EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO JUDICIAL
DIREÇÃO DA LIQUIDAÇÃO DO ACTIVO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
PODERES/DEVERES DO JUIZ
Sumário


I No caso de estarmos perante a prolação de um mero despacho, vigorando igualmente o dever de fundamentação fatual e jurídica, e sendo aplicável o disposto no art.º 615º, n.º 1, ex vi n.º 3 do art.º 613º também do C.P.C., a exigência a fazer será necessariamente diversa da que se fará no caso de prolação de uma sentença (cfr. o art.º 607º do C.P.C.), e aferida consoante a complexidade da questão a decidir.
II Precedendo o despacho de encerramento da liquidação do ativo, o juiz, no âmbito do poder/dever de fiscalização que lhe assiste, pode pedir informações ao AI –art.º 61º CIRE-, pode destituir o AI com justa causa –art.º 56º do CIRE-, ou convocar a assembleia de credores –art.º 75º do CIRE.
III Ao juiz não cabe a direção da liquidação do ativo, não dispõe da faculdade de instruir o administrador sobre o modo de proceder, não pode impedi-lo de atuar, nem o administrador está sujeito a cumprir indicações que, nesse domínio, o juiz (exorbitando as suas competências) lhe dê.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

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I RELATÓRIO (com consulta eletrónica do processo).

Mediante pedido da Administradora de Insolvência (AI), foi determinada a notificação da credora/proponente “EMP01..., Unipessoal, Lda” para prestar esclarecimentos sobre o produto da liquidação.
Esta veio apresentar requerimento em 14/3/2024, referindo nada dever à massa insolvente.
AA e outros credores, constaram, face a esse requerimento, estar em dívida à massa o valor de € 50.239,50. O credor BB por sua vez concluiu estar em dívida € 53.625,95, pugnando pelo seu pagamento.
A AI pronunciou-se pela falta do valor de € 50.239,50, referindo que o meio de ressarcir a massa seria acionar judicialmente o anterior AI então em funções, com base em responsabilidade do mesmo pelo prejuízo sofrido pela massa.
Em 28/3 a “EMP01..., Unipessoal, Lda” prestou novos esclarecimentos e a AI manteve a sua posição.
Foi sobre essa matéria proferido o seguinte despacho, em 21/4/2024:
“Requerimento de 14.03.2024 [...34] e respostas de 20.03.2024 [...64] e de 21.03.2024 [...51 e ...13]; requerimento de 28.03.2024 [...70] e resposta AI de 17.04.2024 [...64]:
Relativamente ao alegado pela adjudicatária EMP01..., Lda., entende este Tribunal não lhe assistir razão/justificação para não ter entregue a quantia de € 50.239,50.---
Na verdade, a venda dos bens móveis foi efetuada em setembro de 2019, sendo que, independentemente de nos autos ter sido ou não comunicado o alegado “desaparecimento” de bens ou qualquer pedido de redução do preço, o certo é que a lei prevê mecanismos próprios, designadamente para as situações em que se verifica a invalidade da venda [cfr. art.ºs 838.º e segs. do CPC, ex vi do art.º 17.º do CIRE], mais uma vez não havendo nos autos qualquer registo de que a adjudicatária os tenha accionado.---
Pelo exposto, indefere-se na íntegra a pretensão da adjudicatária EMP01..., Lda., no sentido de que lhe seja reconhecida justificação para não ter entregue a quantia de € 50.239,50.---
Notifique, sendo a EMP01..., Lda. para proceder ao pagamento da quantia em falta, no prazo de 10 dias.”
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Inconformada, a credora e adquirente “EMP01..., Lda.”, interpôs recurso apresentando as suas alegações que terminam com as seguintes

-CONCLUSÕES devidamente aperfeiçoadas em cumprimento de despacho proferido ao abrigo do art.º 639º, n.º 3, C.P.C. - (que se reproduzem)
“1ª
O presente recurso é interposto face à decisão proferida, através do despacho com a referência ...64, datado de 21-04-2024, que ordenou que a Recorrente procedesse à entrega do valor de €50.239,50 (cinquenta mil, duzentos e trinta e nove euros e cinquenta cêntimos), alegadamente em dívida à Massa Insolvente da sociedade “EMP02..., Lda.”. (cf. parágrafo 1 das alegações)

A Recorrente foi notificada do despacho n.º ...78, datado de 01-03-2024, para, querendo, sobre ele se pronunciar, tendo esclarecido, ponto por ponto, e documentado, a aquisição dos bens imóveis e móveis pertencentes à Massa Insolvente da sociedade “EMP02..., Lda.”, demonstrando nada dever.

