Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
DETENÇÃO
POSSE
USUCAPIÃO
Sumário
I - O filho que a pedido e com autorização dos pais começa a gerir o estabelecimento comercial destes e a praticar sobre o mesmo actos materiais correspondentes ao direito de propriedade, sabendo que o estabelecimento pertence aos pais, é mero detentor do estabelecimento. II - Para que essa detenção se transforme em verdadeira posse tem de haver inversão do título da posse ou traditio brevi manu. III - Não se tendo demonstrado que os pais tenham celebrado com o filho qualquer negócio jurídico de transmissão da propriedade do estabelecimento (v.g. a doação, ainda que verbal) está excluída a traditio brevi manu. IV - Não tendo sido sequer alegado qualquer acto de inversão de título de posse, essa actuação do filho, ainda que tenha durado décadas e fosse mesmo acompanhada da convicção de ser o proprietário do estabelecimento, não é susceptível de permitir adquirir o direito por usucapião.
Texto Integral
RECURSO DE APELAÇÃO ECLI:PT:TRP:2024:1248.13.3T2AVR.P1
*
SUMÁRIO:
………………………………
………………………………
………………………………
ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
I. Relatório: AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente em Albergaria-a-Velha, instaurou acção declarativa contra BB, contribuinte fiscal n.º ..., e marido CC, contribuinte fiscal n.º ..., residentes em Albergaria-a-Velha, formulando contra estes os seguintes pedidos:
- declarar-se que o autor é herdeiro de DD e sua mulher EE;
- declarar-se que das respectivas heranças faz parte o estabelecimento comercial denominado “Farmácia ...”, com o número de contribuinte ..., titulado pelo alvará n.º ..., emitido pelo Infarmed em 11 de Dezembro de 1971, condenando-se os réus a tal reconhecer;
- condenar-se os réus a restituir à massa das referidas heranças o estabelecimento comercial anteriormente referido, com todos os seus pertences.
Para fundamentar o seu pedido alegou, em súmula, que os seus pais eram proprietários da Farmácia ..., que por morte deles a farmácia passou a integrar a respectiva herança indivisa, que a ré, sua irmã, detém e usa a Farmácia à revelia dos outros herdeiros.
O réu foram citados e apresentaram contestação, defendendo a improcedência da acção, alegando que os pais da ré e do autor sempre pensaram e destinaram a Farmácia à ré mulher, tendo-lha doado verbalmente com promessa de futura formalização, o que sempre recebeu total consenso e nula oposição de todos os demais familiares, razão pela qual os réus têm a posse pública e pacífica da Farmácia, tendo-a adquirido por usucapião.
Em reconvenção (após modificação) pedem que seja reconhecido o direito de propriedade da ré sobre o estabelecimento comercial denominado "Farmácia ...", adquirido por usucapião.
Realizado julgamento, foi proferida sentença, tendo sido julgada a acçãoprocedente e a reconvençãoimprocedente, e, em consequência, declarado que o autor é herdeiro nas heranças abertas por óbito de DD e sua mulher EE; declarado que daquelas heranças faz parte integrante o estabelecimento comercial denominado “Farmácia ...” e os réus condenados a restituírem à massa das referidas heranças esse estabelecimento comercial.
Do assim decidido, os réus interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I) Consta da sentença como factos relevantes dados como provados a matéria factual descrita nas alíneas n), p), r), s), w) (na questão do pagamento do IVA e IRS), x), y) z), aa), bb), cc), dd), ee) (primeira parte), pp) e qq), as quais por mera economia processual aqui se dão por reproduzidas,
II) Sucede, porém, que, tais factos e especialmente a sua fundamentação está em manifesta contradição com a decisão e até como a al. e) dos factos não provados, o que serve por dizer que a sentença é nula em face do disposto no art. 615.º n.º 1 al. c) do C.P. Civil.
III) Acresce que, também existe contradição entre a matéria dada como provada, em termos temporais, nas alíneas r) e cc) dos factos dados como provados, o que serve por dizer que, porventura, terá ocorrido lapso de escrita perfeitamente sanável na redacção daquele ponto r), o que imporá a sua correcção, e/ou, tal não sucedendo implicará a nulidade do sentenciado nos termos do disposto no artigo antes mencionado.
IV) Por outro lado, as alíneas t) a v) e primeira parte do ponto w) (no que tange com o imposto municipal sobre os imóveis) dos factos dados como provados, reportam-se ao imóvel onde se mostra instalada o estabelecimento farmácia aqui em questão,
V) matéria essa que, como se constata dos autos fazia parte do pedido reconvencional primitivo, mas que mais tarde os réus ora apelantes vieram a desistir, reformulando-o nos termos que constam da acta de tentativa de conciliação realizada em 21 de Maio de 2019.
VI) Deste modo, o Meritíssimo juiz a quo tomou conhecimento de matéria que lhe estava vedado apreciar, o que serve para concluir que em face do disposto no art. 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C., a douta sentença nessa parte é nula.
VII) Ademais, na alínea ee) dos factos provados (segunda parte) foi erroneamente interpretada uma simulação de cálculo de IRS, como sendo uma prestação de contas da actividade do estabelecimento farmácia por parte da ré mulher aos irmãos.
VIII) Contudo, e face aos depoimentos prestados pelo réu marido (minuto 24:20 a 24:45 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11-02_16-06-41.mp3 - arquivo n.º 11 do dia 2.11.2023, parte da tarde), e sobretudo Dr. FF TOC da Farmácia - minutos 12:36 a 13:25, 13:26 a 14:13, 19:40 a 21:45, 01:08:56 a 01:11:26 do ficheiro diligência _1248-13.3T2AVR_2024-02-07_15- 03-25.mp3 do dia 07.02.2024 parte da tarde), mostra-se comprovada à saciedade o fim e objecto daquele documento, que nada tem a ver com uma alegada prestação de contas, mas sim e quando muito apurar o IRS devido pela farmácia, tendo em conta os rendimentos globais da falecida EE.
IX) Deste modo, a segunda parte da al. ee) dos factos provados deve ser expurgada daquela alínea, ficando apenas a constar que a ré mulher nunca prestou contas relativas aos rendimentos retirados da actividade da farmácia.
X) Verifica-se também que ocorreu in casu errónea aplicação e interpretação da legislação em vigor antes da entrada do D.L. n.º 307/2007 de 31.08 (Regime Jurídico das Farmácia), porquanto, o farmacêutico proprietário era sempre e também o Director Técnico da Farmácia, sendo que tal direcção era incompatível com qualquer outra função.
XI) Assim sendo, e como é óbvio sendo o estabelecimento formal propriedade da falecida EE, também seria esta necessariamente a sua Directora Técnica, o que, já agora acrescente-se e face ao estatuído na Lei à altura vigente, a respectiva sinaléctica impunha-se obrigatoriamente, tal como se dispunha nos artigos 53.º e 54.º do D.L. 44547 de 27.08 de 1968)
XII) Também por força daquela propriedade formal, e dado que a farmácia dispunha de contabilidade organizada, quer as obrigações fiscais, quer todas as demais actividades conexionadas com o labor farmacêutico tinham necessariamente que ser efectivadas em nome e com o NIF da falecida EE,
XIII) Incluindo os recibos emitidos a favor dos clientes, o pagamento do IVA e IRS, a emissão de recibos de salários, motivo pelo qual se incluíam os rendimentos da farmácia na declaração de IRS daquela EE, havendo posteriormente necessidade de apurar os impostos imputáveis à farmácia, os quais eram liquidados através da conta bancária da farmácia, daí a necessidade de se fazer uma simulação para este efeito, não sendo, portanto, tal documento em qualquer alegada prestação de contas (cf. a este propósito minuto 23:55 a 24:01, 24:09 a 24:19, 24:20 a 24:45 do ficheiro diligência_1248- 13.3T2AVR_2023-11-02_16-06-41.mp3 - arquivo n.º 11 do dia 2.11.2023, parte da tarde – réu marido, e minutos 12:36 a 13:25, 13:26 a 14:13, 14:48 a 15:19, 15:20, 19:40 a 21:45, 22:19 a 22:54, 26:38 a 27:14, 01:08:56 a 01:11:26 do ficheiro diligência _1248-13.3T2AVR_2024-02-07_15-03-25.mp3 do dia 07.02.2024 parte da tarde – testemunha Dr. FF).
XIV) Aliás, e quanto ao pagamento do imposto de IRS a testemunha Dr. FF explicou os passos dados no apuramento e liquidação desse imposto (minuto 01:08:56 a 01:11: 26 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2024-02- 07_15-03-25.mp3 do dia 07.02.2024 parte da tarde, a este propósito veja-se ainda as declarações prestadas pela mesma testemunha no minuto 09:58 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2024-02-07_16-33-57.mp3 do dia 07.02.2024 parte da tarde).
XV) Face ao exposto, o que devia ter sido dado como provado na al. w) (parte final – no que tange com o IRS) dos factos provados línea, era que o imposto de IRS gerado pela actividade farmacêutica era, tal como sucedia com o IVA, sempre pago pela conta da farmácia (a qual era gerida pela ré mulher – tal como se deu como provado na respectiva alínea).
XVI) Veja-se ainda a este propósito o que consta em sede de prova gravada no minuto 01:19:27 do ficheiro diligência _1248-13.3T2AVR_2024-02-07_15-03- 25.mp3 do dia 07.02.2024 parte da tarde).
XVII) Relativamente à al. pp) dos factos provados (parte final, quando aí se refere de “até à publicação do D.L. n.º 307/2007…” até “por partilha”), e no que consta no não provado no ponto d) dos factos não provados, verifica-se que a fundamentação da matéria de facto (ponto 28)) quanto a essa matéria, será no mínimo errada,
XVIII) pois que na fundamentação da matéria de facto se aponta como suporte da mesma o doc. 14 da P.I., documento esse que data de 6 de Abril de 2013pelo que apenas a partir dessa data (no máximo ena esteira do douto decisor, o que não se aceita) ocorreram actos por parte dos irmãos da ré mulher que questionavam a sua propriedade sobre o estabelecimento, e nunca como se refere naquela al. pp) quando aí se estabelece o momento temporal figurado no D.L. n.º 307 de 2007, ou seja, o ano de 2007.
