ARRESTO
CASO JULGADO MATERIAL
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
REPETIÇÃO
JUROS
Sumário

I - Nas providências cautelares não se forma caso julgado material, pois nem o julgamento da matéria de facto nem a decisão final proferida no procedimento são definitivas, nenhuma influência tendo no julgamento da ação principal de que o procedimento é dependente. Sendo a tutela alcançada com estes procedimentos provisória, não podem confundir-se com instrumentos de tutela definitiva, esta a que releva para a exceção dilatória do caso julgado, sempre a figura do caso julgado nunca poderia ter ampla aplicação no âmbito dos procedimentos cautelares, a faltar norma especial.
II - A proibição da repetição de providência constitui-se como uma hipótese especial, perante a particular natureza desta, acima anotada, de salvaguarda das razões subjacentes ao instituto do caso julgado: por um lado, afirmar/concretizar os princípios da economia e da celeridade processuais e, por outro lado, a autoridade e prestígio das decisões (prevenção de eventuais pronúncias de sinal contraditório ou de conteúdo repetitivo sobre o mesmo objecto).
III - Há repetição quando está em causa uma providência com o mesmo conteúdo e que se baseie nos mesmos factos espácio-temporalmente situados.
IV - A obrigação de juros é acessória da do capital, não podendo nascer ou constituir-se sem esta; pelo que, não se constituindo o crédito de capital, inexistente o crédito de juros…
V - Verifica-se a impossibilidade superveniente do arresto, por identidade ou coincidência de objecto com a decisão já transitada proferida nos autos de procedimento cautelar que julgou contra indiciada a afirmação da dívida do capital cujos juros são os garantidos no arresto apreciando.
VI - O pedido de garantia dos juros extravasa e não coincide imediata e directamente com o pedido de garantia do capital. Não obstante, por razões de coerência sistemática, impõe-se a conclusão pela identidade de objectos, cuja apreciação tem de sê-lo concreta e casuística, a partir agora da relação intercedente entre os direitos cuja tutela antecipada foi pedida. Assim, no procedimento primeiro, a garantia do capital correspondente a uma obrigação indemnizatória por resolução infundada de contrato; neste, a garantia dos juros daquele capital…
VII - A contra-indiciação do crédito de capital, no procedimento anterior já decidida, impõe-se nestes autos, mediante a coincidência de objectos que é típica das relações de prejudicialidade; pelo que a decisão que determinou a falta de indiciação do crédito de capital garantido nos autos sob referência, veda a possibilidade de, neste novo processo, ser tutelada a dívida correspondente aos juros.
VIII - É que são exactamente os mesmos factos espácio-temporalmente situados, no que importa à causa da obrigação de que os juros cuja garantia vem pedida são dependência… Basta atentar em que na situação versada se limitou a afirmação dos juros a garantir à reprodução pura e simples do crédito de capital como indiciado no procedimento de arresto anterior.
IX - Sempre sobre o recorrido/requerente do arresto impendia o ónus de deduzir, na acção arbitral e na reconvenção que ali efectivamente deduziu, posto que relativa aos factos que integravam a defesa ali apresentada (a ilicitude da resolução) a pretensão indemnizatória que agora declara querer exercer em termos mais amplos, para afastar o risco da futura preclusão, por força do caso julgado que se constituiu no que tange à condenação concedida. Não o tendo feito, a autoridade de caso julgado inerente à decisão naquela acção, impede a dedução de pretensão precludida. E, assim, também nestes autos se infirma a realidade ou indiciação do crédito a garantir, pelo que a decisão não pode ser outra se não a do levantamento do arresto.

(da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Processo 17837/23.5T8PRT-A.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível do Porto - Juiz 3



Relatora: Isabel Peixoto Pereira
1º Adjunto: Ana Luísa Loureiro
2º Adjunto: Isabel Rebelo Ferreira




Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:


I.
A... veio interpor a providência cautelar de arresto contra B... L.da, reconduzindo-se ao seu direito ao recebimento da participação acordada (50% no resultado líquido apurado) num contrato de consórcio externo para exploração da concessão de uma sala de jogo de Bingo entre ambas celebrada e cessado pela requerida, relativa ao ano de 2023 e de juros sobre os montantes que de igual forma lhe são devidos pelos anos de 2018 a 2022.
Sem prévia audição da requerida e produzida a prova indicada pela requerente, foi decretado o peticionado arresto, embora apenas para garantia da quantia de €61.345,14, referente a juros.
Depois de devidamente notificada, veio a requerida deduzir oposição na qual invocou ocorrer caso julgado com a decisão tomada noutra providência cautelar que correu termos entre as partes e na qual terá sido negado o arresto quanto aos peticionados juros.
Mais impugnou a factualidade alegada relativa ao periculum in mora e pediu a condenação da requerente em multa e indemnização como litigante de má fé.
Foi proferida decisão, que julgou improcedente a excepção do caso julgado convocada e manteve o arresto decretado nos presentes autos, julgando improcedente a oposição deduzida.
É dessa decisão que vem interposto recurso, formulando a requerida/opoente/recorrente as seguintes conclusões:
1. Deve ser julgada procedente a excepção de caso julgado, anulando-se a sentença recorrida.
2. No acórdão arbitral, foi declarada a ilicitude da resolução contratual, e foi condenada a Recorrente condenada a pagar ao Recorrido A... a quantia de € 262 188,95, acrescida de juros moratórios à taxa legal a contar da citação e até efetivo e integral pagamento, a título de indemnização pela meação na totalidade dos lucros a que esta última teria direito pela atividade de exploração do Bingo desenvolvida nas instalações do antigo Cinema ..., no Porto, entre os anos de 2012 e 2017.
3. Este acórdão arbitral faz caso julgado.
4. O acórdão do Tribunal da Relação do Porto 11.09.2023 (DOC 8 da oposição e certidão (DOC 7) junta em 13.05.2024 com a referência 48887495) proferido no processo nº 20882/22.4T8PRT, determinou também ele a inexistência de indícios de existência do direito que se pretende acautelar.
5. O acórdão datado de 11.09.2023 proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, no procedimento cautelar n.º 20882/22.4 T8PRT, foi decidido que na acção a intentar, de que esse procedimento cautelar seria preliminar, a pretensão do A... está condenada a naufragar por efeito da autoridade de caso julgado dessa sentença arbitral.
6. Sendo o presente procedimento cautelar um processo derivado desse arresto decretado no processo nº 20882/22.4T8PRT, porquanto aqui se pede o arresto de bens para acautelar o pagamento dos juros devidos na acção anunciada nesse processo nº 20882/22.4T8PRT, por meridiana clareza se pode concluir que se o Acórdão da Relação do Porto decidiu que o acórdão arbitral balizou de forma definitiva o valor da indemnização devida á aqui recorrida, tal determina a falta de indícios da existência do direito que se pretende acautelar, logo não há indícios de serem devidos juros sobre aquela quantia anunciada naquele processo nº 20882/22.4T8PRT que, finalmente, não é devida.
7. Este acórdão do TRP faz caso julgado no que se refere à inexistência de indícios de existência do direito de crédito o que impede que no presente procedimento cautelar se possa arrestar bens para acautelar juros do direito de crédito inexistente e cujos indícios foram recusados por esse acórdão.
8. Não há indícios da existência do arrogado direito de crédito como o decidiu o referido Acórdão de 11.09.2023 proferido no Procº nº 20882/22.4T8PRT (DOC 8 da oposição e certidão (DOC 7) junta em 13.05.2024 com a referência 48887495).
9. O Tribunal da Relação deve alterar a matéria de facto indiciariamente dada como provada pela sentença recorrida nos termos do disposto no artº 640º nº 1 al. b) CPC.
10. Outrossim, com fundamento na prova documental a qual impõe decisão sobre matéria de facto, diversa que consta da sentença recorrida.
11. Os factos dados como provados na sentença recorrida nos pontos 18, 19, 25, devem ser dados como indiciariamente não provados, com fundamento nos seguintes documentos juntos aos autos:
- Doc. n.º 7 junto com o R.I., quanto ao facto 19.º indiciariamente dado como provado pela decisão que decretou o arresto no presente procedimento cautelar.
- Doc nº 10 junto com a oposição e certidão (DOC. 8) junta em 13.05.2024 com o requerimento com a referência 48887495, quanto ao facto n.º 25 dado como indiciariamente como provado pela decisão que decretou o arresto no presente procedimento cautelar.