Não obstante, o Tribunal “a quo”, através do despacho com a referência ...64, datado de 21-04-2024, que ordenou que a Recorrente procedesse à entrega do valor de €50.239,50, alegadamente em dívida à Massa Insolvente da sociedade “EMP02..., Lda.”. (cf. parágrafo 2 e 3 das alegações)

A Recorrente considera que o Tribunal “a quo” não fundamentou a decisão proferida – que é uma decisão de mérito – através do despacho com a referência ...64, datado de 21-04-2024, sendo, por isso, nulo tal despacho, nulidade que aqui se invoca e cuja declaração, desde já, se requer. (artigos artigo 615º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil, ex vi artigo 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)) (cf. parágrafo 4 das alegações)
Sem prescindir, caso assim se não entenda, deverá a decisão em causa ser revogada porque,

O apenso de liquidação – apenso E – foi encerrado pelo Senhor Administrador de Insolvência em 12-09-2022, tendo o Tribunal “a quo”, proferido despacho a declarar encerrado tal apenso, sendo que, por não ter sido sindicado, transitou em julgado, não podendo mais ser “atacado”. (cf. parágrafo 5 das alegações)

Não pode o Tribunal “a quo” substituir-se à actual Administradora de Insolvência, exercendo poderes inerentes a competências que são próprios desta e, nesse exercício, determinar que a Recorrente tem de pagar a quantia de €50.239,50. (cf. parágrafo 5 das alegações)

A ser possível e aceitar-se tal conduta do Tribunal “a quo”, estamos, desde logo, perante um nítido e flagrante caso que configura abuso de direito (artigo 334º do Código Civil), em concreto, na modalidade de venire contra factum proprium. (cf. parágrafo 5 das alegações)

Não pode o Tribunal “a quo” actuar como actuou, pois para além de exercer poderes que não decorrem de competências que lhe estão adstritas, acaba, também, por se sobrepor à vontade da titular dessas competências, in casu, a actual Administradora de Insolvência. (cf. parágrafo 5 das alegações)
Ainda sem prescindir, deverá, também, a decisão em causa ser revogada porque,

A Recorrente nada deve à Massa Insolvente da sociedade “EMP02..., da.” em consequência da aquisição dos bens móveis que lhe pertenciam, nem a qualquer a qualquer outro título. (cf. parágrafos 6 e 7)
10ª
A licitação efectuada pela Recorrente para aquisição dos bens imóveis, no valor de €1.100.000,00, foi realizada durante o leilão que se realizou em 15-12-2017.
Os “desaparecimentos” referidos ocorreram em data posterior à realização do leilão, tendo os mesmos, como resulta dos autos, sido mencionados na reunião da comissão de credores que se realizou em 03-04-2018.
O contrato de compra e venda desses bens móveis, momento em que a Recorrente tomou posse dos mesmos, foi celebrado em ../../2019, data em que os referidos “desaparecimentos” já tinham ocorrido, pois foram mencionados na reunião da comissão de credores que se realizou em 03-04-2018. (cf. parágrafo 8)
11ª
Tendo a Recorrente tomado posse dos bens, em ../../2019, com a celebração do contrato de compra e venda, e sendo completamente alheia a tais “desaparecimentos”, não podia (nem pode) ser prejudicada pela ocorrência dos mesmos, nomeadamente pagando por bens que licitou e que após tal licitação desapareceram e não lhe foram entregues. (cf. parágrafos 8)
12ª
A Recorrente nada deve à Massa Insolvente da sociedade “EMP02..., Lda.”, pela aquisição em causa, pelo que, deverá o Tribunal “ad quem” revogar o despacho proferido pelo Tribunal “a quo” que ordena que a Recorrente entregue a quantia de €50.239,50 à Massa Insolvente da sociedade “EMP02..., Lda.”, o que, desde já, se requer a V. Exas.. (cf. parágrafo 8 das alegações)”.
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A massa insolvente de EMP02..., Lda. apresentou contra-alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES- (que se reproduzem)

