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PEAP
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
CRÉDITOS COMUNS
CRÉDITOS COM GARANTIA
Sumário
1 – A diferente natureza dos créditos é uma razão objetiva para o seu tratamento diferenciado à luz do princípio da igualdade. 2 – Os créditos comuns têm como garantia o património do devedor, em geral, enquanto que os créditos garantidos, quanto aos bens sobre que incide a garantia, têm prioridade de pagamento e só após integralmente pagos o remanescente poderá servir para o pagamento dos créditos comuns. 3 – A diferente natureza dos créditos justifica diferente tratamento, sem prejuízo de desproporção merecedora de censura e de situações em que diferentes créditos são tratados de forma igual. 4 – Em concreto, o pagamento de 100% do crédito garantido, composto de capital, não surge desproporcionado com o pagamento de 70% dos credores comuns. 5 – A única ocasião em que, em processo para acordo de pagamento, o tribunal se pode pronunciar sobre a natureza de um crédito reclamado para efeitos de determinação do quórum deliberativo, é na decisão da específica impugnação que tenha sido apresentada por legitimado, ou na apreciação sumária, para os efeitos do art. 222º-F nº3, proémio, da mesma impugnação. A alteração da natureza de um crédito reconhecido e não impugnado que se sedimentou na lista definitiva de créditos não é possível. 6 – Não se surpreende, na omissão de comunicação aos credores da alienação de património ocorrida antes do início do processo para acordo de pagamento, qualquer violação de regra procedimental suscetível de obstar à homologação do acordo aprovado. 7 – A ponderação de um cenário alternativo compreendendo a declaração de insolvência e a resolução de determinado negócio jurídico implicando o ingresso, numa futura massa insolvente, de um bem onerado com hipoteca, não significa sem mais um melhor cenário para os demais credores, comuns, ficando dependente da alegação e prova dos valores envolvidos. 8 - O credor que requer a não homologação do acordo de pagamento com o fundamento no disposto na al. a) do nº1 do art. 216º do CIRE tem o ónus de demonstrar, em termos plausíveis e concretos, que na ausência de plano ficaria em situação mais favorável de acordo com o cenário mais provável.
Texto Integral
Acordam os Juízes da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório
PME intentou o presente processo especial para acordo de pagamento.
Foi nomeado Administrador Judicial Provisório e efetuadas as publicações previstas no nº5 do art. 222º-C do CIRE.
Foram reclamados créditos, nos termos do nº2 do art. 222º-D do CIRE, vindo o Administrador Judicial Provisório a apresentar lista provisória de credores, a qual não sofreu impugnação.
Foi prorrogado o prazo de negociações.
Foi apresentada proposta de acordo de pagamento pelo devedor.
ABG veio pedir a não homologação do plano, alegando violação do princípio da igualdade por tratamento muito mais favorável de um credor financeiro e ainda que, para os efeitos previsto no art. 216º nº1, al. a) do CIRE, a sua situação é mais favorável na ausência de qualquer plano, dado que o produto da venda do imóvel hipotecado, situado num concelho valorizado, será suficiente para satisfazer a garantia e ainda restará para pagar aos credores comuns, enquanto que com o plano apenas receberão 70%.
O Condomínio do prédio sito na Rua …, veio pedir a não homologação do Plano, invocando violação do princípio da igualdade, alegando que beneficia o crédito, cujo valor se desconhece, de uma entidade bancária em detrimento dos demais credores, nomeadamente o credor condomínio, ao qual não esclareceu como procederá ao pagamento das prestações entretanto vencidas e das vincendas, não sabendo sobre que crédito se prevê o pagamento de 70%. Declara votar contra e invoca o disposto no art. 216º nº1, al.a) do CIRE, sem invocar qualquer facto além da referida violação do princípio da igualdade.
O devedor respondeu ao pedido de não homologação apresentado por ABG, defendendo a inexistência de violação do princípio da igualdade e alegando ter como património apenas o bem imóvel hipotecado ao credor Banco.., pelo que numa situação de insolvência e com a venda do imóvel, apenas este credor Banco… receberia valores pela venda do imóvel, e caso existisse algum valor sobrante, sempre seria rateado pelo credor privilegiado Fazenda Nacional, pelo que os credores comuns nada receberiam em cenário de insolvência, sendo o presente plano mais favorável.
O Sr. Administrador Judicial Provisório juntou aos autos o resultado da votação do plano, nos termos da qual o acordo de pagamento foi aprovado com os votos favoráveis de 88,92% dos votos emitidos, tendo votado credores representando 98,85% do total dos créditos relacionados com direito a voto, correspondendo todos a créditos não subordinados, nos termos da al. a) do nº3 do art. 222º-F do CIRE.
Em 18/02/2022foi proferida a seguinte decisão: “Em suma, não se considera aprovado o plano especial para acordo de pagamentos apresentado, inviabilizando-se necessariamente a respetiva homologação, nos termos do disposto nos arts. 212º, n.º2, al. a) e art. 222º-F, n.º3, do CIRE. Custas pelo requerente. Valor da ação: € 30.000,00 (art. 301º, do CIRE). Registe, notifique e publicite - art.ºs. 222.º-F, n.º 8, 37.º e 38.º, do CIRE.”
Inconformado apelou PME, pedindo a revogação da decisão e a sua substituição por outra que supra as nulidades invocadas.
Por acórdão deste Tribunal de 23/04/2024 foi revogada a decisão recorrida e declarado aprovado o acordo de pagamento apresentado pelo devedor nos termos do disposto na al. b) do nº3 do art. 222º-F do CIRE, tendo sido determinado o prosseguimento dos autos com a prolação do despacho referido no nº5 do art. 222º-F do CIRE.
Por sentença de 06/06/2024 foi decidido: «Nos termos e pelos fundamentos expostos recusa-se a homologação do plano de recuperação apresentado por PME, separado de pessoas e bens, portador do cartão de cidadão com número de identificação civil …, com número de identificação fiscal …., com residência na Av. ...»
*
Inconformado apelou o devedor pedindo a revogação do despacho e o proferimento de nova decisão, que, suprindo as nulidades invocadas declare homologado o acordo de pagamentos aprovado pelos credores, apresentando as seguintes conclusões:
1 - A Lista de Credores foi junta aos autos, e publicada no Portal Citius em 16 de Junho de 2023, não existindo qualquer impugnação à mesma, e como tal converteu-se em definitiva.
2- Neste sentido, foram reconhecidos os seguintes créditos, com as seguintes categorias:
Autoridade Tributária e Aduaneira, com um crédito comum no valor de € 8.523,95, decorrente falta de pagamento de taxas de portagens, juros, coimas, custas e outros encargos;
Banco …, S.A com um crédito garantido por hipoteca no valor de € 117.142,79, decorrente de concessão de crédito ao consumo, cartões de crédito e descoberto em conta de depósitos à ordem;
Banco …, S.A., com um crédito comum no valor de € 13.948,07, decorrente de concessão de crédito ao consumo, cartões de crédito e descoberto em conta de depósitos à ordem;
IP, Ld.ª, com um crédito comum no valor de € 13.596,09, decorrente de cartão de crédito e despesas de contencioso;
ABG, com um crédito comum no valor de € 12.293,02, decorrente de fiança prestada;
Banco …, S.A., com um crédito comum no valor de € 2.697,89, decorrente da concessão de crédito pessoal e descoberto em conta à ordem;
Caixa …, com um crédito comum no valor de € 496,99, decorrente de descoberto em conta à ordem;
Condomínio do Prédio …, com um crédito comum no valor de € 3.629,87, decorrente de quotas/despesas de condomínio;
CCP, com um crédito comum no valor de € 2.000,00, decorrente de empréstimo pessoal.
3- Decorreram as negociações com os credores, e o Devedor em 20-09-2023, apresentou nos autos Acordo de Pagamentos que foi submetido à votação dos credores
4- Por requerimento remetido aos autos em 10-10-2023, o Administrador Judicial Provisório remeteu aos autos o resultado da votação e concluiu que o Plano se encontrava aprovado.
5- Votaram favoravelmente o Plano apresentado, os credores Autoridade Tributária e Aduaneira, Banco …, S.A., Banco…, S.A. e IP, Ld.ª que representam 79,91% da totalidade dos créditos reconhecidos.
6- O Tribunal a quo por sentença aqui em Recurso, decidiu não homologar o Acordo de Pagamentos por violação do princípio da igualdade entre os credores,
7- (sem conteúdo).
8- Além de que considerou o Acordo de Pagamentos apresentado menos favorável aos credores ABG e Condomínio, já que segundo a posição assumida pelo Tribunal a quo, os mesmos estariam numa situação mais benéfica num cenário de insolvência.