- DOCS 4, 20 e 22 juntos com RI, quanto ao facto n.º 18 dado como indiciariamente como provado pela decisão que decretou o arresto no presente procedimento cautelar.
12. A Relação deve dar como provados os factos descritos nos pontos 1 a 18 desta alegação, com fundamento nos documentos e certidões juntas aos autos com a oposição ao arresto:
- DOC 1 da oposição e certidão (DOC 5) junta em 13.05.2024 com o requerimento com a referência 48887495.
- DOC 2 da oposição e certidão (DOC 3) junta em 13.05.2024 com o requerimento com a referência 48887495.
- DOC 3 da oposição e certidão (DOC 4) junta em 13.05.2024 com o requerimento com a referência 48887495.
- DOC 4 da oposição e certidão (DOC 5) junta em 13.05.2024 com o requerimento com a referência 48887495.
- DOC 5 da oposição e certidão (DOC 2) junta em 13.05.2024 com o requerimento com a referência 48887495
- DOC 6 da oposição e certidão (DOC 6) junta em 13.05.2024 com o requerimento com a referência 48887495.
- DOC 7 da oposição e certidão (DOC 6) junta em 13.05.2024 com o requerimento com a referência 48887495.
- DOC 8 da oposição e certidão (DOC 7) junta em 13.05.2024 com o requerimento com a referência 48887495.
-DOC 9 da oposição e certidão (DOC 7) junta em 13.05.2024 com o requerimento com a referência 48887495.
13. Estes sobreditos factos que a Recorrente pretende ver indiciariamente provados pelo Tribunal da Relação correspondem aos artºs 2, 3, 5, 6, 10, 11, 16, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 26, 28, 32 da oposição ao arresto.
14. O presente procedimento cautelar de arresto é uma sequência do arresto decretado no Proc. n.º 20882/22.4 T8PRT (Porto – JC Cível - Juiz 4)
15. Nesse procedimento cautelar n.º 20882/22.4 T8PRT foi decretado o arresto da quantia de € 1.126.300,74. (um milhão, cento e vinte seis mil e trezentos euros e setenta e quatro cêntimos), para garantia de crédito cujo pagamento seria futura acção de condenação, da qual essa providência cautelar seria preliminar e cuja causa de pedir incidiria nos lucros declarados da Requerida durante os anos de 2018 a 2022.
16. Em face dos documentos juntos autos descritos na conclusão 12ª, constata-se que no procedimento cautelar n.º 20882/22.4 T8PRT (Porto – JC Cível - Juiz 4) a apreensão de bens decretada pela sentença na 1ª instância, não tem nenhuma decisão jurisdicional que a suporte, mercê da alteração com redução parcial do arresto, operada pelo acórdão da Relação do Porto de 11.09.2023 quanto á quantia que excede 314.195,74€.
17. A sentença aqui recorrida olvidou totalmente o acórdão proferido pela Relação do Porto em 11.09.2023 (DOC 8 da oposição e certidão (DOC 7 junto em 13.05.2024 com a referência 48887495) que revogou a decisão de 1ª instância na qual se arrimou o Recorrida A... nos presentes autos para requerer o arresto .
18. Esse acórdão da Relação do Porto de 11.09.2023 decidiu a redução desse arresto à quantia a que o acórdão arbitral condenara a Requerida (€ 314 195,74 (€ 262.188,95 + € 52.006,79 de juros de mora), e que essa ação futura estará condenada ao insucesso.
19. A decisão que decretou o arresto em quantia superior a €314.195,74 (€ 262.188,95 + € 52.006,79 de juros de mora), porque foi revogada pela Relação do Porto, deixou de existir.
20. A sentença recorrida fez, tábua rasa do facto de ter sido revogada e anulada a decisão de arresto nesse processo na quanta excedente a €314.195,74 (€ 262.188,95 + € 52.006,79 de juros de mora).
21. No acórdão datado de 11.09.2023 proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, no procedimento cautelar n.º 20882/22.4 T8PRT, foi decidido que na acção a intentar, de que esse procedimento cautelar seria preliminar, a pretensão do A... está condenada a naufragar por efeito da autoridade de caso julgado dessa sentença arbitral.
22. Este acórdão do TRP faz caso julgado no que se refere à inexistência de indícios de existência do direito de crédito o que impede que no presente procedimento cautelar se possa arrestar bens para acautelar juros do direito de crédito inexistente e cujos indícios foram recusados por esse acórdão
23. A sentença recorrida violou o art. 619º, n.º 1 do Código Civil art.s 406º, n.º 1 e 407º, n.º 1, do Código de Processo Civil pelo que deve ser anulada.
24. A sentença arbitral não sustenta nem fundamenta a sua decisão de aresto com base no arrogado e inexistente crédito do Recorrido de € 1.126.300,74, tendo em conta os lucros declarados da Requerida nos anos de 2018 a 2022”.
25. A sentença recorrida deveria ter condenado o Recorrido como litigante de má- fé.
Conclui pela anulação da sentença recorrida.

Veio o recorrido apresentar contra-alegações, pugnando pelo acerto da decisão recorrida, nos termos e com os fundamentos que dos autos resultam.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II.
Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são de direito e de facto as questões a tratar.
Desde logo, do caso julgado integrado pela decisão proferida no procedimento cautelar n.º 20882/22.4 T8PRT e suas consequências.
Do erro na apreciação da matéria de facto, sendo que:
a) Os factos dados como provados na sentença recorrida nos pontos 18, 19, 25, devem ser dados como indiciariamente não provados;
b) Devem ser havidos como indiciariamente provados os factos que correspondem aos artºs 2, 3, 5, 6, 10, 11, 16, 17, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 26, 28, 32 da oposição ao arresto.

Sempre e finalmente da falta de verificação do justo receio de perda da garantia patrimonial do crédito indiciado do requerente.
Também da litigância de má fé do requerente.

São os seguintes os factos havidos como provados na decisão recorrida, no que tange à questão, objecto do recurso, do caso julgado integrado pela decisão proferida nos autos sob o nº 20882/22.4T8PRT e ademais quanto ao mérito do arresto, após a oposição:
A. A Requerente instaurou, também previamente ao presente procedimento cautelar, um outro procedimento cautelar de arresto dos valores existentes em todas as contas bancárias, o qual foi decretado em 13.12.2022, no âmbito do Proc. n.º 20882/22.4T8PRT.
B. Esse procedimento cautelar de arresto foi decretado para garantia de crédito de € 1.126.300,74. (um milhão, cento e vinte seis mil e trezentos euros e setenta e quatro cêntimos).
C. Nesse procedimento cautelar de arresto, a Requerida deduziu oposição.
D. Essa oposição foi decidida, inicialmente, por sentença datada de 8.05.2023, que refere: «….. Atendendo a todos os elementos descritos entende-se que não foi efectuada prova concludente para afastar a prova que justificou o decretamento da providência cautelar de arresto. Quanto á impenhorabilidade dos bens suscitada pela requerida não ficou demonstrados que os bens arrestados mencionados correspondam á receita bruta ou liquida da sociedade requerida, decorrente do exercício da sua actividade. Por último, quanto ao pedido de redução do arresto para a quantia de €262.188,95 que se refere ao crédito que a sentença arbitral reconheceu á requerente, impõe-se sublinhar que o créditos indiciado nos autos não se reporta á decisão proferida no processo arbitral mas encontra-se sustentado nos lucros declarados da requerida durante os anos de 2017 a 2022, e dos autos não resulta provada factualidade que indicie o contrário. Assim sendo, julga-se improcedente a oposição da requerida “B..., Ldª, e, em consequência, ao abrigo do disposto no art. 372 nº 3 do Código de Processo Civil, decide-se manter a providência anteriormente decretada.»
