PRISÃO PREVENTIVA
REEXAME DOS PRESSUPOSTOS
ARTIGO 40º
Nº2
DO CPP
Sumário

- A decisão que procede ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva não tem a densidade qualitativa da decisão que aplica a medida, pelo que o juiz que procede o reexame não estabelece o silogismo judiciário entre os indícios existentes e a medida aplicável, mas limita-se a verificar se tal silogismo se elabora da mesma forma ou se, em face do preexistente, existiu algum elemento factual superveniente que leva à sua alteração. Tratando-se de juiz diferente e dada a sua posição diferenciada (e, efetivamente, mais distante ) face ao objeto do processo, inexistem quaisquer motivos que coloquem em crise, minimamente, a sua imparcialidade, não se mostrando tal interpretação violadora de normas constitucionais ou da CRDH.
- No art.º 40.º, n.º 2 do CPP a alusão à aplicação das medidas ali previstas exclui a reapreciação ou o reexame de medida anteriormente aplicada.

Texto Integral


Acordam na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - Relatório.

No processo n.º 116/23.5GAVVC do Juízo de Instrução Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de …, o arguido AA interpôs recurso dos despachos judiciais referências Citius 34080501, 34134478 e 34169997, extraindo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

“1º - Por via de requerimento apresentado pelo arguido veio a ser deferida a realização da informação técnica para a eventual vigilância eletrónica, visando-se a alteração da prisão preventiva inicialmente fixada e aplicada por outro Magistrado judicial, para a OPHSVE.

2º - Se acaso tivesse sido deferida a pretensão requerida, o Mtº JIC visado encontrar-se-ia impedido nos termos do artº40º-1 e 2 do CPP para intervir na instrução, uma vez que foi o mesmo a analisar e a decidir essa pretensão.

3º - Não tendo sido deferida, tendo sido reanalisada a situação processual do arguido no que tange à medida de coação nesse segmento, ponderados judicialmente os argumentos do arguido e do MP (que propôs o indeferimento) e tendo sido decidido pelo Mtº JIC visado que se verificavam as circunstâncias elencadas no artº202º e 204º do CPP (inclusivamente convocando inovadoramente o perigo de continuação da atividade criminosa, ainda que de forma genérica e paradoxal, salvo o devido respeito, que é muito), mantendo a prisão preventiva, verifica-se igualmente o impedimento, não só por maioria de razão, mas porque a literalidade e a lei assim estatuem e definem, que quem “tiver aplicado” medida de coação prevista no artº200º a 202º do CPP se encontra impedido de participar na instrução nos termos do nº2 do artº40 do CPP, o que abarca necessariamente a situação revelada nos autos e acima descrita.

4º - O Mtº JIC cujo impedimento se suscita, ao proferir o despacho judicial cuja referência é 33595794 aplicou a medida de coação prevista no artº202º do CPP, não existindo razão alguma para que tal despacho seja tratado de forma diferenciada em relação ao despacho inicialmente proferido aquando do 1º interrogatório por outro Magistrado judicial, uma vez que a ordem de razões que militam a favor do impedimento aquando do despacho subsequente ao 1º interrogatório são as mesmas, ou pelo menos semelhantes, às razões inerentes ao despacho referido e proferido pelo JIC visado, que, de resto, teve até mais contacto no Inquérito com o curso dos autos do que o JIC que realizou o interrogatório do arguido.

5º - Assim, deve ser declarado o impedimento respetivo, nos sobreditos termos legais.

6º - Uma vez que existe o impedimento, verifica-se adicionalmente ser nulo o despacho judicial que declara aberta a instrução, porque o juiz visado na mesma não pode ter participação ou participação ou intervenção na instrução, o mesmo se dizendo dos despachos subsequentes, nos termos conjugados dos artºs 118º e 119º-a) do CPP.

7º - E ante o exposto, os atos praticados desde esse momento, os despachos judiciais subsequentes são nulos, por via do artº41º-3 e 122º do CPP, como nula é a demais tramitação ulterior que seja prosseguida.

8º - Pelo que deve o recurso ser julgado provido e ante a procedência devem os autos retroagirem na respetiva tramitação, sendo distribuída a instrução requerida como ato jurisdicional a outro Magistrado judicial e seguir o processo os ulteriores termos até final.

