A existência de dupla conformidade decisória das instâncias, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente divergente, determina a inadmissibilidade do recurso de revista, nos termos do artigo 671º, n.º 3 do CPC.
(Reclamação – art.º 643º do CPC)
1. AA e BB interpuseram recurso de revista contra o acórdão do TRL, de 06.02.2024, que julgou a apelação improcedente e confirmou a sentença apelada.
2. O tribunal recorrido não admitiu a subida do recurso de revista por ter entendido que existia dupla conforme, nos termos do art.º 671º, n.º 3 do CPC, dado que o acórdão recorrido havia confirmado a decisão da primeira instância, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente.
3. Os recorrentes reclamaram contra esse despacho, invocando o art.º 652.º, n. 3º do CPC. Dado o erro do meio processual invocado, o Desembargador relator determinou, com base no art.º 193º, n.º 3 do CPC, que se seguissem os termos processuais adequados, ou seja, a Reclamação prevista no art.º 643º do CPC.
4. Distribuídos os autos no STJ, foi proferida decisão singular, em 12.07.2024, que indeferiu a reclamação apresentada.
5. Por não concordarem com essa decisão, os recorrentes-reclamantes requereram que os autos fossem remetidos à conferência para prolação de acórdão.
Cabe decidir em Conferência.
1. No requerimento por meio do qual os reclamantes pediram a intervenção da Conferência, por não se conformarem com a decisão singular, que indeferiu a reclamação apresentada nos termos do art.º 643º, reafirmaram, na essência, os argumentos que já haviam apresentado para contradizer a decisão do TRL que não admitiu a subida do recurso. E alegaram, ainda, que essa decisão singular seria nula por omissão de pronúncia.
Deve, desde já, afirmar-se que ao tribunal cabe decidir questões jurídicas, não tendo, portanto, que esgrimir a pertinência ou impertinência dos argumentos que os recorrentes entendam invocar para sustentarem as suas teses.
2. Quanto às razões pelas quais a reclamação foi indeferida, subscreve-se, coletivamente, a fundamentação da decisão singular (agora reclamada), para a qual se remete.
2.1. É o seguinte o teor da fundamentação da decisão singular impugnada:
«- Deve, desde já, afirmar-se que é inequívoca a existência de dupla conformidade decisória, pois a segunda instância confirmou a sentença, sem voto de vencido e sem fundamentação diversa. Efetivamente, o percurso interpretativo conducente à aplicação do direito e o resultado decisório é substancialmente coincidente em ambas as instâncias.
Verifica-se, portanto, o impedimento ao recurso de revista previsto no n.º 3 do artigo 671.º do CPC, como o despacho reclamado bem entendeu.
- Entendem os recorrentes-reclamantes que, nos termos do artigo 674º, n.º 3 do CPC, existirá uma razão processual autónoma, emergente do modo como a segunda instância se pronunciou sobre a reapreciação do julgamento da matéria de facto, que permitiria ultrapassar o limite da “dupla conforme” e justificar o recurso de revista.
O âmbito de reapreciação da matéria de facto foi identificado, no acórdão recorrido, nos termos que se transcrevem:
«Face ao decidido e determinado no já referido ac. STJ de 07-12-2023, cumpre apreciar a impugnação da decisão sobre matéria de facto, tal como a mesma resulta delimitada naquele aresto.
Ali se apontou que “(…) os recorrentes (…) impugnam a matéria de facto pretendendo que os factos que elencam na conclusão L) sejam (também) dados como provados pelo tribunal, por alegadamente estarem provados por confissão do réu, por acordo e / ou por prova documental.”
Trata-se, portanto, de apurar se os factos em apreço devem ser aditados ao elenco de factos provados, ou seja, pressupondo a manutenção dos factos considerados provados e não provados, acrescentando-se outros factos ao elenco de factos provados.
É, pois, este o âmbito da reapreciação da decisão sobre matéria de facto que importa levar a cabo.»
O acórdão recorrido, dando cumprimento ao acórdão do STJ de 07.12.2023, procedeu efetivamente à reapreciação da pertinência de todos aqueles factos, e concluiu pela não alteração da factualidade provada, justificando essa decisão pela ausência de relevo de tal factualidade para a concreta decisão do direito.
Nos termos do artigo 682º, n.º 2 do CPC, não cabe ao STJ pronunciar-se sobre o modo como a Relação julga a matéria de facto, exceto quando se verifique a violação de alguma das regras de valoração da prova cujo valor se encontra tabelado nos termos do artigo 674º, n.º 3, o que manifestamente não acontece no caso concreto (contrariamente ao pretendido pelos reclamantes).