“1. O Tribunal a quo, reporta-se expressamente aos requerimentos de ambas as posições dissidentes, explicando de facto (escrevendo que dos autos não resulta qualquer registo de que a adjudicatária tenha acionado os meios legalmente previstos para alegar a invalidade da venda) e de direito (escrevendo que “independentemente de nos autos ter sido ou não comunicado o alegado “desaparecimento” de bens ou qualquer pedido de redução do preço, o certo é que a lei prevê mecanismos próprios, designadamente para as situações em que se verifica a invalidade da venda [cfr. art.ºs 838.º e segs. do CPC, ex vi do art.º 17.º do CIRE]) a razão de ser da sua decisão de indeferir a pretensão da ora recorrente não entregar à massa insolvente o valor de €50.239,50.
2. Pelo que, dúvidas não restam que o despacho em crise está devidamente fundamentado e não assiste razão à recorrente.
3. Em causa não está um ato de liquidação (não estamos perante o ato necessário para a conversão do ativo em quantia pecuniária, nos moldes regulados nos artigos 156.º a 170.º do CIRE), estando em causa uma questão superveniente ao encerramento da liquidação.
4. Verificou-se agora, que o preço de uma venda já efetuada não foi pago integralmente, sem que houvesse razão alegada e provada para tal.
5. Assim, pode o Tribunal, no âmbito do processo de insolvência, apreciar dessa falta de pagamento integral e notificar o devedor para pagar a quantia em dívida à massa insolvente.
6. A venda dos bens móveis apreendidos a favor da massa pela Recorrente foi feita através de leilão eletrónico e os bens foram adjudicados à ora recorrente que os licitou pelo valor de €1.100.000,00.
7. No dia 30.08.20219, foi celebrado contrato escrito de compra e venda dos referidos bens, sendo que deste contrato não decorre o alegado desaparecimento que já seria alegadamente conhecido. Antes pelo contrário está ali estipulada a obrigação de pagar o preço integral acordado.
8. MAS, como decorre da fundamentação do Tribunal a quo, a lei prevê mecanismos para as situações em que se verifica a invalidade da venda (cfr. artigos 838.º e seguintes do CPC, ex vi artigo 17.º do CIRE), não resultando dos autos que a ora recorrente, então adjudicatária, tivesse lançado mão a qualquer um deles para invocar o direito que agora alega.
9. Nos termos das normas do CPC, verifica-se que, perante o alegado pela recorrente, a única coisa que esta poderia ter feito nos termos da lei perante o que alega ter acontecido, seria, nos termos do artigo 838.º, n.º 1, pedir a anulação da venda e a indemnização a que tivesse direito.
10. Pelo exposto, atenta a inexistência de qualquer registo documental nos autos relativos ao alegado pela agora recorrente e então adjudicatária, e atento o facto de a ora recorrente não ter feito uso dos meios legais que lhe permitiam requerer uma anulação do negócio ou uma eventual redução do preço, não podia o Tribunal a quo considerar como aceitável o não pagamento integral do preço, ou seja, o não pagamento da quantia em dívida.
11. Considerando o Tribunal a quo que este não é um ato de liquidação, mas antes uma cobrança de um crédito da massa insolvente, é lícito o despacho que determina que a adjudicatária, ora recorrente, está obrigada ao pagamento da quantia em dívida no valor de €50.239,50.”
Pede a improcedência do recurso com a manutenção da decisão proferida.
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O recurso foi admitido como apelação com subida imediata, em separado e efeito suspensivo, o que não foi alterado por este Tribunal.

Mais disse o Tribunal recorrido:
“Vem arguida a nulidade da sentença, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. a) do CPC.---
Cumpre, pois, proferir despacho nos termos do art.º 617.º do citado diploma.---
Ora, salvo o devido respeito, afigura-se-nos que a decisão proferida não padece da invocada nulidade, pois que da mesma consta de forma clara e inequívoca os seus fundamentos quer de facto quer de direito, não se encontrando os mesmos em oposição nem padecendo de qualquer ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. (…)”.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.
Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:
-se o despacho proferido é nulo por falta de fundamentação;
-se o despacho recorrido violou o caso julgado formado por anterior(es) despacho(s), se o juiz exorbita o âmbito da sua competência ao proferi-lo, ou se estamos perante um abuso de direito;
-se assim não for, se o despacho não se mostra correto uma vez que nada é devido à massa.
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III MATÉRIA A CONSIDERAR.