9º - O artº40º-2 e 40º-1-a) do CPP é uma norma inconstitucional, no segmento e entendimento da mesma feito de que o Juiz que aplicou no Inquérito inicialmente ou manteve em qualquer fase posterior dessa fase a medida de coação de prisão preventiva, prevista no artº202º do CPP, não esteja diretamente impedido de presidir ao debate instrutório, por violar o artº32º-1-2-5 e 9 e o artº6º da CEDH.

10º - De harmonia com o exposto e sem conceder, deve, além do mais, ser declarada a inconstitucionalidade das mencionadas normas legais, na parte em que permitem a intervenção de JIC a presidir ao debate instrutório e decisão subsequente, que durante a fase de Inquérito determinou e / ou posteriormente manteve a prisão preventiva, nos sobreditos termos que antecedem.

11º - Consequentemente, sempre deverá, além de tudo o mais, ser revogado o despacho ultimamente recorrido em conformidade com esse juízo de inconstitucionalidade.”

Mediante requerimento autónomo, o recorrente veio aditar às suas conclusões, o seguinte:

“9º - O artº40º-2 e 40º-1-a) do CPP é uma norma inconstitucional, no segmento e entendimento da mesma feito de que o Juiz que aplicou no Inquérito inicialmente ou manteve em qualquer fase posterior dessa fase a medida de coação de prisão preventiva, prevista no artº202º do CPP, não esteja diretamente impedido de presidir ao debate instrutório, por violar o artº32º-1-2-5 e 9 e o artº6º da CEDH.

10º - De harmonia com o exposto e sem conceder, deve, além do mais, ser declarada a inconstitucionalidade das mencionadas normas legais, na parte em que permitem a intervenção de JIC a presidir ao debate instrutório e decisão subsequente, que durante a fase de Inquérito determinou e / ou posteriormente manteve a prisão preventiva, nos sobreditos termos que antecedem.

11º - Consequentemente, sempre deverá, além de tudo o mais, ser revogado o despacho ultimamente recorrido em conformidade com esse juízo de inconstitucionalidade.”

O MP na 1.ª instância respondeu ao recurso, concluindo do seguinte modo (transcrição):

“1. Os arestos da Relação de Évora proferidos nos presentes autos em 23-01-2024 e 18-06-2024 entenderam que se verificava o perigo de perturbação do inquérito, na vertente aquisição e manutenção de provas (art. 204.º, al. b), do CPP), bem como que, de facto, não se verificava o perigo de e perturbação grave da ordem e a tranquilidade públicas (alínea c) do mesmo preceito).

2. Ambos os arestos Relação de Évora proferidos nos presentes autos em 23-01-2024 e 18-06-2024 concluíram pela necessidade, adequação e proporcionalidade da medida de coação de prisão preventiva.

3. A Veneranda Relação de Évora já se pronunciou especificamente sobre a insuficiência e desadequação da medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica.

4. Nem na motivação do recurso, nem em qualquer outro momento processual, o arguido invocou uma qualquer alteração das circunstâncias de facto e de direito que que determinaram a aplicação de prisão preventiva.

5. Compulsados os autos, a decisão que aplicou a medida de coação de prisão preventiva (bem como a que procedeu à sua manutenção) mantém a sua validade e eficácia, por permanecerem na sua essência inalterados os pressupostos de facto e de direito em que assentou e por subsistir o perigo para a conservação ou veracidade da prova.”

Termina pedindo:

“Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado improcedente e, em consequência, manter-se o despacho recorrido.”

O Exm.º PGA neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido de “negar provimento ao recurso apresentado pelo arguido AA e manter a decisão recorrida.”

Procedeu-se a exame preliminar.

Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (1), vindo o recorrente, em resposta, a reiterar o seu entendimento sobre o impedimento do Mm.º JIC.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

Reproduzem-se as decisões recorridas, na parte que interessa:

“I - Despacho de 13.05.2024 (referência Citius 34080501):

“B - Requerimento de abertura de instrução do ARGUIDO - Ref.ª Citius de 19-04-2024 (por email de 18-04-2024):

I. Mantenha a autuação como instrução.

II. O tribunal é o competente.

III. Da admissibilidade legal

Por ter sido tempestivamente requerida, por quem dispõe de legitimidade, obedecendo o requerimento aos requisitos legais, declaro aberta a instrução requerida pelo arguido – artigos 286.º, n.º 1 e 287.º, n.os 1, alínea a) e 2, ambos do Código de Processo Penal.