XIX) Neste sentido veja-se as declarações prestados pelo Recorrente marido (cf. minutos 04:38 a 05:53, 12:34 a 13:10, 19:02 a 19:38 e 21:38 a 21:42 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11-02_16-06-41.mp3 - arquivo n.º 11 do dia 2.11.2023, parte da tarde), Dr. FF (cf. minutos 22:58 a 23:51, 23:58, a 24:43, 42:00, ficheiro diligência _1248-13.3T2AVR_2024-02-07_15- 03-25.mp3 do dia 07.02.2024 parte da tarde), Dr.ª GG (cf. minutos, 34:26 a 34:40 e 35:31, 43:08 a 45:30 do ficheiro diligência_1248- 13.3T2AVR_2023-11-19_15-16-15.mp3 - do dia 07.02.2024, parte da manhã) e HH (minuto, 16:20 do ficheiro diligência_1248- 13.3T2AVR_2024-02-07_11-50-00.mp3 - do dia 07.02.2024, parte da manhã), e do Interessado II (cf. minutos 01:01:58 a 01:04:10 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11-15_14-41-29.mp3 do dia 15.11.2023, parte da tarde),
XX) Assim sendo, não se poderia ter dado como provado que havia consenso entre os irmãos de que a farmácia ficaria para a ré mulher apenas até à publicação do DL. n.º 307/2007 de 31.08,
XXI) mas sim que tal consenso sempre existiu até pelo menos à data do falecimento (10.02.2011) da autora da herança (EE), e até mesmo alguns meses depois disso, face ao afirmado pela testemunha II nos minutos acima referenciados,
XXII) até porque dispõem as Base III e IV da Lei n.º 2125 de 20.03.1965, que a alegada (pelo autor e acolhida pelo Tribunal a quo) obrigatoriedade de atribuição do estabelecimento a herdeiro farmacêutico não existia, prevendo-se até que no caso da farmácia ser adjudicada a cônjuge ou herdeiro legitimário não farmacêutico, a farmácia quando muito teria que ser objecto de trespasse ou de cessão de exploração no prazo subsequente de dois anos.
XXIII) O mesmo se dirá relativamente à alínea d) dos factos não provados, já que umbilicalmente ligada à dita al. pp), pelo que e quando muito apenas se poderia dar como não provado que a falta de consenso entre todos os irmãos de que a farmácia ficaria para a ré mulher apenas veio a surgir após o falecimento da Dr.ª EE,
XXIV) sendo certo que, e, no entanto, o facto dos irmãos da Apelante terem, interessadamente, mudado de opinião, não muda o facto de que os pais da ré mulher e do autor sempre pensaram e destinaram o dito estabelecimento farmácia para a sua única filha, ou seja, a aqui Apelante.
XXV) Não se percepciona também como é que o Tribunal a quo retirou que a ilação de que havia aceitação tácita dos irmãos de que a farmácia ficaria para a ré mulher apenas por partilha (al. pp), parte final), já que tal factualismo se alicerçou apenas e tão somente nos depoimentos do autor e do Interessado II,
XXVI) Depoimentos esses que a esse propósito entraram em conflito gritante com os depoimentos prestados pelo réu marido (cf. minuto 4:38 a 05:53, 13:11 a 13:21, 21:13 a 21:42, do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11-02_16-06-41.mp3 - arquivo n.º 11 do dia 2.11.2023, parte da tarde), JJ (cf. minutos 05:31 a 06:08, 06:32 a 06:45, 06:45 a 07:12, 08:58 a 09:13, 09:35 a 09:46, 10:21 a 10:28, 15:02 a 15:21, 16:40 a 17:05 – ficheiro diligência_1248- 13.3T2AVR_2023-11-29_10-37-45.mp3 do dia 29.11.2023, parte da manhã), KK (cf. minutos 02:55 a 03:15, 04:50 a 04:59, 07:10 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11-29_10-56-31.mp3 do dia 29.11.2023, parte da manhã).
XXVII) Relativamente à al. qq) dos factos provados, esta face aos depoimentos prestados peca por manifesta escassez, pois que para além do aí já dado como provado, deveria fazer-se acrescer que a falecida EE vivia no imóvel onde o Colégio ... se sedia,
XXVIII) e que exerceu ao longos dos anos diversas funções naquele estabelecimento de ensino, tais como de direcção e leccionação, e gerência da sociedade entretanto criada para gerir aquele Colégio, tudo, abone-se incompatível com o exercício da actividade de farmacêutica.
XXIX) No que concerne com a al. rr) dos factos provados, e conjugada esta com a al. y) dos mesmos factos, com os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento pelas testemunhas II (cf. minutos 42:38 a 43:49 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11-15_14-41-29.mp3 do dia 15.11.2023, parte da tarde), Dr.ª GG (minuto 31:35 a 32:26 do ficheiro diligência_1248- 13.3T2AVR_2023-11-19_15-16-15.mp3 - do dia 07.02.2024, parte da manhã) e pelo próprio Apelante marido (cf. minuto 15:42 a 16:20 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023- 11-02_16-06-41.mp3 - arquivo n.º 11 do dia 2.11.2023, parte da tarde),
XXX) conclui-se que a falecida EE só assinava os documentos, mas não os redigia, já que o réu marido referiu que numa primeira fase quem redigia as cartas era o seu sogro (até 1983), e posteriormente era ele próprio (a pedido da sua mulher), o que foi confirmado pela testemunha Dr.ª GG, mas também pelo interessado II quando este referiu que viu a sua irmã por várias vezes a dirigir-se ao Colégio para dar vários documentos para a mãe assinar.
XXXI) Deste modo, na referida alínea rr) dos factos provados para além de se ter dado como provado que sempre foi a falecida EE quem trocava correspondência com o “INFARMED”, em tudo quanto respeitava à “Farmácia ...”,
XXXII) também se deveria ter sido dado como provado que não era aquela EE quem redigia aquela correspondência, nem era a sua autora moral, mas sim o réu marido (quem redigia) e a ré mulher (autora moral daquela documentação).
XXXIII) No que concerne com a al. f) dos factos não provados, verifica-se que ao invés do que consta da douta sentença existe prova abundante em sentido contrário ao decidido.
XXXIV) Para tanto atente-se nos depoimentos prestados pelas testemunhas JJ (cf. minutos 05:31 a 06:08 do ficheiro diligência_1248- 13.3T2AVR_2023-11-29_10-37-45.mp3 do dia 29.11.2023, parte da manhã), LL (cf. minutos 07:06 a 07:20 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11-29_15-00-25.mp3 do dia 29.11.2023, parte da tarde), Eng. MM (cf. minutos 07:10 a 07:59 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11-29_14-13-57.mp3 do dia 29.11.2023, parte da tarde).
XXXV) Face a tais depoimentos, e o no mínimo, dever-se-ia ter dado como provado que os falecidos pais da ré e do autor já haviam colocado alguns bens em nome dos irmãos daquela ré, designadamente as casas dos mesmos, mormente a “Quinta” onde reside o autor, e alguns terrenos, isto sem prejuízo de se ter dado como não provado a demais matéria inserta naquela alínea f) dos factos não provados.
XXXVI) Nesse sentido, declarações prestadas pelo Interessado II (cf. minutos 01:07:50 a 01:09:35, 01:10:18 a 01:11:30 do ficheiro diligência_1248- 13.3T2AVR_2023-11-15_14-41-29.mp3 do dia 15.11.2023, parte da tarde), JJ (cf. minutos 08:16 a 08:35 a 06:08 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11-29_10-37-45.mp3 do dia 29.11.2023, parte da manhã) e documento de fls. 217 do doc. 2 do “CD” junto ao apenso “B” (notificado às partes em 09.08.2017, com data de elaborado em 04.08.2017 – Ref.ª 98492315).
XXXVII) A conjugação destes factos, com a matéria factual constante da alínea l) dos factos dados como provados (falta de inscrição daquela EE na Ordem dos Farmacêuticos ao longo de mais de 50 anos a fio), permite concluir que a decisão de direito extraída pelo Tribunal a quo na parte decisória,
XXXVIII) ou seja, na parte em que se refere na douta sentença de que a falecida EE “nunca se demitiu de exercer o direito de propriedade sobre aquele estabelecimento” (cita-se a douta decisão), não tem qualquer verosimilhança e fundamento.
XXXIX) Quanto à al. c) dos factos não provados, constata-se que o Sr. Juiz a quo pronunciou-se sobre matéria para a qual não estava vinculado (doação do imóvel), omitindo, porém dos factos provados, a realização de obras interiores e exteriores no estabelecimento, o que se mostra comprovado através dos depoimentos das testemunhas NN (relativamente ao imóvel - cf. minutos 08:41 a 11:59, 12:10 a 12:45 do ficheiro diligência_1248- 13.3T2AVR_2023-11-29_11-42-15.mp3 do dia 29.11.2023, parte da manhã), OO (relativamente ao interior da farmácia - cf. minutos 06:30 a 06:45, 10:00 a 10:12, 10:45 a 10:57 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11-29_11-10-31.mp3 do dia 29.11.2023, parte da manhã), e HH (quanto ao interior e sobretudo exterior da farmácia - cf. minutos 10:44 a 11:58, do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11- 29_15-13-15.mp3 do dia 29.11.2023, parte da tarde).
XL) Nesse sentido deverá criar-se uma alínea nos factos provados, onde deverá ficar a constar os factos supra, até porque tais factos também são relevantes, em conjugação com todos os demais produzidos em sede de audiência de julgamento nesse sentido, para a prova positiva da matéria inscrita na al. e) dos factos não provados, ou seja, de que a ré mulher sempre entendeu como seu o estabelecimento aqui em causa.
XLI) Ainda relativamente a esta al. al e) dos factos não provados, e para além do que já vai dito e demonstrado que permite contrariar a conclusão retirada pelo Tribunal a quo cumpre acrescentar por relevantíssimo os depoimentos a este título prestados pelo réu marido, corroborado (nesta parte), pelos prestados pelas testemunhas NN (sobrinho dos falecidos), OO, JJ (cunhada da falecida EE), KK (irmão da EE), FF, GG, HH, LL (caseiro e funcionário do Colégio ... durante mais de 50 anos) e Engenheiro PP,
XLII) tendo eles deposto em sentido oposto ao dado como não provado naquela alínea e) (minutos 04:38 a 05:53, 13:11 a 13:21, 23:30 a 23:50 do ficheiro diligência_1248- 13.3T2AVR_2023-11-02_16-06-41.mp3 - arquivo n.º 11 do dia 2.11.2023, parte da tarde – réu marido; cf. minutos 05:31 a 06:08, 06:32 a 06:45, 06:45 a 07:12, 08:58 a 09:13, 09:35 a 09:46, 10:21 a 10:28, 15:02 a 15:21, 16:40 a 17:05 – ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11- 29_10-37-45.mp3 do dia 29.11.2023, parte da manhã – JJ; cf. minutos 02:55 a 03:15, 04:50 a 04:59, 07:10 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11-29_10-56- 31.mp3 do dia 29.11.2023, parte da manhã – KK; cf. minutos 06:30 a 06:45, 08:42 a 09:00, 10:00 a 10:12, 10:45 a 10:57 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11- 29_11-10-31.mp3 do dia 29.11.2023, parte da manhã – OO; (cf. minutos 07:18, 08:41 a 11:59, 12:10 a 12:45, 13:18 a 13:35, 13:55 a 14:11, 14:36 a 15:23, 16:48, 19:04 a 19:12 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11-29_11-42-15.mp3 do dia 29.11.2023, parte da manhã – Dr. NN; (minutos 07:10 a 07:59 e 11:09 do ficheiro diligência_1248- 13.3T2AVR_2023-11-29_14-13-57.mp3 do dia 29.11.2023, parte da tarde – Eng. PP; (cf. minutos 05:42, 07:06 a 07:20 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11- 29_15-00-25.mp3 do dia 29.11.2023, parte da tarde – LL; (cf. minutos 03:51 a 04:10, 04:23, 06:55, 07:00 a 08:00, 09:30 a 10:10, 10:44 a 11:58, 12:30 a 13:06 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11-29_15-13-15.mp3 do dia 29.11.2023, parte da tarde – HH; minutos 04:35 a 05:26, 05:55 a 06:30, 07:45 a 08:11, 08:45 a 09:40, 15:25, 26:37 a 27:20, 27:38, 27:42 a 28:50, 30:21 a 30:36, 30:45 a 31:30, 31:35 a 32:26, 34:08 a 34:25 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11-19_15-16-15.mp3 - do dia 07.02.2024, parte da manhã – Dr.ª GG; minutos 03:50 a 04:19, 05:22 a 06:30, 10:51, 14:16, 25:54 a 26:36, 26:38 a 27:14, 31:35 a 33:02, 40:55 a 41:44 do ficheiro diligência _1248-13.3T2AVR_2024-02-07_15-03-25.mp3 do dia 07.02.2024 parte da tarde – Dr. FF; minuto 10:38 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11-29_12-12-20.mp3 do dia 29.11.2023, parte da manhã - QQ ).