9- O crédito do Banco… foi reconhecido como sendo um crédito garantido por hipoteca sobre bem imóvel pertença do Devedora, e os Credores ABG e Condomínio em momento algum impugnaram a lista de credores.
10- Ao ser convertida em definitiva a lista de credores, não foi violado qualquer direito de igualdade, já que o tratamento diverso ficou a tratar-se de categorias e espécies de crédito diversos, sendo certo que os créditos garantidos poderão sempre ser tratados de forma diversa, por se tratar de uma categoria diversa dos credores ABG e Condomínio.
11- Os credores ABG e Condomínio, não se opuseram à Lista de Credores optando posteriormente em vir requerer aos autos a não homologação do Acordo de Pagamentos, sem justificar ou comprovar devidamente em que sentido, ficariam em situação mais vantajosa em caso de processo de insolvência do Devedor.
12- Os Credores ABG e Condomínio representam 9,10% da totalidade dos créditos reconhecidos, tendo o acordo de pagamentos sido aprovado por credores que representam 79,91%.
13- O acordo apresentado trata de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual. O princípio da igualdade dos credores supõe, assim, uma comparação de situações, realizadas a partir de determinado ponto de vista. É, justamente, a perspectiva pela qual se fundamenta essa desigualdade e, consequentemente, se justifica o tratamento desigual não arbitrário do presente plano.
14- Assim um dos fundamentos objectivos - porventura o mais claro - de diferenciação dos credores, in casu, é precisamente a distinta classificação dos créditos da insolvência, designadamente a que os separa em comuns e privilegiados. Decorre da lei, que em primeiro lugar é dado pagamento aos créditos com garantias ou privilégios creditórios e o remanescente, se o houver, será distribuído pelos créditos comuns (artigos 174.º, 175.º e 176.º do CIRE). Quando na sentença de graduação de créditos se gradua em primeiro lugar um crédito garantido ou privilegiado, relegando-se para pagamento com o remanescente (se o houver) os créditos comuns, o que muitas vezes se traduz em apenas os primeiros receberem os seus créditos ou parte deles, tal diferenciação não viola o princípio da igualdade, na medida em que trata de forma diversa diferentes realidades.
15- Outra razão objectiva, razoável, susceptível de justificar a diferença de tratamento, é, a fonte dos diversos créditos ou a finalidade visada com a contracção de um e de outros. Pois é razoável tratar de forma diferente o crédito contraído para aquisição de habitação e o crédito assumido para aquisição de bens de consumo, ou ainda os créditos comuns de entidades bancárias e outros fornecedores.
16- No que diz respeito ao demais alegado pelo Tribunal a quo, sempre se dirá, que o aqui Devedor apresentou-se ao Processo Especial de Acordo de Pagamentos, pois pretendia e pretende cumprir todas as obrigações perante os seus credores.
17- O Devedor nunca prestou falsas declarações nos autos, pois que desde o início do processo referiu que detinha apenas um bem imóvel, fracção HP, correspondente a um lugar de garagem.
18- Quanto a fracção G e conforme explicado nos autos, o aqui Devedor detinha apenas a meação de tal imóvel, sendo que aquando da separação de pessoa e bens, a sua esposa, exigiu que a doação fosse efectuada à filha de ambos.
19- Não obstante o Devedor continua a ser o responsável pelo crédito existente, e pretende com o presente processo honrar todos os compromissos com os seus credores, não se ponderando, nem existindo qualquer situação insolvencial.
20- Num cenário de situação de insolvência do Devedor, não se compreende em que medida ficariam os credores ABG e Condomínio, até porque os mesmos em nenhum momento comprovam por algum meio tal afirmação, já que o Devedor detinha apenas uma fracção e a meação de outra, que se encontram ambas hipotecadas ao credor Banco….
21- Numa situação de insolvência ou até de execução de hipoteca, apenas seria previsível que o credor hipotecário fosse ressarcido dos seus créditos, e em caso de uma venda bem conseguida também a Autoridade Tributária, sendo que os credores comuns nenhuns valores receberiam.
22- Assim, não restam dúvidas que a situação do acordo de pagamentos apresentado sempre será mais vantajoso para os credores comuns, já que os mesmos no presente acordo receberiam 70% dos seus créditos, e no âmbito de um eventual processo de insolvência nada receberiam.
23- Os Credores ABG e Condomínio, requereram a não homologação do acordo de pagamentos alegando que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável que a que interviria na ausência de qualquer plano.
24- Tal questão foi trazida aos autos pelos credores pela primeira vez no pedido de não homologação, não tendo sido alegado nem objeto de pronúncia previamente, bem como não impugnaram sequer a lista de credores do 222º D do CIRE, concordando com ela, portanto, que se tornou definitiva.
25- Relativamente aos fundamentos de recusa previstos no artigo 216.º do CIRE, os mesmos dependem da alegação concreta e plausível pelo credor de factos suscetíveis de preencher uma das alíneas do n.º 1 deste preceito.
26- O Requerimento de não homologação apresentado pelos Credores ABG e Condomínio, foi de tal forma vago, indeterminado e desacompanhado de prova que não cumpriu as exigências do nº1, al. a) do art. 216º do CIRE, pelo que não poderia o Tribunal a quo deferir tal pretensão.
27- A Douta sentença em recurso, alega existir a violação de normas aplicáveis ao conteúdo do plano, nomeadamente violação do princípio da igualdade, na medida que o credor Banco… não tem prioridade de pagamento, quando tal não corresponde à realidade já que o crédito do Banco… se encontra de facto garantido por hipoteca, e reconhecido nos autos como crédito garantido.
28- A determinação do que seja uma violação não negligenciável tem sido trabalhada desde a entrada em vigor do CIRE, constituindo mais um dos conceitos indeterminados cujo preenchimento cabe ao julgador, face aos dados concretos, seguindo certos parâmetros ou linhas orientadoras.
29- Violação não negligenciável será “apenas aquela que importe uma lesão grave de valores ou interesses juridicamente tutelados, isto é, uma lesão de tal modo grave que nem em atenção ao princípio da recuperação e aos interesses associados a este, o juiz pode deixar de recusar-se a homologar o plano, inviabilizando com isso a recuperação. Está implícito na norma o dever de o juiz proceder a uma ponderação entre o interesse da recuperação e os interesses que sejam, em concreto, visados pela norma violada com vista a decidir se, em homenagem ao primeiro a violação pode ser negligenciada.”
30- Os vícios de procedimento tanto podem referir-se ao processo judicial – onde poderão inclusive cair sob a alçada das regras processuais civis, aplicáveis por via do disposto nos arts. 222º-A nº3 e 17º nº1 do CIRE – como ao processo negocial. Enquanto que os primeiros serão tratados no processo judicial nos termos “clássicos”, de arguição, contraditório e decisão, os segundos relevam apenas no momento do juízo de homologação, dado que todo o processo negocial decorreu extrajudicialmente.
31- A sentença em Recurso, refere que vai o processo não homologado, já que o Devedor não informou os autos que havia doado a meação de um seu imóvel à sua filha, e que “a oportunidade de recuperação tem de assentar em pressupostos claros de transparência e partilha de informação…”, concluindo que face ao ocorrido existiu uma violação do principio da igualdade entre os credores.
32- Ora, andou mal o Tribunal a quo, já que o atrás exposto apenas poderia consubstanciar uma violação não negligenciável do procedimento negocial e nunca a violação do princípio da igualdade entre os credores, pelo que existe uma fundamentação errada do que levou à não homologação do acordo de pagamentos.
33- Mas mais, com o PEAP não se pretende como alega o Tribunal à quo, a recuperação do Devedor, a lei refere que o PEAP pode ser usado pelo devedor que se encontre em situação económica difícil (art. 222º-B) ou em situação de insolvência meramente iminente (art.3º, nº4), não se exigindo no PEAP, ao contrário do que o art. 17º-A, nº1, refere para o PER que o devedor ainda seja suscetível de recuperação.
34- Tirando essa referência, os pressupostos do PEAP da situação económica difícil e de insolvência meramente iminente são absolutamente idênticos aos do PER, sendo estranhamente repetida no art. 222º-B a definição prevista no art. 17º-B, apenas se substituindo “empresa” por “devedor”.
35- Também à semelhança do que sucede no PER (art. 17º-A, nº2), prevê-se igualmente no PEAP a entrega pelo devedor de uma declaração escrita e assinada que ateste que preenche os requisitos legais para esse acesso, ou seja de que se encontra em situação económica difícil ou insolvência meramente iminente (art. 222º-A, nº2). Neste caso, no entanto, já não se estabelece a necessidade de que seja atestado que o devedor não se encontra em situação de insolvência efetiva, o que pode ser igualmente explicado por a suscetibilidade de recuperação ser uma exigência que não está abrangida no PEAP.