A matéria a considerar é a que consta do relatório supra.
Acresce (resultado da consulta eletrónica de todos os apensos):
-No apenso de liquidação (E) foi junto aos autos “contrato de compra e venda com reserva de propriedade”, com data de 30/8/2019, prevendo a venda dos bens aprendidos para a massa, descritos em anexo, à recorrente, e o seu pagamento, conforme plano prestacional previsto, pelo valor de 1.100.000,00, acrescido de IVA, no total de € 1.253.000, tendo a recorrente de pagar à massa € 1.217.700,00 após dedução do sinal, estando a última prestação prevista para julho de 2021.
-Desse contrato consta que a massa é legítima proprietária dos bens apreendidos e que consta do auto de apreensão, com exceção das placas eletrónicas pertencentes à verba 141 e das verbas 125, 126, 149 e 186.
-Pelo AI foi prestada informação no sentido do levantamento da reserva de propriedade sobre alguns dos bens, o que teve a aceitação da comissão de credores, face ao decurso do cumprimento do plano prestacional.
-Em 10/3/2022, sempre no apenso de liquidação, o AI informou que todas as prestações estavam pagas. Essa informação foi reiterada em 27/5/2022.
-Em 12/9/2022 o AI informou nesse apenso que, conforme aquela informação prestada, a liquidação mostra-se concluída, tendo já apresentado contas no respetivo apenso, pedindo que assim seja declarado.
-Por despacho de 14/9/2022 foi declarado encerrado o apenso de liquidação do ativo.
-Por sentença de 8/6/2023, proferida no respetivo apenso J, foram julgadas boas as contas apresentadas pelo AI.
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Temos ainda por assente, face ao alegado pela recorrente no seu requerimento de 14/3/2024, conjugado com os documentos então juntos (o que não foi impugnado) que:
-Relativamente à última prestação de € 50.239,50, a mesma não foi paga, tendo sido emitida pela massa insolvente uma nota de crédito € 53.625,97, com data de 22/6/2022.
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IV- O MÉRITO DO RECURSO.