XLIII) Da conjugação de todos estes depoimentos, claramente credíveis e fiáveis (até porque desinteressados no desfecho da acção), com os demais elementos probatórios, que fundamentaram, entre outras coisas, o que se mostra dado como provados nas al. n), p), r), s), w) (na questão do pagamento do IVA e IRS), x), y) z), aa), bb), cc), dd), ee) (primeira parte), pp) e qq), ter-se-á que concluir que, ao contrário do que consta da douta sentença, sempre entendeu como seu estabelecimento farmácia aqui em causa (art. 64.º da Contestação).
XLIV) Prova disso mesmo, para além do que já vai aqui dito, reside na circunstância relevante de que a ré mulher não solicitou qualquer pedido indemnizatório, após a herança ter assumido o dito estabelecimento (em 2015/2016, na sequência da providência do apenso “B”), como sucedeu, por exemplo, com as funcionários da dita farmácia, a saber HH, GG e RR, o que não verificaria certamente caso a Apelante mulher não entendesse como seu o estabelecimento aqui em causa, até porque teria direitos laborais adquiridos por mais de 30 anos de serviço.
XLV) Por último, e quanto à matéria da al. g) dos factos não provados, esta matéria, ao contrário do decidido, deverá ser incluída nos factos provados, tendo por referência a prova documental insofismável emitida pela Segurança Social, prova essa que respeita ao percurso contributivo geral da ré mulher, e na qual se poderá verificar que os rendimentos auferidos ao longo dos anos eram manifestamente inferiores aos fixados em tabela para a actividade de um farmacêutico,
XLVI) o que só será perceptível tratando-se a Apelante mulher da efectiva dona do estabelecimento, pois que se tal não sucedesse tal representaria um gravoso prejuízo que se reflectiria necessariamente na sua reforma, mas também no eventual subsídio de desemprego ou de doença que pudesse vir a necessitar, o que nenhum trabalhador estaria disponível para aceitar.
XLVII) Mostra-se, pois, incompreensível a conclusão inserta a este título em 37) da fundamentação da matéria de facto.
XLVIII) A este propósito veja-se os depoimentos prestados pelas testemunhas Dr. NN (cf. minutos 14:36 a 15:23 do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023- 11-29_11-42-15.mp3 do dia 29.11.2023, parte da manhã), HH (cf. minuto 14:30 a 15:54, do ficheiro diligência_1248-13.3T2AVR_2023-11-29_15-13-15.mp3 do dia 29.11.2023, parte da tarde), e sobretudo do Dr. FF (minutos 40:05 a 40:24 e 40:55 a 41:47 do ficheiro diligência _1248-13.3T2AVR_2024-02-07_15-03-25.mp3 do dia 07.02.2024 parte da tarde).
XLIX) Consequentemente, e face a todo o manancial de prova colhida nas audiências, e nos factos que foram dados como provados, nomeadamente a matéria factual descrita nas alíneas n), p), r), s), w) (na questão do pagamento do IVA e IRS), x), y) z), aa), bb), cc), dd), ee) (primeira parte), pp) e qq), as quais por mera economia processual aqui se dão por reproduzidas,
L) mas também na factualidade não provada, mas que deveria ter sido dada como provada, como já anteriormente se explanou (pontos 18) a 111) deste articulado), designadamente as alíneas d), e), f), e g), constata-se que ao contrário do decidido se mostra claramente demonstrado a existência do animus e por essa via, da posse conducente à propriedade do estabelecimento por usucapião.
LI) Da prova produzida não se alcança como foi, pois, possível concluir-se pela inexistência do animus, desde logo porque não existe corpus sem animus (o qual até se presume nos termos do disposto no art. 1252.º n.º 2 do Cód. Civil), sendo o corpus o exercício de poderes de facto, que intende uma vontade de domínio, de poder jurídico real, e o animus é essa intenção jurídico-real, que é inferível e exprime-se pelo poder de facto.
LII) Tal como refere Orlando de Carvalho (em R.L.J. ano 122, pág. 68), e cita-se, “a intenção de domínio não tem de explicitar-se, e muito menos por palavras. O que importa é que se infira do próprio modo de actuação ou utilização lato sensu”.
LIII) Esta mesmíssima posição mostra-se assumida no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 14 de Maio de 1996, no qual se concluiu que “Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa” (DR, II Série, nº 144, de 24 de Junho de 1996).
LIV) No caso em apreço, e contrariamente ao que se mostra referido em 48) da fundamentação (de direito) da douta sentença, a ré mulher sempre agiu como dona do estabelecimento farmácia aqui em causa, gerindo-o e dele retirando lucros (alíneas n) a s), w) – com as alterações antes mencionadas, x), z), aa) a ee)),
LV) com animus possidendi e não apenas como mera detentora ou possuidora por conta da sua mãe, uma vez que, ao longo do tempo, aquela sua mãe, ainda que titular formal, apenas se manteve, após 1983, como proprietária e directora técnica, como mera “testa de ferro”, pois que nunca exerceu poderes de facto inerentes a qualquer propriedade.
LVI) Verifica-se, pois, uma posse da ré mulher, correspondente ao exercício de poderes de facto conforme materializado supra, o que foi exercido de forma pública, porque exercida de molde a ser conhecida por todos e mormente pelos demais interessados, não sendo pois o facto de tal posse ter sido ocultada (porque não poderia ser de outro modo) quer na documentação oficial da farmácia, quer na demais sinalética obrigatória (na qual se inclui a tabuleta e letreiros interiores e exteriores do estabelecimento – cf. a este propósito arts 53.º e 54.º do D.L. n.º 48547 de 27.08.1968),
LVII) ou de se ter ocultado de quem seria a real proprietária perante as autoridades administrativas (“INFARMED”), que invalida a posse da Apelante mulher, como e também a aquisição originária daquele estabelecimento através precisamente daquela posse (usucapião).
LVIII) Com efeito, a posse sempre foi pública e, portanto, não oculta, ainda que, repete-se, se tenha omitido, na documentação, o nome da ré mulher enquanto titular, por força da proibição legal vigente na época em que aquela acedeu (1983) à posse do estabelecimento farmácia.
LIX) Uma coisa é a publicidade da titularidade ou da propriedade e outra é a publicidade da posse, nos termos que é definida no art.º 1262.º do Cód. Civil, pois que e na verdade, definindo-se a publicidade como sendo o exercício da posse de modo a poder ser conhecida pelos interessados, o carácter público da posse é relativo porquanto a cognoscibilidade é apenas em confronto dos interessados e não das pessoas do círculo social onde a posse se localiza. Não é por isso necessário um consenso público: basta que o interessado venha a saber, por qualquer meio, que o sujeito possui a coisa, para que não logre opor-lhe, a partir de então, o carácter oculto da posse (cita-se nesta parte o Acórdão de 03.12.2013 do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, Proc. n.º 990/09.8TBCBR.C., em www.dgsi.pt).
LX) No caso aqui em apreço, a posse que a ré mulher exerceu sobre o estabelecimento em consideração é visível desde 1983, tendo sempre sido mantida pública para os interessados, isto é, para os seus irmãos e pais (sendo estas as pessoas relativamente às quais, a cada momento, poderia colocar-se a questão do confronto com a titularidade),
LXI) sendo certo, que dos factos provados, no mínimo tal questão era conhecida e aceite pelo menos desde 1983 até 2007 (cf. al. pp) dos factos provados - embora como já se demonstrou anteriormente terá que ser considerado que se verificou até 2013), data na qual já se mostravam decorridos 24 anos de posse ininterrupta, irrestrita, pacífica, pública e sem oposição de quem quer que seja.
LXII) Acresce que, a posse foi sendo, assim, exercida de forma pública e não oculta, porquanto, não houve qualquer comportamento da ré mulher tendente a esconder a sua situação de poder de facto sobre a farmácia, sendo que e para além disso a posse sempre foi pacífica, porque adquirida sem recurso a violência, sem interrupções, conforme resulta provado,
LXIII) e por tempo suficiente (mais de 24 anos) para levar à aquisição do por usucapião do estabelecimento, ainda que se considerasse para o facto o período mais longo que a lei exige para aquisição dos imóveis possuídos de má fé e sem registo, que, como é sabido, é de vinte anos (art. 1296.º) (cf. neste sentido o Acórdão já antes citado, o qual já agora conclui que o prazo aplicável no caso vertente, não estando em causa imóveis, seria o previsto no artº 1298.º al. b) do CC).
LXIV) Ainda a este propósito, e citando novamente o Prof. Dr. Orlando de Carvalho, “o corpus e o animus são interdependentes, sendo que não existe corpus sem animus, nem animus sem corpus. Há uma relação biunívoca (…) Esta relação biunívoca entre o corpus e o animus fundamenta e justifica a presunção do art. 1251.º n.º 2 do Cód. Civil, segundo o qual o animus se presume em quem exerce poderes de facto”.
LXV) Face, pois, aos elementos de prova existentes, bem como os que terão que integrar a rúbrica de factos provados, dúvidas não restam que no caso vertente foi apurado o corpus, ou seja, provado o elemento material, sendo que não havendo prova em contrário, tem que se considerar também existente o elemento psicológico, e, portanto, posse por parte da ré mulher,
LXVI) sendo certo que não serão os factos erroneamente considerados e interpretados na douta sentença recorrida suficientes para afastar o animus, que colocarão em crise toda a demais factualidade dada como provada, e que faz presumir iniludivelmente aquele animus.