E. Dessa sentença interpôs a aqui Requerida recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, por Acórdão datado de 11.09.2023 revogou aquela sentença, decidindo nos seguintes termos: «O inconformismo da recorrente manifesta-se, também, em matéria de direito, alegando não estar verificado nenhum dos pressupostos da providência decretada, desde logo, a existência provável de um direito de crédito a acautelar. Qualquer providência cautelar pressupõe, por um lado, que o requerente seja titular de um direito, ainda que meramente aparente, e o perigo de insatisfação desse direito aparente, por outro. O artigo 619.º, n.º 1, do Código Civil confere ao credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito o direito de requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei de processo. Por seu turno, o art.º 392.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil estabelece que o requerente do arresto fundado no receio de perda da garantia patrimonial deduzirá os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado. Assim, para que possa ser decretado o arresto, o requerente terá de demonstrar: 1) que é titular de um direito de crédito sobre o requerido ou, pelo menos, a probabilidade da existência de um crédito; 2) o perigo de insatisfação desse crédito aparente. Quanto ao primeiro requisito, uma vez que a prova do crédito se há-de fazer na acção principal e não no procedimento cautelar, a lei contenta-se com a prova da mera aparência ou probabilidade da existência do crédito. Mesmo que se trate de um crédito fundado em responsabilidade civil (aquiliana ou contratual, como é o caso), basta que se demonstre a probabilidade da sua existência. Ora, apesar de afirmar que falta a prova do “fumus boni iuris”, a recorrente acaba por admitir que existe «prova certa constituída por sentença arbitral transitada em julgado», referindo-se à decisão do tribunal arbitral que a condenou a pagar à aqui requerente/recorrida a quantia de € 262.188,95 e juros de mora. Parece, então, poder concluir-se que certa é a existência do crédito da requerente, incerto é o respectivo quantum. Convém lembrar que o arresto foi decretado para acautelar a satisfação de um crédito de €1.126.300,74 e este montante está assim justificado na primeira decisão: «Ora, de acordo com os factos provados é inequívoco que se verifica o primeiro dos requisitos enunciados, sendo que encontra-se justificado e indiciado o crédito a favor da requerente de €1.126.300,74, tendo em conta os lucros declarados da requerida durante os anos de 2017 a 2022. Atenta a relação de instrumentalidade entre o procedimento cautelar e a ação principal, e estando em apreciação neste tipo de procedimentos apenas verifica-se que os fatos alegados e provados por documento, quanto a este requisito, é adequada e suficiente à procedência do pedido formulado». Na decisão recorrida, que julgou a oposição deduzida, reafirmou-se a provável existência de um crédito desse montante e ponderou-se ainda: «Por último, quanto ao pedido de redução do arresto para a quantia de €262.188,95 que se refere ao crédito que a sentença arbitral reconheceu à requerente, impõe-se sublinhar que o crédito(s) indiciado nos autos não se reporta á decisão proferida no processo arbitral mas encontra-se sustentado nos lucros declarados da requerida durante os anos de 2017 a 2022, e dos autos não resulta provada factualidade que indicie o contrário.» Se bem julgamos, é aqui que reside o pomo da discórdia num litígio que as partes parece quererem eternizar, com profusão de acções instauradas ou a intentar (este é o terceiro procedimento cautelar de arresto instaurado). Com efeito, enquanto a requerente, apesar da resolução do contrato de consórcio que celebrou com a requerida, considera que continua a ter direito à meação nos lucros com a actividade de exploração do jogo de bingo após 2017 e, pelo menos, até ao final da concessão, a requerida defende que o crédito indemnizatório daquela é, apenas, o que está reconhecido no acórdão arbitral, transitado em julgado. Colhe-se desse acórdão (que ambas as partes fizeram chegar a estes autos) proferido na acção que correu termos no Tribunal Arbitral que, apesar de a ter declarado ilícita, o tribunal considerou eficaz a resolução do contrato de consórcio operada pela autora/reconvinda “B... L.da”, pelo que não seria juridicamente possível a declaração judicial de resolução, por justa causa, do mesmo contrato pedida pela ré/reconvinte “A...” e, sobre a indemnização a esta devida, discorreu: «Contudo, vale este pedido como balizamento temporal determinado pelo próprio credor (S.C. A...) à indemnização a pagar pelo devedor (a “B... L.da”), só sendo por isso devida ao A... a meação dos lucros auferidos pela “B... L.da” na atividade de exploração do Bingo levada a cabo por esta sociedade isoladamente nos anos de 2016 e 2017 – e já não nos anos posteriores a 2017. Com base na matéria de facto apurada, e na ilicitude da resolução contratual, é a Autora/Reconvinda condenada a pagar à Ré/Reconvinte a quantia de € 262.188,95, acrescida de juros moratórios à taxa legal a contar da citação e até efetivo e integral pagamento, a título de indemnização pela meação na totalidade dos lucros a que esta última teria direito pela atividade de exploração do Bingo desenvolvida nas instalações do antigo Cinema ..., no Porto, entre os anos de 2012 e 2017, mas que não chegou a receber do Chefe do Consórcio (a dita Autora/reconvinda), como devia ter recebido».A recorrente defende que a acção a intentar, de que este procedimento cautelar é preliminar, está condenada a naufragar por efeito da autoridade de caso julgado desta decisão (conclusões 23.ª e 26.ª). Por outro lado, a requerente estaria impedida de invocar como fundamento do pedido indemnizatório na acção a intentar a ilicitude da resolução do contrato de consórcio porque, também em sede reconvencional, operaria o efeito de preclusão («É de considerar precludida tal invocação noutra futura contenda, uma vez que o princípio da concentração da defesa faz impender sobre o réu o ónus de apresentar na ação todos os fundamentos que possam colidir com a pretensão do autor, impondo-se-lhe também o ónus de reconvir, nos casos em que o pedido reconvencional não possa ser formulado fora desse processo – artigo 573.º, nºs 1 e 2, CPC» - conclusão 25.ª). Embora prevaleça, na doutrina e na jurisprudência, o entendimento de que não existe um ónus de reconvir, também se tem propugnado que o réu deve deduzir reconvenção «para se livrar de um prejuízo futuro e eventual (não certo): o prejuízo de preclusão do seu direito», cuja consequência seria ficar «inibido de propor uma contra-acção independente, baseando-se em factos anteriores deduzidos sem êxito ou que, podendo ter sido deduzidos em sua defesa, o não foram». O réu teria, assim, de «sempre jogar, no momento em que contesta, com a possibilidade de vir a ser proferida uma sentença favorável ao autor. Porque sobre esta se forma caso julgado material, o réu não pode, através de uma ação, com base em factos anteriores, vir a afetar o teor da sentença neste proferida» (Miguel Mesquita, in Reconvenção e Exceção em Processo Civil, págs. 441, 429 e 453). Isto para assinalar que as questões suscitadas pela recorrente são pertinentes devem ser objecto de amplo debate, mas na acção a intentar, pois não se coaduna com a natureza célere do procedimento cautelar. O que se pode aqui afirmar é que, neste enquadramento, diversamente do que se entendeu na primeira instância, não vemos que se possa afirmar a existência provável de um crédito indemnizatório da requerente sobre a requerida para além daquele que lhe foi reconhecido pelo acórdão arbitral. Por outras palavras, com este panorama, não se prefigura mais provável a obtenção de uma decisão que acolha a pretensão da requerente do que uma absolvição da requerida. Quanto ao segundo pressuposto do arresto, inexistindo, a par da enunciação de uma cláusula geral de perigo de insatisfação do direito do credor, a tipificação de situações indiciadoras do periculum in mora, a doutrina e a jurisprudência têm identificado situações várias e diversas susceptíveis de integrar essa cláusula geral. Segundo J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, Almedina, 4.ª edição, pág. 144) «Afastada a enunciação legal dos respectivos fundamentos, qualquer causa idónea a provocar num homem normal esse receio é concretamente invocável pelo credor, constituindo o periculum in mora: pode tratar-se do receio de insolvência do devedor (a provar através do apuramento geral dos seus bens e das suas dívidas) ou o da ocultação, por parte deste, dos seus bens (se, por exemplo, ele tiver começado a diligenciar nesse sentido, ou usar fazê-lo para escapar ao pagamento das suas dívidas); mas pode igualmente tratar-se do receio de que o devedor venda os seus bens (como quando se prova que está tentando fazê-lo…), ou de qualquer outra atuação do devedor que levasse uma pessoa de são critério, colocada na posição do credor, a temer a perda da garantia patrimonial do seu crédito». No caso, apesar de a recorrente já ter manifestado vontade de pagar de imediato a quantia em que foi condenada pelo tribunal arbitral, sobreleva a evidente natureza volátil dos activos constituídos pelos saldos das contas de depósitos. Justifica-se, pois, a manutenção do arresto, mas, sendo o valor arrestado manifestamente excessivo, impõe-se a sua redução ao montante necessário à satisfação do crédito reconhecido à requerente. * A recorrente alega, ainda, que o valor arrestado (€ 1.126.300,74) é um bem impenhorável, logo, não podia ter sido apreendido. Por isso a decisão recorrida teria violado as disposições dos artigos 27.º, 28.º e 29.º do Dec. Lei n.º 31/2011, de 4 de Março (conclusões 17.ª e 18.ª).