Dispõe o art.º 615º, nº. 1, do C.P.C., que é nula a sentença quando: (…)
“b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
(…).
As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença.
As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cfr. Acórdão desta Relação de 4/10/2018 em que foi relatora a Exmª Srª Desembargadora Drª Eugénia Cunha, e do STJ de 17/10/2017, publicados em www.dgsi.pt, como todos os que citaremos sem outra indicação).
Conforme Acórdão desta Relação relatado pela Exmª Srª Desembargadora Drª Maria João Matos com a mesma data e igualmente publicado “As decisões judiciais proferidas pelos tribunais no exercício da sua função jurisdicional podem ser viciadas por duas distintas causas (qualquer uma delas obstando à sua eficácia ou validade): por se ter errado no julgamento dos factos e do direito, sendo então a respectiva consequência a sua revogação; e, como actos jurisdicionais que são, por se ter violado as regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou as que balizam o conteúdo e os limites do poder à sombra do qual são decretadas, sendo então passíveis de nulidade, nos termos do art. 615.º do C.P.C. (neste sentido, Ac. do STA, de 09.07.2014, Carlos Carvalho, Processo nº 00858/14, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem).”
Refere a recorrente que o Tribunal a quo não fundamentou a sua decisão, uma vez que (e resumindo ao que importa) “o 3º parágrafo, não chega a ser fundamentação porque não faz qualquer demonstração – fundamentar é demonstrar e não apenas aludir – da razão de serem, alegadamente, aplicáveis, no caso concreto, os artigos 838º e seguintes do Código de Processo Civil (regras respeitantes ao processo executivo) e não as regras próprias da liquidação e venda dos bens que integram a Massa Insolvente nos processos de insolvência.”
O dever de fundamentação assenta no principio constitucional da obrigatoriedade de fundamentação de todas as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente (art.º 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).
A fundamentação tem de ser factual e jurídica. E, de acordo com o n.º 2 do art.º 154º, não pode ser através da mera adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou oposição em apreço, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade. O dever de fundamentação abrange todos os pedidos controvertidos e todas as dúvidas suscitadas no processo, mas também abrange o dever de explicitação dos motivos que levaram o julgador a dirimir a controvérsia em determinado sentido.
Portanto, no caso de estarmos perante a prolação de um mero despacho, vigorando igualmente o dever de fundamentação fatual e jurídica, e sendo aplicável o disposto no art.º 615º, n.º 1, ex vi n.º 3 do art.º 613º também do C.P.C., a exigência a fazer será necessariamente diversa da que se fará no caso de prolação de uma sentença (cfr. o art.º 607º do C.P.C.), e aferida consoante a complexidade da questão a decidir.
Pode divergir-se se a falta absoluta constitui a causa de nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 615º – “a ausência total de fundamentos de direito e de facto” conforme refere José Alberto dos Reis “Código V cit., pág. 140, e Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª. ed., 1985, págs. 670 a 672; ou se a integra uma fundamentação apenas incompleta ou insuficiente.
Tem sido posição maioritária da jurisprudência que apenas a falta absoluta conduz à nulidade; admite-se que uma insuficiência grosseira (situação diversa da falta de mérito justificativo suficiente para justificar a parte dispositiva, que sempre se traduzirá antes em erro de julgamento) possa equivaler à falta.
Revertendo ao caso, cremos que a decisão mostra-se suficientemente fundamentada naquele 3º parágrafo (“…a venda dos bens móveis foi efetuada em setembro de 2019, sendo que, independentemente de nos autos ter sido ou não comunicado o alegado “desaparecimento” de bens ou qualquer pedido de redução do preço, o certo é que a lei prevê mecanismos próprios, designadamente para as situações em que se verifica a invalidade da venda [cfr. art.ºs 838.º e segs. do CPC, ex vi do art.º 17.º do CIRE], mais uma vez não havendo nos autos qualquer registo de que a adjudicatária os tenha accionado.”), uma vez que concretiza a data da venda e considera irrelevante os factos alegados como justificativos da “falta” de pagamento do valor aqui em causa, e, concluindo pela aplicação ao caso das regras aí mencionadas e aqui não verificadas, decide no sentido da falta de razão da recorrente.
Questão diversa, é se tais argumentos alegados pela recorrente são de facto irrelevantes, e se tais regras são de facto aplicáveis ao caso, o que consiste na apreciação do mérito do despacho.
Improcede por isso esta primeira questão recursiva.
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A segunda questão a analisar prende-se com a figura do caso julgado formal, matéria invocada em sede recursiva como fundamento da revogação do despacho recorrido.
Invoca a recorrente tal figura, uma vez que no apenso E foi proferido despacho a encerrar a liquidação. Assim sendo, ficou consolidada a situação.
Refere então o art.º 613º, n.º 1 que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
Este princípio - esgotamento do poder jurisdicional - justifica-se pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade de a decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, funcionando como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias.
Assim, uma vez prolatada uma decisão, “o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...) Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão” (Rui Pinto “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, pág. 174).