LXVII) Em face do exposto, foram, pois, violados por errónea aplicação e interpretação os artigos 615.º n.º al. c) e d), 607.º n.º 4 e 5 do C.P.Civil, 1252.º n.º 2, 1262.º, 1296.º, 1298.º n.º 2 do Cód. Civil, arts 53.º e 54.º do D.L. n.º 48547 de 27.08.1968, Bases II a IV da Lei n.º 2125 de 20.03.1965.
Termos em que e nos mais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao Recurso, e, em consequência:
A) Julgar nula e de nenhum efeito a douta sentença, nos termos do estatuído no art. 615.º n.º 1 al. c) do C.P. Civil, isto porque a decisão e os fundamentos que a alicerçam estão em clara oposição. Ainda que assim não se ajuíze, e também sem prescindir,
B) Julgar nula, por excesso de pronúncia, a douta Sentença Recorrida, nos termos do disposto no art. 615.º n.º 1 al. d) do Cód. Processo Civil, tudo com as legais consequências. Ainda sem prescindir,
C) Revogar-se a douta Sentença, substituindo-se a mesma por uma outra em que, por um lado, se julgue totalmente improcedente o pedido formulado pelo autor ora apelado, dele se absolvendo os réus Recorrentes, e totalmente procedente o pedido reconvencional por estes deduzido (com a correcção da resposta dada à matéria de facto no sentido acima proposto), e nessa sequência reconhecido o direito de propriedade da Apelante mulher sobre o estabelecimento “Farmácia ...”, tendo por base a posse conducente à usucapião com o que se fará inteira e sã Justiça.
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se a decisão recorrida é nula.
ii. Se é necessário conhecer da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
iii. Se estão reunidos os pressupostos que permitam à ré adquirir por usucapião a propriedade da Farmácia ....
III. Nulidades da decisão recorrida:
Os recorrentes defendem que a sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil porque os respectivos fundamentos estão em contradição com a decisão.
Salvo melhor opinião, os fundamentos da decisão não estão em contradição com o dispositivo.
Na acção discutem-se os elementos constitutivos da posse juridicamente relevante para efeitos de usucapião de um estabelecimento comercial, mais especificamente o corpus e o animus. Para o efeito, o tribunal fixou os factos que julgou provados (que constituem a fundamentação de facto da sentença) e depois procedeu à sua qualificação e subsunção jurídica (a fundamentação de direito). Nesta fase o tribunal analisou se os factos provados revelam a existência do animus e concluiu que a excluem, concluindo que não estão reunidos os pressupostos da posse.
Tendo concluído dessa forma e decidido que não ocorreu a aquisição do direito por usucapião, o tribunal estabeleceu um silogismo correcto e retirou a conclusão adequada. Não há, pois, qualquer contradição entre os fundamentos (de facto e de direito) da sentença e o respectivo dispositivo.
Coisa diferente consiste em saber se o tribunal a quo fixou bem a fundamentação de facto ou se procedeu à correcta subsunção jurídica dos factos provados. Todavia, essa análise remete para a figura do erro de julgamento (ao nível dos factos ou ao nível do direito) não para a contradição entre a decisão e os fundamentos.
Quando os recorrentes defendem que por terem sido julgados provados determinados factos é incompreensível que se tenha concluído no sentido da inexistência do animus, estão a suscitar o erro de julgamento, sendo certo que, em tese, tanto pode estar errado o julgamento dos factos atinentes ao animus (a tese dos recorrentes) como o julgamento dos factos de que os recorrentes se querem aproveitar (porque os beneficiam) para declinar a conclusão do tribunal a quo.
Por outro lado, uma coisa é a prática de actos materiais sobre uma coisa e outra a intenção ou a consciência com que eles são praticados, razão pela qual, em tese, não há qualquer contradição entre julgar provados aqueles e não se julgar provada estas. Juridicamente distingue-se a posse da mera detenção precisamente porque os (mesmos) actos materiais podem assumir uma figura ou outra, consoante a intenção ou consciência que lhes subjaz ou a falta dela.
Coisa diferente consiste em saber se perante a vastidão e o significado dos actos materiais que se provaram é possível, do ponto do raciocínio intelectual que orienta a análise da prova (i.e., de acordo com a prova e incluindo nesta as regras da experiência e as presunções naturais), julgar provado que na origem dos mesmos não se encontrou uma certa intenção ou consciência. O que de novo se situa ao nível do erro dejulgamento (em matéria de facto) não importa qualquer contradição lógica entre os fundamentos e a decisão.
Por fim, também não existe contradição, ainda que ligeira como afirmam os recorrentes, entre as alíneas r) e cc) dos factos dados como provados. O que existe é uma repetição parcial do mesmo facto, o que não encerra contradição, revela apenas inutilidade.
Na alínea r) diz-se que «desde 1984, quem comprava e vendia os produtos na farmácia era a … ré». Ao contrário do que os recorrentes parecem supor, a redacção não diz que essa actuação só ocorreu a partir dessa data; diz que a partir dessa data ela ocorreu.
Quando na alínea cc) se afirma entre outras coisas, que «entre 1983 a 2013, foi a ré mulher «quem sempre efectivou todas as compras» para a Farmácia e «contratualizou com todos os demais fornecedores … toda e qualquer prestação de serviço», está-se apenas a repetir o que nessa parte a alínea r) já afirmava, o que não passa de uma repetição inútil, e a acrescentar que isso ocorreu entre 1983 e 2013, ou seja, necessariamente, também desde 1984 (e até 2013), conforme, sem contradição, já resultava da alínea r).
Por outras palavras, a alínea r) não contraria a alínea cc), ela está compreendida nesta, sendo que a alínea cc) tem um âmbito material e temporal mais alargado, mas que absorve totalmente os daquela alínea.
Os recorrentes defendem que a sentença recorrida é ainda nula por excesso de pronúncia (no corpo das alegações falam em omissão de pronúncia, por manifesto lapso).
De novo nos parece evidente que não têm razão. São vícios distintos e sujeitos a regimes diferentes a situação de o tribunal, na sua decisão, levar em consideração factos sobre os quais não tinha poderes de cognição (artigo 5.º do Código de Processo Civil) e a situação de conhecer de questões jurídicas de que não podia conhecer.
Naquele caso, o poder de cognição refere-se aos factosessenciais alegados pelas partes que constituem a causa de pedir ou em que se baseiam as excepções invocadas, os factos complementares ou concretizadores destes, os factos instrumentais e os factos notórios. Neste caso, a referência são as questões jurídicas suscitadas pelas partes ou de conhecimento oficioso que contendem com a apreciação do mérito da causa ou das excepções.
Se o tribunal levar em consideração factos excluídos do seu poder de cognição, a consequência é, havendo recurso, a expurgação desses factos da decisão e a sua reformulação em função da fundamentação de facto aproveitável.
Se o tribunal conhecer de questão jurídica de que não podia conhecer, a consequência é, havendo recurso, a anulação da sentença, eliminando-se da mesma o segmento relativo ao conhecimento da questão que está em excesso, sendo que no caso do recurso de apelação essa anulação nem sequer obriga à devolução dos autos para ser proferida nova sentença no tribunal a quo nem impede a Relação de conhecer do objecto do recurso.
A alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil refere-se claramente a este aspecto, ao mencionar a pronúncia ou o conhecimento de questões, não ao julgamento dos factos.
Acresce que as alíneas t) a v) e primeira parte do ponto w) contém factos que foram alegados nos articulados e que podem constituir factos consubstanciadores da aquisição da propriedade quer do imóvel onde está instalada a Farmácia quer da própria Farmácia enquanto estabelecimento comercial que compreende elementos corpóreos como o espaço onde funciona.
Que isso é assim resultará evidente para os próprios réus se repararem que alteraram o pedido reconvencional (primeiro a propriedade do prédio onde está instalado o estabelecimento, depois a propriedade do estabelecimento) mas mantiveram a causa de pedir de suporte!
Por último, há que referir que a desistência do pedido (em rigor o que sucedeu foi a alteração do pedido quanto ao seu objecto) não equivale a desistência da causa de pedir, razão pela qual a alteração da reconvenção não conduziu à eliminação dos factos alegados nos articulados, conduziu apenas à sua inutilização em caso de falta de interesse para o conhecimento do pedido modificado. Logo, era perfeitamente possível ao tribunal levar em consideração esses factos (alegados) dando-se a circunstância de eles serem (continuarem a ser) relevantes para o conhecimento da reconvenção.
Improcedem assim as nulidades atribuída à sentença.
IV. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Os recorrentes impugnaram a decisão sobre a matéria de facto, cumprindo os requisitos específicos desta impugnação, consagrados no artigo 640.º do Código de Processo Civil.
Como escreve Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7.ª edição actualizada, 2022, pág. 334, nota 526, «é claro que a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto apenas se justifica nos casos em que da eventual modificação da decisão possa resultar algum efeito útil relativamente à resolução do litígio no sentido propugnado pelo recorrente, sendo dispensável nos demais casos em que não interfira de modo algum no resultado declarado pela 1.ª instância (cf. Ac. do STJ de 28-1-20, 287/11, www.dgsipt, e Ac. do STJ de 23-1-20, 472/16, http://jurisprudencia.csm.org.pt).»
Ora, se bem vimos, ainda que alguns dos factos objecto da impugnação devessem ser julgados provados, a qualificação jurídica proporcionada pelos mesmos jamais poderia interferir com a decisão de mérito da acção; ao invés, os factos já provados, cuja decisão não foi impugnada pelos recorrentes e se tornou, por isso, definitiva, conduzem inabalavelmente à improcedência da acção, desfecho que em caso algum aqueles factos poderiam ou poderão impedir ou modificar.
Por esse motivo, abstemo-nos de reapreciar a decisão da matéria de facto relativamente aos factos referidos pelos recorrentes e passamos directamente às questões de direito.
