decidido funda-se em todos os meios de prova produzidos em audiência, valorados na sua globalidade.
Concretamente, considerou-se desde logo o teor do auto de notícia, de fls. 18 a 20; o aditamento ao auto de notícia, de fls. 21 a 23; autos de apreensão, de fls. 37 a 39v; fotogramas, de fls. 65 a 68, 77 a 79, 81 a 83; auto de visionamento de imagens, de fls. 71 a 75.
O arguido remeteu-se ao silêncio.
A única testemunha arrolada pelo MP, F, proprietária do estabelecimento em causa, só na manhã seguinte tomou conhecimento de que este havia sido assaltado, descrevendo a forma como foi forçada a entrada no seu interior (quebra do vidro de uma janela), e os prejuízos sofridos. Quanto ao montante total subtraído, não o conseguiu concretizar, mas sempre superior a €102,00, avançando a testemunha com valores que poderiam rondar os €500,00 a €1.000,00. Já com respeito à identificação dos autores de tal assalto, a testemunha declarou ter visionado as imagens sem que das mesmas seja possível identificar quem quer que seja. Confrontada com a presença do arguido, disse não o conhecer nem lhe ser possível fazer qualquer correspondência com algum dos indivíduos que visionou no interior do estabelecimento.
Com efeito, das imagens de fls. 71 a 75 não é possível identificar quem quer que seja. Por outro lado, a caixa registadora e o mealheiro (arrombados) não foram recuperados na posse do arguido, ou mediante indicação deste, mas sim de um terceiro (vide fls. 39).
Finalmente, ao arguido foram apreendidas umas calças de fato de treino pretas (vide fls. 37 e 81), absolutamente vulgares, ou seja, sem qualquer característica que permita, para além de qualquer dúvida razoável, a correspondência com a indumentária envergada por qualquer um dos indivíduos captados nas imagens.
Pelo que, não foi produzida prova bastante que sustente ter sido o arguido um dos autores daquele assalto.
Considerou-se ainda o teor do CRC junto aos autos.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
Dispõe o artigo 203º do C. Penal (tipo base):
“Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”
Para que se verifique o crime de furto é necessário que se verifiquem os seguintes elementos objectivos:
a) que o agente tenha adoptado um comportamento que consista em subtrair uma coisa ou animal;
b) que essa coisa seja móvel ou animal e alheios.
Atento o disposto no artº 13º do Cód. Penal, o crime em causa é doloso.
Mas, não basta que o agente tenha actuado com mero dolo. É necessário que tenha actuado com a intenção de apropriação para si ou para terceiro da coisa, o que confere ao dolo uma configuração específica.
In casu e atenta a matéria de facto provada e não provada, impõe-se a absolvição do arguido, porquanto não ficou demonstrado que tivesse sido ele um dos indivíduos que se introduziu no estabelecimento de restauração em causa e se apropriou dos bens que dali foram subtraídos.
DISPOSITIVO:
Em face do exposto,
- Absolvo o arguido H da prática do crime de furto qualificado de que vinha acusado.”
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso.
Questões que cumpre apreciar:
- Nulidade do despacho de 5 de Abril de 2024 e, consequentemente, da sentença absolutória proferida posteriormente, por ter sido indeferido o requerimento de inquirição da testemunha agente da PSP, J, ao abrigo do disposto no art. 340º do CPP.
Vejamos então.
Os objectos do presente recurso são o despacho de 5 de Abril de 2024 e a sentença da mesma data. O primeiro é um despacho de indeferimento de requerimento de prova que sobe com a decisão que subir a final e o segundo é a sentença absolutória; não sendo interposto recurso da decisão final o primeiro recurso fica (ria) sem efeito.
In casu, o MºPº recorre do referido despacho e da sentença absolutória exarada nos autos e fá-lo em requerimento conjunto que abrange os dois objectos de recurso, dispensando assim a especificação de manutenção de interesse quanto ao recurso do despacho interlocutório, pelo que há que proceder à análise dos dois objectos de recurso.
Dispõe o artigo 340.º do CPPenal:
1 - O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
2 - Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta.
3 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 328.º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis.
4 - Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que:
a) (revogada)
b) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas;
c) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou
d) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.
O Mº Pº arguiu a nulidade do despacho e veio recorrer do despacho que julgou não verificada a referida nulidade. Em nosso entender não há lugar à arguição de nulidade, sendo o despacho que indefere requerimento para apresentação de meios de prova ao abrigo do disposto no art. 340º do CPP recorrível nos termos gerais. Será assim, por este prisma que apreciaremos o recurso interposto pelo MºPº do despacho interlocutório.
Neste sentido leia-se “Comentário ao Código de Processo Penal, Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, 2016, 2.ª edição, p. 1049, onde se escreve que a decisão do tribunal de produção ou não produção de prova, obviamente que é recorrível, designadamente com o fundamento de que foi proferida fora das condições legais, posto que a sua irrecorribilidade não está prevista - art. 399.º.
Se a produção de meio de prova tiver sido requerida e o tribunal indeferir por despacho tal requerimento, a impugnação deve ser feita por via de interposição de recurso desse despacho, não havendo razão para impor ao interessado a prévia arguição de vício. Sendo esta a nossa posição iremos analisar o recurso em conformidade.
Posto isto analisemos a questão de fundo.
Na acusação deduzida contra o arguido H, o MºPº indica prova documental vária e indica como prova testemunhal apenas uma testemunha, a proprietária do restaurante assaltado.