As referidas disposições legais definem o regime fiscal e de afectação das receitas do bingo, mas nada permite afirmar que aquele valor era receita bruta do jogo e não, apenas, a receita do concessionário. Aliás, se fosse impenhorável por constituir receita do sector público ou “domínio do Estado”, como afirma a recorrente, não se vislumbra como é que isso se compagina com o seu requerimento a pedir que seja notificada a Sra. Agente de Execução para pagar à requerente o montante indemnizatório que a esta foi reconhecido, a sair desse valor arrestado. III – Dispositivo Pelas razões que ficam expostas, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente a apelação de “B... L.da” e, em consequência, 1) alterar a decisão recorrida quanto aos factos indiciariamente provados, nos termos exarados supra; 2) manter o arresto decretado, mas reduzi-lo ao valor necessário à satisfação do crédito reconhecido à Requerente “A...”, no montante de € 314.195,74 (€ 262.188,95 + € 52.006,79 de juros de mora), ordenando o levantamento do arresto na parte excedente.
F. Este acórdão foi objecto de pedido de reclamação por parte da Requerente do arresto.
G. O Acórdão da Relação do Porto datado de 19.12.2023 indeferiu essa reclamação, confirmando o antecedente acórdão reclamado de 11.09.2023, desconhecendo-se, por tal não se mostrar certificado nos autos (não possibilitando o seguimento electrónico dos autos que se siga a sua tramitação nos tribunais superiores), se o acórdão reclamado já transitou em julgado.
1. “A Requerente é uma associação desportiva que visando o engrandecimento do desporto nacional, tem por objectivos promover a educação física dos seus associados; desenvolver a prática dos desportos e proporcionar meios de recreio e de cultura, em especial aos seus associados; concorrer no país ou no estrangeiro, a provas desportivas, profissionais e amadoras, de carácter oficial e particular; colaborar com quaisquer outras entidades no aperfeiçoamento da regulamentação desportiva; estabelecer e manter relações culturais, desportivas e sociais de colaboração mútua e intercâmbio com associações similares, no país e no estrangeiro e fomentar e apoiar todas as iniciativas que se constituam como veículos na prossecução dos seus fins sociais.
2. Que goza do estatuto de utilidade pública.
3. A Requerida persegue como actividade societária, entre outras, a exploração de jogos sociais, nomeadamente o jogo de bingo.
4. A Requerente - então, sob a denominação A... 08 - e a Requerida, no âmbito e prossecução das suas actividades, outorgaram um contrato, que denominaram de “Contrato de Consórcio Externo”, que observou os termos e condições constantes do doc. 3, junto com o requerimento inicial que aqui se dá por reproduzido.
5. Contrato, este, celebrado com o objectivo de as partes beneficiarem da concessão e exploração de uma sala de jogo de Bingo, a instalar no local onde funcionou o Cinema ..., gaveto da Rua ... e Rua ..., no Porto, a designar como Bingo do A... 08, tendo ficado clausulado esse mesmo objecto.
6. No Contrato de Consórcio ficou, ainda, clausulado que o domicílio do consórcio seria na Rua ..., Porto, e as partes, Requerente e Requerida, pretenderam que a referida actividade envolvesse o esforço conjunto e concertado das capacidades complementares dos membros do Consórcio, tendo em conta que, a Requerida passaria a ser a exclusiva responsável pela gestão da exploração da sala de jogo do Bingo, tomando de forma autónoma e livre todas as decisões relevantes para esse efeito, atendendo à sua experiência.
7. As partes, Requerente e Requerida acordaram na atribuição dessa responsabilidade a esta última, sobre a gestão da sala de Bingo, tendo em conta o facto de os seus gestores e accionistas serem os mesmos da sociedade “C..., Actividades Turísticas, Promoção e Gestão de Empreendimentos, S.A.”, que já desenvolvia a mesma actividade de exploração do jogo do bingo, explorando dois estabelecimentos comerciais de jogo de bingo – situados em ... e ....
8. O contrato entrou em vigor na data da sua assinatura por todos os membros do consórcio e tendo duração até ao termo do período de vigência do contrato de concessão de exploração do Jogo de Bingo que viesse a ser celebrado entre o Estado e o Consórcio, sendo automaticamente prorrogado face a eventuais prorrogações da concessão, por períodos iguais à vigência desta, a menos que fosse denunciado por qualquer das partes, com a antecedência mínima de um ano do fim do prazo ou da prorrogação (cláusula 8.ª do “Contrato de Consórcio”).
9. A concessão foi concedida pelo prazo de 10 anos a contar da assinatura, em 12-07-2012, do documento denominado “Contrato de Concessão da Exploração de uma sala de Jogos do Bingo no Porto ao Consórcio Externo B... L.da e A... 08”.
10. Entretanto em 10.03.2016, a Requerida declarou resolver o contrato de Consórcio que mantinha com a Requerente.
11. Que nunca aceitou tal resolução, outrossim clamava pelo incumprimento contratual imputável à Requerida.
12. Do litígio submetido a Arbitragem, como determinava o Contrato de Consórcio celebrado entre as partes, resultou Decisão Arbitral datada de 25-10-2022 e rectificada em 08.03.2023, que aqui se dá por integralmente reproduzida, que declarou ilícita a declaração de resolução contratual efectuada pela Requerida (decisão esta transitada, mas que está a ser objecto de acção de anulação interposta pela aqui Requerente).
13. Consta de tal sentença arbitral que “Para além de, flagrantemente, não ter observado algumas das obrigações contratuais que lhe cabiam, designadamente nos planos da coordenação dos consorciados, da sua contabilidade e da contabilidade do próprio Consórcio, incumpriu a Autora as obrigações procedimentais prescritas na Cláusula 10.ª do Contrato, tornando este incumprimento, por si só, ilícita a resolução”.
14. E ali se declarando que, causa directa de tal resolução ilícita, “Tem, pois, o A..., nos termos do art. 801.º, do CC, o direito a ser indemnizado, equivalendo a indemnização ao que seria devido ao credor se o contrato continuasse a vigorar e a ser executado. O mesmo é dizer, no caso, que assiste ao A... um direito à meação dos lucros efetivamente auferidos daí em diante apenas pela «B... Lda.» com a atividade de exploração do Bingo só por ela desenvolvida nos anos seguintes nas antigas instalações do cinema ..., na cidade ....”.
15. Refere-se em tal decisão que a B... desde o mês de Dezembro de 2012 a 16 de Março de 2016, a B... incumpriu específicas obrigações emergentes do contrato de consórcio, tendo sido constatadas, em especial, irregularidades graves no plano contabilístico e no quadro da coordenação dos membros do consórcio (maxime, inexistiam actas ou documentos com deliberações tomadas ou contas aprovadas, faltava um sistema contabilístico separado para a actividade de Bingo e carecia de esclarecimento os procedimentos levados a cabo para apuramento dos resultados a atribuir.
16. Tendo a sentença arbitral decidido “que, não obstante a sua ilicitude”, a resolução levada a cabo pela Requerida, produziu “os respectivos efeitos, extinguindo o contrato. Tem, contudo, o A..., nos termos do art.º 801.º CC, o direito a ser indemnizado, equivalendo a indemnização ao que seria devido ao credor se o contrato continuasse a vigorar e a ser executado. Assiste-lhe por isso o direito a receber uma indemnização correspondente à meação dos lucros efetivamente auferidos pela «B... Lda.» com a atividade de exploração do Bingo daí em diante só por ela desenvolvida nas antigas instalações do cinema ..., na cidade ....” E que vale o pedido aí formulado pelo A... “como um balizamento temporal determinado pelo próprio credor (o A...)à indemnização a pagar pelo devedor (a »B..., L.da» só sendo por isso devida ao A... a meação dos lucros auferidos pela »B..., L.da» na atividade de exploração do Bingo levada a cabo isoladamente por esta sociedade nos anos de 2016 e 2017 – a não já nos posteriores a 2017”.
17. Condenando a aqui Requerida no pagamento ao A... da “quantia de €262.188,95, acrescida de juros moratórios à taxa legal a contar da citação e até efectivo e integral pagamento”
18. A Requerida juntou em Outubro de 2021, aos autos arbitrais, um documento datado de Maio de 2021, que foi referido pelos Srs. Árbitros como despacho nulo por usurpação de poderes, conforme documentos 20 a 22 que aqui se dão por reproduzidos.