V. Fundamentação de facto:
Na 1.ª instância foram julgados provados os seguintes factos:
a) No dia 9 de Julho de 1995 faleceu DD, no estado de casado, em primeiras e únicas núpcias, com EE, no regime da comunhão geral de bens;
b) Na sequência desse falecimento, os seus herdeiros não procederam à partilha dos respectivos bens;
c) O falecido DD deixou testamento em que lega a quota disponível dos seus bens a favor de sua mulher EE;
d) No dia 10 de Fevereiro de 2011, faleceu EE, no estado de viúva de DD, sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de última vontade;
e) Desse casamento existem 6 filhos, que são os únicos legítimos e universais herdeiros dos falecidos DD e EE, a saber:
- AA (autor) casado com SS, residente na Quinta ..., ..., Albergaria-a-Velha;
- DD, casado com TT, residente na Rua ..., Lugar ..., ... Albergaria-a-Velha;
- BB, casada com CC, residente no Lugar ..., ..., ... Albergaria-a-Velha (réus);
- UU, casado com VV e WW, residente na Rua ..., Lugar ..., ... Águeda;
- II, casado com XX, residente na Avenida ..., ..., ... ...;
- YY, casado com ZZ, residente na Rua ..., ... Bragança.
f) Ainda no tempo em que era vivo, DD e a sua esposa, EE, abriram um estabelecimento comercial denominado “Farmácia ...”, que gira com o número de contribuinte ...;
g) Estabelecimento esse que, embora tendo iniciado a sua actividade em 1952, noutro local, num prédio arrendado em Albergaria-a-Nova;
h) (...) acabou por se fixar definitivamente na Estrada Nacional, ao quilómetro …, no Lugar ..., ... ..., na freguesia ..., concelho de Albergaria-a-Velha, num prédio construído para o efeito, que pertencia à herança recebida pela falecida EE;
i) Estando a referida “Farmácia ...” instalada num prédio urbano de que aquele casal era proprietário, sito no referido Lugar ..., freguesia ..., concelho de Albergaria-a-Velha, composto de casa destinada a farmácia, serviços de previdência e habitação, a confrontar do norte com AAA, do sul com BBB, nascente com Estrada Nacional n.º ... e poente com o próprio, inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo urbano ......;
j) Tal prédio urbano, que faz parte da Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de EE, não se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Albergaria-a-Velha;
k) A mencionada EE, autora da herança, tinha bacharelato em farmácia, sendo ela, além de proprietária, também a directora técnica da mesma farmácia;
l) A falecida EE durante mais de 53 anos (1952 a 2005) nunca esteve inscrita na respectiva Ordem dos Farmacêuticos, o que só veio a suceder em 25 de Julho de 2005 quando o INFARMED, em inspecção ao estabelecimento, detectou tal irregularidade e exigiu a sua inscrição naquela Ordem;
m) O referido estabelecimento “Farmácia ...” encontra-se licenciado pelo alvará número ..., emitido pelo INFARMED em 11 de Dezembro de 1971, a favor da farmacêutica Dr.ª EE, tendo sido sucessivamente renovado em nome da referida EE; a partir de 14 de Fevereiro de 2017, o referido alvará passou a constar, transitoriamente, em comum e sem determinação de parte ou direito, como propriedade dos herdeiros da farmacêutica Dra. EE (Herança Indivisa), com direcção técnica de Dra. CCC;
n) A ré mulher acedeu a tal bem (“Farmácia ...”) em 1983, logo após o términus do estágio profissional de licenciatura em Ciências Farmacêuticas pela Faculdade de Farmácia da Universidade ..., altura em que a mesma passou a residir na habitação existente no mesmo imóvel, e que se situava por cima da farmácia; nessa altura, a farmácia não tinha máquina registadora;
o) Após haver terminado o seu estágio numa farmácia de Matosinhos, à ré mulher foi oferecida a aquisição, neste concelho, de uma farmácia, que causou transtorno ao seu pai (DD) que tudo fez no sentido de a demover de tal aquisição, e chamar para junto de si a filha;
p) Já nessa altura (1983), e até antes, a farmácia aqui em causa estava entregue à administração e gestão exclusiva de um ajudante técnico de farmácia, de nome Sr. DDD, que aí residiu com a sua família;
q) Precisamente no local habitacional que veio posteriormente a ser ocupado pela ré mulher e sua família (após casamento), como local de habitação da ré mulher, o que sucedeu até há 13 anos atrás (de 1983 a 2000);
r) Desde 1984, quem comprava e vendia os produtos na farmácia era a [sua irmã, aqui] ré;
s) A gestão da farmácia era feita pela [sua irmã, aqui] ré, incluindo a relação com os fornecedores;
t) O edifício onde se encontra instalada a “Farmácia ...” tinha uma parte não ocupada pela farmácia e que foi arrendada à ARS - Sub-região de Saúde de Aveiro pelo pai da ré mulher e do autor, por contrato de arrendamento que terminou em 30 de Setembro de 2008;
u) Após, o referido espaço ficou vazio, e a ré mulher pediu à mãe, EE, se a sua filha, EEE, poderia usar essas instalações, tendo pago de Maio a Dezembro de 2009 uma renda mensal de valor simbólico, pois a filha pretendia aí instalar um ginásio, o que se não concretizou;
v) Em Maio de 2013, a ré mulher cedeu gratuitamente a mesma parte do imóvel a um profissional de fotografia, vítima de um incêndio, tendo comunicado essa cedência aos restantes herdeiros, bem como a finalidade da referida cedência;
w) O Imposto Municipal sobre Imóveis relativo ao prédio onde se encontra instalada a “Farmácia ...” era pago pela falecida EE, e os rendimentos decorrentes da actividade desta farmácia englobavam, inicialmente, os rendimentos dos referidos DD e sua mulher EE, e, após a morte do primeiro, os rendimentos da viúva EE no âmbito da liquidação do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, pago pela mesma, sendo que, em momentos temporais não concretamente apurados, o imposto sobre os rendimentos decorrentes da actividade da farmácia foi pago através da conta da farmácia; já a conta de IVA da farmácia era gerida pela ré mulher, mas o imposto era pago com o número de contribuinte da mãe EE;
x) Era a ré mulher quem pagava os consumos de água e electricidade da farmácia, através da conta bancária da farmácia;
y) As cartas dirigidas ao INFARMED, que constituem os documentos n.ºs 9 e 10 da petição inicial foram redigidas pelo réu marido;
z) A assinatura que é imputada à 1ª outorgante no documento (denominado “contrato de trabalho por tempo indeterminado”), sendo segunda outorgante a testemunha HH, documento junto em anexo à acta relativa à 3.ª sessão de julgamento (realizada em 29/11/2023), assinatura essa que se encontra aposta sob o carimbo “Farmácia ...”, pertence à ré BB;
aa) O contrato de trabalho da testemunha GG foi assinado pela falecida EE, embora tivesse sido a ré mulher quem negociou o contrato de trabalho dessa testemunha, sendo que esta prestava contas à ré mulher;
bb) Até ao falecimento da EE, a conta bancária da farmácia foi aberta em 1999, no Balcão do Banco 1... na ..., pela ré mulher, mas em nome de “Farmácia ... De EE”, e tinha o número de conta ..., com o NIB ...; essa conta era solidária, sendo titulares a ré mulher e a autora da herança, EE;
cc) Quem sempre efectivou todas as compras para o estabelecimento aqui em causa, quem contratualizou com todos os demais fornecedores (por exemplo “A...”), toda e qualquer prestação de serviço, quem contratava funcionários, quem pagou os respectivos vencimentos (embora através da conta da farmácia), quem lidava com a Banca, entre 1983 a 2013, foi a ré mulher;
dd) Os réus beneficiavam dos rendimentos da farmácia;
ee) A ré mulher não prestou contas relativas aos rendimentos retirados da actividade da farmácia, com excepção do doc. n.º 2 junto com a oposição apresentada no apenso A (fls. 120 deste apenso);
ff) No interior da farmácia existia uma placa a dizer “propriedade e direcção técnica EE”;
gg) A falecida EE manteve-se como Directora Técnica mesmo após a data em que a ré mulher, ainda solteira, passou a estar à frente dos destinos daquele estabelecimento;
hh) A autora da herança, EE, foi directora técnica da farmácia até ao seu falecimento em 10 de Fevereiro de 2011; a partir dessa data, a direcção técnica da farmácia passou a ser exercida pela testemunha GG;
ii) A ré mulher nunca foi titular do Alvará da “Farmácia ...”, nem exerceu as funções de directora técnica da mesma farmácia;
jj) A ré mulher é hoje proprietária e directora técnica de uma outra farmácia, farmácia 1..., sita em ..., Aveiro, o que acontece desde 2002, sendo que, desde 2013, por intermédio de uma sociedade de que os réus são os únicos sócios;
kk) Para efeito de elaboração da relação de bens necessária à liquidação do imposto de selo, o contabilista FF forneceu ao cabeça de casal um balanço ad hoc que este usou depois perante a repartição de finanças para cumprimento das obrigações fiscais inerentes ao falecimento de EE;
ll) Na primeira reunião com todos os herdeiros, a ré mulher forneceu o balanço da actividade da Farmácia ... à data de 31/12/2010, em conformidade com o doc. n.º 11 da petição inicial;
mm) Em 6 de Abril de 2013, a testemunha FF enviou para o autor a mensagem de correio electrónico que constitui o doc. de fls. 45 destes autos, que a recebeu, dando-se por integralmente reproduzidos os seus dizeres;
nn) A ré mulher era a única farmacêutica da família;
oo) O autor e o outro irmão DD são ambos prestadores de cuidados médicos: o primeiro é médico e o segundo é veterinário;
pp) Os pais da ré mulher e do autor pensaram e destinaram tal estabelecimento (“Farmácia ...”) à ré mulher, sendo que, até à publicação do DL n.º 307/2007, de 31/8 (que revogou a Lei n.º 2125/1965, de 20/3), havia consenso entre os irmãos de que aquela farmácia ficaria para a ré mulher, por partilha;
qq) A autora da herança, EE, passava mais tempo no Colégio ..., onde leccionou, e menos tempo na farmácia;
rr) Foi sempre a falecida EE quem trocava correspondência com o INFARMED, em tudo quanto respeitava à “Farmácia ...”.
VI. Matéria de Direito:
Na sentença recorrida foi decidido que o estabelecimento comercial denominado Farmácia ..., titulado pelo alvará n.º ..., emitido pelo Infarmed em 11 de Dezembro de 1971, faz parte integrante das heranças abertas por óbito de DD e sua mulher EE, e os réus condenados a restituírem à massa das heranças o estabelecimento comercial, com todos os seus pertences.
Por outras palavras, entendeu-se a que a Farmácia ...pertencia aos pais do autor e da ré, entretanto falecidos, e que os réus não possuíam qualquer título válidopara deterem a farmácia, pelo que estavam obrigados a restituí-la à herança.
No seu recurso, os réus pretendem que se altere aquela sentença, decidindo-se agora que a Farmácia ...lhes pertence a eles por a terem adquirido por usucapião. Por outras palavras, os réus aceitam que a farmácia pertenceu aos pais do autor e da ré, mas que esta entrou na posse do estabelecimento e que essa posse tem as características e a duração para lhes permitir adquirir a propriedade por usucapião.
Colocadas as coisas nesta perspectiva, a acção apresenta as características de um verdadeira acção de reivindicação, com a especialidade de ter por objecto um estabelecimento comercial de farmácia.
O artigo 1311.º do Código Civil prevê a acção de reivindicação, estabelecendo que o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
Esta norma tem como justificação o conteúdo legal do direito de propriedade consagrado no artigo 1305º do Código Civil, segundo o qual o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.