No decurso da audiência de julgamento e após a audição da testemunha arrolada pelo MºPº, este pediu a palavra e requereu a audição de uma nova testemunha, agente da PSP. Para tal referiu que a testemunha teria uma importância imprescindível para o apuramento dos factos e consequentemente para a descoberta da verdade material, pois seria a única que poderia identificar o arguido.
O M.mo Juiz a quo indeferiu o requerimento com o fundamento de que não se tratava de um meio de prova superveniente, pressuposto ínsito no art. 340º do CPP segundo ele, pois a testemunha poderia ter sido arrolada com a acusação. Além disso, o referido agente não teria conhecimento directo dos factos, pelo que a sua inquirição sempre redundaria na prática de um acto inútil.
Da leitura dos autos resulta que o Sr. Juiz se limitou a constatar que o Ministério Público estava em condições de ter indicado a testemunha em causa na acusação, não fazendo qualquer juízo, porém, sobre a indispensabilidade da sua inquirição para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Recorde-se que a alínea a) do n.º 4 do art. 340º do CPP foi revogada pelo art.14º, al. c), da Lei 94/2021, de 21.12, lei que aprovou medidas previstas na Estratégia Nacional Anticorrupção.
Deixou assim de ser pressuposto de inadmissibilidade “as provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação”. Ou seja, deixou de se colocar tout court a questão da superveniência da prova e pôs-se a tónica na sua importância para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa. Devia, pois, o Tribunal a quo ter feito tal juízo.
O facto de a proprietária do restaurante não ter conseguido identificar o arguido apesar do sistema de videovigilância que o restaurante de que é proprietária possuía e o facto de o arguido se ter remetido ao silêncio (direito que lhe assiste e que veio a exercer) tornaram indispensável a inquirição da testemunha requerida pelo Ministério Público, com vista à descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Do n.º 1 do art. 340º do CPP, já supra citado, bem como do conjunto do nosso sistema penal, cremos que se retira a prevalência da busca pela verdade material, sendo que o tribunal tem o dever de ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova que entenda necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, se não existir norma expressa que, em determinadas situações, assim o impeça. Com aplicação ao caso em análise não existe norma que disponha diferentemente do consagrado no art. 340º do CPP.
Concluindo, o nosso sistema consagra o princípio da investigação ou da oficialidade de que o art. 340º do CPP é expressão. Neste sentido, entre outros, acórdão da Relação de Évora de 21.6.2022, processo n.º 514/20.6PAPTM e acórdão da Relação de Lisboa de 26.2.2019, processo n.º 906/17.8PTLSB, in dgsi.pt.
Relativamente ao facto de o juiz a quo ter entendido que sempre se trataria de um acto inútil a audição do agente da PSP porquanto o mesmo não teve conhecimento directo dos factos, não esclarece o M.mo juiz em que número ou alínea do art. 340º do CPP sustenta o seu raciocínio. Com efeito, a alínea b) do número 4 deste artigo dispõe que os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que as provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas. Não se pode de todo afirmar, cremos, que a inquirição de um agente da PSP que elaborou um aditamento ao auto de notícia, que identificou o arguido através da visualização das imagens de CCTV e que abordou o arguido no dia seguinte à prática dos factos, tendo o arguido assumido perante ele a prática dos factos - antes de ser constituído arguido - sendo que nos parece óbvio que não havia qualquer obrigação de o suspeito já ter sido constituído arguido, uma vez que se trata do dia seguinte à prática dos factos, seja irrelevante ou supérflua. Pela mesma ordem de razões não se pode também entender que o meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa (al.c)), pois inadequado é um meio de prova que não permite fazer prova sobre um determinado facto, nada permite demonstrar ou estabelecer, de nada serve para a decisão da causa ( in Comentário ao Código de Processo Penal, Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, 3ª edição, p. 1063), o que não é manifestamente o caso. E, manifestamente também não se trata de um requerimento com finalidade dilatória, tanto mais que o arguido foi absolvido da prática do crime que lhe era imputado.
Restaria então concluir, embora o M.mo juiz não o diga expressamente, que a inquirição desta testemunha não era necessária à descoberta da verdade e à boa decisão da causa. Não nos parece que seja de todo o caso pelas razões enunciadas pelo MºPº nas suas alegações de recurso, nomeadamente o conhecimento que a testemunha tem dos factos e o papel que teve na recolha de prova, nomeadamente nas apreensões constantes de fls. 37 a 39 dos autos.
Posteriormente, em sede de audiência de julgamento e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o M.mo juiz ajuizará da força e da bondade do depoimento da testemunha cuja inquirição foi requerida pelo MºPº em acta e então decidirá em conformidade. Não deve, e quanto a nós não pode, é fazê-lo antes de ouvir a testemunha, uma vez que os fundamentos invocados para não a inquirir não são válidos.
A procedência deste recurso determina a invalidade dos actos praticados após o despacho agora revogado, e obsta à apreciação do recurso interposto pelo Ministério Público relativamente à sentença que fica, assim, sem qualquer efeito.
Dispositivo
Pelos fundamentos expostos:
I - Acordam os juízes desta 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso interposto do despacho interlocutório de 5.4.2024, revogando o despacho recorrido de indeferimento de prova e em anular a sentença proferida nos autos, determinando que seja admitida a inquirição do agente da PSP J e reaberta a audiência para a sua inquirição, sem prejuízo da realização de outras diligências que se entenda necessárias à descoberta da verdade e boa decisão da causa. Após produção da prova deverá proceder-se à elaboração de nova sentença.
II – Não apreciar o recurso interposto pelo Ministério Público relativamente à sentença.
Sem custas.
Lisboa, 22 de outubro de 2024
Renata Whytton da Terra
Beatriz Borges
Fátima Bernardes