ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
BENS COMUNS DO CASAL
INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES
Sumário

I. O processo de divisão de coisa comum é o meio próprio para o ex-cônjuge dividir o património adquirido em compropriedade por ambos os consortes no decurso de casamento sujeito ao regime da separação de bens, entretanto dissolvido por divórcio;
II. O processo de inventário subsequente a divórcio está reservado aos casos em que o regime de bens do casamento foi o da comunhão geral ou o da comunhão de adquiridos, nos quais cada cônjuge se constitui titular de um direito de meação sobre a universalidade dos bens comuns;
III. A compropriedade de bens adquiridos pelos cônjuges na pendência do casamento é uma realidade neutra relativamente à faculdade de utilizar o processo de inventário para separação de meações, na medida em que, se por um lado não consente o recurso a tal meio processual, por outro não impede que os cônjuges o utilizem, se tiverem estado casados num regime da comunhão e houver património comum a partilhar.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Apelação n.º 150/23.5T8EVR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo Local Cível de Évora – Juiz 2

*
***
Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)
Acordam os Juízes na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo
Relator: Ricardo Miranda Peixoto;
1.º Adjunto: Filipe César Osório; e
2.º Adjunto: Francisco Xavier.
*
***
I. RELATÓRIO
*
A.
Veio (…), na presente acção especial de divisão de coisa comum proposta contra (…), pedir que seja decretada a divisão dos bens imóveis detidos em compropriedade pelo Autor e pela Ré, designadamente o imóvel designado por “Monte da (…)” e a loja que corresponde à fracção “A” do n.º 50 da Rua (…), em Évora e, bem assim, os bens móveis que constituem o recheio da Herdade da (…), sita na Estrada Nacional (…), Évora.
Para tanto, alega que:
- contraiu com a Ré casamento civil no dia 27 de Junho de 2003, sujeito ao regime da separação de bens, matrimónio extinto por divórcio decretado a 11.05.2021 por convolação dos autos de divórcio sem consentimento instaurados a 08.05.2020 que correram termos sob o n.º 707/20.6T8EVR, no Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de Évora;
- Autor e Ré não procederam à divisão dos seguintes bens de que o dissolvido casal é comproprietário: o imóvel designado por “Monte da (…)”, sito na Estrada Nacional (…), Évora, destinado a habitação própria e permanente do Autor e da Ré, adquirido na proporção de metade para cada um por escritura pública de compra e venda outorgada a 22 de Julho de 2016, sobre o qual se encontra registada uma hipoteca a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL para garantia do crédito no montante inicial de € 450.000,00 concedido ao Autor e à Ré para a respectiva aquisição do imóvel, actualmente no valor de € 380.554,00; - os móveis que constituem o recheio da casa de morada de família, sita no “Monte da (…)”, adquiridos ao longo de 20 anos de vivência em comum; e o imóvel correspondente à fracção “A” do n.º 50 da Rua (…), sobre o qual recai uma hipoteca a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de (…), CRL para garantia do crédito no montante inicial de € 30.000,00 concedido ao Autor e Ré para a sua aquisição, actualmente, no valor de € 10.723,00.
- no âmbito dos referidos autos de divórcio foi atribuído à Ré o uso e fruição da casa de morada de família até à sua divisão, obrigando-se a mesma, em contrapartida da sua utilização, ao integral pagamento dos encargos à mesma referentes, nomeadamente, as prestações do crédito hipotecário e seguros associados.
*
B.
Contestou a Ré, impugnando a compropriedade dos bens móveis e imóveis objecto do pedido e excepcionando o abuso de direito e o enriquecimento sem causa.
Formulou um pedido reconvencional, pedindo que os autos sejam convolados para a forma de processo comum e, por consequência, seja admitido o pedido reconvencional da Ré, visando:
“i. A declaração de nulidade parcial da escritura pública de aquisição, outorgada em 31-07-2015, para a Loja de Évora, melhor identificada no ponto 8 da Petição Inicial, e a declaração de nulidade, da escritura pública outorgada a 22-07-2016, para o Monte da (…), melhor identificado no ponto 4, da Petição Inicial, e consequente eliminação da inscrição da propriedade de ambos os imóveis a favor do Autor;
ii. A condenação do Autor a reconhecer a propriedade exclusiva da Ré, sobre os bens imóveis supra identificados;
iii. A condenação do Autor a reconhecer a propriedade exclusiva da Ré, sobre todos os bens móveis, à exceção dos elencados nas verbas melhor identificadas nos pontos 134 e 135 e 136 da presente Contestação.”
Subsidiariamente, a condenação do Autor:
“iv. A reconhecer que as obras do Monte da (…), foram realizadas e integralmente pagas pela Ré, não podendo ser retiradas do prédio, sob pena da sua desvalorização ou destruição, e que constituem benfeitorias necessárias, destinadas a evitar a deterioração do imóvel, e benfeitorias úteis que são causa de aumento do atual valor de mercado do bem;
v. A pagar à Ré, a quantia equivalente a 50%, do atual valor de mercado dos bens imóveis, cujo montante será apurado através de perícia, correspondente ao enriquecimento sem causa do Autor, pelo facto de não ter contribuído quer na aquisição, quer na valorização dos imóveis.”