Os poderes de uso e fruição que cabem de modo pleno ao proprietário só poderão ser exercidos por terceiro desde que munido de um direito real ou pessoal de gozo com essa amplitude, sendo que uma vez reconhecida a propriedade da coisa, o terceiro só pode obstar à obrigação de a entregar ao proprietário caso demonstre ser titular do referido direito.
Segundo Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, vol. V, 1997, pág. 64 e seg., «a reivindicação é a acção exercida por uma pessoa que reclama a restituição de uma coisa de que é proprietário. A reivindicação funda-se, portanto, na existência do direito de propriedade, e tem por fim a obtenção da coisa. (…). A causa de pedir desta acção é complexa, compreendendo tanto o acto ou facto jurídico de que deriva o direito de propriedade do autor, como a ocupação abusiva do imóvel pelo réu, sendo estes factos que o autor tem de provar para obter a procedência da acção, com condenação nos dois pedidos que deve formular: o do reconhecimento daquele direito e o da restituição da coisa reivindicada, nada impedindo que a esses pedidos se juntem outros, como o de indemnização, se se verificarem os requisitos legais da cumulação».
Também Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. III, pág. 112, afirmam que «a acção de reivindicação (...) é uma acção petitória que tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela».
Para obter a procedência da acção de reivindicação, o autor tem de demonstrar que é o proprietário da coisa reivindicada e que o réu a possui ou detém.
Vigora no nosso sistema jurídico, em sede de direitos reais, a máxima nemo plus iuris in alium transfere potest quam ipse habet. Segundo essa regra, que inspira, por exemplo, o princípio do trato sucessivo do registo predial, ninguém pode transferir para terceiros mais direitos do que tem ou direitos que não tem.
Por efeito do princípio do nemo plus iuris, o reconhecimento do direito de propriedade só pode ser fundamentado em factos constitutivos da aquisição do direito de propriedade e esta, em princípio, só é possível através da demonstração de uma forma de aquisição originária. Querendo ser reconhecido como proprietário, o reivindicante deve fazer a prova dos factos onde radica a aquisição do direito de propriedade, a prova de uma forma de aquisição originária. Em alternativa, o autor pode demonstrar factos a que correspondam presunções de domínio desde que estas não sejam afastadas pela parte contrária (cf. Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 04.02.93, in Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos Supremo Tribunal de Justiça, 1993, I, 137).
Pela via da aquisição originária, para poder obter o reconhecimento do direito de propriedade sobre um imóvel é, portanto, necessário que a parte demonstre que se encontra na posse do imóvel e que essa posse reúne os requisitos necessários (pública e pacífica) e a duração suficiente para permitir a aquisição do direito por usucapião (forma de aquisição originária que se sobreporia a qualquer direito anterior).
Pela via da presunção de titularidade do direito é necessário que a parte demonstre factos aos quais a lei associe esse valor de presunção do direito e que essa presunção não seja ilidida pela parte demandada.
Resulta da matéria de facto que o estabelecimento comercial denominado Farmácia ... foi constituído em 1952 pelos falecidos DD e EE, tendo sido instalado inicialmente por eles num prédio arrendado e depois transferido para um edifício que eles mesmos construíram num prédio rústico que já lhes pertencia. E assim se manteve pelo menos até 1983, ou seja, durante 30 anos. Não há, pois, dúvida, e as partes aceitam-no de forma pacífica, que o estabelecimento comercial de farmácia foi constituído pelos respectivos pais, que eram assim os seus proprietários originários.
A ré alegou que esse direito de propriedade foi transferido para si por doação verbal (com promessa de posterior formalização) dos seus pais e proprietários originários do estabelecimento.
Produzida a prova, a 1.ª instância julgou essa doação não provada, inserindo no elenco dos factos não provados a alínea c) cuja redacção é a seguinte: «Os pais da ré mulher e do autor procederam à doação da dita farmácia à ré mulher, incluindo o imóvel no qual esta se encontrava (e encontra) instalada».
No recurso, os réus não impugnam tal decisão, uma vez que embora impugnem a decisão relativa a essa alínea dos factos não provados, fazem-no somente para reclamar, nas conclusões das alegações, da circunstância de não ter sido provada «a realização de obras interiores e exteriores no estabelecimento» (cf. conclusão 39), depois de no corpo das alegações se referirem a «obras realizadas pelos réus» (artigo 87) e as identificarem como «obras no interior (ao nível do mobiliário, nas antecâmaras, casas de banho, vitrines, adição de um balcão de atendimento aos já existentes no estabelecimento), quer no exterior (vitrines, e pinturas) do estabelecimento (apenas se fala da aquisição de uma máquina registadora)» (artigo 88).
Ainda que no artigo 86 do corpo das alegações os réus digam, por referência a essa alínea dos factos não provados que «(não foi feita prova da doação – falta de escritura), …, mas foi realizada toda a outra prova no sentido de que tal doação ocorreu (ainda que verbalmente) e que por essa via, e por força do decurso do tempo e posse do estabelecimento, este é inequívoca propriedade da apelante mulher», a verdade é que os recorrentes em lado algumespecificaram os meios de prova que poderiam motivar a decisão de julgar provado que o estabelecimento foi doado verbalmente à ré pelos seus pais e também não incluíram nas conclusões qualquer item pedindo à Relação que altere a decisão da 1.ª instância e julgue provado esse facto.
Como a pretensão dos recorrentes é, claramente, obter o reconhecimento da aquisição da propriedade do estabelecimento não por via da doação (nula) mas por via da usucapião, a única questão que se coloca nos autos é a de saber se os réus tinham a posse do estabelecimento comercial (rectius, se os actos materiais que exerceram sobre o estabelecimento possuem características para serem qualificados como de verdadeira posse), se essa posse era pública e pacífica, se essa posse se prolongou pelo tempo suficiente para permitir a aquisição do direito correspondente aos actos de posse por usucapião.
É conhecido que grande parte da doutrina e da jurisprudência tem admitido a posse do estabelecimento comercial (v.g. Acórdão da Relação de Coimbra de 17.10.2017, proc. n.º 235/11.0TBMIR.CI), e até mesmo a usucapião (v.g. Acórdão da Relação do Porto de 26.09.2016, proc. n.º 1248/13.3T2AVR-A.PI), a coberto do argumento de que o «estabelecimento comercial constitui uma verdadeira unidade jurídica, objecto de direito de propriedade sendo como tal susceptível de posse e de reivindicação».
Para o Prof. Orlando de Carvalho, in Direito das coisas: do direito das coisas em geral, Coordenação: Francisco Liberal Fernandes e outros, 1.ª Edição, 2012, pág. 272, «passíveis de posse são todos os bens passíveis de domínio, ou seja, e genericamente, todas as coisas. Na possessio rei, …, só o eram as coisas corpóreas e simples - as res unitae corporales -, mas a sensibilidade dominial evoluiu, e hoje, …, o conceito de coisa estende-se às coisas incorpóreas e complexas (mormente às coisas compostas funcionais, em que se inclui o estabelecimento mercantil). […] o estabelecimento, constituindo um bem incorpóreo, é um bem que assenta num lastro, maior ou menor, de valores ostensivos, ou seja, com relevo jurídico-económico fora do próprio estabelecimento, valores que quase sempre incluem valores materiais, o que torna ainda menos inverosímil o exercício de poderes empíricos sobre o complexo.»
Refira-se, não obstante, que este entendimento não é pacífico, admitindo alguns a tutela possessória apenas por analogia (cf. Menezes Cordeiro, in A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais, 2ª reimp. da 3.ª ed. de 2000, Almedina, 2014, pág. 81) outros negando mesmo a posse do estabelecimento comercial (cf. Durval Ferreira, in Posse e Usucapião, Almedina, 2008, pág. 89-93), e outros aceitando apenas a posse de coisas corpóreas que o integram (cf. Alberto Vieira, in Direitos Reais, 3.ª edição, Almedina, 2020, pág. 508).
Mesmo dando de barato que é possível haver posse sobre um estabelecimento comercial e a essa posse permitir a aquisição da respectiva propriedade por usucapião, a reconvenção, salvo melhor opinião e sem prejuízo de melhor estudo, está votada à improcedência por força de um aspecto jurídico que os réus não sopesaram devidamente.
A razão é a que segue.
Na noção do artigo 1251º do Código Civil, a posse consiste no «poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real».
Segundo o entendimento maioritário o Código Civil consagra a chamada concepção subjectiva da posse, segundo a qual a posse é constituída por dois elementos: o elemento objectivo ou “corpus” e o elemento subjectivo ou “animus” (art. 1251º e 1253º CC). Nessa concepção, tem posse quem exerce poderes de facto correspondentes ao exercício do direito, com a intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa.
Lê-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.06.2009, in www.dgsi.pt, que «a posse, face à concepção adoptada na definição que do conceito dá o art. 1251º do Código Civil, tem de se revestir de dois elementos: o “corpus”, ou seja, a relação material com a coisa, e o “animus”, o elemento psicológico, a intenção de actuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro. A doutrina dominante (Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, III, 2.ª ed., pág. 5; Mota Pinto, “Direitos Reais”, p. 189; Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, 69 e ss; Orlando de Carvalho, RLJ, 122-65 e ss; Penha Gonçalves, “Direitos Reais”, 2ª ed., págs. 243 e ss.) sustenta que o conceito de posse, acolhido nos arts. 1251º e ss., deve ser entendido de acordo com a concepção subjectivista, analisando-se por isso numa situação jurídica que tem como ingredientes necessários o “corpus” e o “animus possidendi” (contra, Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, 1º-563 e ss; Oliveira Ascensão, “Direitos Reais”, 4ªed., págs. 42 e ss.). O “corpus” da posse traduz-se no “poder de facto” manifestado pela actividade exercida por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (arts. 1251º e 1252.º, nº2). Actividade que não carece, aliás, de ser sempre efectiva, pois uma vez adquirida a posse, o “corpus” permanece como que espiritualizado, enquanto o possuidor tiver a possibilidade de o exercer (art. 1257º, n.º1). Quanto ao “animus possidendi”, a sua presença e relevância não poderão ser recusadas quando a actividade em que o “corpus” se traduz pela causa que a justifica, seja reveladora, por parte de quem a exerce, da vontade de criar em seu benefício, uma aparência de titularidade correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real.” – cfr. Abílio Neto, in “Código Civil Anotado”, 15ª edição 2006, pág. 1037.»
Distintos do possuidor são os meros detentores ou possuidores precários, isto é, aqueles que exercem o poder de facto sobre a coisa, mas estão numa situação precária porque, na concepção subjectivista, não actuam com animus possidendi. A ele se refere o artigo 1253.º do Código Civil.
Os possuidores precários são, desde logo, os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito. Incluem-se aí aqueles exercem actos materiais sobre a coisa no exercício dos poderes que lhe foram confiados pelo titular de um direito de gozo, ao abrigo de um contrato de trabalho, de um contrato de prestação de serviços ou de outra relação jurídica estabelecida com aquele titular e cujo conteúdo compreenda a prática desses actos.