19. Manipulou a sua contabilidade, recorrendo a práticas consideradas avessas a transparência e procedimentos técnicos em uso, fraudulentos e nunca facultou aos peritos documentos para que estes apurassem a existência suporte documental ou justificação para custos de €2.519.330,40 (dois milhões, quinhentos e dezanove mil, trezentos e trinta euros e quarenta cêntimos), que contribuíram para a diminuição do lucro que assistia à Requerente
20. Através de providencia cautelar de arresto com sentença sequente a oposição, que correu termos no Juízo Central Cível do Porto J4, sob o n .º 20882/22.4T8PRT, de onde consta que “encontra-se justificado e indiciado o crédito a favor da requerente de €1.126.300,74, tendo em conta os lucros declarados da requerida durante os anos de 2017 a 2022”, foi declarado o arresto de bens para garantia de tal valor, que aí se decidiu corresponder a metade dos lucros auferido pela exploração do Bingo entre 2018 e 2022, tendo-se em tal decisão dado como provado que:
a. “Em 2018, a Requerida teve de lucro, declarado – pelo menos a quantia de €895.001,67;
b. Em 2019, a Requerida teve de lucro, declarado – pelo menos a quantia de €731.628,54;
c. Em 2020, a Requerida teve de lucro, declarado pelo menos a quantia de €58.700,92;
d. Em 2021, a Requerida teve de lucro, declarado –pelo menos a quantia de €135.832,91, tudo como melhor se alcança da confrontação do doc.13 que se junta e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais,
e. Em 2022, ainda não houve fecho de contas, mas o lucro (apenas previsível, mas não certo ou liquido e a apurar nos autos principais ou execução de sentença) deverá ascender, pelo menos a €650.161,72 (valor apurado, meãmente indicativo, recorrendo a média aritmética dos exercícios de 2016,2017,2018,2019 e já não 2020 e 2021 por serem anos afectados pela Pandemia e sem valores referencias a considerar)”
21. Tais valores, foram exigidos pelo menos por carta enviada em 27-03-2023 e não foram pagos, nem a Requerida mostrou qualquer disponibilidade para o pagamento voluntário, conforme documento n.º 11 que aqui se dá por reproduzido.
22. Em 2018, a Requerida teve de lucro, declarado – pelo menos a quantia de €895.001,67; b) Em 2019, a Requerida teve de lucro, declarado – pelo menos a quantia de €731.628,54; c) Em 2020, a Requerida teve de lucro, declarado pelo menos a quantia de €58.700,92; d) Em 2021, a Requerida teve de lucro, declarado pelo menos a quantia de €135.832,91.
23. Em 2023, ainda não houve fecho de contas, mas o lucro (deverá ascender, pelo menos a €650.161,72.
24. A Requerente instaurou, previamente ao presente procedimento cautelar, um primeiro procedimento cautelar de arresto dos valores existentes em todas as contas bancárias, o qual foi decretado em 10.10.2022, no âmbito do Proc. n.º 14537/22.7T8BEPRT - Juízo Central do Porto – Juiz 4, no valor de € 359.118, 26”.
24-A Nesse procedimento cautelar de arresto, a Requerida deduziu oposição.
24-B. Essa oposição foi decidida por sentença datada de 10.03.2023, onde foi decidido: “Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a oposição deduzida e em consequência reduz-se o arresto ao montante de €262,188,95, acrescida de juros moratórios à taxa legal a contar da citação e até efectivo integral pagamento (juros esses a contabilizar pelo requerente no prazo de 10 dias)”.
24-C. A Requerida ofereceu, nesses autos, em 14.03.2023, o pagamento de €314.195,25 (quantia essa que a sair do montante pecuniário arrestado).
24-D. Tendo sido proferidos, nessa sede, os despachos de 27-06-2023 e de 07-07-2023: “cabe apenas concluir pelo oferecimento na data pela requerida da quantia de € 314.195,25, não sendo vencidos juros a partir dessa data” e “Não cabe ao requerente solicitar a transferência da quantia arrestada, nem o AE teve transferir tal quantia. Com efeito, relembra-se o requerente que a entrega de tal quantia ao requerente nesta fase (equacionada pela requerida) tinha como pressuposto o acordo das partes)que não chegou a existir), de que efectuado o pagamento da quantia de €314.195,74 á requerente nada mais era devido á mesma (a título definitivo e para pagamento e cumprimento da sentença arbitral), sendo que efectuado o pagamento de €314.195,74 deveria ser levantado o arresto. Como as partes não chegaram á acordo, o tribunal pronunciou-se apenas, como era devido, sobre a mora do credor. Nestes termos, uma vez que as partes não chegaram a tal acordo, não cabe ordenar o levantamento de qualquer quantia que se mostre arrestada”.
24-E. Perante a decisão proferida nesse arresto (Proc. n.º 14537/22.7T8BEPRT), a Requerente executou a decisão arbitral, dando origem ao processo do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução, J7, sob o n.º ...03/23.9T8PRT.
24-F. No requerimento executivo aí apresentado (Proc. n.º ...03/23.9T8PRT), a aqui requerente peticionou “a cobrança do capital de € 262.188,95, acrescido de juros de mora à taxa de juro comercial, desde 27/02/2018 (data da citação da ora embargante na acção arbitral) até 10/03/2023”, (data em que a Executada ofereceu o pagamento da quantia de € 314.195,25 e “sobre a quantia não oferecida a pagamento, no montante de € 41.534,10, acrescem juros de mora, à taxa de juro comercial, desde 27/02/2018, até à presenta data, na monta de € 16.169,28, a que acrescem juros vincendos até efectivo e integral pagamento. Perfazendo a quantia exequenda a monta de €371.898,63 (trezentos e setenta e um mil, oitocentos e noventa e oito euros e sessenta e três cêntimos).”.
24-G. A aqui requerida, apresentou embargos de execução, tendo sido proferida sentença em 12.12.2023, no seguinte sentido: “Julgam-se os presentes embargos de executado parcialmente procedentes, e, em conformidade, determina-se a redução da quantia exequenda a € 262.188,95 (duzentos e sessenta e dois mil, cento e oitenta e oito euro e noventa e cinco cent), a título de capital, acrescido de juros de mora, à taxa civil legal de 4 %, sobre a quantia de € 262.188,95 (duzentos e sessenta e dois mil, cento e oitenta e oito euro e noventa e cinco cent), desde 27.02.2018 e até 10.03.2023, e sobre a quantia de € 775,29 (setecentos e setenta e cinco euro e vinte e nove cêntimos), desde 10.03.2023 e até efectivo e integral pagamento.”
24-H. Dando o tribunal razão à requerida quanto ao valor devido a título de juros (legais e não comerciais) pela requerida à requerente.
24-I. O valor de €359.118,25 foi penhorado ao abrigo do Proc. n.º 13803/23.9T8PRT-A - Juízo de Execução do Porto - Juiz 7 conforme auto de penhora de 11-09-2023.
25. No âmbito do processo de arresto que correu termos sob o n.º 14537/22.7T8PRT, interpelada para pagamento de custas de parte emergentes da mesma, não as pagou, determinando a pendência da execução por falta de pagamento das mesmas - correspondentes a €1.117,05, no âmbito do proc. n.º 13177/23.8T8PRT- Juízo de Execução do Porto, Juiz 2.
25-A. A requerida apresentou embargos de executado, certificados nestes autos e aqui dados por reproduzidos, onde concluiu nos seguintes termos: “… deve a presente oposição à execução e à penhora, ser julgada procedente por provada e, em consequência, i) ser declarada a extinção da execução por inexequibilidade de título válido bem como da inexigibilidade de qualquer quantia em dívida, nomeadamente, a quantia de € 1.117,05 e por existência de declarada (em dois momentos) compensação com contra créditos da Embargante. ii) Ser ordenado o levantamento das penhoras sobre o seguinte saldo bancário: - €1.623,00, depositado na Banco 1... ...”
25-B Foi decidido em tais embargos, em 14-05-2024, o seguinte: “Pelo exposto, julgo os embargos improcedentes e, em consequência, determino a prossecução da execução nos exatos termos requeridos pelo embargado”.
26. O material e equipamento de jogo são propriedade do Estado,
27. Em Outubro de 2023 a Requerida ainda leva a cabo a exploração do Bingo, laborando todos os dias.
28. Arroga a Requerida que a Requerente ainda vai ter que a indemnizar.
29. É devedora ao Estado, mais precisamente à Inspecção Geral de Jogos de €1.382.067,40.