Subsidiariamente:
“vi. Deve ser condenado o Autor, a pagar à Ré, metade do montante já despendido por esta com a aquisição dos imóveis, aqui se compreendendo as prestações bancárias pagas, despesas de notários, registos, impostos e todas as que tenham sido efetuadas por conta da aquisição dos mesmos, bem como condenado no pagamento de metade de todos os valores que a Ré ainda venha a suportar com os imóveis, até ao trânsito em julgado da decisão que vier a recair sobre os presentes autos, tudo acrescido de juros.
vii. A reconhecer que as obras do Monte da (…), foram realizadas e integralmente pagas pela Ré, não podendo ser retiradas do prédio, sob pena da sua desvalorização ou destruição, e que constituem benfeitorias necessárias, destinadas a evitar a deterioração do imóvel, e benfeitorias úteis que são causa de aumento do atual valor de mercado do bem.
viii. A reconhecer que valorização do imóvel, na medida decorrente das obras realizadas e pagas pela Ré, pertence totalmente e exclusivamente à Ré, ficando o Autor apenas com direito a metade do valor do imóvel sem as obras e a valorização inerente à sua realização.”
E ainda subsidiariamente:
“i. Deve ser condenado o Autor, a pagar à Ré, metade do montante já despendido por esta com a aquisição dos imóveis, aqui se compreendendo as prestações bancárias pagas, despesas de notários, registos, impostos e todas as que tenham sido efetuadas por conta da aquisição dos mesmos, bem como condenado como no pagamento de metade de todos os valores que a Ré ainda venha a suportar com os imóveis, até ao trânsito em julgada da decisão que vier a recair sobre os presentes autos, acrescido de juros.
ii. Deve ser condenado o Autor a pagar à Ré o montante de € 139.222,765 euros, equivalente a metade do valor já despendido com a realização de obras e manutenções nos imóveis, bem como ainda metade do valor que a Ré ainda tenha de vir a despender com manutenções ou beneficiações necessárias com o imóvel, tudo acrescido de juros.”
*
C.
Replicou o Requerente.
*
D.
Em cumprimento de despacho judicial proferido a 22.01.2024, foram as partes notificadas para se pronunciarem sobre a existência de eventual erro na forma do processo ou no meio processual, bem como, a eventual incompetência material do Juízo Local Cível de Évora, tendo-se pronunciado por requerimentos de 07.02.2024 (o Requerente) e de 08.02.2024 (a Requerida).
*
E.
Com data de 03.04.2024 foi proferida decisão que julgou verificada a excepção dilatória de erro na forma do processo e, nessa sequência, absolveu a Requerida da instância.
*
F.
Inconformado com o assim decidido, o Autor interpôs o presente recurso de apelação.
Concluiu as suas alegações nos seguintes termos (transcrição, mantendo as referências em itálico da origem):
“(…)
V. A adequação do meio processual interposto pelo Recorrente decorre do facto do dissolvido casal ter sido casado sob o regime da separação de bens, o que afasta desde logo a aplicação dos preceitos legais relativos à ação especial de inventário, pelo que sempre seria incompetente o Juízo de Família e Menores nos termos do n.º 2 do artigo 122.º da LOSJ.
VI. Atendendo ao disposto nos artigos 546.º do CPCivil e 117.º e 130.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, a competência para a tramitação e julgamento das acções de divisão de coisa comum incumbe aos Juízos Locais Cíveis e não aos Juízos Centrais Cíveis, independentemente do respetivo valor.
VII. Tratando-se nos presentes autos de um património em compropriedade, ou seja, que não faz parte do acervo patrimonial da comunhão conjugal, atendendo ao regime de separação de bens do casamento do dissolvido casal, a cessação da mesma apenas pode operar através de ação de divisão de coisa comum.
VIII. Sendo homóloga a causa de pedir, in casu, a indivisibilidade do património em compropriedade e não património comum, são, contudo, distintas as posições subjetivas dos intervenientes.
IX. Encontrando-se preenchidos os pressupostos do direito a exigir a divisão de coisa comum previstos no n.º 1 do citado artigo 1412.º, a cessação da compropriedade opera com o recurso à ação de divisão de coisa comum, a qual constitui assim o meio processual idóneo para o efeito, inexistindo, assim, erro na forma do processo.
X. “Só não poderá haver lugar a este inventário, com tal abrangência, se o regime de bens do casamento for de separação (artigo 1404.º, n.º 1, in fine), sendo que neste caso, se houver bens em compropriedade, é que terá de recorrer-se a ação de divisão de coisa comum [este sentido Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, III, 3.ª ed., pág. 346 e Abel Pereira Delgado, in O Divórcio, 1980, pág. 101].
Aliás, refira-se que,
XI. A competência deste Juízo Local foi desde logo determinada 7.02.2023 por Despacho do Juiz 4 do Juízo Central Cível e Criminal de Évora, proferido nos autos que correram termos sob o número 80/23.0T8EVR (refª citius 32624835) e, no qual por lapso, havia sido instaurado o arrolamento em 12.01.2023, que julgou incompetência material deste último:
“(…) intentou acção especial de divisão de coisa comum contra (…), pedindo que seja decretada a divisão dos bens imóveis detidos em compropriedade por ambos, designadamente o imóvel designado por “Monte da (…)”, e a loja que corresponde à fração ‘A’ do n.º 50 da Rua (…), em Évora, e a divisão dos bens móveis que constituem o recheio da Herdade da (…), sita na Estrada Nacional (…), Évora.
Atendendo ao disposto nos artigos 546.º do CPCivil, e 117.º e 130.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, a competência para a tramitação e julgamento das acções de divisão de coisa comum incumbe aos Juízos Locais Cíveis e não aos Juízos Centrais Cíveis.