36- Prevê o art. 222º-D nº3 que a lista provisória de créditos é imediatamente apresentada na secretaria do tribunal e publicada no portal Citius, podendo ser impugnada no prazo de cinco dias e dispondo, em seguida, o juiz de idêntico prazo para decidir sobre as impugnações formuladas.
37- Da redação do preceito – aliada à especialidade do processo de acordo de pagamento – afigura-se-nos ser resultado pretendido pelo legislador e visado com esta singela tramitação, que as impugnações sejam decididas pelo Juiz em ato seguido à apresentação das impugnações, sem contraditório, sem tentativa de conciliação, sem condensação, sem julgamento, sem produção de prova que não a documental junta com a reclamação e com a impugnação da lista apresentada, afastando, em princípio, a aplicação subsidiária prevista no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas para a verificação e graduação de créditos no âmbito de um processo de insolvência.
38- Por outro lado, o PEAP é um processo negocial entre um devedor e os seus credores, tendente à obtenção de um acordo de pagamento. E nesse processo não tem lugar qualquer “verificação”, “graduação” ou “posterior decisão de reconhecimento” dos créditos reclamados sobre o devedor, como se de um processo de insolvência se tratasse (a lista definitiva de créditos reclamados aliás, tem apenas efeito no que respeita ao quórum deliberativo e à maioria necessária para aprovação do plano de recuperação – art. 222º- F nº3 – e à dispensa de reclamação por parte de quem já o haja feito, caso a final do PEAP venha a ser decretada a insolvência).
39- Assim é possível extrair duas importantes consequências:
- a relevância da decisão de impugnação de créditos é, essencialmente política, servindo para determinar quem pode concorrer à formação do quórum deliberativo, e não fazendo caso julgado quanto à existência/inexistência dos créditos impugnados.
- o fito principal do processo é o acordo entre o devedor e seus credores, sendo, assim, relevante o processo negocial preponderando sobre o processo judicial, o qual serve apenas para iniciar, decidir o quórum deliberativo, se tal questão for levantada, e, no final, homologar o acordo ou declarar a insolvência, verificados os respetivos pressupostos.
40- No caso concreto, a Lista de Credores do artigo 222º D do CIRE foi apresentada e devidamente publicitada e nenhum credor a impugnou, pelo que se tornou definitiva, e como tal foi o crédito do Banco… reconhecido como garantido.
41- Uma das regras aplicável nos termos do disposto no nº5 do art. 222º-F do CIRE é o disposto no art. 194º do mesmo diploma, no qual se estabelece:
42- «1 - O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.
2 - O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.
3 - É nulo qualquer acordo em que o administrador da insolvência, o devedor ou outrem confira vantagens a um credor não incluídas no plano de insolvência em contrapartida de determinado comportamento no âmbito do processo de insolvência, nomeadamente quanto ao exercício do direito
43- O princípio da igualdade arranca do tratamento, por princípio, de todos os credores por igual, permitindo, porém, diferenciações justificadas por razões objetivas, razão pela qual os créditos garantidos fora tratados diversamente dos créditos comuns, sendo certo que estes últimos foram tratados todos de forma igual.
44- Esta dimensão material do princípio – devem ser tratadas por igual situações iguais e de forma distinta, situações distintas -, corporiza uma das mais importantes e convocadas regras aplicáveis ao conteúdo do plano ou do acordo, e tem sido tratado pela jurisprudência como uma regra imperativa, que arranca diretamente do tecido constitucional, cuja violação é, por regra, não negligenciável.
45- Nos presentes autos, é alegado que o tratamento desigual do credor hipotecário e dos credores comuns importa violação do princípio da igualdade.
46- O art. 194º do CIRE, apela diretamente ao princípio par conditio creditorum que se encontra positivado entre nós no art. 604º do CC e que tem a sua raiz no princípio constitucional da igualdade.
47- O princípio da igualdade, encontra-se consagrado na CRP nos seguintes termos:
Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei (art. 13º, nº 1, concretizando o nº 2 do preceito este princípio geral).
48- A proteção conferida por este direito abrange a proibição do arbítrio (proíbe diferenciações de tratamento sem justificação objetiva razoável ou identidade de tratamento em situações objetivamente desiguais) e da discriminação (não permite diferenciações baseadas em categorias subjetivas ou em razão dessas categorias).
49- Na sua vertente de proibição de arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo: nem aquilo que é fundamentalmente igual deve ser tratado arbitrariamente como desigual, nem aquilo que é essencialmente desigual deve ser arbitrariamente tratado como tal.
50- Valendo como princípio objetivo de controlo esta regra “não significa em si mesma, simultaneamente, um direito subjetivo público a igual tratamento, a não ser que se violem direitos fundamentais de igualdade concretamente positivados (por exemplo, igualdade dos cônjuges) ou que a lei arbitrária tenha servido de fundamento legal para atos da administração ou da jurisdição lesivos de direitos e interesses constitucionalmente protegidos.”
51- Na vertente de proibição de discriminações a regra não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento. “O que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio.
52- No caso concreto, a própria lei estabelece causas de diferenciação (cfr. nº2 do art. 604º do CC e 47º do CIRE) que nos permitem balizar as igualdades e as diferenças, como as garantias, e privilégios creditórios, pelo que os créditos do Banco… (garantidos) e do Estado (não disponibilidade dos créditos tributários), foram tratados de forma diversa dos credores comuns, já que se tratam de categorias diferentes de credores.
53- É por isso que a específica manifestação do princípio da igualdade que se concretiza no princípio par conditio creditorum é, no domínio concursal, “uma técnica de organização do concurso de credores.”
54- Ou seja, do bem imóvel arrolado, este credor (Banco…) tem o direito a receber, até ao montante do seu crédito todo o valor de venda do mesmo, bem como da meação do outro imóvel que foi doado à filha do Devedor, pelo que tratamento do crédito do Banco… sempre poderia ser diferenciado.
55- Estabelece o art. 216º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na versão aplicável aos autos:
«1. O juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição lhe haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre, em termos plausíveis, em alternativa que:
a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas;
b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.
56- Como escrevem João Labareda e Carvalho Fernandes “O modo como se acha formulada a alínea a) - (…) – implica que na prova da situação nele referenciada se procede a um exercício intelectual de prognose, frequentes vezes complexo, que se traduz em comparar o que se antevê resultar da homologação do plano, para o reclamante, com aquilo que aconteceria na ausência dele.
57- Relativamente aos credores, isto reconduz-se a cotejar quanto recebem com o plano e quanto se estima receberiam sem ele.”
58- Outra adaptação importante a fazer será a de imposição de um outro pré-juízo, dada a natureza pré-insolvencial do procedimento.
59- O cenário de liquidação é conatural na previsão do art. 216º do CIRE porque tratamos de um devedor que já está declarado insolvente. Mas em procedimento preventivo a que um devedor tem acesso em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, a probabilidade de, findo o procedimento, o devedor já estar insolvente e ser mais provável que se lhe siga a declaração de insolvência e a liquidação universal convive com a hipótese de o devedor, mesmo sem obter a aprovação do acordo, não estar em situação de insolvência atual.
60- Assim sendo, os credores que requerem a não homologação com este fundamento devem, no mínimo, alegar a indiferença das duas possibilidades e, em caso de distinção, as consequências num e noutro cenário, não nos parecendo exigível a alegação (e muito menos a demonstração) que um dos cenários é mais provável que outro.
61- Os credores ABG e Condomínio alegam em suma, que o acordo de pagamento apresentado demonstra uma violação injustificada dos créditos garantidos em relação aos créditos comuns, e simplesmente referem que ficam em pior situação no âmbito do acordo de pagamentos, do que numa situação de ausência do mesmo.
62- Ora, os credores não especificam em que termos consideram injustificado o tratamento diverso entre credores garantidos e comuns, nem tão pouco referem quais os valores que irão receber e que receberiam em caso de processo de insolvência, para justificar a situação menos favorável.
63- O ónus da demonstração, em termos de verosimilhança, pertence ao interessado que requer a não homologação. Este não é um fundamento de não homologação oficioso, estando dependente de arguição pelo interessado e de demonstração por este, em termos plausíveis,
64- O pressuposto de que este devedor tem um património valioso prestes a ser vendido em execução ou que apreendido em processo de insolvência permitiria melhor recuperação do crédito que este plano prestacional não está, de todo confirmado ou demonstrado, o que nos deixa num non liquet quanto ao juízo exigido pela alínea a) do nº1 do art. 216º do CIRE.
65- O que implica que esta questão teria que ser decidida contra os credores que requereram a não homologação da proposta de acordo de pagamento apresentada pelo devedor, dado que sobre eles recaía o ónus da demonstração de previsibilidade de que a sua situação é menos favorável ao abrigo do acordo que na ausência deste, pelo que uma vez mais andou mal o Tribunal a quo, já que decidiu não homologar um acordo de pagamentos por violação do direito de igualdade entre os credores, o que não aconteceu, bem como entendeu que os credores ABG e Condomínio, ficariam em situação mais favorável em caso de processo de insolvência, quando os mesmos nem lograram provar tais afirmações.