Depois, são possuidores precários aqueles que simplesmente se aproveitam da tolerância dotitular do direito, seja por razões de convívio, vizinhança, cortesia ou amizade.
Por último, aqueles que actuam sobre a coisa na qualidade de representantes ou mandatários do possuidor e, sempre, aqueles cuja actuação é exercida em nome de outrem.
Nesta última situação contam-se os representantes, cuja actuação é imputada ao representado, o possuidor, mas também os comissários, em particular os trabalhadores subordinados, os procuradores, os gestores de negócios (gestão representativa) ou os mandatários (com representação), que exercem o poder de facto no cumprimento de um dever legal ou contratual.
A posse pode ser adquirida de várias formas, havendo consenso de que a lista de formas de aquisição prevista no artigo 1263.º do Código Civil não é taxativa, nem exclui outras formas de aquisição da posse.
Orlando de Carvalho, loc. cit., pág. 289 e seguintes distingue entre as formas de aquisição originária e as formas de aquisição derivada, dizendo que as primeiras são aquelas «em que a posse do adquirente surge ex novo na esfera de disponibilidade empírica do sujeito, porque não depende geneticamente de uma posse anterior (nem quanto à existência, nem quanto ao âmbito ou conteúdo, nem quanto à extensão ou área de incidência); depende apenas do facto aquisitivo (que integram, como se sabe, um corpus e um animus). Mesmo que uma posse anterior tenha existido (corno acontece em todos os casos de usurpação), a posse do adquirente não provém dela, não tem causa nela, mas adquire-se contra ela ou apesar dela».
Entre essas formas, o Prof. inclui o que designa por usurpação, figura que abarca «todas as formas de aquisição originária de posse contra a vontade [do] possuidor» (sublinhado nosso), compreendendo a prática reiterada ou aquisição paulatina prevista na alínea a) do artigo 1263.º como a prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito», a inversão do título de posse e o esbulho.
A propósito da inversão do título de posse, o Prof. afirma que se trata «da conversão de uma detenção em posse por acto do próprio detentor. Alguém que exerce poderes de facto sobre uma coisa com simples animus detinendi (detentor ou possuidor precário) converte a sua detenção em verdadeira posse, passando a agir com animus possidendi ou verdadeiro animus. Trata-se de um processo fundamentalmente psicológico (conversão de animus em animus, ou substituição de um animus por outro), ainda que com referência jurídica. […] trata-se da substituição psicológica da razão a cujo título se exercem esses poderes, ou, com alguma elipse (e alguma incorrecção), do título pelo qual se possui (rectius: do título pelo qual se actua, antes detendo e depois possuindo). […] É uma forma de aquisição originária e instantânea de posse, Originária porque a posse antecedente apenas precede, mas não causa, a posse do inversor – que, ao invés, se adquire apesar dela e contra ela. Instantânea porque se adquire uno actu, quer dizer, no preciso momento em que se verifica o processo de inversão. Este tem … dois pressupostos: que o inversor já esteja antes numa situação de detenção - que exerça sobre a coisa uma autoridade empírica que lhe permita modificar a razão pela qual actua e actuar, em termos dessa nova razão, sobre a mesma coisa (seja uma mera detenção fundada em título jurídico, ou em simples tolerância ou em acto facultativo); que passe a agir (ou melhor: que o seu processo psicológico configure um agir) em termos de um direito real, ou de um direito real mais denso do que aquele em termos do qual agia, e essa intenção seja não só inequívoca como sindicável.»
Conforme é referido na obra colectiva Comentário ao Código civil: direito das coisas, coord. [de] Henrique Sousa Antunes, Universidade Católica Editora, 2021, pág. 27, «para que o detentor se transforme em possuidor terá de haver uma inversão do título da posse, seja através da sua oposição ao titular do direito ou acto de terceiro capaz de transferir a posse (artigo 1265.º). A passagem de detentor a possuidor poderá também decorrer da traditio brevi manu, mas aqui obtendo o acordo do possuidor anterior …».
É o que resulta do disposto no artigo 1290.º do Código Civil ao estabelecer que «os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título».
Para haver inversão do título de posse não basta que o detentor se passe a considerar, em nome próprio, titular do direito correspondente à actuação exercida sobre a coisa, que tenha havido da sua parte a intenção de inverter o seu título. É necessário que essa relação subjectiva com a coisa se tenha traduzido numa actuação concreta, em actos materiais ou jurídicos, inequivocamente reveladores da alteração de posição, e que essa actuação tenha sido direccionada contra a pessoa em nome de quem detinha, através de actos públicos dele conhecidos ou cognoscíveis.
Segundo Bonifácio Ramos, in Manual de Direitos Reais, 3.ª edição, 2022, pág. 218 a inversão do título da posse, numa das suas modalidades, consiste na oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía, mas «a oposição não pode prefigurar um mero autoconvencimento ou vontade, vagamente manifestada no exercício de alguns actos materiais. Nem pode representar uma actuação representativa de uma oposição implícita ou indirecta, mas, ao invés, deve significar uma actuação que indique ao titular do direito, a mudança de modo inequívocos. Só assim terá lugar a correspondente aquisição possessória. Configuremos a seguinte hipótese: A herdou um terreno … e permitiu que B o agricultasse, em troca de uma quantia monetária simbólica, apenas no intuito de não o deixar inculto e por cultivar. Como tal, se B, depois de vários anos na situação de detentor, deixar de pagar a quantia acordada ou, se declarar, na aldeia vizinha, que, a partir de um determinado momento, é o proprietário do terreno, nem num caso nem noutro, haverá aquisição da posse, por inversão do título a favor de B. Isso também não sucede se a detenção se prolongar além do prazo que havia sido estipulado ou o detentor alienar a coisa a terceiro. Neste último caso, cumpre sublinhar que o detentor nada adquire, nada inverte, mas, ilicitamente, entrega a coisa a outrem. Algo diferente, configurando uma directa oposição do detentor, seria o caso de B informar A, por escrito, que se considera o verdadeiro titular do direito de propriedade sobre o terreno. Aí, perante a oposição directa, B adquiria, não a titularidade, mas a posse por inversão do título. Ou seja, se o detentor informar a pessoa, em nome de quem possuía, de modo judicial ou extrajudicialmente, da sua oposição, da intenção de agir como titular do direito, deve fazê-lo de modo sério e credível, de modo a permitir uma reacção atempada por parte do titular do direito.»
Também Menezes Leitão, in Direitos Reais, 2022, 10ª edição, pág. 140, assinala que na inversão do título de posse «o detentor pratica actos que contradizem a situação de estar a possuir em nome alheio, opondo-se assim à posse daquele em cujo nome possuía. Tal basta para adquirir ele mesmo a posse, cabendo ao anterior possuidor reagir contra o esbulho da sua posse. A inversão do título da posse terá que resultar de actos que indiciem inequivocamente que o detentor quer doravante passar a possuir em nome próprio, não se podendo inferir essa inversão de simples omissões. Assim, a cessação da relação de administração de bens alheios (v.g. mandato ou tutela), sem que a coisa seja restituída não implica a inversão do título da posse. Da mesma forma, o facto de o arrendatário não pagar as rendas não constitui inversão do título. Mas já constituirá inversão do título o facto o arrendatário comunicar ao proprietário de que a razão por que paga as rendas resulta de ter passado a considerar-se a ele próprio como proprietário».
No Comentário ao Código civil: direito das coisas, cit., pág. 54, afirma-se que «na inversão do título, o detentor exerce já o poder de facto sobre a coisa, mas exerce a posse em nome de outrem, o verdadeiro possuidor. Existe, portanto, uma causa que lhe permite exercer o corpus sobre a coisa, sem, no entanto, se poder falar em posse. Essa causa pode constituir, por exemplo, um direito real limitado ou um direito pessoal de gozo. Sucede que, essa causa vai ser alterada, mostrando a intenção do antes detentor, agora possuidor, em agir como titular do direito. Existe, pois, um facto que permite, sem margem para dúvidas, concluir pela aquisição de animus que, assim, se junta ao corpus já existente. Apenas a partir desse momento poderá começar a contagem do prazo para usucapião (artigo 1290.º)».
Mais à frente acentua-se que a oposição do simples detentor ou possuidor em nome alheio (artigo 1253.º, al. c)] ao anterior possuidor ou titular do direito real «deve ser expressa em actos concludentes, ou seja, que permitem, com segurança, perceber a vontade do anterior detentor em alterar o título da sua posse [assim Ac. STJ 13.10.2020 (439/18.5T8FAEG1.S1]. Alguma doutrina exige que esses actos incluam declaração expressa e comunicada ao anterior possuidor [também no Ac. STJ 12.03.2015 (3566/06.STBVFX.Ll.S2) se parece exigir que a oposição do detentor seja «levada ao conhecimento» da contraparte]. De facto, não basta o incumprimento do acordo inicial, pois esse incumprimento deve ser resolvido no âmbito obrigacional e não real (p. ex, arrendatário deixa de pagar as rendas). Também é certo que se essa declaração existir não podem restar dúvidas sobre a real intenção do detentor (p. ex., arrendatário deixa de pagar rendas, comunicando ao senhorio que se considera proprietário do imóvel e pretende ficar com o mesmo para si). Mas a declaração expressa não parece ser requisito indispensável da inversão do título da posse, nem resultar inequivocamente da lei. Parece que pode ser substituída por factos materiais ou jurídicos concludentes [Ac. STJ 17.12.2014 (1313/11.1 TBCTB.C1.S1)]. Assim, no Ac STJ 16.07.2009 (663/2002.L1-8), considerou-se existir inversão do título da posse por parte de um inquilino que deixou de pagar a renda, construindo uma casa no terreno em apreço, colocando um portão no mesmo e impedindo a entrada dos proprietários. Também no Ac. STJ 09.02.2012 (3208/04.6TBR.L1.S1), Se defendeu que a inversão do título da posse pode fundar-se numa «contraposição ostensiva revelada por atitudes ou comportamentos que evidenciem uma posição antinómica àquela que até esse momento era típica».»
Pires de Lima e A. Varela, in Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., com a colaboração de M. Henrique Mesquita, 2010, pág. 30, sustentam que «a inversão do título da posse (a chamada interversio possessionis) supõe a substituição de uma posse precária, em nome de outrem, por uma posse em nome próprio. A uma situação sem relevo jurídico especial vem substituir-se uma posse com todos os seus requisitos e com todas as suas consequências legais. A inversão pode dar-se por dois meios: por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía, ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse. O caso mais corrente é o do arrendatário que, em certo momento, se recusa a pagar as rendas com o fundamento de que o prédio é seu. Torna-se necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía. Nesse sentido pode dizer-se que ainda se mantém a regra nemo sibi causam possessionis mutare potest. Não basta sequer que a detenção se prolongue para além do termo do título (depósito, mandato, usufruto a termo, etc.) que lhe servia de base. O detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía (quer judicial, quer extrajudicialmente) a sua intenção de actuar como titular do direito.»