XII. No caso em apreço, por força do regime de separação de bens do dissolvido casal, fica afastada a ratio que determinaria a apensação daqueles autos de arrolamento aos autos de divorcio sem mútuo consentimento, pelo não tem competência o Tribunal de Família e Menores para dirimir as atuais as questões patrimoniais, uma vez que inexiste património comum, mas sim em compropriedade.
XIII. Em resposta da Recorrida a convite por Despacho 22.01.2024 para se pronunciar sobre a adequação do meio processual, afirma de forma eloquente que a “Ora a Requerida, com o elevadíssimo respeito que sempre nos merecerá a douta opinião do Tribunal, não acompanha este entendimento. As partes intervenientes nos presentes autos foram casados, no regime da separação de bens, tendo o seu casamento sido dissolvido em 11.05.2021, após ter sido decretado o divórcio (processo n.º 707/20.6T8EVR que correu termos pelo Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de Évora)”.
XIV. Mais referiu a Recorrida que, o seu entendimento assume acolhimento legal acrescentando que “No regime de separação de bens entre cônjuges, não há bens comuns, mas apenas bens próprios e bens em compropriedade, conforme resulta da definição que nos é dada pelo artigo 1735.º do Código Civil. Consagrando-se no n.º 2 do artigo 1736.º do Código Civil uma presunção de compropriedade, em caso de dúvida quanto ao titular de determinado bem”.
XV. Conclui a Recorrida que “salvaguardando o devido respeito por melhor e mais douta opinião, não se aplica à presente relação material controvertida o processo de inventário, afigurando-se correta a forma de processo empregue e a competência deste Juízo Local Cível”.
XVI. Até porque a Recorrida aceitou tacitamente a adequação processual, ao apresentar nos presentes autos reconvenção, com fundamento num crédito a seu favor a título de cumprimento de prestações bancárias responsabilidade do Recorrente e alegadas benfeitorias realizadas no imóvel objeto do património em compropriedade com o Recorrente por ora indiviso.
XVII. De forma homologa o Recorrente, pugnando pela adequação formal do seu impulso processual e pela competência do tribunal a quo, em sintonia com Ac. da Relação de Lisboa de 2 de março de 2023: “I) A causa de pedir na ação de divisão de coisa comum – que não constitui uma acção real - é integrada pela existência de situação de comunhão, não estando em questão a propriedade sobre a coisa ou direito, mas a relação de comunhão em que os consortes estão envolvidos e o poder – de provocar a sua cessação mediante divisão – resultante dessa relação”.
XVIII. E mui respeitosamente, se discorda que os terceiros com os quais o dissolvido casal tem dívida comum, porque decorrente de crédito para aquisição do património em compropriedade vejam as suas garantias diminuídas nos presentes autos, em confronto com o conhecimento do referido crédito em autos de inventário.
XIX. O Ac. da Relação de Lisboa de 24.03.2022 esclarece que “I - Na acção de divisão de coisa comum surge como incontroverso que, determinando-se o seu prosseguimento sob os termos do processo comum, na efectivação da faculdade prevista no nº. 3, do artigo 926.º do Cód. de Processo Civil, em virtude das questões suscitadas pelo pedido de divisão não poderem ser sumariamente decididas, nada impede a dedução da reconvenção, pois, nesta situação, tudo se passa, até certo ponto, como se existisse identidade de forma do processo; VIII - donde, inexiste pertinência no entendimento que considera exigível que, na aferição do deve e haver entre cada um dos comproprietários, ou seja, do que cada um contribuiu para o valor da sua quota, que constitui o efectivo diferendo entre as partes, entendesse por necessário, para tal resolução, o recurso a outro processo judicial ; (…) IX - todavia, tal encontro entre o deve e o haver entre as partes deve cingir-se ou radicar-se na aferição e cômputo dos encargos com a coisa comum e derivar da contitularidade ou compropriedade do imóvel cuja divisão se peticiona, no sentido de bulir com a justa composição do litígio subjacente à peticionada divisão da coisa comum, interferindo no âmago desta; X - e não reportar-se a quaisquer outros direitos creditícios que o reconvinte reivindique junto do reconvindo, alheios àquele cômputo dos encargos com a coisa comum dividenda, e sem terem qualquer interferência ou reflexo na reivindicada divisão da coisa comum”.
XX. Na citada fonte jurisprudencial é manifesta a irrelevância da qualificação jurídica do imóvel em compropriedade, como casa de morada de família atribuída a um dos cônjuges até partilha efetiva do património de que são contitulares, afastando-se a competência por conexão do juízo de família e menores.
XXI. Ao invés do defendido na Sentença recorrida, não é aplicável à situação dos autos o Ac. da Relação de Guimarães de 7.06.2023, uma vez que a situação nele equacionada é a divisão do património comum, e não de um património em compropriedade – o caso dos presentes autos – já que os interessados tinham contraído casamento segundo o regime da comunhão de adquiridos, o que impõe a ratio da conexão, atendendo aos créditos que possam advir da própria economia comum, pertinentes aquando da formação dos quinhões.
XXII. Estranha-se ainda a referência ao Ac. da Relação de Évora de 28.09.2023: “I – Após a dissolução conjugal, por regra, há lugar a inventário (exceção feita se o regime de bens for o da separação de bens – artigo 1404.º, n.º 1, in fine) e não já a ação de divisão de coisa comum”.
XXIII. Atendendo ao disposto nos artigos 546.º do CPCivil, e 117.º e 130.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, a competência para a tramitação e julgamento das acções de divisão de coisa comum incumbe aos Juízos Locais Cíveis e não aos Juízos Centrais Cíveis, independentemente do respetivo valor.