Também Alberto dos Reis (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 127) associa o princípio do esgotamento do poder jurisdicional a uma razão de ordem doutrinal e a uma razão de ordem pragmática, desde modo: “Razão doutrinal: o juiz, quando decide, cumpre um dever – o dever jurisdicional – que é a contrapartida do direito de acção e de defesa. Cumprido o dever, o magistrado fica em posição jurídica semelhante à do devedor que satisfaz a obrigação. Assim como o pagamento e as outras formas de cumprimento da obrigação exoneram o devedor, também o julgamento exonera o juiz; a obrigação que este tinha de resolver a questão proposta, extinguiu-se pela decisão. E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se logicamente que, uma vez extinto o dever pelo respectivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se.
A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. Que o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão”.
Da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar -cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, 2.ª ed., Vol. I, pág. 762.
Da extinção do poder jurisdicional decorre que o juiz não pode, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada (cf. Acórdão da Relação de Coimbra, de 17/4/2012, relator Henrique Antunes, www.dgsi.pt).
Conforme se concluiu no Acórdão de 2/3/2023 desta Relação (em que a aqui relatora foi adjunta) “Prolatada a decisão, e ressalvados os casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades, por força do esgotamento do poder jurisdicional fica vedada a possibilidade de essa decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, apenas sendo possível obter a sua alteração através de recurso que dela venha a ser interposto.
(…)
A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão.
Se o tribunal, em desrespeito do comando ínsito no art. 613º, nº 1 (e fora dos ressalvados casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades) proferir outra decisão que incida sobre a mesma matéria que já foi anteriormente apreciada, a nova decisão que padeça de tal vício é juridicamente inexistente e não vale como decisão jurisdicional por ter sido proferida em momento e circunstâncias em que o aludido poder jurisdicional já se tinha esgotado (cf. neste sentido, Acórdão do STJ, de 6.5.2010, Relator Álvaro Rodrigues, in www.dgsi.pt).”
Nesses considerandos assenta o caso julgado formal previsto no art.º 620º, n.º 1, do C.P.C.: “1 - As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.”
Antunes Varela (“Manual de Processo Civil”, pags. 307 e 308 da 2ª edição) diz-nos que caso julgado é a alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito que não admite recurso ordinário. É material o que assenta sobre decisão de mérito proferida em processo anterior; nele a decisão recai sobre a relação material ou substantiva litigada; é formal quando há decisão anterior proferida sobre a relação processual. Ele pressupõe a repetição de qualquer questão sobre a relação processual dentro do mesmo processo. Ambos pressupõem o trânsito em julgado da decisão anterior.
João Castro Mendes (“Direito Processual Civil”, A.A.F.D.L, 1980, III vol., pág. 276) diz-nos que o caso julgado formal traduz a força obrigatória dentro do processo, contrariamente ao caso julgado material, cuja força obrigatória se estende para fora do processo em que a decisão foi proferida.
O caso julgado formal, tal como o caso julgado material, visa evitar a repetição de decisões judiciais sobre a mesma questão, e a contradição de decisões. Pressuposto do caso julgado formal é que uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi recorrida, seja objeto de repetida decisão (Ac. do STJ de 8/3/2018, Relator Fonseca Ramos, www.dgsi.pt).
Para o efeito o respetivo despacho ou sentença terá transitado em julgado, ou seja, terá de ser já insuscetível de recurso ordinário, ou no caso de não ser admissível de reclamação (arguição da sua nulidade ou pedido da sua reforma -art.ºs 615º n.º 4 e 616º nº 2 do CPC) –cfr. artº. 628º do C.P.C...
Formado o caso julgado, tal significa que não é mais possível que a decisão proferida seja substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu.
O artº. 625º do C.P.C. resolve os casos que podemos considerar anómalos, de haver casos julgados contraditórios, ou de haver decisões que, dentro do mesmo processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.
A doutrina e a jurisprudência pronunciam-se muitas e longas vezes sobre o alcance do caso julgado, com particular enfoque no caso julgado material nas suas duas vertentes, a positiva e a negativa. Remetemos a propósito para o que já dissemos por exemplo no Ac. (da mesma relatora) de 6/2/2020 proferido no processo nº. 26/18.8T8MDR.G1.
No entanto, quando somos colocamos perante a hipótese de caso julgado formal, temos igualmente de ponderar o seu alcance.
E diríamos então que, tal como se diz a propósito do caso julgado material, e diz Miguel Teixeira de Sousa (“Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil”, pág. 579): “…reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”.
Rodrigues Bastos (“Notas ao Código de Processo Civil”, 3.°, pág. 253) diz-nos:  “A economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportando à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidas por aquele critério ecléctico, que sem tomar extensiva a eficácia de caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado”.
Se duas decisões incidem sobre a mesma questão processual e com base nos mesmos pressupostos, coloca-se a figura do caso julgado formal, e só assim não será se a segunda se baseia em diferente pressuposto(s) ou circunstância(s), ou diferente previsão legal que autorize a alteração da decisão (Ac. citado do STJ, de 8/3/2018).
Significa isto que, dada uma decisão que aprecia determinada questão processual, não podendo o próprio Tribunal que a deu reapreciá-la, e caso não seja sujeita ao crivo de um Tribunal Superior, a decisão transita em julgado, tendo de ser respeitada/obedecida/cumprida naquele processo.