30. Os trabalhadores comentam que o Bingo encerrará em 2024.
31. O arrendamento do espaço já caducou.
32. O gerente e sócio, de facto, AA, refere que nunca se pagará à Requerente, preferindo investir seja em Advogados, seja em Juízes, o que disse em reunião privada.
33. E dos poucos bens móveis que restavam, os quadros com telas/pinturas, que existiam na entrada do Bingo já despareceram.
34. A única receita da Requerida é proveniente da exploração da sala de jogos, toda paga em dinheiro.
35. Tem alguns bens móveis destinados ao desenvolvimento da actividade societária.
36. E uma garantia bancária prestada pela Banco 2..., a favor de Turismo de Portugal I.P., no valor de €143.000,00, conforme documento 26 que aqui se dá por reproduzido.”

*
Vejamos.
Desde logo, está agora demonstrado nos autos, conforme certidão junta, nos termos ordenados na parte final da decisão recorrida, o trânsito em julgado da decisão desta Relação identificada em E), impondo-se a eliminação, assim do último segmento da alínea G), porquanto, sem discussão, a mesma se sedimentou definitivamente.

Cabe, desde logo, ter presente que os procedimentos cautelares, domínio no qual nos movemos, se constituem como instrumentos processuais destinados à obtenção de uma providência ou medida para acautelar a eficácia da decisão judicial a proferir numa causa, destinando-se a garantir a utilidade prática da ação principal, a evitar danos, que possam advir da demora, para o efeito útil da ação. Sendo instrumentos de eficácia do processo principal, é admissível o recurso às providências cautelares quando a regulação dos interesses não pode aguardar pela decisão definitiva, sendo necessária, para assegurar a utilidade da decisão final e a efetividade da tutela jurisdicional, uma composição provisória do litígio, que vai acautelar a situação até à decisão definitiva.
O processo cautelar é o instrumento de preservação do fim do processo – tutela jurisdicional do caso concreto, assumindo natureza instrumental, intendendo assegurar a validade e eficácia da decisão através da adoção de medidas (providências) que atuam ao nível da realidade prática por forma a preservar, acautelar, o efeito útil a produzir pela ação principal. A decisão cautelar não traduz, pois, em regra[1], uma antecipação da decisão principal (embora casualmente possa, conduzir à produção de alguns dos efeitos próprios desta). Antes tem uma natureza preventiva, pois visa acautelar e prevenir que, no período que decorre entre o momento em que a providência é proposta e aquele em que a decisão da ação principal produz efeitos, não ocorra situação que inviabilize a utilidade da mesma.
Reconduzem-se tão só (e não é pouco)a uma antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao resultado do processo principal e assentam numa análise sumária (summaria cognitio) da situação de facto que permita afirmar a provável existência do direito (fumus boni juris) e o receio justificado de que o mesmo seja seriamente afetado ou inutilizado se não for decretada uma determinada medida cautelar (periculum in mora).
Destinam-se a tutelar o efeito da ação, a assegurar o direito à efetiva tutela jurisdicional, isto é, a garantir o efeito útil da ação principal que vai regular definitivamente o direito, conciliando os interesses da celeridade e segurança jurídicas.
Fundadas na mera probabilidade da existência do direito que se pretende acautelar e no periculum in mora, as providências cautelares caracterizam-se por uma relação de instrumentalidade hipotética com o processo de que dependem e de que visam antecipar, mediante uma regulamentação provisória, os efeitos da decisão ou a concretização da respectiva garantia.
Quando, como no arresto, no arrolamento ou na entrega dos bens objecto da acção a um depositário, se antecipa um acto de execução (penhora ou outro acto de apreensão), a providência cautelar ganha características próprias do procedimento executivo. Mas, mesmo nesses casos, a actuação executiva é precedida duma fase declarativa que culmina na obtenção dum título executivo provisório, que visa täo-só a garantia do direito do requerente e não também a sua satisfação. Em outros casos, como acontece na intimação para que o réu se abstenha de determinada conduta, a providência é uma mera antecipação da decisão condenatória, nunca revestindo aspectos executivos. Mas, fora os casos excepcionais em que, como nos alimentos provisórioa, a garantia do direito implica a sua própria satisfação no decurso da acção, o objecto da providência cautelar não é, como na acçäo declarativa (ou executiva), a própria pretensão substantiva, enquanto afirmação dum direito para o qual se pretende a tutela jurisdicional, mas a mera pretensão processual de forçadamente a acautelar.
Assim, embora dê lugar a um procedimento que, pela sua estrutura, se aproxima sempre do da acção declarativa e por vezes também do da acção executiva, a tutela cautelar constitui um tertium genus em face da tutela declarativa e da tutela executiva, autonomizada de resto como tal na última parte do artigo 2º do CPC.
A função da providência cautelar difere, pois, da função de acertamento da sentença declarativa, ainda quando constitua antecipação duma decisão de mérito.
Desta natureza da providência cautelar deriva que lhe é inadequado o conceito de caso julgado (material).
De acordo com o art. 619º do CPC, a decisão sobre a relação material controvertida tem, uma vez transitada em julgado, força obrigatória dentro e fora do processo, assim constituindo caso julgado (material).
A eficácia intraprocessual da decisão não é exclusiva da decisão de mérito. Também a decisão sobre pressupostos processuais ou outros aspectos da relação processual tem, uma vez transitada, força obrigatória dentro do processo, constituindo caso julgado formal (art. 620° CPC) e extinguindo, quando é uma decisão final, a própria instância ou relação jurídica processual (art. 278º CPC).
Em contrapartida, a projecção extraprocessual da eficácia da decisão é uma característica da decisão de mérito, que impede nova decisão em outra instância processual com os mesmos sujeitos e o mesmo objecto (arts. 580° ss. CPC) e impõe a decisão proferida em outra instância com os mesmos sujeitos em que a questão decidida constitua fundamento da pretensão. Este duplo efeito processual (proibição de repetição e proibição de contradição) é uma consequência do efeito substantivo do caso julgado consistente na preclusão de toda a indagação sobre a relação jurídica concreta controvertida (por definição, entre sujeitos determinados), delimitada pela pretensão substantivada (pedido baseado numa causa de pedir) deduzida em juízo[2]. Tal efeito é inerente à definição ou acertamento das situações jurídicas das partes que toda a sentença declarativa postula, como tal impondo às partes uma norma de comportamento baseada nesse acertamento das relações entre elas vigentes.
A eficácia de caso julgado (material) apresenta-se assim em estreita conexão com a natureza de definição do direito que é própria da sentença declarativa, pois é essa definição que torna indiscutível no futuro a solução concreta dada ao litígio. Assim, Castro Mendes, desta feita em Direito Processual Civil, Ill, Lisboa 1980, p. 279.
Nas providências cautelares não se forma caso julgado material, pois nem o julgamento da matéria de facto nem a decisão final proferida no procedimento são definitivas, nenhuma influência tendo no julgamento da ação principal de que o procedimento é dependente. Sendo a tutela alcançada com estes procedimentos provisória, não podem confundir-se com instrumentos de tutela definitiva, esta a que releva para a exceção dilatória do caso julgado, sempre a figura do caso julgado nunca poderia ter ampla aplicação no âmbito dos procedimentos cautelares, a faltar norma especial.
Como se deixou dito, o efeito de caso julgado é próprio duma decisão de mérito, como tal definidora das situações jurídicas das partes. A preclusão consistente na indiscutibilidade da situação dada às questões por ele abrangidas pressupõe o acertamento definifivo dessas situações jurídicas, só possível num processo que tenha por objecto a afirmação da sua existência e a solicitação da tutela judiciária adequada a esse acertamento.
O juízo sobre a probabilidade da existência do direito que tem lugar no procedimento cautelar (o simples fumus boni juris) afasta, por definição, a ideia de acertamento definitivo que o caso julgado pressupõe. Quanto ao juízo sobre o periculum mora, não envolve qualquer decisão sobre a relação de direito material, pelo que, não integrando uma decisão de mérito, não poderia dar lugar ao efeito de caso julgado; por outro lado, ao inverso do juízo sobre o fumus honi juris, está condicionado pelas circunstâncias de facto ocorrentes ao tempo da sua emissão, constituindo um juízo temporalmente limitado. Finalmente, o juízo sobre a adequação da providência cautelar solicitada é um juízo de carácter tipicamente processual.