66- Mas mais, não existe qualquer fundamento legal ou factual, para a não homologação do Acordo, já que foi na íntegra cumprido o direito de igualdade quanto aos credores, sendo certo também que não existiu qualquer violação não negligenciável das normas procedimentais.
67- Pelo que a sentença proferida pelo Tribunal a quo, viola claramente o previsto nos artigos 222º F e 216º do CIRE.
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Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.
O recurso do admitido por despacho de 02/09/2024 (refª 152638257).
Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
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2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas são as seguintes as questões a decidir:
- se existem causas de não homologação do plano de pagamentos aprovado, nomeadamente:
- violação do princípio da igualdade;
- boa-fé do devedor;
- se, relativamente aos credores que requereram a não homologação, a sua situação ao abrigo do acordo é previsivelmente menos favorável que a que interviria na ausência de qualquer plano, para os efeitos da al. a) do nº1 do art. 216º do CIRE.
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Consigna-se que, pese embora no termo das suas alegações de recurso o devedor peça o suprimento das nulidades invocadas ao longo destas, seja na motivação, seja nas conclusões, não foi invocada qualquer nulidade da sentença ou outra, pelo que o respetivo conhecimento não integra o objeto deste recurso.
*
3. Fundamentos de facto
Com relevância para a decisão do recurso mostram-se assentes os factos constantes do relatório e ainda os seguintes, fixados na sentença recorrida e resultantes dos termos dos autos:
1. O devedor indicou como único património da sua titularidade a fração “HP”, correspondente a um lugar de estacionamento automóvel, sita em Algés, descrita na CRP de Oeiras sob o n.º xxx (facto fixado na sentença recorrida);
2. Em 17.01.2023 foi registada a aquisição, por doação feita pelo devedor e outra a favor de MME, da fração autónoma designada pela letra “G”, correspondente ao 3º andar esquerdo com arrecadação no 11º andar, do prédio sito em … e descrito na 2ª CRP de Oeiras sob o n.º xxx (facto fixado na sentença recorrida);
3. Sobre a fração “G” acima referida havia sido constituída hipoteca voluntária pelo devedor e outrem a favor do então denominado “banco…” (atualmente “Banco…”), em 26.06.2009 para garantia de empréstimo (facto fixado na sentença recorrida).
4 – A lista definitiva de créditos ficou composta pela seguinte forma:
- ABG – € 12.293,02 - crédito comum (fiança a favor de ABA);
- Autoridade Tributária e Aduaneira – € 8.523,95 – crédito comum (taxas de portagens, juros, custas coimas e outros encargos);
- Banco …, SA – € 2.697,89 - crédito comum (crédito pessoal e descoberto em DO);
- Banco …, SA – € 13.948,07 – crédito comum (crédito ao consumo, descoberto em DO e cartões de crédito);
- Banco…, SA – € 117.431,81 – crédito garantido (mútuos com hipoteca);
- Caixa … – € 500,07, sendo destes € 3,08 sob condição – crédito comum (descoberto em DO);
- CCP – € 2.000,00 – crédito comum (empréstimo pessoal);
- Condomínio Prédio sito R. … – € 3.629,87– crédito comum (condomínio);
- IP, Lda – € 13.596,09 – crédito comum (cartão de crédito e despesas de contencioso).
5– O acordo de pagamento apresenta o seguinte teor:
“CREDORES GARANTIDOS:
Relativamente ao Credor Banco… propõem-se as seguintes alterações contratuais:
- Pagamento de 100% do valor reclamado, em 252 prestações, mensais, iguais e sucessivas (a atualizar para que corresponda a um período equivalente ao que se encontra por cumprir nas condições inicialmente contratadas);
- Capitalização dos juros vencidos até à data de homologação do plano;
- Carência de juros e capital pelo período de 1 mês, a contar da data de homologação do plano;
- Manutenção integral das condições contratadas para efeitos de cômputo de juros, o que integra, em concreto, a manutenção da taxa de spread contratualizada, bem como da Euribor;
- Manutenção das demais condições contratualizadas;
- Manutenção de todas as garantias prestadas nos exatos termos contratados e atualmente em vigor.
CREDORES PRIVILEGIADOS:
- Autoridade Tributária e Aduaneira (divida reconhecida - Valor de 8.523,95€)
Pagamento em regime prestacional, nos termos do artigo 196.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), ou seja:
a) As prestações são mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira até ao final do mês seguinte ao términus do prazo previsto no n° 5 do artigo 222°-D do CIRE;
b) o pagamento até 36 prestações, mensais, iguais e sucessivas, nos termos do art° 196° do CPPT, (pagamentos nunca inferiores a 1 UC)
c) Pagamento dos juros vencidos e vincendos à taxa legalmente fixada para os juros de mora aplicáveis às dividas do Estado.
d) Manutenção das garantias existentes, nos termos do n° 13 do artigo 199° do CPPT.
e) As acções executivas que se encontram pendentes para cobrança de dividas à Autoridade Tributária, não são extintas e mantêm-se suspensas após aprovação e homologação do Plano até integral cumprimento do plano de pagamentos.
RESTANTES CREDORES COMUNS:
Relativamente aos restantes Credores Comuns, propõe-se o pagamento da quantia total reclamada e reconhecida, que se liquidarão em prestações mensais, iguais e sucessivas, a saber:
- Pagamento de 70% do Capital reclamado;
- Perdão de 30% do Capital reclamado;
- Perdão dos juros vencidos;
- Perdão de Juros Vincendos;
- Pagamento de 70% do Capital reclamado e juros vincendos em 120 meses, em amortizações mensais, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte após transito em julgado da sentença de homologação do Acordo de Pagamentos;
Credores Comuns
Capital
reclamado
Juros em divida
Total Proposto Pagar
Valor Mensal a pagar 120 meses
ABG
11 781,73 €
511,29 €
8 247,21 €
68,73 €
Banco…
2 422,23 €
275,66 €
1 695,56 €
14,13 €
Banco … Sa
12 739,62 €
1 208,45 €
8 917,73 €
74,31 €
Caixa…
496,54 €
3,53 €
347,58 €
2,90 €
CCP
2 000,00 €
0,00 €
1 400,00 €
11,67 €
Condomínio
3 629,87 €
0,00 €
2 540,91 €
21,17 €
IP Lda
13 596,09 €
0,00 €
9 517,26 €
79,31 €
Total
46 666,08 €
1 998,93 €
32 666,26 €
272,22 €
Todo o Plano fica subordinado à cláusula "salvo regresso de melhor fortuna".
O presente Plano não afecta o disposto no artigo 217 n. 4 CIRE, pelo que, não determina qualquer alteração na existência, no montante dos direitos dos credores da Devedora contra co-devedores ou terceiros garantes.
E derrogado o disposto no artigo 218 n. 1 alínea a) CIRE, relativamente ao prazo de 15 dias, passando o mesmo para 60 dias.
Todos os pagamentos serão feitos mediante transferência bancária para IBAN/referencias de pagamento a indicar por cada um dos credores, servindo como recibo de quitação o comprovativo da transferência bancária/ pagamento.
A aprovação e homologação do presente Acordo de Pagamentos, extingue todas as acções executivas que corram contra o devedor, nos termos do n°l do artigo 222°-E do CIRE.”
*
4. Fundamentos do recurso
O processo especial para acordo de pagamento (PEAP) é um dos processos especialíssimos previstos no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), introduzido pelo Decreto-Lei n.º 79/2017 de 30 de junho.
Este diploma, concretizando o denominado Programa Capitalizar[1] que elegia como uma das medidas “Reservar o recurso ao PER a pessoas coletivas”[2], criou um novo regime pré-insolvencial para devedores em cuja titularidade não se encontre uma empresa, declarando no seu preâmbulo “Apostou-se na credibilização do processo especial de revitalização (PER) enquanto instrumento de recuperação, reforçou-se a transparência e a credibilização do regime e desenhou-se um PER dirigido às empresas, sem abandonar o formato para as pessoas singulares não titulares de empresa ou comerciantes.”
Ao tempo a jurisprudência divergia sobre a possibilidade de o PER poder ser usado por pessoas singulares, vindo claramente a pender para a respetiva inadmissibilidade, como resulta da jurisprudência do STJ nesta matéria, que decidiu, de forma uniforme, no sentido de inaplicabilidade às pessoas singulares, não comerciantes, não empresários, do processo especial de revitalização[3].