Relacionada com esta questão, refere a recorrente que, além do mais, a decisão de encerramento da liquidação compete ao AI.
Ao proferir o despacho, decidindo em violação da decisão de encerramento e exorbitando das suas competências, o Tribunal incorre, segundo a recorrente, em abuso de direito.
Por último, o tribunal foi contra a própria posição da AI, que entendeu que não podia mais ser exigida a quantia em causa à recorrente, e assim se pronunciou.
No que respeita ao apenso de liquidação e à esfera de competência do AI e do próprio Tribunal, importa tecer algumas considerações.
Ora, para este efeito recorremos ao texto do Ac. desta Relação de 17/3/2022, relatado pela Exmª Srª Desembargadora Drª Rosália Cunha e em que a aqui relatora foi 1ª adjunta, dado que nos revemos inteiramente no mesmo (em itálico para melhor percepção): “A liquidação do ativo é uma fase do processo de insolvência que se destina a converter todo o património do devedor numa quantia pecuniária a fim de a mesma ser posteriormente distribuída pelos credores.
Como decorre do disposto no art. 2º do Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei 22/2013, de 26.2) o administrador da insolvência é a pessoa incumbida da gestão e liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência, sendo competente para a realização de todos os atos que lhe são cometidos por esse estatuto e pela lei.
No exercício das suas funções e fora delas, o administrador judicial deve considerar-se servidor da justiça e do direito e, no exercício das suas funções, deve atuar com absoluta independência e isenção, devendo orientar sempre a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores em cada um dos processos em que seja nomeado (art. 12º, nºs 1 e 2, do EAJ).
O administrador da insolvência é um dos órgãos da insolvência (Capítulo II, Secção I, do CIRE).
As suas funções são essencialmente executivas e o mesmo tem a seu cargo as duas operações nucleares do processo de insolvência: a verificação do passivo e a apreensão e a liquidação do ativo (cf. Catarina Serra in Lições de Direito da Insolvência, 2º ed., pág. 75).
Em consonância com o que consta do EAJ, resulta do CIRE que a liquidação é uma das tarefas legalmente cometidas ao administrador de insolvência que a exerce com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir, (art. 55º, nº 1, al. a), e sob a fiscalização do juiz o qual pode, a todo o tempo, exigir ao administrador que preste informações sobre qualquer assunto ou que apresente relatório da atividade desenvolvida e do estado da administração ou liquidação (art. 58º).
A atividade do administrador da insolvência está ainda sujeita a controlo pela entidade responsável pelo acompanhamento, fiscalização e disciplina dos administradores judiciais, podendo ser-lhe aplicadas sanções em caso de incumprimento dos deveres previstos na lei (art. 17º do EAJ).
Não obstante estar sujeito à aludida fiscalização, a liquidação do ativo é da competência do administrador da insolvência ao qual cabe realizar todos os atos necessários à dita conversão do ativo em quantia pecuniária, nos moldes regulados nos arts. 156º a 170º.
O juiz não tem “qualquer poder de direção sobre o administrador da insolvência, apenas controlando a legalidade dos atos praticados e a sua adequação ao fim do processo e ao objetivo de servir a justiça e o direito, como se refere no art. 12º, nº 1, do Estatuto do Administrador Judicial (...).
Neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda (Código..., op. cit. pág. 268) consideram que o juiz não dispõe ‘da faculdade de instruir o administrador sobre o modo de proceder, não podendo impedi-lo de atuar, nem, por contrapartida, o administrador (...) (está) sujeito a cumprir indicações que, nesses domínios, o juiz seja tentado a dar-lhe” (Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, in CIRE Anotado, pág. 188).
Compreende-se que assim seja pois “quanto ao juiz e às funções que desempenha, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas adoptou um novo entendimento. Deu, numa palavra, início ao processo de desjudicialização. O juiz limita-se a intervir nas fases verdadeiramente jurisdicionais, ou seja, nas fases de declaração de insolvência, da homologação do plano de insolvência e da verificação e da graduação de créditos. O que quer dizer que ele não tem uma participação significativa no processo substancial de decisão quanto ao destino do devedor e, designadamente, à alternativa recuperação/liquidação da empresa” (Catarina Serra in ob. cit., pág. 74).
Portanto, e em síntese, a decisão de continuar ou encerrar a liquidação do ativo enquadra-se na esfera das tarefas que são da competência do administrador da insolvência, estando arredada da esfera de competência jurisdicional.
Por isso mesmo, nos arts. 156º a 170º, que regulam o procedimento da liquidação do ativo, não se encontra qualquer disposição da qual decorra a necessidade de prolação de despacho judicial a declarar encerrada a liquidação do ativo. E não se encontra precisamente porque se trata de um ato que não é da competência do juiz, sendo da competência do administrador da insolvência, que a exerce de forma autónoma, embora com sujeição à fiscalização supra referida, designadamente da comissão de credores, se existir, e do juiz.”
O Ac. também desta Relação de 2/3/2023 (relator José Carlos Pereira Duarte) segue idêntica linha.
Significa isto que o despacho proferido no apenso E não faz caso julgado no que concerne ao encerramento da liquidação?
Não obstante tratar-se de um despacho declaratório, entendemos que não se trata de um despacho de mero expediente, conforme Ac. em que foi relatora a do presente, de 22/6/2023, uma vez que perante as razões e a posição que o AI apresenta e precedendo o mesmo despacho, o juiz, no âmbito do poder/dever de fiscalização que lhe assiste, pode pedir informações ao AI –art.º 61º CIRE-, pode destituir o AI com justa causa –art.º 56º do CIRE-, ou convocar a assembleia de credores –art.º 75º do CIRE.