XXIV. Dispõe o artigo 926.º, n.º 3, do CPC que se as questões suscitadas pelo pedido de divisão, não puderem ser sumariamente decididas de acordo com os artigos 294.º e 295.º do CPC, o Juiz determina seguir os termos do processo comum. XXV. Quer isto dizer que, ao invés da decisão sumária prevista nos preceitos acima enunciados, na eventualidade de surgirem tais questões, serão as mesmas decididas de acordo com o formalismo próprio das acções comuns, sendo que a final quer se decida pela divisibilidade e formação de quinhões, quer pela indivisibilidade, se procederá à adjudicação ou à venda da coisa a dividir.
XXVI. Nesse entendimento o Ac. da Rel. de Lisboa de 16 de fevereiro de 2016 onde se sumaria que “I – O facto de o Tribunal / Instância Local verificar que a questão sub judice não pode ser sumariamente decidida e, por isso, ser aplicável o processo comum nos termos subsequentes à contestação, não retira aos autos a qualidade de processo especial. II – Logo, continua a ser o mesmo Tribunal / Instância Local o competente para preparar e julgar as ações de divisão de coisa comum e não o Tribunal / Instância Central”.
XXVII. Encontrando-se preenchidos os pressupostos do direito a exigir a divisão, previstos no n.º 1 do citado artigo 1412.º, a cessação da compropriedade opera através do recurso à ação de divisão de coisa comum, a qual constitui o meio processual idóneo para o efeito, cuja especialidade determina a competência em conformidade com o arguido supra.
XXVIII. “Só não poderá haver lugar a este inventário, com tal abrangência, se o regime de bens do casamento for de separação (artigo 1404.º, n.º 1, in fine), sendo que neste caso, se houver bens em compropriedade, é que terá de recorrer-se a ação de divisão de coisa comum [este sentido Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, III, 3.ª ed., pág. 346 e Abel Pereira Delgado, in O Divórcio,1980, pág. 101].
XXIX. Pelo que dúvidas inexistem que a Sentença recorrida violou o preceituado nos artigos 117.º, n.º 1, alínea a) e 130.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, artigo 1404.º, n.º 1, in fine, n.º 1 do artigo 1412.º, 1735.º e 1736.º, todos do CC, artigos 96.º, a), 97.º, 98.º, 99.º, 1, 1ª parte, 278.º, 1, a), 546.º, 576.º, 1 e 2, 1ª parte, 577.º, a), e 578.º, 925.º a 929.º todos do CPCivil, aplicáveis à situação dos presentes Autos.
*
G.
Também a Ré recorreu da decisão, apresentando alegações de recurso com as seguintes conclusões (transcrição, mantendo as referências em itálico da origem):
“A. O respeitável Tribunal a quo, proferiu douta decisão no âmbito da qual julgou verificada uma exceção dilatória de erro na forma do processo a qual, salvo o devido respeito, não tem acolhimento legal.
B. As partes intervenientes nos presentes autos, estão divorciadas desde 2021, constando da respetiva sentença que o decretou a inexistência de bens comuns a partilhar, o que resulta do facto do regime de casamento que vigorava ser o da separação de bens, o qual, por força do artigo 1735.º do CC não admite a existência de bens comuns, mas apenas de bens cuja propriedade é exclusiva de um dos cônjuges, ou se de ambos, em compropriedade.
C. Destarte, os bens adquiridos na constância do já dissolvido matrimónio, ou pertenciam exclusivamente ao Requerente, ou exclusivamente à Requerida, sendo que a existência de património comum se submete às regras da compropriedade e não às regras da comunhão conjugal do artigo 1721.º a 1734.º do Código Civil.
D. Conclusão que também é consagrada no n.º 2 do artigo 1736.º do Código Civil, que presume a compropriedade em caso de dúvida quanto ao titular de determinado bem.
E. Tendo sido precisamente ao abrigo na presunção de compropriedade estabelecida na lei que o Requerente interpôs o procedimento cautelar de arrolamento, apensado aos presentes autos, cuja providência o Tribunal a quo decretou, precisamente por ter entendido existir a possibilidade de os bens serem – alegadamente – detidos em compropriedade.
F. Prefigurando por ora a douta sentença recorrida um entendimento dispare, relativamente ao regime da propriedade dos bens, que por força do regime de casamento existente, sempre será o da compropriedade.
G. A presunção de compropriedade em que o Requerente sustenta uma parte do seu pedido, é ilidível e determina a necessária discussão judicial no sentido de se determinar a existência, ou não, de património detido em compropriedade entre as partes.
H. A discussão a fazer sobre a existência ou presunção de compropriedade, não caba na tramitação do processo de inventário, porquanto este se destinar à partilha, tendo por pressuposto a existência de bens comuns do (dissolvido) casal.
I. Não admitindo igualmente o processo de inventário apreciar o pedido reconvencional feito pela Requerida, destinado à compensação de créditos por despesas suportadas para além da quota-parte respetiva do bem.
J. Discussão que é amplamente admitida pela maioria da jurisprudência em sede de processo de divisão de coisa comum.
K. Considerando a relação material controvertida subjacente aos presentes autos, o entendimento vertido pelo Tribunal a quo, configuraria uma negação da justiça, na medida em que afastaria a possibilidade da Requerida em ver reconhecida, por um lado, os seus direitos de propriedade exclusiva dos bens, e por outro lado, subsidiariamente, o direito a ser ressarcida de despesas tidas com os mesmos, já que tal discussão não é admissível em sede de processo de inventário.