Julgo verificada a inutilidade da questão do justo impedimento, porquanto a certidão de notificação do arguido no EP patenteia lapso que inequivocamente daria razão ao arguido.

Notifique – artigo 287.º, n.º 5, do Cód. Processo Penal.

Notifique-se o arguido para indicar os pedidos de esclarecimentos que pretende dirigir às senhoras peritas médicas intervenientes na autopsia médico-legal no prazo de cinco dias, prazo este que se fixa em função da urgência dos autos.”

*

II - Despacho de 29.05.2024 (referência Citius 34134478):

“Das diligências probatórias

O arguido requer a notificação das Senhoras Médicas legistas identificadas no relatório de autópsia para comparecerem em data a designar e esclarecerem cabalmente as conclusões a que chegaram e o processo de raciocínio a que às mesmas levou, inclusivamente quanto às 2 demais eventualidades ou possibilidades de ter a morte sobrevindo à falecida e a notificação dos Senhores Inspetores da PJ que tiveram intervenção na investigação e que se encontram identificados nos autos (nomeadamente o Inspetor BB), seja por diligências realizadas, seja pela detenção do arguido para transmitirem aos autos o percurso da investigação, assim como as demais investigações ou suspeitos que possam ter existido, no sentido de explicitarem a linha investigatória seguida e as eventualidades que não foram investigadas.

Foi notificado o arguido para indicar os pedidos de esclarecimentos que pretende dirigir às senhoras peritas médicas intervenientes na autópsia médico-legal no prazo de cinco dias.

O arguido foi pessoalmente notificado no dia 16 de Maio de 2024 (conf. fls. 1236 v dos autos).

O mandatário do arguido foi notificado por correio electrónico no dia 14 de Maio de 2024, presumindo-se notificado no dia 17 de Maio de 2024, sendo que nada requereu até ao dia 27 de Maio, último dia útil após o termo do prazo concedido.

Os meios de prova requeridos devem ser enquadrados nas razões de facto de discordância em relação ao despacho de acusação que são estas: Não foi o arguido que matou a vítima, se é que alguém a matou. Nunca o mesmo engendrou ou traçou plano algum nesse sentido sequer.

Cumpre apreciar e decidir:

Dispõe o n.º 1 do art. 291.º do C.P.P. que o juiz indefere os actos requeridos que entenda não interessarem à instrução ou servirem apenas para protelar o andamento do processo e pratica ou ordena oficiosamente aqueles que considerar úteis.

Da autópsia de fls. 460 a 465 e 511 a 520 resultam as conclusões possíveis em face das lesões apuradas.

O arguido não indicou vícios do relatório de autópsia.

Este meio de prova será valorado de acordo com o art.º 163.º do Cód. Processo Penal e, eventualmente, nos termos do art.º 127.º, do mesmo diploma.

Daqui decorre que os pedidos de esclarecimentos em nosso entender servem propósitos dilatórios e seriam as senhoras peritas a emitir uma opinião sobre a valoração da prova e de todos os circunstancialismos apurados que cabe ao tribunal ter.

A inquirição de agentes da Polícia Judiciária encontra-se vedada porque não têm conhecimento directo dos factos, dado que cabe ao Ministério Público sustentar a tese do despacho acusatório e não ao arguido mostrar outras linhas de investigação. Logo a inquirição dos agentes da PJ também serve propósitos dilatórios.

Tendo sido requerido pelo arguido o seu interrogatório, nos termos do art.º 292.º, o mesmo deverá ser realizado.

Nestes termos, defere-se parcialmente o requerido e em consequência determino o interrogatório no dia 11/06/2024, pelas 10.30 horas, neste tribunal, seguindo-se o debate instrutório; o demais requerido é indeferido.

Cumpra o art.º 151.º, n.º1, do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente aos presentes autos, bem como o art.º 82.º, n.º 6, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (LOSJ), a fim de evitar sobreposições, preferencialmente por contacto telefónico junto dos senhores advogados, comunicando-lhes a data supra.

Notifique, com as legais advertências.”

*

III - Despacho de 07.06.2024 (referência Citius 34169997):

“O arguido invoca a nulidade do despacho que declarou aberta a instrução e do despacho que determinou as diligências instrutórias por violação dos artsº 40º, n.º 2, 118º, n.º1 e 119º, al. a) e e) do CPP e suscita o incidente do impedimento.