E, por isso, faz caso julgado nos termos supra mencionados, ou seja, na medida em que aprecie determinadas questões, o que não poderá deixar de ser aferido caso a caso.
Além disso, o fundamento do caso julgado assenta no facto de terem sido tidos em conta para a prolação da decisão determinados pressupostos. E só impede que se profira outra decisão que incida sobre os mesmos pressupostos.
Ora, neste caso, como se vê do desenrolar do apenso de liquidação, o encerramento teve como pressuposto a informação do AI no sentido do pagamento integral do preço.
Temos, contudo, por admitido pela recorrente que assim não sucedeu. De facto, o valor de € 50.239,50 não foi pago.
Portanto, pelo prisma da figura do caso julgado formal, nada impedia o Tribunal de, com base nessa nova “informação”, alterar o sentido do despacho e retomar a liquidação, de modo a compor o valor em falta.
Quanto ao abuso de direito invocado (cfr. art.º 334º do C.C.)., afastamos tal consideração liminarmente já que o Tribunal não exerce direitos nos processos, aplica a lei, definindo direitos, e executa decisões, e nessa atividade está sujeito ao direito de recurso das partes. Logo nunca poderia cogitar-se tal figura.
Cremos, porém, que um outro óbice impede o Tribunal de determinar o pagamento do valor em causa: precisamente porque a incumbência a tal respeitante pertence ao AI. Ora, a massa insolvente, por ele administrada, entendeu que tal valor não seria devido (e inclusive fez menção no contrato de compra e venda ao facto de a massa não ser “dona” de determinadas verbas constante do auto, embora não tenha nesse mesmo contrato tirado qualquer consequência do facto), emitindo uma nota de crédito. Essa decisão competia-lhe. E entendeu o AI em funções que o valor estava integralmente liquidado.
Como já vimos, e voltando ao acórdão de 22/6, ao juiz não cabe a direção da liquidação, não dispõe da faculdade de instruir o administrador sobre o modo de proceder, não pode impedi-lo de atuar, nem o administrador está sujeito a cumprir indicações que, nesse domínio, o juiz (exorbitando as suas competências) lhe dê.
Neste caso, o AI, no apenso de liquidação, entendeu que tal valor não era devido, daí a emissão da nota de crédito. Esta não é por isso uma questão superveniente à liquidação, foi nessa sede já tratada. E respeita à mesma liquidação, já que se trata do produto devido pela compra dos bens apreendidos para a massa. Também não é pelo facto do requerimento ter sido apresentado no processo principal que substancialmente cai fora do âmbito da matéria da liquidação.
Igualmente nesta fase, e perante o requerimento apresentado nos autos e sobre o qual se pronunciou, a atual AI entendeu que o meio de ressarcir a massa seria acionar judicialmente o anterior AI então em funções, com base em responsabilidade do mesmo pelo prejuízo sofrido pela massa.
Nada mais foi requerido por qualquer interessado. Portanto, a questão fica (e a liquidação permanece) definitivamente encerrada.
Veja-se ainda o decidido no Ac. do STJ de 9/7/2020 (processo n.º 1094/11.9TYLSB-R.L1.S1: “(…) Portanto, não pode haver dúvidas que o legislador do CIRE visou inverter a solução de pretérito, afastando a possibilidade de impugnação dos atos do administrador (substantivos ou de procedimento) diretamente perante o juiz da insolvência. Porém, resulta patente que tal inversão foi pensada unicamente para os credores e o insolvente, e, mesmo assim, apenas “por regra”. É isso que se afigura resultar dos excertos acima transcritos, com destaque para a comparação do texto legal anterior com o texto da lei atual. Em contrapartida, passou-se a conferir expressamente - art. 59.º do CIRE – um direito indemnizatório aos credores e ao devedor (mas não aos terceiros[1]) contra o administrador da insolvência pelos danos causados em decorrência da inobservância culposa dos respetivos deveres funcionais (esse direito indemnizatório do devedor e dos credores é a exercitar, naturalmente, através da competente ação autónoma de processo comum[2]). Pretendeu-se deste modo, sem prejuízo pois para o exercício do direito à reparação do prejuízo a que haja lugar, afastar do âmbito da insolvência tergiversações das partes naturais do processo (devedor e credores) relativamente aos atos do administrador da insolvência. É este o sentido e alcance, cremos, do aludido ponto 10 do Preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE.”.
Procedendo o argumento recursivo relativo à violação da esfera de competência do AI, fica prejudicada a análise do acerto da decisão, nomeadamente se são aplicáveis, (e se a recorrente devia ter reagido por essa via), as normas relativas à venda citadas no despacho recorrido –cfr. art.º 608º, n.º 2, ex vi art.º 663º, n.º 2, ambos do C.P.C.).
Note-se que esta situação relativa à competência do AI diverge das situações respeitantes à prática de atos pelo agente de execução e respetivo meio de reação, matéria esta tratada pelo aqui 1º adjunto nos acórdãos de 7/6/2023 e de 15/2/2024 (este último com a participação da aqui relatora e do aqui 2º adjunto).
Por esse motivo, cabe revogar o despacho aqui recorrido, que determina a notificação da recorrente para proceder ao pagamento da quantia em falta, no prazo de 10 dias, face à procedência da apelação.
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso totalmente procedente, e em consequência, concedem provimento à apelação, revogando o despacho recorrido.
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Custas a cargo da massa insolvente (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 19 de setembro de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: José Alberto Moreira Dias
2º Adjunto: Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)