L. Tendo ainda andado mal o Tribunal a quo, o que se refere com o elevado respeito que sempre nos merecerá, ao suportar a sua decisão em três acórdãos, dos quais apenas resulta a possibilidade de, perante os casos concretos de que se ocupam, ser admissível o processo de inventário e não, como entendeu o Tribunal a quo, de afastar o regime do processo especial de divisão de coisa comum.
M. De que se destaca, prima facie, o ponto I do sumário do Acórdão deste Venerando Tribunal da Relação de Évora, citado pelo Tribunal a quo que afasta diretamente o processo de inventário nos casos em que o regime de bens tenha sido o da separação.
N. Por tudo o supra exposto, tratando-se de bens detidos em compropriedade, e atendendo à factualidade carreada para os autos, é próprio a ação especial de divisão de coisa comum, conforme expressamente determina o artigo 925.º do Código de Processo Civil.
O. Normas Jurídicas violadas: Artigos 193.º, 576.º, n.º 2, 577.º, b) e 1082.º, todos do CPCivil e artigos 1722.º, 1735.º e 1736.º, n.º 2, todos do Código Civil.”
*
H.
Os Recorridos não responderam às alegações dos Recorrentes.
*
I.
Colheram-se os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
*
J.
Questões a decidir:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos Recorrentes, sem prejuízo da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (artigos 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).
Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.
Deste modo, são as seguintes as questões exclusivamente jurídicas, em apreciação nos presente recurso:
1. Se o ex-cônjuge de casamento sujeito ao regime da separação de bens, dissolvido por divórcio, deve fazer uso do processo de inventário para obter a divisão do património adquirido por ambos os cônjuges no decurso do casamento; e
2. Em caso de resposta afirmativa à questão precedente, se verifica a excepção dilatória de erro na forma do processo de divisão de coisa comum eleita pelo ex-cônjuge, aqui Recorrido, para alcançar o aludido desiderato.
*
***
II. FUNDAMENTAÇÃO
*
A. De facto
*
Os recursos são exclusivamente de direito e os elementos relevantes para a decisão constam do relatório antecedente.
*
B. De direito
*
Vêm os presentes recursos interpostos de decisão que absolveu a Ré da instância por considerar errada a forma de processo eleita pelo Autor – acção de divisão de coisa comum – para alcançar o objectivo de dividir o património alegadamente adquirido por ambos no decurso do casamento entre ambos, sujeito ao regime da separação de bens.
A argumentação do despacho em crise apresenta os seguintes vectores:
i.
O processo de inventário é o adequado a operar a divisão dos bens em compropriedade do casal (citando para o efeito a jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 28.09.2023, proferido no âmbito do proc. n.º 611/21.0T8SSB.E1 – in www.dgsi.pt).
ii.
Ainda que inexistam bens comuns do casal, a abertura do processo de inventário justifica-se, também, no caso vertente, por estar alegada a existência de créditos perante terceiros, nomeadamente, entidades bancárias, relacionados com a aquisição dos imóveis (entendimento que extrai da jurisprudência dos acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07.06.2023, proferido no âmbito do processo n.º 1702/20.0T8BRG-A.G1 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.06.2010, proferido no âmbito do processo n.º 2104/09.5TBVFX-A.L1-7 – ambos in www.dgsi.pt).
iii.
Um dos bens imóveis cuja divisão vem peticionada – o “Monte da (…)” – corresponde, alegadamente, à casa de morada de família do ex-casal constituído pelo Autor e pela Ré, no qual esta continua a residir. Uma vez que os autos de divisão de coisa comum comportam acentuada diminuição das garantias da Ré e do Autor relativamente aos pressupostos a observar no processo de inventário previsto pelos artigos 1082.º e ss. do CPC, bem como na acção para atribuição da casa de morada de família prevista no artigo 990.º do mesmo diploma legal, não se devem aproveitar os actos processuais já praticados.
iv.
Ainda que fosse possível a adaptação aludida no precedente ponto iii. sem prejuízo da garantia de ambas as partes, o tribunal a quo seria materialmente incompetente para a apreciação do processo de inventário e da acção para atribuição da casa de morada de família, uma vez que já correu termos processo de divórcio, onde tais pretensões teriam de ser deduzidas por apenso.
*
Analisemos, de seguida, cada um dos elencados fundamentos.
i.
Relativamente ao primeiro ponto, a especificidade do regime da separação de bens do casamento entre Autor e Ré, não permite acompanhar o entendimento perfilhado na decisão recorrida, no sentido de que o processo de inventário é o adequado a operar a divisão dos bens titulados em compropriedade pelos elementos do ex-casal.
Vejamos porquê.
De acordo com o disposto nos artigos 1688.º, 1788.º e 1789.º, n.º 1, do Código Civil, o divórcio dissolve o casamento e faz cessar as relações patrimoniais entre os cônjuges, retrotraindo-se os seus efeitos, quanto às relações patrimoniais, à data da propositura da acção ou da separação de facto fixada na sentença.
Após o divórcio, procede-se à partilha dos bens comuns, o que pode ocorrer extrajudicialmente, por acordo dos interessados, ou judicialmente, na falta de acordo, em processo de inventário (artigos 2102.º, n.º 1, do CC e 1133.º da actual redacção do CPC).