Requer que a nulidade seja reconhecida judicialmente e retroagindo os efeitos, nos termos do artº 122º, n.º1 do CPP, sendo distribuído os autos a juiz que não tenha tido intervenção na fase de inquérito.

Foi cumprido o contraditório, tendo o Ministério Público se pronunciado no sentido não existirem nulidade, impedimento ou omissão de pronúncia.

O assistente quedou-se silente.

Cumpre apreciar:

Na presente data vigora o seguinte normativo:

Artigo 40.º

Impedimento por participação em processo

1 - Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver: a) Aplicado medida de coação prevista nos artigos 200.º a 202.º;

b) Presidido a debate instrutório;

c) Participado em julgamento anterior;

d) Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior.

e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.

2 - Nenhum juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos termos previstos nas alíneas a) ou e) do número anterior.

Este normativo tem a redacção da Lei n.º 13/2022, de 1 de Agosto.

Não pratiquei os actos referidos nas alíneas a) e e) do n.º1 do art.º 40.º do Cód. Processo Penal. Inexistem circunstâncias que impeçam a intervenção do signatário como juiz de instrução na fase instrutória.

Também não existe omissão de pronúncia sobre a nulidade invocada na estrita medida em que foi dado e aguardado o contraditório do assistente sobre a questão suscitada pelo arguido.

Adicionalmente, e ponderados os argumentos expendidos, concordamos com a posição do Ministério Público e os arestos citados que se consideram aqui inteiramente reproduzidos após ponderação. O arguido interpreta o art.º 40.º, do Cód. Processo Penal, pretendendo que os actos jurisdicionais de aplicar e rever as medidas de coacção sejam idênticos. Em face da revogação parcial da Lei n.º 94/2021, a letra e o espírito da lei não suportam a tese do arguido. Aliás, conforme ao art.º 9.º do Código Civil, não pode ser considerado um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, devendo-se sempre presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. É o que sucede no art.º 40.º do Cód. Processo Penal após a revogação da Lei 94/2021 pela Lei 13/2022.

Neste âmbito trazemos à colação o conflito negativo decidido pelo Tribunal da Relação de Évora no qual se ajuizou que: “Na fase de julgamento compete ao juiz a quem o processo tiver sido distribuído proceder ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, no prazo a que alude o artigo 213.º do CPP, sem que a decisão que venha a ser proferida nesse âmbito – seja ela de manutenção, revogação ou de substituição por qualquer outra medida de coação, incluindo as previstas no artigo 200.º - tenha como consequência o impedimento a que alude a al. a) do artigo 40.º do CPP.”(https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/6f68bb96b6d79a8e8025857a00391737?OpenDocument). Nitidamente, esta jurisprudência é aplicável à fase anterior ao julgamento com as devidas adaptações. Com efeito, não assiste razão ao requerente por falta de fundamento legal e jurisprudencial.

Nos termos expostos e ao abrigo das disposições legais citadas, decide-se indeferir o impedimento e a nulidade invocados.

Notifique, incluindo a promoção do Ministério Público, ao arguido e ao assistente.”

2 - Fundamentação.

A. Delimitação do objecto do recurso.

A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (art.º 412.º), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

A questão (única) a decidir no presente recurso reside em averiguar se existe fundamento de impedimento do JIC, nos termos do art.º 40.º, n.º 2 do CPP e reflexos processuais.

B. Decidindo.

É de referir, em primeiro lugar, que, salvo o devido respeito, não faz parte do objeto do recurso, como o próprio recorrente o delimita (aludindo aos concretos despachos recorridos), a apreciação de um alegado despacho em que o Mm.º Juiz a quo teria indeferido uma alteração do estatuto coativo do recorrente (para OPHVE) no confronto com um despacho anterior onde se teria aplicado a prisão preventiva.

Trata-se, sim, de avaliar a legalidade da “participação” do Mm.º Juiz a quo na fase da instrução, nomeadamente de um eventual impedimento legal.

A norma em causa, como da decisão recorrida consta, é o artigo 40.º, que tem a seguinte redação, na parte que interessa:

Impedimento por participação em processo

1 - Nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver:

a) Aplicado medida de coação prevista nos artigos 200.º a 202.º;

(…)

e) Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta.

2 - Nenhum juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos termos previstos nas alíneas a) ou e) do número anterior.

A tese do recorrente é que se deve interpretar a expressão “aplicar medida de coação” como abrangendo também as reapreciações das medidas de coação referidas na norma, efetuadas ao abrigo do disposto no art.º 213.º.