O poder-dever de reapreciar a matéria de facto que à segunda instância cabe (quando tal lhe é adequadamente requerido) não se esgota no juízo de confirmação ou de não confirmação dos factos que a primeira instância considerou provados ou não provados. Implica também, e antes de mais, a autonomia quanto ao juízo de pertinência sobre o âmbito da matéria em reapreciação. Necessário é que a segunda instância justifique o juízo de pertinência ou de não pertinência da consideração de determinados factos para a decisão de direito. E no caso concreto (na sequência do acórdão do STJ de 07.12.2023) essa decisão encontra-se detalhadamente justificada.
Efetivamente, se, pela sua natureza, determinado facto é absolutamente irrelevante para o tipo de litígio em causa, o julgamento dessa matéria redundará na prática de um ato inútil (vedado pelo art.º 130.º do CPC).
Não existe, assim, nenhuma razão adjetiva autónoma (emergente da decisão da segunda instância) que permitisse ultrapassar a conformidade decisória das duas instâncias e admitir o recurso de revista.
Nestes termos, é de concluir que a decisão reclamada não merece censura, pois fez a correta aplicação da lei ao considerar o recurso de revista não admissível.»
2.2. Os reclamantes insistem no argumento da não existência de dupla conforme, pois entendem que o acórdão recorrido não decidiu exatamente como se decidiu na sentença, porque não teria valorado de forma idêntica alguns aspetos da matéria de facto.
O que o artigo 671º, n.º 3 exige para que se verifique a dupla conforme é que o acórdão recorrido confirme a sentença “sem fundamentação essencialmente diferente”. Não se exige, portanto, que o acórdão recorrido seja rigorosamente idêntico à sentença, quer na extensão valorativa da matéria de facto quer no respetivo percurso normativo.
Neste sentido pode ver-se, entre muitos outros, o acórdão do STJ, de 29.04.2021 (relator Cura Mariano), no processo n.º 115/16.3T8PRG.G1.S1, no qual se afirma:
«Para efeitos de verificação da dupla conformidade a que alude o artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, deve considerar-se que as fundamentações são essencialmente diversas quando seguem percursos distintos, acolhendo raciocínios jurídicos diferentes, não quando divergem em pormenores ou em aspetos secundários, sem que se possa afirmar que seguiram linhas de pensamento autónomas.»
No mesmo sentido, veja-se o acórdão do STJ, de 19.05.2015 (relator Lopes do Rego, no processo n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S1:
«Não é qualquer alteração, inovação ou modificação dos fundamentos jurídicos do acórdão recorrido, relativamente aos seguidos na sentença apelada, qualquer nuance na argumentação jurídica por ele assumida para manter a decisão já tomada em 1ª instância, que justifica a quebra do efeito inibitório quanto à recorribilidade, decorrente do preenchimento da figura da dupla conforme.
Só pode considerar-se existente uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância.»
É manifesto que não assiste razão aos reclamantes, pois nenhuma questão autónoma de caso julgado se coloca nos presentes autos. O acórdão recorrido deu cumprimento ao decidido no referido acórdão do STJ de 07.12.2023, ao ter reapreciado a prova, como justificadamente consta desse acórdão e se refere também na decisão recorrida. Questão diferente é a discordância dos recorrentes com o resultado dessa reapreciação e consequente decisão. Mas tal não é matéria que possa ser discutida no âmbito da presente reclamação, onde está em causa apenas a questão de saber se a decisão reclamada fez, ou não, a correta aplicação do direito processual quando confirmou a decisão do Desembargador relator que não admitiu a subida da revista.
Por outro lado, afirmam os reclamantes que a decisão singular seria ainda nula, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea b), porque não especificaria os seus fundamentos. Ora, basta uma leitura atenta dessa decisão para se perceber que as razões que levaram à confirmação do despacho do TRL (que não admitiu a subida da revista) se encontram devidamente expostas, não tendo este tribunal que se pronunciar sobre argumentos que não respeitam diretamente às razões pelas quais a revista não foi admitida.
Concluiu-se, portanto, que na decisão reclamada nenhuma omissão de pronúncia, nem nenhuma falta de fundamentação existe, pelo que nenhuma causa de nulidade a afeta.
4. Em síntese, a decisão singular reclamada não merece censura ao confirmar o despacho do TRL que não havia admitido a subida do recurso de revista.
Custas pelos reclamantes, que se fixam em 3 UCs (art.º 7º, n.º 4 e Tabela II, penúltima linha, do Regulamento das Custas Processuais).
Lisboa, 17.10.2024
Maria Olinda Garcia (Relatora)
Ricardo Costa
Luís Espírito Santo