O Decreto-Lei n.º 79/2017 “criou” o novo PEAP por decalque do antigo PER[4] aplicando algumas medidas do PER tal como ficou desenhado em 2017 (no essencial a suspensão dos prazos de prescrição e caducidade oponíveis pelo devedor, a proibição de suspensão de prestação de serviços públicos essenciais, o efeito parcialmente suspensivo da sentença do recurso de não homologação e o regime de encerramento e de cessação de funções do administrador judicial provisório), e diferenciando-o pelos respetivos sujeitos – pessoas jurídicas e singulares não titulares de empresas e por uma particularidade relativa aos devedores singulares, em caso de não aprovação, com a obrigatoriedade de concessão de oportunidade para apresentação tempestiva de plano de pagamentos ou requerimento de exoneração do passivo restante.
Tal tem a vantagem, para o intérprete-aplicador, de ter já presentes e, em muitos casos discutidos e trabalhados, os aspetos essenciais deste novo regime.
Não podemos, porém, deixar de ter em conta as diversidades de um e de outro procedimentos: nomeadamente, no PER visa-se a recuperação dos devedores, empresas, no PEAP visa-se a aprovação de um plano de pagamentos. As pessoas naturais, por definição, não se recuperam, logram ou não pagar os seus créditos, sendo este um procedimento hibrido para obter o acordo (e negociar) com os seus credores o pagamento dos seus créditos.
A questão a recurso é a sindicância da decisão proferida pelo tribunal recorrido de não homologação do plano.
Prescreve o nº5 do art. 222º-F do CIRE: «O juiz decide se deve homologar o acordo de pagamento ou recusar a sua homologação (…) aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215º e 216º.»
Trata-se de norma não alterada pela Lei nº 9/2022, de 11 de janeiro, que entrou em vigor em 11 de abril de 2022[5], diploma que introduziu profundas alterações no regime do PER, deixando porém, com modificações pontuais, essencialmente incólume o regime do PEAP tal como delineado pela lei nº 79/2017[6].
Foram os seguintes, e sinteticamente, os fundamentos da decisão recorrida:
- o crédito do credor Banco… tem natureza comum em relação ao património atual do devedor, o que gera desigualdade, dado que o Banco… vai continuar a receber nas condições vigentes por uma dívida sobre a qual não possui prioridade de pagamento, enquanto que os demais credores comuns assistem a um perdão de 30% do valor de capital, perdão de juros vencidos e um protelamento no pagamento por 10 anos;
- a dívida ao condomínio, sendo um crédito comum, importa uma afetação relevante no plano da solidariedade e coesão/convivência social, traduzida no dever dos condóminos comparticiparem para as despesas comuns dos imóveis em propriedade horizontal, que se traduzem em tratamento específico no ordenamento jurídico, designadamente em termos de celeridade e simplicidade na respetiva cobrança coerciva;
- ainda que se considere que, em caso de vencimento da dívida o credor Banco… tem o dever de executar e de se fazer pagar pela hipoteca, o que atenua a desigualdade, um eventual cenário de insolvência do devedor será previsivelmente mais favorável para os credores do que a situação decorrente do plano;
- num cenário insolvencial existem, em termos objetivos, razões para ponderar a viabilidade da resolução do negócio celebrado entre o requerente e a sua filha (doação) e a integração na massa de fração autónoma situada em localidade com valorização em termos imobiliários, cujo valor seja suficiente para melhor satisfação dos seus créditos, mesmo sendo equivalente a um meio;
- no caso concreto a lisura do requerente não primou pelo exemplo, pois ao pedir aos credores um esforço na sua recuperação “esqueceu-se” de informar que escassos meses antes havia doado a fração autónoma que constituía a sua habitação à sua filha, mantendo intacto o ónus hipotecário e o cumprimento das condições base. Tal assunto apenas foi deslindado na sequência de um requerimento apresentado por credor e despacho do tribunal.
O recurso interposto alinhou sinteticamente, como argumentos:
- o crédito do Banco… foi reconhecido como crédito garantido por hipoteca e a lista provisória não foi impugnada, tendo-se convertido em definitiva; os créditos garantidos podem ser tratados de forma diversa em relação aos credores comuns, dado que o princípio da igualdade consagra o tratamento igual na igualdade e o tratamento desigual na desigualdade, desde que sem arbitrariedade;
- no que toca à boa fé do devedor, nunca prestou falsas declarações nos autos, pois que desde o início do processo referiu que detinha apenas um bem imóvel, fracção HP, correspondente a um lugar de garagem, sendo que na fração G e conforme explicado nos autos, detinha apenas a meação de tal imóvel, sendo que aquando da separação de pessoa e bens, a sua esposa, exigiu que a doação fosse efetuada à filha de ambos; continua a ser o responsável pelo crédito existente, e pretende com o presente processo honrar todos os compromissos com os seus credores, não se ponderando, nem existindo qualquer situação insolvencial;
- os credores não ficariam em melhor situação em cenário de liquidação ou mesmo de execução da hipoteca, dado que previsivelmente nada receberiam, recebendo apenas o credor hipotecário e a Autoridade Tributária; com o presente plano recebem 70% dos seus créditos;
- o requerimento de não homologação formulado nos termos do art. 216º nº1, al. a) do CIRE foi genérico e desacompanhado de prova; o ónus de alegação e prova pertence ao credor requerente da não homologação, pelo que a questão deverá ser decidida contra estes;
- a não comunicação aos credores da doação, apontada pelo tribunal como violadora do princípio da igualdade, a existir, seria antes uma violação não negligenciável do procedimento negocial e não uma violação do princípio da igualdade;
- com o PEAP não se visa a recuperação do devedor, não sendo a suscetibilidade de recuperação uma exigência abrangida pelo PEAP;
Importa, pois, conhecer, e pela ordem por que estão previstos na lei, os motivos de recusa de homologação: violação não negligenciável de normas aplicáveis ao conteúdo do acordo (violação do princípio da igualdade), falta de boa-fé do devedor e previsibilidade, para os credores que pediram a não homologação, de que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, nos termos dos arts. 222º-F, nº5, 215º, 194º, 195º e 216º do CIRE.
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4.1. Violação de normas imperativas aplicáveis ao conteúdo do plano
4.1.1. Violação do princípio da igualdade
Uma das regras aplicável nos termos do disposto no nº5 do art. 222º-F do CIRE é o disposto no art. 194º do mesmo diploma, no qual se estabelece: «1 - O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas. 2 - O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável. 3 - É nulo qualquer acordo em que o administrador da insolvência, o devedor ou outrem confira vantagens a um credor não incluídas no plano de insolvência em contrapartida de determinado comportamento no âmbito do processo de insolvência, nomeadamente quanto ao exercício do direito de voto.»
O princípio da igualdade arranca do tratamento, por princípio, de todos os credores por igual, permitindo, porém, diferenciações justificadas por razões objetivas.
Esta dimensão material do princípio – devem ser tratadas por igual situações iguais e de forma distinta, situações distintas -, corporiza uma das mais importantes e convocadas regras aplicáveis ao conteúdo do plano ou do acordo, e tem sido tratado pela jurisprudência como uma regra imperativa, que arranca diretamente do tecido constitucional, cuja violação é, por regra, não negligenciável[7].
Perpassa quer na jurisprudência do Supremo, quer das Relações, que, exceção feita aos créditos tributários, as razões objetivas diferenciadoras têm que constar do plano. Será essa a única forma de controlo do cumprimento do princípio.
São em geral aceites noções como credores estratégicos (não no sentido das necessidades de aprovação, mas das necessidades dos devedores), como por exemplo no Ac. TRC de 17/03/15, já citado; e, em geral, a diferenciação baseada na diferente classificação de créditos é permitida (Acs. TRE de 17/03/16[8] e de 10/09/15[9]; Ac. TRP de 07/04/16[10]; Ac. TRL de 28/01/16[11]); ainda assim, quando baseadas na diferente classificação de créditos, a jurisprudência não tem deixado de censurar excessos: como no caso do Ac. TRE de 21/04/16 (Bernardo Domingos – 1065/15), no qual todos os créditos eram perdoados à exceção do credor hipotecário, ou no caso do Ac. TRG de 25/02/16 (Francisco Xavier – 2588/15), em cujo plano o credor hipotecário recebia integralmente o seu crédito, enquanto os demais se viam reduzidos a 15%, apontando-se que a revitalização estava a ser integralmente suportada por estes últimos credores, ou ainda no caso de pagamento de 100% dos créditos tributários e apenas 15% dos demais, no Ac. TRL de 16/12/2021 (Manuela Espadaneira Lopes – 26908/20).
O despacho recorrido afastou a violação do princípio da igualdade quanto aos créditos tributários, não obstante a sua natureza comum, dada a respetiva indisponibilidade.
Trata-se de ponto não colocado em causa no recurso, pelo que não se inclui no objeto de conhecimento deste recurso, estando coberto pelo caso julgado (art. 635º nº5 do CPC).