Salvo o devido respeito, a tese do recorrente não se nos afigura ter qualquer fundamento válido.

Por um lado, temos a considerar o elemento literal, pois temos como seguro que aplicar não é reexaminar ou reapreciar: aplica-se a medida apenas uma vez e reexamina-se as vezes que forem necessárias, nos exatos termos do art.º 213.º. Assim, quanto a qualquer reapreciação de medida de coação aplicada, importa referir o teor do Acórdão da Relação de Évora de 31.08.2016 proferido no processo 27/15.8GBSTB-A.E1 (Relator João Gomes de Sousa):

“Quanto às medidas de coacção, com sua natureza cautelar, a jurisprudência tem sido (…) abundante. De onde decorrem duas claras asserções lógicas: a medida de coacção altera-se se ocorrer alteração das circunstâncias; mantém-se caso tal não ocorra.

De tudo se deduz a imutabilidade da decisão caso não ocorram circunstâncias de facto e de direito entre a primeira tomada de decisão e a sua revisão que impliquem uma alteração da decisão, sem prejuízo dos deveres oficiosos e do prazo de reanálise dos pressupostos de aplicação das medidas.

É ver o acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 20-12-2012 (30/10.4PEBJA-C.E1, rel. Ana Bacelar Cruz) “as decisões que aplicam medidas de coação estão sujeitas à condição rebus sic stantibus, no sentido de se manter a sua validade e eficácia enquanto permanecerem inalterados os pressupostos em que assentam”.

Di-lo, de forma clara, o acórdão da TRP de 22-09-1999 (rel. Teixeira Mendes): “Enquanto não ocorrerem alterações fundamentais ou significativas da situação existente à data em que foi decidido aplicar a prisão preventiva (admitindo que concorriam nessa altura as hipóteses ou condições previstas na lei) não pode o tribunal reformar essa decisão sob pena de, fazendo-o, provocar a instabilidade jurídica decorrente de julgados contraditórios com inevitáveis reflexos negativos no prestígio dos tribunais e nos valores da certeza ou segurança jurídica que constituem os verdadeiros fundamentos do caso julgado”.”

No caso dos autos, porém, o recorrente alega que, “ao ser revista, ao ser reexaminada a situação ao nível coativo, a prisão preventiva deixa de subsistir por via do despacho judicial inicialmente proferido, sendo o ulterior que a mantém e não o inicial.”

Trata-se de alegação, como vimos, sem qualquer suporte legal, pois a decisão inicial de aplicação da medida de prisão preventiva mantém-se enquanto os pressupostos que a motivaram não se alterarem, ou seja, quando ocorrerem quaisquer circunstâncias que tenham ocorrido ex novo após o despacho que decretou a medida. As circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis naquele momento, que podem ser sindicadas nomeadamente através de recurso daquela decisão, não podem vir a ser invocadas posteriormente para fundamentar uma alteração do estatuto coativo, sob pena de violação do caso julgado que se formou sobre tal decisão.

Importa aqui, porque plenamente aplicável aos presentes autos, referir o teor do Acórdão deste TR de 20.02.2018 (2) proferido no processo 5/17.2GANIS-A.E1 (Relatora Ana Brito):

“Como se disse, e como tem sido jurisprudência constante, tratando-se de recurso de despacho que cura do reexame dos pressupostos da prisão preventiva, o âmbito (do recurso) circunscreve-se ao conhecimento das repercussões de eventuais vicissitudes (processualmente relevantes) ocorridas após prolação do despacho que determinou a medida de coacção que se mantém.

Assim, não está em causa a rediscussão dos fundamentos da prisão preventiva decretada anteriormente, mas tão só a apreciação da persistência das exigências cautelares que então se reconheceram. Conhecendo, designadamente, da relevância do único facto novo trazido pelo arguido ao processo e de que, contrariamente ao que o mesmo afirma no recurso, no despacho se conheceu.

As medidas de coacção estão sujeitas à cláusula rebus sic stantibus, e no caso de se manterem inalteradas as circunstâncias avaliadas no anterior despacho, a prisão preventiva é de manter. Em suma, nos despachos de reexame de medida de coacção não é nunca de um repensar de decisão que se trata.”