A partilha é um acto jurídico que põe fim às situações de comunhão que tanto podem consistir em herança indivisa (Sobre a especificidade da herança não partilhada, atente-se na fundamentação do recente acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.07.2024, relatado pelo Juiz Desembargador Gonçalo Oliveira Magalhães no processo n.º 2152/23.2T8GMR.G1: …o que existe na esfera jurídica de cada um dos herdeiros é, percute-se, um direito sobre o património autónomo que é herança. (…) É isto – o objeto do direito ser um património e não uma coisa – o que distingue a comunhão hereditária da propriedade em comum ou compropriedade, em que duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa (artigo 1403.º/1). É também isto que explica que a forma de pôr termo à comunhão hereditária seja a partilha e não, como sucede com a compropriedade, a divisão da coisa comum.
Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/e256c416491b890480258b64002dca6f?OpenDocument), como em património que, por força do regime de bens aplicável ao casamento, seja pelo menos em parte comum ao casal ( «Após o divórcio procede-se à partilha em função do regime de bens adoptado, recebendo cada um dos cônjuges os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a esse património – artigos 1730.º/1 e 1689.º/1, do C.C.» Tomé D’Almeida Ramião, in “O Divórcio e Questões Conexas – Regime Jurídico Actual”, Quid Juris, 2009, págs. 96 e 97 (sublinhado meu).).
O património integrado na comunhão conjugal confere a cada um dos cônjuges um direito de meação que se não confunde com o direito de compropriedade.
Na proposta de Rita Lobo Xavier ( Rita Lobo Xavier, “Divórcio, o Regime de Bens e a Partilha do Património Conjugal”, in III Jornadas de Direito da Família e das Crianças Diálogo Teórico-Prático, e-book da Ordem dos Advogados e do CEJ): “A perspetiva do património coletivo considera a situação de contitularidade. Os bens comuns constituem um património coletivo na medida em que cada um dos cônjuges é contitular de um direito sobre a massa dos bens comuns, como um todo, não sendo contitular de um direito não sobre cada uma das coisas nela integradas. Cada um dos cônjuges é titular do direito a metade do mesmo (direito de meação), direito de que não podem dispor antes da dissolução do casamento, da separação de pessoas e bens ou da separação judicial de bens. (…) e que tem muitas similitudes com a que existe na situação de indivisão hereditária”.
A distinção resulta também clara na fórmula, utilizada por Pires de Lima e Antunes Varela ( Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, volume IV, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1992, pág. 449.): “os bens comuns dos cônjuges constituem objecto, não duma relação de compropriedade, mas duma propriedade colectiva…”, sendo que “…na propriedade colectiva há ainda um direito uno, enquanto na compropriedade há um aglomerado de quotas dos vários comproprietários”.
A compropriedade pressupõe um título de aquisição em que todos os comproprietários intervenham.
Diversamente do que sucede nos matrimónios sujeitos aos regimes da comunhão de adquiridos ou da comunhão geral, o casamento sujeito ao regime da separação de bens não tem a aptidão de constituir património comum do casal pois cada um dos cônjuges “…conserva o domínio e fruição de todos os seus bens presentes e futuros, podendo dispor deles livremente” (artigo 1735.º do Código Civil).
Por isso, vem sendo entendimento doutrinal e da jurisprudência dos nossos tribunais superiores que o processo de inventário subsequente a divórcio está reservado aos casos em que o casamento, por força da sujeição aos regimes da comunhão geral ou de bens adquiridos, seja apto a gerar um património comum do casal (artigos 1721.º e ss. e 1732.º e ss., ambos do Código Civil).
Neste sentido, Tomé D’Almeida Ramião ( In, Op. Cit., pág. 97.) considera que:
“…deverão ser partilhados todos os bens considerados comuns, de acordo com o regime legal da comunhão de adquiridos, e existentes à data da cessação das relações patrimoniais.
Caso os cônjuges hajam adoptado, ou imposto por lei, o regime da separação de bens, inexistem bens comuns e, consequentemente, não há lugar a processo de partilha.”
Mais: como consequência necessária desta premissa também se vem considerando que a forma processual adequada a pôr fim a situações de compropriedade constituídas voluntariamente pelos cônjuges casados no regime da separação de bens, é o processo especial de divisão de coisa comum.
Sobre a questão, afigura-se pertinente reproduzir a posição de João António Lopes Cardoso ( João António Lopes Cardoso, in “Partilhas Judiciais”, Volume III, 4.ª edição, Livraria Almedina, Coimbra 1990, pág. 342.):
“Verificada qualquer das hipóteses consideradas torna-se mister proceder à partilha dos bens, salvo se o casamento foi contraído segundo o regime de separação, pois, sendo este o regime convencionado, ou o legalmente imposto, não há bens comuns a partilhar (Código Civil, artigo 1735.º) e cada um dos cônjuges recebe os seus bens próprios, respondendo, separada ou conjuntamente, pelas dívidas que, porventura, tenha contraído (idem, artigo 1689.º-1). Por assim dizer, a separação de bens nesse caso já está feita, por virtude do próprio regime matrimonial, na certeza de que, se subsistir compropriedade entre os ex-cônjuges, o processo para a fazer cessar será o da divisão da coisa comum, jamais o de inventário (Código Processo Civil, artigo 1059.º e seguintes).
Vigorante que seja regime diferente do da separação, importa que os ex-cônjuges recebam os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património (Código Civil, artigo 1689.º-1)”.
A conclusão a que se chega partindo da exposição apresentada é a de que o processo de inventário subsequente a divórcio está reservado à partilha de bens comuns, exclusivos dos regimes de comunhão de bens que permitem a constituição de um património comum do casal e um direito de meação de cada consorte sobre a universalidade desses bens.
Como o regime da separação de bens não é passível de integrar os bens adquiridos, antes ou na pendência do casamento, num património comum do casal, não se mostra preenchido pelo casamento sujeito a tal regime (da separação) um pressuposto necessário ao uso do processo de inventário subsequente ao respectivo divórcio.