Em relação ao crédito do credor Banco…, o credor ABG alegou que, sem qualquer razão que o justifique, por comparação com os demais créditos da mesma natureza, o crédito da entidade bancária é pago integralmente nos termos anteriormente previstos (252 prestações, mantendo-se as garantias, e juros de mora vencidos e vincendos), ao passo que os demais credores recebem apenas 70% do valor reclamado, em 120 prestações mensais, com 12 meses de carência. O acordo apresentado a votação configura tratamento mais desfavorável de todos os credores comuns por comparação com os créditos garantidos, inexistindo qualquer razão objetiva para tal tratamento favorável.
O credor Condomínio … veio requerer a não homologação do plano, referindo fazê-lo nos termos das al.s a) e b) do nº1 do art. 216º do CIRE, e alegando que o acordo proposto viola o princípio da igualdade dos credores porque beneficia o crédito de uma entidade bancária em detrimento dos demais.
O devedor respondeu ao pedido de não homologação formulado por ABG alegando que o acordo apresentado não viola o princípio da igualdade entre credores dado que o credor Banco… tem garantia sobre os bens mais relevantes do património do devedor, constituído pela casa de habitação, pelo que estará sempre numa posição privilegiada em relação aos demais credores e que o Estado tem também um tratamento diferenciador dados os privilégios creditórios de que beneficia, sendo os demais comuns. A razão diferenciadora de tratamento reside na diferente natureza dos créditos, sendo todos os credores comuns tratados em pé de igualdade. O devedor detém no seu património apenas o imóvel hipotecado ao Banco… pelo que em situação de insolvência só este receberia.
A decisão recorrida equiparou o crédito em causa a um credor comum, referindo a inexistência de qualquer causa de preferência de pagamento em relação ao atual património do devedor. Mas admitiu que “aliviaria” esta conclusão o facto de, vencendo-se a dívida, o credor em causa ter o dever de executar e fazer-se pagar pela hipoteca.
O pagamento em percentagem superior ao credor garantido surge justificado pela diferente classificação dos créditos e não se trata de uma disparidade de tal forma grande entre as percentagens previstas de satisfação dos créditos que permita concluir por uma manifesta desproporção não justificada pela diferente natureza dos créditos menos favoravelmente tratados.
Nomeadamente verificando-se que o crédito em causa é, essencialmente, composto de capital, perde relevo a diferenciação do perdão de juros vencidos e vincendos, dado que os juros do crédito garantido estarão, num juízo de previsibilidade, abrangidos pela garantia, nos termos do disposto no nº2 do art. 693º do CC.
O plano não prevê um período de 12 meses de carência[12], mas sim que o pagamento, em 120 prestações, se vence no mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença homologatória do acordo[13].
Os argumentos adiantados pelo credor ABG não atribuem qualquer relevância à natureza garantida do crédito, mas a verdade é que essa é uma razão objetiva para tratar diferenciadamente tais créditos, nomeadamente face a créditos comuns. Quer avançando para a insolvência, quer em execução singular, os créditos comuns têm como garantia o património do devedor, em geral, enquanto que os créditos garantidos, quanto aos bens sobre que incide a garantia, têm prioridade de pagamento e só após integralmente pagos o remanescente poderá servir para o pagamento dos créditos comuns[14] - é o funcionamento da regra da prioridade absoluta que tanto vale em execução universal como em execução singular, sobrevindo concurso de credores.
O outro credor que se pronunciou, o Condomínio, começou por referir não saber quais os créditos em jogo, seja o seu, que se continua a vencer, seja o do credor financeiro.
Essa é uma questão que a consulta da lista definitiva de créditos resolve, tendo em conta o disposto no art. 17º-F nº11 do CIRE.
Também este credor não dá qualquer relevo à diferente natureza do crédito que, por si é, como já se disse, razão objetiva bastante para um tratamento diferenciado, desde que não desproporcional.
A diferente natureza dos créditos justifica o tratamento dado aos créditos garantidos, cabendo apenas perguntar se justifica o tratamento dado aos demais créditos.
E neste caso concreto a desproporção entre um cumprimento de 100%, em prestações, e o pagamento de 70% do capital em dívida para os demais créditos comuns não nos parece uma desproporção merecedora de censura.
Os casos tratados pela jurisprudência reportam casos em que a distância ronda mais uma diferença de 80 a 90 %, ou em que créditos não tributários comuns são tratados em pé de igualdade com créditos não subordinados – cfr. o caso, tratado no Ac. TRC de 12/10/2021 (Arlindo Oliveira – 1097/21), de contornos nada similares ao presente.
No caso presente, o perdão de 30% do capital e de juros vencidos e vincendos não surge como excessivo ou desproporcional – quanto ao pagamento em prestações, é comum a todos os créditos, com maior ou menor extensão.
O que perturba, neste caso concreto, é um ponto não suscetível de ser valorado na presente sede e que se refere apenas por óbvio: o crédito do Banco…, não deveria ter sido tratado como garantido a partir do momento em que o bem objeto da garantia deixou de estar na titularidade do devedor. Mas o Sr. Administrador Provisório listou-o como garantido e ninguém impugnou a lista provisória, incluindo estes dois credores que reclamaram a não homologação do plano.
Como se escreveu no Ac. TRL de 11/01/2022 (289/19)[15], por nós relatado, cuja lógica é absolutamente transponível para o PEAP, dada a similitude dos arts. 17º-D nºs 5 e 6 e 222º-D nºs 4 e 5 do CIRE “A única ocasião em que, em processo especial de revitalização, o tribunal se pode pronunciar sobre a natureza de um crédito reclamado para efeitos de determinação do quórum deliberativo, é na decisão da específica impugnação que tenha sido apresentada por legitimado, ou na apreciação sumária, para os efeitos do art. 17º-F nº5, da mesma impugnação. A alteração da natureza de um crédito reconhecido e não impugnado não é de conhecimento oficioso, nem na fase da impugnação de créditos, nem em fase posterior.”
Ou seja, para os efeitos deste procedimento, sedimentou-se a natureza garantida do crédito.
Substantivamente, o crédito está objetivamente garantido por hipoteca sobre imóvel, com direito de sequela, podendo o imóvel servir para a satisfação do crédito, seja quem for o seu titular.
Neste procedimento e em relação a este devedor mesmo tivesse sido tratado como um crédito comum, não deixaria de ser um crédito diferente. O devedor, ao alienar o imóvel, ou a sua quota parte no imóvel, que serve de garantia, não deixou de ser devedor daquela quantia àquele credor.
Estando o imóvel fora da esfera patrimonial do devedor, ao credor garantido isso é indiferente, mas para os demais credores significa que aquele bem já não será, por nenhuma forma, meio de satisfação dos seus créditos. Isto implica que este credor está sempre numa posição diferente dos demais credores comuns, o que quanto a nós, continua a justificar um tratamento diferenciado.
A decisão recorrida assinalou ainda o tratamento dado ao crédito do credor Condomínio que, não obstante tratarem-se de créditos comuns, entendeu “[importarem] uma afetação relevante no plano da solidariedade e coesão/convivência social traduzida no dever dos condóminos comparticiparam para as despesas comuns dos imóveis em propriedade horizontal (aliás essas obrigações, caracterizadas como propter rem, têm reclamado um tratamento específico no ordenamento jurídico, designadamente em termos de celeridade e simplicidade na respetiva cobrança coerciva).”
Trata-se de argumento ao qual se aplicam todas as razões antes adiantadas: o crédito do Banco… não é “outro” crédito comum, é um crédito garantido, o que justifica o diferente tratamento, não se surpreendendo excesso ou desproporcionalidade.
Não surpreendemos, assim, qualquer violação não negligenciável do disposto no art. 194º do CIRE que justifique a não homologação da proposta de acordo de pagamento, nos termos dos arts. 215º e 222º-F nº5 do mesmo diploma.
*
4.2. A (falta) de boa fé do devedor ao requerer o procedimento sem informação aos credores da recente alienação de património
O recorrente começa por apontar a este segmento da decisão recorrida dois erros de direito: o facto de ser referido que o PEAP visa a recuperação do devedor e ter qualificado este vício como violação do princípio da igualdade, quando, quanto muito, se trataria de uma violação procedimental negligenciável.