Por seu turno, consta do Acórdão do TRG de 03.07.2017 proferido no processo 142/14.5JELSB.G1 (3) o seguinte, que se subscreve sem reservas:

“Na redacção actual, o impedimento abrange não apenas o juiz que aplicou a prisão preventiva, mas também aquele que aplicou as outras medidas de coacção previstas nos arts. 200º a 202º do CPP. Por outro lado, caiu o impedimento decorrente da prolação de decisão que mantivesse a medida de prisão preventiva.

Esta alteração não resulta de esquecimento, antes ficou a dever-se ao entendimento de que a decisão que procede ao reexame dos pressupostos das medidas de coacção não tem «a densidade qualitativa da decisão que aplica a medida».

O juiz que procede o reexame não estabelece o silogismo judiciário entre os indícios existentes e a medida aplicável, mas limita-se a verificar se tal silogismo se elabora da mesma forma ou se, em face do preexistente, existiu algum elemento factual superveniente que leva à sua alteração.

Por isso, a opção do legislador de afastar do campo de aplicação do artigo 40.º do C.P.P. o caso de reexame está devidamente justificado pelo facto de «uma menor intensidade qualitativa da intervenção não colocar em causa a imparcialidade do juiz de julgamento».”

Do exposto resulta, quanto a nós com toda a clareza que, no art.º 40.º, n.º 2 a alusão à aplicação das medidas ali previstas exclui a reapreciação ou o reexame de medida anteriormente aplicada. (4)

Não há, assim, qualquer impedimento ou a consequente nulidade invocada pelo recorrente.

Quanto a uma eventual violação do art.º 32.º, números 1, 2, 5 e 9 da CRP (5), importa lembrar, com Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão (6) que “… é ainda necessário, ao lado e para além daquela segurança geral, não permitir que se ponha em dúvida a «imparcialidade» dos juízes, já não em face de pressões exteriores, mas em virtude de especiais relações que os liguem a um caso concreto que devam julgar. Como de todos os lados se acentua, a estrita e absoluta objetividade do juiz na realização da justiça no caso é condição irrenunciável para que ela possa constituir-se como expressão da ideia de Estado de Direito, sendo para tal fundamental garantir a sua imparcialidade. O princípio da imparcialidade do juiz constitui, assim, uma exigência irrenunciável no exercício da justiça, penal e também não penal, obviamente.”

Como acima se mencionou, a decisão que procede ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva não tem a densidade qualitativa da decisão que aplica a medida, pelo que o juiz que procede o reexame não estabelece o silogismo judiciário entre os indícios existentes e a medida aplicável, mas limita-se a verificar se tal silogismo se elabora da mesma forma ou se, em face do preexistente, existiu algum elemento factual superveniente que leva à sua alteração. Tratando-se de juiz diferente e dada a sua posição diferenciada (e, efetivamente, mais distante (7)) face ao objeto do processo, inexistem quaisquer motivos que coloquem em crise, minimamente, a sua imparcialidade, não se mostrando a interpretação que vimos defendendo violadora das normas constitucionais e da CRDH invocadas.

*

O recurso é, pois, totalmente improcedente.

3 - Dispositivo.

Por tudo o exposto e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar as decisões recorridas.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art.º 513.º, n.º 1 do CPP e art.º 8.º, n.º 9/Tabela III do Regulamento das Custas Processuais).

(Processado em computador e revisto pelo relator)

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1 Diploma a que pertencerão todas as referências normativas ulteriores que não tenham indicação diversa.

2 Em que está em causa uma medida de prisão preventiva, mas que tem aplicação, com as devidas adaptações ao caso da OPH.

3 Disponível em www.dgsi.pt.

4 Neste sentido, vide Paulo Pinto de Albuquerque e Mário Meireles in Comentário do Código de Processo Penal, 5.ª edição, vol. I, UCP Editora, 2023, página 142: “não está impedido de intervir em julgamento o juiz que confirmou, uma ou mais vezes, a prisão preventiva aplicada ao arguido por outro juiz”, ou seja, “o juiz que apenas procede ao reexame das medidas previstas nos artigos 200.º a 202.º não fica impedido de intervir no julgamento do caso”, considerações aplicáveis ao “juiz em instrução”. (idem, fls. 146, nota 19)

5 E art.º 6.º da CEDH.

6 In Direito Processual Penal, Os Sujeitos Processuais, Coimbra, Gestlegal, 2022, página 38.

7 Está em causa, para usar uma expressão de José Mouraz Lopes (in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo I, Almedina, 2019, página 473), um menor “grau de imersão processual”.