Donde, devido à específica natureza e finalidades dos procedimentos cautelares, o instituto do caso julgado não pode ter nelas aplicação, tendo, contudo, o legislador prevenido, especialmente, a situação de repetição de providências.
Analisemos agora a figura jurídica em causa - repetição de providência - para, depois, verificarmos se, na situação sub judice, estão ou não preenchidos os respetivos requisitos.
Como adiantado,
A excepção de caso julgado constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que se traduz num pressuposto processual negativo, pois que impede o prosseguimento do processo evitando que o tribunal se veja na contingência de proferir decisão de mérito que reproduza ou contrarie uma decisão definitiva, obstando ao conhecimento do mérito da causa e levando à absolvição da instância – cfr. artigos 577º, al. i), 576.º, n.º 2 e 278.º, n.º 1, alínea e) – pelo que, a verificar-se, nada mais cabe conhecer ou determinar, por a apreciação de mérito (segundo as soluções plausíveis da questão de direito) ficar prejudicada pela decisão proferida.
Para além de satisfazer interesses que se prendem com a economia processual, a exceção do caso julgado visa evitar que a causa seja julgada mais do que uma vez, o que atentaria contra a força do caso julgado.
Como se refere no Acórdão do STJ de 24/2/2015, proc. 915/09.0TBCBR.C1.S1, relatado pela Senhora Juíza Conselheira Maria Clara Sottomayor, ao “caso julgado está inerente a ideia de imutabilidade ou de estabilidade. O fim do caso julgado é o de evitar a reprodução ou contradição de uma dada decisão transitada em julgado. A excepção do caso julgado traduz-se em «a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, todos tendo de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão e de modo absoluto, com vista não só à realização do direito objectivo ou à actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes, mas também à paz social» (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, pp. 305-306)”. Aí se esclarece “Diz-se material o caso julgado, nos termos do art. 619.º do CPC, se a decisão recai sobre o mérito da causa, e, portanto, sobre a relação jurídica substancial.
O caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele e por isso não pode ser alterado em qualquer acção nova que porventura se proponha sobre o mesmo objecto, entre as mesmas partes e com fundamento na mesma causa de pedir. A estabilidade ultrapassa as fronteiras do processo e portanto, além da preclusão operada no processo, produz-se a impossibilidade de a decisão ser alterada mesmo noutro processo, com a excepção da possibilidade da sua revogação ou modificação por meio dos recursos extraordinários de revisão (art. 696.º do CPC) para os casos em que o caso julgado se formou em circunstâncias patológicas ou anormais”.
Também Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no seu CPC anotado, referem que a exceção dilatória de caso julgado se baseia no caso julgado material, projetado para fora do processo em que se forma, não no caso julgado formal.
Já se referiu que conceito de caso julgado é dado pelo nº 1, do art. 580º - consiste na repetição de uma causa estando a anterior decidida por sentença que já não admite recurso ordinário. Por sua vez, o nº 1, do art. 581º, estabelece que “repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”, definindo o nº 2 que há “identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”, o nº 3 que há “identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico” e o nº 4 que há “identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do meso facto jurídico”.
Para que o caso julgado se imponha, não permitindo nova discussão da questão noutra ação (vertente negativa do caso julgado), não é imprescindível que estejam preenchidos todos os requisitos consagrados no art. 581º - a mencionada tríplice identidade (de sujeitos, de pedido e de causa de pedir). Aqui voltaremos, por se nos afigurar decisivo, na situação decidenda.
Esta exceção dilatória, para além de obstar à propositura de ações inúteis e a originar gastos desnecessários, tem por fim evitar que o tribunal contradiga ou reproduza uma decisão anterior (cfr. nº 2, do art. 580º).
A intangibilidade (tendencial) do caso julgado é um princípio do nosso ordenamento jurídico com que se pretende evitar, não uma colisão teórica de decisões, mas a contradição de julgados, a existência de decisões, em concreto, incompatíveis[3].
Com efeito, a insusceptibilidade de impugnação de uma decisão decorrente do seu trânsito em julgado (art. 628º do CPC) é uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dado que dá expressão aos valores da segurança e certeza imanentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver.
O caso julgado material é sempre vinculativo no processo em que foi proferida a decisão ou em processos distintos (cf. arts. 619º e 620º do CPC). A eficácia do caso julgado material – único que releva para a apreciação da questão cuja apreciação ora se suscita e já resultará em que termos – varia, porém, em função da relação entre o âmbito subjectivo e o objecto da decisão transitada e o âmbito subjectivo e o objecto do processo posterior. Se o âmbito subjectivo e objectivo da decisão transitada for idêntico ao processo posterior, i.é., se ambas as acções possuem o mesmo âmbito subjectivo e a mesma causa de pedir e nelas for formulado o mesmo pedido, o caso julgado vale, no processo subsequente, como excepção do caso julgado (arts. 580º e 581º do CPC). O caso julgado acarreta para o tribunal do processo subsequente a dupla proibição de contradição ou de repetição da decisão transitada, o que explica que se resolva num pressuposto processual negativo e, portanto, numa excepção dilatória própria [art. 577º i) do CPC].
A decisão goza de força obrigatória, no processo e fora dele, não podendo o mesmo tribunal ou um outro ser colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir a decisão, destinando-se a excepção a impedir uma nova decisão inútil, com ofensa do princípio da economia processual.
Assim, visa-se evitar que a mesma questão decidida venha a ser, validamente, definida, mais tarde, em termos diferentes pelo mesmo ou por outro tribunal. Pretende-se que o juiz se abstenha de conhecer do fundo da causa, uma vez que já foi julgada outra e evitar eventuais casos julgados contraditórios. O princípio da irrevogabilidade do caso julgado visa assegurar a certeza e a segurança nas relações sociais.
A proibição da repetição de providência constitui-se como uma hipótese especial, perante a particular natureza desta, acima anotada, de salvaguarda das razões subjacentes ao instituto do caso julgado.
Não é admissível, na dependência da mesma causa, a repetição de providência que haja sido julgada injustificada ou tenha caducado – assim reza o art. 362.º, n.º 4 do CPC.
Na ausência desta norma especial teria de sê-lo a figura do caso julgado a regular situações em que as mesmas partes instauram arresto contra a mesma pessoa. Neste sentido, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, I, 2.ª edição, Almedina, 2004, p. 344, para quem a natureza dos procedimentos cautelares não é avessa à figura do caso julgado, que sempre obstaria a sucessiva repetição de providências idênticas, alicerçadas numa mesma causa de pedir.
Tanto é assim que para Marco Gonçalves, Providências cautelares, 2.ª edição, Almedina, 2016, p. 391, aquela norma impede a repetição sucessiva de providências cautelares com as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, afirmação esta que nos remete necessariamente para o disposto no art. 581.º, do CPC, o qual estabelece os requisitos da litispendência e do caso julgado.
Outrossim manifesto, como se anotou no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 560/10.9TBPBL-A.C1, de 08-09-2015, que com a referida estatuição pretende-se, por um lado, afirmar/concretizar os princípios da economia e da celeridade processuais e, por outro lado, a autoridade e prestígio das decisões (prevenção de eventuais pronúncias de sinal contraditório ou de conteúdo repetitivo sobre o mesmo objecto). A proibição que dela decorre assenta, pois, em fundamentos algo semelhantes aos subjacentes ao instituto do caso julgado, traduzidos na repetição de uma causa. Isto porque, repete-se, têm sido dois os fundamentos apontados ao caso julgado: o prestígio dos tribunais e a razão de certeza ou segurança jurídica (neste sentido Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, reimpressão, Coimbra editora, 1993, p. 306).
Posto que são as mesmas partes em ambos os arrestos, sendo o mesmo pedido (arresto de bens – diga-se que não é o facto de se indicar mais bens a arrestar que o pedido passa a ser outro), voltemos ao art. 362.º, n.º 4 do CPC. Face a esta norma são 3 os demais requisitos:
i. A repetição de providência cautelar;
ii. Que essa repetição se verifique na pendência da mesma causa;
iii. Que essa providência cautelar tenha caducado ou sido julgada injustificada.
Dúvidas não resultam que o anterior arresto foi julgado injustificado e que há uma repetição que se verifica na pendência da mesma causa, entendendo-se este requisito com as necessárias adaptações. Como sustenta Marco Gonçalves, op. cit., p. 397-398, tal não obriga a que estejamos necessariamente no domínio da mesma acção ou meio processual, bastando antes que se trate do mesmo litígio ou questão a decidir.