Foram os seguintes os fundamentos da decisão recorrida:
“Ainda num outro plano, como já acima se deixou salientado, não devemos esquecer que a oportunidade de recuperação tem de assentar em pressupostos claros de transparência e partilha de informação com os credores, essenciais para gerar expetativa fiável de cumprimento dos objetivos consagrados no plano. No caso em apreço a lisura do requerente não primou pelo exemplo, pois ao pedir aos credores um esforço enorme em nome da sua recuperação “esqueceu-se” de informar que escassos meses antes doou a fração autónoma que constituía a sua habitação à sua filha, embora mantendo intacto o ónus hipotecário existente e o cumprimento das condições do contrato de base. Tal questão apenas foi deslindada nos autos na sequência de um requerimento apresentado pelo credor ABG (R/26.09.23 – art. 22) e de um despacho judicial destinado a esclarecer a dúvida (despacho proferido em 22.10.203). É ainda elucidativa quanto a esta questão afirmação produzida pelo próprio requerente do PEAP no R/04.10.2023 (art. 2º) ao afirmar que “O credor hipotecário Banco…, tem garantido os bens mais relevantes do património do devedor que é constituído pela casa de habitação, pelo que, encontrar-se-á sempre numa situação privilegiada no tocante a todos os demais credores.”, quando a doação fora feita meses antes. Somente na sequência de intervenção judicial acabou o requerente por esclarecer que celebrou um contrato de mútuo com hipoteca com o Banco…, sobre bem imóvel (habitação), sendo que o mesmo foi doado à filha, apesar de o mesmo ser responsável pelo empréstimo bancário (R/26.10). Isto para dizer que a própria conduta do requerente face aos credores deixa a desejar.”
Como resulta do excerto transcrito, o tribunal não qualificou a conduta que censurou ao recorrente como violação do princípio da igualdade.
Por outro lado, embora incertamente usada a expressão “recuperação”, que não tem aplicação a pessoas físicas, compreende-se o acerto da ideia do tribunal – este procedimento visa a libertação do devedor do stress financeiro e económico mediante um acordo com os seus credores. Não sendo, de facto a recuperação da pessoa física, é uma recuperação do seu bem-estar e desafogo possível, um retomar de vida normal não assoberbada por dívidas vencidas e suscetíveis de serem coativamente exigidas.
Posto isto, embora sem qualificação por parte do tribunal recorrido, é manifesta a razão do recorrente – o que se censurou, ou seja, a omissão da comunicação de determinado facto aos credores é um procedimento, é uma conduta de informação e colaboração com os credores. A haver violação é procedimental.
Teremos assim que analisar se houve violação e, em caso de resposta afirmativa, se é negligenciável.
A boa-fé de todas as partes, devedor e credores, é exigida nas negociações e no procedimento para aprovação de plano de pagamento, nos termos do art. 222º-D nº10 do CIRE, que recebeu materialmente os princípios orientadores aprovados na RCM nº 43/2011, de 25/10.
Estabelece-se no Segundo Princípio que “Durante todo o procedimento, as partes devem actuar de boa-fé, na busca de uma solução construtiva que satisfaça todos os envolvidos.”
Ora, como aponta o devedor, desde que se apresentou a PEAP, declarou como património o referido em “1” da matéria de facto provada, que não é o imóvel sobre o qual recai a hipoteca. Por outro lado, a alienação do bem dado em garantia pelo devedor não implica a cessão do crédito garantido: é exatamente esse o propósito desta garantia, o credor pode fazer-se pagar pelo produto da venda do bem, esteja ele na titularidade do devedor ou de terceiro.
Isto implica que o devedor, ao relacionar este crédito, de que é efetivamente devedor, não faltou à boa-fé devida aos demais interessados. A omissão da alienação de quota parte de um imóvel antes da apresentação ao procedimento não cai na alçada dos princípios orientadores dado que não sucedeu nem durante o procedimento, nem durante o período de suspensão (segundo e sexto princípios).
Não há nesta omissão inicial de informação – que nem sequer foi total, dado que o devedor elencou expressamente o seu património com o requerimento inicial – qualquer causa oficiosa de recusa de homologação nos termos do art. 215º do CIRE, com as devidas adaptações, uma vez que este é um procedimento para a obtenção de plano de pagamento e não um processo de liquidação do património do devedor para satisfação dos seus credores. O que releva como norma de conduta é que o devedor obtenha o acordo dos credores e, homologado, proceda ao cumprimento do mesmo, e não qual o património que alienou meses antes de se apresentar a PEAP.
Esta é matéria a ponderar, quanto muito, na comparação de cenários a efetuar para os efeitos previstos no art. 216º nº1 al. a) do CIRE, mas não como causa oficiosa de recusa de homologação.
Não há, assim, neste ponto, qualquer fundamento que justifique a não homologação da proposta de acordo de pagamento, nos termos dos arts. 215º e 222º-F nº5 do CIRE.
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4.3. Não homologação a solicitação dos interessados, ao abrigo do disposto no art. 216º, nº1, al. a) do CIRE
Passemos à análise de se a situação dos credores que requereram a não homologação com este fundamento ao abrigo deste plano é previsivelmente menos favorável do que a que teria na ausência de qualquer plano.
Estabelece o art. 216º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na versão aplicável aos autos: «1. O juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição lhe haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre, em termos plausíveis, em alternativa que: a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas; b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar. (…).»
Como escrevem João Labareda e Carvalho Fernandes[16] “O modo como se acha formulada a alínea a) - (…) – implica que na prova da situação nele referenciada se procede a um exercício intelectual de prognose, frequentes vezes complexo, que se traduz em comparar o que se antevê resultar da homologação do plano, para o reclamante, com aquilo que aconteceria na ausência dele.
Relativamente aos credores, isto reconduz-se a cotejar quanto recebem com o plano e quanto se estima receberiam sem ele.”
A adaptação desta norma quer ao PER, quer ao PEAP, que deve ser feita com as devidas adaptações, impõe desde logo, como refere Catarina Serra[17] excluir do universo de potenciais interessados legitimados para formular este pedido, o próprio devedor, já que a proposta foi necessariamente apresentada por ele (o que pode não suceder em processo de insolvência). Também resulta do cotejo do regime legal respetivo com o da aprovação de plano de insolvência que bastará, como manifestação de oposição ao plano ou proposta de acordo, o voto desfavorável dirigido ao Administrador Judicial Provisório[18] - circunstâncias não postas em crise na presente apelação.
Mas a adaptação mais importante a fazer será a de imposição de um outro pré-juízo, dada a natureza pré-insolvencial do procedimento. O cenário de liquidação é conatural na previsão do art. 216º do CIRE porque tratamos de um devedor que já está declarado insolvente. Mas em procedimento preventivo a que um devedor tem acesso em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, a probabilidade de, findo o procedimento, o devedor já estar insolvente e ser mais provável que se lhe siga a declaração de insolvência e a liquidação universal convive com a hipótese de o devedor, mesmo sem obter a aprovação do acordo, não estar em situação de insolvência atual[19].
Assim sendo, o credor que requer a não homologação com este fundamento deve, no mínimo, alegar a indiferença das duas possibilidades e, em caso de distinção, as consequências num e noutro cenário, não nos parecendo exigível a alegação (e muito menos a demonstração) que um dos cenários é mais provável que outro[20].
Analisemos ora os elementos do caso concreto.
O despacho recorrido aludiu à insolvência como um cenário mais favorável para os credores ABG e Condomínio.
O credor ABG indicou ser o cenário subsequente à não aprovação a de insolvência do devedor.
O credor condomínio não indicou cenário mais provável e não alegou, em concreto, qualquer matéria subsumível ao disposto em qualquer das alíneas a) e b) do nº1 art. 216º do CIRE[21].
Tendo em conta a situação patrimonial e creditícia do devedor tal como resulta da descrição e dos elementos juntos com o requerimento inicial e no plano, concordamos com o cenário de insolvência como o mais provável cenário alternativo à aprovação do plano: o devedor tem como património um imóvel constituído por um lugar de estacionamento e um rendimento salarial de cerca de € 1.380,00, ascendendo o passivo a, pelo menos, € 174.620,77.
A alegação concreta efetuada pelo credor ABG foi de que seguindo-se para insolvência seria vendido todo o património e que “casa de habitação de Devedor, localizada no concelho de Oeiras, um dos concelhos mais caros do País, responde não só pelo valor integral em dívida ao Banco… como ainda sobrará uma quantia muito significativa para fazer face aos demais credores, privilegiados e comuns.”
Entende, assim, que sem a aprovação plano há a possibilidade de ser integral ou parcialmente ressarcido do seu crédito enquanto que na aprovação do plano só receberá 70% do capital em 120 prestações.
O despacho recorrido referiu existirem “em termos objetivos razões para ponderar a viabilidade na resolução do negócio celebrado entre o requerente e a sua filha (art. 121º, n.1, al. b, do CIRE), e que respondendo tal fração autónoma, sita em Algés-Oeiras (sita em localidade com valorização em termos imobiliários, como resulta do conhecimento geral), pelas dividas vencidas (para além do lugar de estacionamento supra descrito), o valor seja suficiente para uma melhor satisfação dos seus créditos, ainda que se possa tratar do equivalente a 1/2.”