A compropriedade de bens adquiridos pelos cônjuges na pendência do casamento é uma realidade distinta do património integrado na comunhão, neutra relativamente à faculdade de utilizar o processo de inventário para separação de meações, na medida em que, se por um lado não consente o recurso a tal meio processual, por outro não impede que os cônjuges o utilizem desde que tenham estado casados no regime da comunhão (geral ou de adquiridos) e haja património comum.
Esta é, aliás, a bitola que, em linha com a orientação da jurisprudência dominante (Entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.10.2019, relatado pelo Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes no processo número 1517/13.2TJLSB.L1.S2, cujo sumário refere: “I. No regime de comunhão de adquiridos, o imóvel que ambos os cônjuges adquiriram por compra, antes do casamento, está sujeito ao regime da compropriedade, sendo cada um titular de metade, como bem próprio. (…) III. Dissolvido o casamento, o inventário pós-divórcio requerido ainda ao abrigo do artigo 1404.º, do CPC de 1961, destina-se a realizar a partilha dos bens comuns do casal, incluindo as dívidas que são comuns. IV. Numa situação em que não existem bens comuns do casal, o processo de inventário não é adequado a que um dos cônjuges exija do outro um crédito correspondente ao pagamento de metade das prestações emergentes de um contrato de mútuo que ambos celebraram antes do casamento para aquisição do bem em regime de compropriedade. No mesmo sentido, também o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22.02.2024, relatado pela Juíza Desembargadora Eva Almeida no processo n.º 2509/22.6T8VCT.G1.
Disponíveis, respectivamente, nas ligações:
https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/5305e81ce338269a802584880053e76b?OpenDocument
https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/0d37ff9019a5785180258ad90054ec38?OpenDocument ), também segue o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28.09.2023, relatado pela Juíza Desembargadora Maria José Cortes no processo n.º 611/21.0T8SSB.E1 ( Disponível na ligação: https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/50a049caa35823fb80258a460030131c?OpenDocument ), a que a decisão recorrida, numa leitura incompleta, alude.
Basta, para tanto, atentar no ponto I do respectivo sumário – “Após a dissolução conjugal, por regra, há lugar a inventário (exceção feita se o regime de bens for o da separação de bens – artigo 1404.º, n.º 1, in fine) e não já a ação de divisão de coisa comum” – que encontra no texto da fundamentação o reflexo: “Só não poderá haver lugar a este inventário, com tal abrangência, se o regime de bens do casamento for de separação (artigo 1.404.º, n.º 1, in fine), sendo que neste caso, se houver bens em compropriedade, é que terá de recorrer-se a ação de divisão de coisa comum [este sentido Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, III, 3.ª ed., pág. 346 e Abel Pereira Delgado, in O Divórcio, 1980, pág. 101]”.
Contrastando com a interpretação realizada na decisão da 1ª instância, não é a situação de compropriedade de bens que, de acordo com os fundamentos do acórdão em apreço, permite o uso do processo de inventário, mas a circunstância de, contrariamente ao caso vertente em que Autor e Ré estiveram casados no regime da separação de bens, a situação ali versada dizer respeito a um matrimónio sujeito ao regime da comunhão de bens adquiridos, no qual para além de bens titulados em compropriedade pelos cônjuges, havia também bens comuns a partilhar.
Sendo o inventário o meio próprio para a alcançar a partilha daqueles bens comuns, bem se compreende que tenha sido admitida a possibilidade de numa única acção de inventário a correr por apenso ao processo de divórcio, nos termos do artigo 1404.º do Código de Processo Civil, se proceder à divisão ou partilha de todos os bens.
Esta posição inscreve-se na já apontada neutralidade ou irrelevância da compropriedade de bens adquiridos pelos cônjuges na pendência do casamento para o recurso ao meio processual de inventário subsequente a divórcio, pois se não constitui fundamento bastante (este é conferido pela existência da meação do cônjuge nos bens comuns), também não é circunstância impeditiva se o pressuposto do casamento no regime da comunhão se verificar.
ii.
Apreciemos agora o segundo argumento apontado pela decisão em recurso, no sentido de que o uso do processo de inventário se justifica por estar alegada a existência de créditos perante terceiros, nomeadamente, entidades bancárias, relacionados com a aquisição dos imóveis em compropriedade.
Nos termos previstos pelo artigo 1412.º, n.º 1, do Código Civil, “…nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa”.
O direito de exigir a divisão de coisa comum é potestativo, tem por escopo a dissolução da compropriedade que pode realizar-se através da divisão em substância da coisa ou da partilha do seu valor ou preço.
Pela via judicial (artigo 1413.º do CCivil), o processo de divisão de coisa comum obedece a uma forma especial (artigo 925.º e ss. do CPC) que prevê duas fases distintas:
- a primeira, visa apurar e fixar os quinhões de cada comproprietário e, bem assim, aferir da divisibilidade do bem (artigo 926.º, n.ºs 4 e 5, do CPC);
- a segunda tem como objectivo: a divisão do bem em substância com a adjudicação das partes, caso se conclua que tal é possível na primeira fase do processo (artigos 927.º, n.º 1 e 929.º, n.º 1, ambos do CPC); ou a adjudicação da totalidade / venda a terceiros, com divisão do produto da venda em função dos quinhões de cada um, caso se conclua que o bem é indivisível (artigos 928.º e 929.º, n.ºs 2 e 3, ambos do mesmo diploma legal).