Por fim, Rui Pinto e Cláudia Trindade, in Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.), vol. II, 2ª edição, 2020, págs. 47 e 48, escrevem que «o acto de oposição traduz-se em o possuidor em nome alheio exprimir a sua intenção de deixar de representar na posse o representado e passar a agir como beneficiário do direito. Por outras palavras, declara um animus possidendi. […] A grande maioria da doutrina exige que essa oposição seja expressa e comunicada ao antigo possuidor, ou seja, consista numa declaração de vontade dirigida ao possuidor, não bastando actos de incumprimento do acordo, como deixar de pagar rendas. Esta interpretação tem a seu favor proteger melhor todo o sujeito que coloca outro a tomar conta de coisa sua. Concordamos em que tem de haver uma declaração expressa: parece-nos que não basta deixar de cumprir obrigações contratuais – não pagar a renda de casa – ou praticar actos materiais que o contrato não exigiria ou não permitiria – fazer benfeitorias voluptuárias. É que tais comportamentos são significativos do ponto de vista obrigacional, mas não necessariamente do ponto de vista real. O sujeito pode achar que tem o direito de não pagar a renda em questão ou que pode fazer a obra voluptuária.»
Também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-03-2014, proc. nº 3325/07.0TJ VNF.P1.S2, in www.dgsi.pt, se defende que «III- Quem exerce a posse em nome alheio só poderá adquirir o direito de propriedade se entretanto ocorrer a inversão do título da posse, nos termos dos arts. 1265 e 1290 do CC. IV- A eficácia da oposição referida no art. 1265 do CC depende da prática de actos inequivocamente reveladores de que o detentor quer actuar, a partir da oposição, como titular do direito sobre a coisa. V- A oposição deve, além disso, ser dirigida contra a pessoa em nome de quem o opositor detinha a coisa e tornar-se dela conhecida».
Identicamente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.6.09, proc. n.º 240/03.0TB RMR.S1, in www.dgsi.pt,), defendeu que «Os que exercem a posse em nome alheio só podem adquirir o direito de propriedade se ocorrer inversão do título de posse (“interversio possessionis”) - art. 1263º d) do Código Civil - ou seja, se, a partir de certo momento, passarem a exercer o domínio, contra quem actuava como dono, com a intenção, agora, de que o oponente actua, inequivocamente, como titular daquele direito; […] - Não basta a mera alegação de que houve intenção de inverter o título de posse e afirmar que essa intenção foi plasmada na actuação dos detentores precários; importa, isso sim, que essa “inversão”, inequivocamente, seja direccionada contra a pessoa em nome de quem detinham, através de actos públicos deles conhecidos, ou cognoscíveis, sob pena de tal actuação não ter relevância jurídica, porque desconhecida daqueles que poderiam reagir a essa proclamada inversão do título possessório, o que seria de todo violador das regras da boa-fé; - Tal como a posse relevante para usucapião, a par de outros requisitos, deve ser pública, também a oposição exercida pelo detentor precário tem de ser ostensiva em relação àquele em nome de quem possuía, sendo que, como observa Orlando de Carvalho, in “Introdução à Posse”, RLJ, Ano 123º, nº 3792 (1990-1991), a respeito da posse pública, esta não deixa de ser pública quando não é propriamente conhecida de toda a gente, é-o acima de tudo, quando é conhecida do interessado directo ou indirecto – “trata-se de uma relação mais com o próprio interessado do que com o público em geral”.» (no mesmo sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-03-2018, proc. n.º 2723/04.6TBBRR.L1.S1, in www.dgsi.pt).
Em relação à traditio brevi manu diz-se no Comentário ao Código Civil: direito das coisas, cit., pág. 51, que, ao contrário do apossamento, estamos na presença de «uma aquisição derivada, sendo a tradição operada através do concurso com a vontade do anterior possuidor. A generalidade da doutrina é da opinião do que a posse não se transmite por mero efeito do negócio. Sendo essa a realidade para o direito real, por força do princípio da consensualidade (artigo 408.º, n.º1), a transmissão da posse implicaria uma formalidade adicional, ou seja, a tradição da coisa». Mais à frente, afirma-se que a traditio brevi manu «verifica-se sempre que o detentor adquire a posse do anterior possuidor, através de um contrato aquisitivo do direito. A transmissão da posse resulta como efeito jurídico do negócio celebrado entre possuidor e detentor, invertendo-se o título do corpus deste. Passa de detentor a possuidor (p. ex, senhorio vende o prédio arrendado ao arrendatário). É uma operação de sinal contrário ao constituto possessório previsto no artigo 1264.º, n.º 1. Por outro lado, assume a mesma função da inversão do título da posse, permitindo ao detentor converter-se em possuidor. No entanto, enquanto nesta a conversão se faz independentemente ou mesmo contra o anterior possuidor, a traditio brevi manu exige sempre acordo de vontades com o anterior possuidor».
A ré aceita que o estabelecimento comercial pertencia aos seus pais (cf., entre muitos outros, o artigo 5.º da contestação), que foram eles que o constituíram em 1952 e exploraram durante décadas, estando o alvará indispensável ao respectivo funcionamento em nome da mãe da ré que figurava como Directora Técnica do estabelecimento perante o organismo público de tutela do sector.
Em 1983, depois de concluir a sua formação académica em Farmácia, a ré «acedeu» ao estabelecimento (a expressão vaga é sua e foi transposta como tal para a matéria de facto) e «passou a estar à frente dos destinos daquele estabelecimento» (facto gg). Nessa data, e até antes, a administração e gestão exclusiva da Farmácia era feito por pessoa contratada pelos pais da ré (o Sr. DDD, facto p), que terá depois abandonado essas funções e deixado mesmo de habitar a casa por cima do estabelecimento igualmente pertencente aos pais do autor e da ré, tendo esta assumido a gestão e administração exclusiva da Farmácia ... e passado a habitar nessa casa quando se casou (facto q).
Nesse contexto, é forçoso concluir que a relação da ré com o estabelecimento comercial começou por ser de mera detenção ou possuidora precária. Nessa altura a ré sabia (não podia deixar de saber) que o estabelecimento não lhe pertencia, que pertencia sim aos pais, e que estava a gerir o estabelecimento em virtude da autorização que os pais lhe davam para o fazer, mediante um salário.
Como a ré era, nessa altura, mera detentora do estabelecimento comercial dos seus pais, alegadamente com a promessa destes de lhe doarem formalmente o estabelecimento, para que a sua relação com a coisa passasse a constituir uma situação de verdadeira posse e já não de mera detenção, era necessário, como vimos, que ocorresse a inversão do título de posse (artigo 1290.º do Código Civil) ou a chamada traditio brevi manu.
Excluída a demonstração de que os pais da autora celebraram com esta qualquer contrato translativo do direito, ainda que inválido por vício de forma, designadamente o contrato de doação que a ré alega de forma equívoca (finais de 1982/inícios de 1983) e falando ao mesmo tempo em doação (verbal) e promessa de doação (por instrumento público), e pretendendo que esta promessa já seria a doação (o contrato prometido), está afastada a possibilidade de a conversão de detentora em possuidora ter ocorrido por traditio brevi manu.
Por outro lado, em momento algum da sua contestação a ré alegou qualquer facto que possa ser visto como uma situação de inversão do título de posse. Ao invés são vários os factos que revelam que a mesma, independentemente dos motivos, manteve o estabelecimento na titularidade e sob a direcção técnica da mãe, como continuou a pedir a esta que assinasse os documentos que necessitavam de ser assinados e apresentados pelo titular do estabelecimento comercial. Não foi, pois, sequer alegado, nem ficou provado, qualquer facto que possa traduzir ou ter o significado de uma inversão do título de posse.
Refira-se que até ao Decreto-Lei n.º 307/2007, de 31 de Agosto, o regime jurídico das farmácias restringia a propriedade das farmácias exclusivamente a farmacêuticos, situação que fomentou, ao longo do tempo, a criação de situações fictícias em relação à propriedade uma vez que esta só podia ser transmitida entre farmacêuticos, ou seja, situações em que o real proprietário da farmácia era um não farmacêutico, mas para efeitos formais a propriedade era titulada por um farmacêutico que era remunerado pelo proprietário só para figurar nos documentos oficiais com essa qualidade, que acumulava com a qualidade de Director Técnico face ao regime de indivisibilidade da propriedade e da direcção técnica da farmácia.
No caso, contudo, a ré não só era filha da proprietária e Directora Técnica da farmácia como tinha a habilitação académica de farmacêutica (era mesmo o único filho dos proprietários com essa formação académica!). Não havia, pois, impedimento de ordem legal a que os pais transferissem para ela a propriedade da farmácia, obtendo ela o respectivo alvará e a Direcção Técnica, até porque, segundo alegou, só em 2002, se tornou sócia de uma sociedade comercial em cujo activo social se compreende uma farmácia, e, portanto, até essa data não existia o impedimento à aquisição da propriedade da farmácia dos pais que adviria de já ser proprietária de outra, impedimento que acabou com aquele regime jurídico.
Desde modo, face à ligação da ré à Farmácia e aos respectivos proprietários que lhe permitiram «aceder» à mesma, não tendo sido demonstrado que a Farmácia foi doada à ré pelos respectivos proprietários e excluída, em consequência, a aquisição da posse por traditio brevi manu, e não tendo sido sequer alegado qualquer facto tendente a demonstrar a inversão do título de posse da ré, é forçoso concluir que a ré não demonstrou ter posse sobre a Farmácia, rectius, que os seus actos materiais sobre o estabelecimento comercial importem uma situação de verdadeira posse passível de permitir a aquisição da propriedade do estabelecimento por usucapião.
Refira-se que nada disso se alteraria ainda que se provasse que a ré «sempre entendeu como seu o estabelecimento», que o IRS proveniente do rendimento do estabelecimento liquidado a cargo da mãe EE foi sempre pago pela conta da Farmácia, que a ré não prestou nunca contas dos rendimentos do estabelecimento, que era a ré e o marido que redigiam as cartas que depois eram assinadas pela mãe EE na “qualidade de proprietário” do estabelecimento.
Com efeito, nada disso obsta a que nos termos legais, para haver posse juridicamente relevante para efeitos de usucapião, esse «entendimento» e essa «actuação material» tivesse de estar associada a uma inversão do título de posse (como vimos, não alegada sequer) ou à traditio brevi manu (excluída, uma vez não demonstrada a transmissão do direito sobre o estabelecimento que consentiria, perante a prática de actos materiais sobre o estabelecimento, a transmissão derivada da posse).
Em conclusão, o recurso improcede.
VII. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Custas do recurso pelos recorrentes, os quais vão condenados a pagar ao recorrido, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos.
*
Porto, 10 de Outubro de 2024.
*
Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 852)
Isabel Silva
Ana Luísa Loureiro
[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]