Neste ponto há dois cenários possíveis: um de liquidação sem a quota do imóvel doada antes da instauração do PEAP e outro de, declarada a insolvência, ser aquele negócio resolvido, tornando ao património devedor uma quota de 50% na propriedade do imóvel (ou uma quota ideal de 50% no património do ex-casal integrado por aquele imóvel, não temos dados para aferir qual das situações)[22].
Para que pudéssemos sequer analisar os dois cenários teríamos que ter dados sobre o valor do património atual (o lugar de garagem), o valor do imóvel doado (a fração G) e, por estimativa o respetivo valor de liquidação numa venda forçada.
No primeiro cenário o crédito do credor Banco… concorreria como comum a uma massa que não integrasse a fração G, mas apenas a fração HP, relativamente à qual temos a indicação de um valor de € 5.000,00[23] e a indicação do valor patrimonial de € 1.654,45[24].
Assim, neste primeiro cenário, a satisfação integral ou superior a 70% do capital dos credores comuns é altamente improvável, mesmo ponderando uma apreensão de parte do salário do devedor.
No segundo cenário, apreendida a quota de 50% ou quota ideal, o credor Banco… será um credor garantido na insolvência. Resolvido o negócio e apreendido o bem, o credor Banco… tem hipoteca sobre o mesmo e é um credor garantido, realidade que não pode aqui ser afastada ou não ponderada.
Não temos qualquer valor para a fração G, qualquer descrição da mesma ou tipologia, apenas a alegação de que se situa num dos concelhos mais valorizados do país, pelo que é impossível estimar quanto receberiam os credores comuns neste cenário, em excesso ao primeiro cenário.
Num cenário de aprovação do plano o credor recebe 70% do respetivo capital em 10 anos.
O ónus da demonstração, em termos de verosimilhança, pertence ao interessado que requer a não homologação. Este não é um fundamento de não homologação oficioso, estando dependente de arguição pelo interessado e de demonstração por este, em termos plausíveis[25], considerando o contexto e prazos aplicáveis, de que a sua situação é previsivelmente menos favorável que a que interviria na ausência de qualquer plano[26].
O único elemento certo, neste momento, é o rendimento do devedor e a possibilidade de desconto no mesmo ou, em cenário de exoneração do passivo restante, o que exceda o montante mínimo de sobrevivência que venha a ser fixado pelo tribunal. No tocante ao património do devedor que serve de garantia só temos apurado o valor patrimonial de um lugar de garagem, cujo valor máximo disponível (estimado) é de € 5.000,00 e a probabilidade de resolução de um negócio que fará tornar ao património uma quota de um imóvel de valor desconhecido e onerado por hipoteca em relação à qual sabemos estar em dívida cerca de € 117.000,00.
Não está, assim, demonstrado, até porque não foi devidamente alegado, que a situação de qualquer destes dois credores ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável que a sua situação no cenário alternativo de liquidação.
O que implica que esta questão terá que ser decidida contra os credores que requereram a não homologação da proposta de acordo de pagamento apresentada pelo devedor, dado que sobre eles recaía o ónus da demonstração de previsibilidade de que a sua situação é menos favorável ao abrigo do acordo que na ausência deste.
Improcede o fundamento de recusa de homologação previsto no art. 216º, nº1, al. a) do CIRE.
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A presente apelação é, assim, integralmente procedente, devendo o plano de pagamentos apresentado pelo devedor ser homologado, porque aprovado, não subsistindo qualquer causa de não homologação.
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As custas devidas na presente instância recursiva devem ser suportadas pelo recorrente, que do recurso tirou proveito, sem que haja parte vencida[27] sem prejuízo, porém, do benefício do apoio judiciário - arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil.
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5. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em, julgando procedente a apelação, revogar a decisão recorrida em, em consequência:
Homologar, nos termos do 222º-F nº5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, o acordo de pagamento apresentado PME, separado de pessoas e bens, portador do cartão de cidadão com número de identificação civil …, com número de identificação fiscal …., com residência na Av. …..
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A presente decisão vincula todos os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações – art. 222º-F, nº8 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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Custas pelo requerente com taxa de justiça reduzida a ¼ - arts. 222-F, nº 9 e 302º nº 1, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - sendo o valor da ação para efeitos de custas equivalente ao da alçada da Relação, nos termos do art. 301º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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Registe, notifique e publicite.
Custas na presente instância recursiva pelo recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Notifique.
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Lisboa, 15 de outubro de 2024
Fátima Reis Silva
Nuno Teixeira
Renata Linhares de Castro
_______________________________________________________ [1] Aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 42/2016, de 14/07/2016, publicado no DR. n.º 158/2016, Série I de 2016-08-18. [2] Medida 25 do eixo de reestruturação empresarial. [3] Acs. STJ de 10/12/15 (relator Pinto de Almeida - 1430715), de 05/04/16 (relator José Rainho – 979/15), de 12/04/16 (relator Salreta Pereira – 531/15), de 21/06/16 (relatora Ana Paula Boularot – 3377/15) e de 27/10/16 (relator Fernandes do Vale – 381/16), todos disponíveis em www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem referência. [4] Ver Catarina Serra em Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pgs. 582 e 583. [5] Cfr. art. 12º da referida Lei. [6] Consigna-se que na motivação o recorrente transcreveu este preciso segmento de acórdão anteriormente subscrito pela signatária, provavelmente do Acórdão que revogou, nestes autos, a decisão de não aprovação, mencionado no Relatório. O mesmo procedimento foi seguido noutras partes da motivação, sempre sem qualquer referência ao facto de se estar a citar jurisprudência. Sem qualquer censura, apenas se faz a presente menção como justificação para o facto de não entendermos necessário alterar a nossa redação habitual e que já vimos usando e decidindo noutros arestos. [7] Neste sentido, entre muitos outros, os Acs. TRC de 17/03/15 (Henrique Antunes – 338/13); TRC de 27/06/2017 (Isaías Pádua – 8389/16); TRP de 08/07/15 (Manuel Domingos Fernandes – 261/14); TRP de 30/01/2024 (Maria da Luz Seabra – 462/22); TRL de 09/06/16 (Ondina Carmo Alves - 17154/15); TRL de 28/04/2020 (Paula Cardoso - 7771/19), TRL de 11/07/2024 (Manuela Espadaneira Lopes – 8294/23). [8] Relatado Por Manuel Bargado, processo nº 1228/15. [9] Relatado Por Alexandra Moura Santos, processo nº 63/14. [10] Relatado por Carlos Querido, processo nº 1709/15. [11] Relatado por Ilídio Sacarrão Martins, processo nº 1702/15. [12] Como alegado pelo credor ABG em 20. do seu requerimento de não homologação. [13] Ver nº5 da matéria de facto dada como provada. [14] Caso não existam, como no caso, créditos dotados de privilégio imobiliário geral. [15] Disponível em www.dgsi.pt. [16] Em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, já citado, em anotação ao preceito transcrito, pg. [17] Em Lições, pg. 475. [18] Neste sentido Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, O Processo Especial de Revitalização…, pg. 146. [19] Referindo a temática Nuno Salazar Casanova e David Sequeira Dinis, O Processo Especial de Revitalização…, pg. 147 e ss. e a aqui relatora em Processo Especial de Revitalização – Notas Práticas e Jurisprudência Recente, Porto Editora, 2014, pg. 65. [20] De novo, trata-se de segmento transcrito na motivação de recurso, correspondente à fundamentação habitual da signatária, que não se alterará. [21] Alegando apenas “Por outro lado, nos termos do disposto no nº. 1, alínea a) do artigo 216º. do CIRE, caso
algum credor se oponha ao Acordo apresentado, deve o Tribunal recusar a sua homologação.” – cfr. nº11 do requerimento de 27/09/2023. [22] E deixando agora de lado a possibilidade de impugnação bem sucedida dessa resolução, dado que estamos apenas a hipotizar o melhor cenário possível. [23] Cfr. relação de bens junta com o requerimento inicial e [24] Caderneta predial urbana junta com o requerimento inicial e caderneta junta em 18/03/2024. [25] A expressão é de Catarina Serra, em Lições…, pg. 476. [26] Neste sentido, entre outros, ver os Acs. TRC de 26/09/2023 (Emídio Santos – 170/22), TRP de 11/10/2018 (José Manuel de Araújo Barros – 7341/17), TRP de 12/07/17 (Carlos Portela - 841714), TRP de 07/04/2016 (Carlos Querido – 1709/15), TRG de 27/09/2018 (Paulo Reis – 8494/17), TRE de 22/02/2018 (Ana Margarida Leite – 841/16), TRL de 15/10/2019 (Isabel Fonseca – 3855/18) e TRL de 18/10/2022 (Fátima Reis Silva – 28316/21). [27] Neste sentido Ac. TRL de 11/02/2021 (Carlos Castelo Branco - 1194/14), disponível em www.dgsi.pt.