Trata-se de um processo dirigido contra todos os consortes, através do qual o primeiro momento, de pendor declarativo, visa confirmar o direito de cada um à respectiva quota e o segundo, de cariz mais executivo, realiza a repartição material do(s) bem(ns) indiviso(s) ou a atribuição patrimonial correspondente a cada direito individual.
O credor hipotecário, titular de hipoteca sobre a totalidade do prédio objecto da acção de divisão de coisa comum, não vê o seu direto afectado pela definição dos direitos realizada na fase declarativa do processo porque a sua garantia real se mantém sobre a totalidade das quotas.
É na segunda fase do processo, de pendor executivo, que a adjudicação a um dos interessados ou a venda a terceiros do imóvel hipotecado impõe a prévia intervenção do credor hipotecário, a fim de aí reclamar o seu crédito e fazê-lo valer, sendo citado nos termos previstos pelo artigo 786º, n.º 1, alínea b), ex vi do artigo 549.º, n.º 2, ambos do CPC, para reclamar, pelo produto destes, o pagamento dos respectivos créditos, nos termos do artigo 788.º do mesmo diploma legal.
Deste modo, a utilização da forma especial do processo de divisão de coisa comum não comporta qualquer prejuízo, ou preterição dos direitos do credor hipotecário.
Não há, por isso, fundamento para sustentar que o uso do processo de inventário se justifica por, na situação em juízo, estar alegada a existência de créditos perante terceiros, nomeadamente, entidades bancárias, relacionados com a aquisição dos imóveis em compropriedade.
Note-se que a aceitação deste argumento para franquear o uso do processo de inventário aos comproprietários de bem(ns) indiviso(s), abriria a porta deste processo especial com pendor marcadamente sucessório e conjugal, a um conjunto de outras situações de constituição do direito de compropriedade, não apenas por ex-cônjuges, mas também por pessoas que não estiveram ligadas pelo vínculo do matrimónio.
Nem se lobriga na jurisprudência dos acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07.06.2023, proferido no âmbito do processo n.º 1702/20.0T8BRG-A.G1 (Relatado pelo Juiz Desembargador José Carlos Pereira Duarte. Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/5401e2eb1a0ff848802589d40044fb52?OpenDocument) e do Tribunal da Relação de Lisboa de 01.06.2010, proferido no âmbito do processo n.º 2104/09.5TBVFX-A.L1-7 ( Relatado pelo então Juiz Desembargador Abrantes Geraldes. Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/9e00b5b8eddf74298025777b003d0bd5?OpenDocument
), mencionados na decisão em crise, suporte relevante à posição por esta sustentada.
Com efeito, da análise dos doutos arestos, ressalta que, tal como no já versado acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28.09.2023, dizem respeito a situações em que os cônjuges foram casados no regime da comunhão de bens adquiridos.
*
iii.
Quanto à circunstância de um dos bens imóveis cuja divisão vem peticionada – o “Monte da (…)” – corresponder, alegadamente, à casa de morada de família do ex-casal, na qual a Ré continua a residir, também não se acompanha o entendimento da decisão em análise.
Isto porque nenhuma das partes peticiona na presente acção, a atribuição da casa de morada família, nem opõe à procedência dos pedidos formulados pela parte contrária os meios de protecção da casa de morada de família.
Não estando a questão da atribuição / protecção da casa de morada de família e do uso da forma processual de jurisdição voluntária prevista pelo artigo 990.º do CPC, sujeita à apreciação do tribunal no âmbito destes autos, a análise comparativa dos direitos de defesa das partes naquele processo e no processo de divisão de coisa comum, elabora sobre hipótese que não se coloca, constituindo exercício desnecessário e irrelevante à economia da decisão sobre a excepção do erro na forma do processo.
*
iv.
Por último, no que respeita ao argumento da incompetência material do Juízo Local Cível de Évora para apreciar o processo de inventário e o processo especial de atribuição da casa de morada de família, parte da premissa de que a pretensão formulada pelo Autor na presente acção imporia o recurso àquelas formas processuais, distintas do processo de divisão de coisa comum.
Trata-se, como resulta da motivação constante dos precedentes pontos i, ii e iii, de premissa que aqui se afasta.
Razão pela qual, sem necessidade de mais considerações, se mostra também insubsistente este ponto da fundamentação da decisão proferida em 1ª instância.
*
Impõe-se, pelo exposto, julgar procedentes as apelações e, revogando a decisão recorrida, julgar improcedente a excepção do erro na forma do processo.
*
***
Custas
*
Não havendo norma que preveja isenção (artigo 4.º, n.º 2, do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (artigo 607.º, n.º 6, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC).
No critério definido pelos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no vencimento ou decaimento na causa ou, não havendo vencimento, no proveito.
No caso vertente, ambas as partes da acção recorreram e obtiveram vencimento no recurso, já que ambos pugnaram pela revogação da decisão recorrida.
Termos em que nenhuma das partes deve ser condenada nas custas do presente recurso.
*
***
III. DECISÃO
*
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, em:
Julgar procedentes as presentes apelações;
Revogar o despacho recorrido e, em consequência, julgar não verificada a excepção do erro na forma do processo;
Determinar a baixa definitiva do processo à 1.ª instância, para os subsequentes termos do processo;
Não condenar os Recorrentes / Recorridos no pagamento das custas do presente recurso.
Notifique.
*
***
Évora, 10 de Outubro de 2024
Relator: Ricardo Manuel Neto Miranda Peixoto
1.º Adjunto: Filipe César Osório
2.º Adjunto: Francisco Xavier