Deste modo, resta apurar se estamos perante a repetição de arrestos.
Marco Gonçalves, op. cit., p. 393, propugna a repetição quando está em causa uma providência com o mesmo conteúdo e se baseie nos mesmos factos espácio-temporalmente situados. (…) Mas a parte não fica impedida de lançar mão de uma outra providência cautelar que permita evitar eventuais riscos de lesão diversos dos que determinaram o recurso infundado à tutela cautelar inicial, atenuando-se, dessa forma, a preclusão emergente da improcedência da providência.
Este Autor, a p. 394-395, esclarece melhor esta situação: Nada obsta a que a parte requeira, na dependência da mesma causa, o decretamento de uma outra providência cautelar com base em novos factos, destinados a preencher o requisito do periculum in mora, pois que, nessa eventualidade, não se verifica a repetição da causa de pedir. Analogamente, verificando-se uma alteração relevante e superveniente das circunstâncias de facto quanto ao fumus boni iuris ou ao periculum in mora, será admissível a repetição de uma providência cautelar que anteriormente tenha sido julgada injustificada, já que essa alteração pode qualificar como justificada uma providência que antes não o era, devendo então prevalecer o interesse do requerente na tutela jurisdicional efectiva do seu direito, constitucionalmente garantida, sem que o tribunal se confronte com a alternativa de contradizer ou de reproduzir a decisão anterior, porque não se repetem os fundamentos da providência. A mesma solução deverá ser adoptada nos casos em que a providência repetida se funde em factos supervenientes ao encerramento da causa e que, consequentemente, não puderam ser devidamente analisados e valorados pelo julgador que considerou a providência inicial injustificada.
No mesmo sentido, João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de processo civil, vol. I, AAFDL, 2022, p. 610-611: não basta a invocação de factos diferentes, se não forem supervenientes, para evitar a repetição da providência: o sentido do disposto no art. 362.º, n.º 4, do CPC, é precisamente o de impor a preclusão de todos os factos que podiam ter sido invocados no procedimento cautelar.
Como é sabido, não se pode olvidar o carácter preclusivo do caso julgado. Manuel de Andrade, Noções elementares de processo civil, reimpressão, Coimbra editora, 1993, p. 324, ensinava que, se a sentença reconheceu no todo ou em parte o direito do autor, ficam precludidos todos os meios de defesa do réu, mesmo os que ele não chegou a deduzir, a até os que ele poderia ter deduzido com base num direito seu. Neste sentido, pelo menos, vale a máxima segundo a qual o caso julgado cobre o deduzido e o dedutível. De igual modo para a improcedência da acção. A sentença julgando improcedente a acção preclude incontestavelmente ao autor a possibilidade de, em novo processo, invocar outros factos instrumentais, ou outras razões (argumentos) de direito não produzidas nem consideradas oficiosamente no processo anterior. Nesta medida vale também aqui, sem sobra de dúvida, a máxima segundo a qual o caso julgado cobre o deduzido e o dedutível. Mas já não é líquido que o impeça ainda de, com base nos mesmos factos, alegar outro direito, título jurídico ou via legal que possa conduzir ao mesmo resultado prático (p. 325). Para Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra editora, p. 716, a eficácia do caso julgado já funcionará para impedir que, decaindo o autor na acção, ele possa em outra acção vir alegar novos factos instrumentais, relativamente à mesma causa de pedir para obter o efeito jurídico visado na acção anterior.
Por outro lado, quanto à clarificação/densificação do que seja a repetição do procedimento, na medida das razões subjacentes à norma, que a aproximam, como referido, do convocado instituto do caso julgado, valem nesta sede as considerações pela doutrina e jurisprudência[4] quanto à desnecessidade de tríplice identidade para a afirmação daquele em todas as situações ou hipóteses. Decisivamente, a função positiva do caso julgado, designada por autoridade do caso julgado, tem a ver com a existência de prejudicialidade entre objectos processuais, tendo como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, como se depreende dos art.ºs 619.º e 621.º, ambos do CPC, e implica o acatamento da decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objecto de uma acção posterior, obstando a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa. Donde, a autoridade do caso julgado não requer a tríplice identidade de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam o antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado.
De igual modo se nos apresenta que a identidade do procedimento que se constitui como repetição vedada por lei tem de ser considerada uma situação paralela à “repetição de causa”, remetendo-se a interpretação a dar para o conteúdo daquele preceito que a esta se reporta…
Ora, sendo a posição processual dos sujeitos idêntica nas duas providências e idênticas sendo as pretensões nelas formuladas, não se tem, adiante-se, por procedente a anotada falta de identidade de causas de pedir (por estar em causa nestes autos a garantia dos juros de obrigação indemnizatória não reclamados no procedimento cautelar anterior)…
Requerente e Requerida são, nos dois procedimentos, os portadores do mesmo interesse substancial, havendo, por isso, identidade jurídica de sujeitos (ou subjetiva). Acresce que, havendo identidade dos pedidos (ou objetiva) quando numa e noutra ação se pretende obter o mesmo efeito jurídico, sendo pedido a providência jurisdicional formulada pelo requerente, a enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objeto do direito a tutelar[5] e, querendo identidade de pedido dizer identidade de providência jurisdicional solicitada pelo autor[6], há identidade de pedidos quando o segundo procedimento é proposto para exercer o mesmo direito que exercido foi no primeiro. Sendo o efeito jurídico pretendido pelo requerente absolutamente coincidente, ocorre no caso identidade de pedido, pois, num e noutro procedimento os requerentes pretendem obter o mesmo efeito jurídico: o arresto de bens da devedora. Assim, pacífico é haver, além de identidade subjetiva, identidade objetiva.
Quanto agora à identidade da causa de pedir. Quanto a esta, cumpre referir que, sendo causa de pedir o acto ou facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, o facto concreto invocado pela parte activa, o acontecimento natural ou a ação humana de que promanam, por disposição legal, efeitos jurídicos, o princípio gerador do direito, o acervo dos factos que integram o núcleo essencial da previsão da norma ou normas do sistema que estatuem o efeito de direito material pretendido, a causa de pedir é considerada a mesma se o for o núcleo essencial dos factos integradores da previsão concedente. A causa de pedir não consiste na categoria legal invocada ou no facto jurídico abstrato configurado pela lei, mas, antes, nos concretos factos da vida a que se virá a reconhecer, ou não, a força jurídica bastante e adequada para desencadear os efeitos pretendidos pelo autor. Há identidade de causas de pedir quando a pretensão deduzida nos dois meios processuais procede do mesmo acto ou facto jurídico. A identidade da causa de pedir verifica-se, assim, quando as pretensões formuladas emergem de facto jurídico genético do direito reclamado comum a ambas…
Não se podendo considerar verificada no caso a exceção dilatória do caso julgado por a decisão do procedimento cautelar não ser definitiva, a questão que cumpre decidir é a de saber se estamos perante uma repetição de procedimento cautelar admissível ou, ao invés, se o presente procedimento cautelar é inadmissível.
Tal passa, desde logo por saber se, verificando-se identidade de sujeitos e de pretensão, também se verifica identidade de causa de pedir.
Ora, a obrigação de juros é acessória da do capital, não podendo nascer ou constituir-se sem esta, sem prejuízo de, uma vez constituída, viver por si com alguma autonomia. Com efeito e como ensina o Professor Antunes Varela, embora a obrigação de juros pressuponha a dívida de capital e, neste aspecto, possa considerar-se uma obrigação acessória, contudo a relação de dependência entre as duas obrigações não obsta a que, uma vez constituído, o crédito de juros se autonomize. É, de resto, perfeitamente possível, por outro lado, que se extinga por qualquer causa o crédito principal, e persista o crédito dos juros vencidos, ou que, inversamente, se extinga este último e se mantenha íntegro o primeiro.
De todo o modo, não se constituindo o crédito de capital, inexistente o crédito de juros…
Ora, temos para nós que é o que justifica, desde já, a impossibilidade superveniente do arresto aqui decidido, por identidade ou coincidência de objecto com a decisão já transitada proferida nos autos que sob o nº20882/22.4 T8PRT correram termos…
Admita-se já que, efectivamente, o pedido de garantia dos juros extravasa e não coincide imediata e directamente com o pedido de garantia do capital, como se afirma na decisão recorrida.
Cremos, contudo, que, para além ou para lá desta análise, hoc sensu, imediata ou simplista se impõe, por razões de coerência sistemática, vistos já os objectivos que a norma especial que regula a repetição de providências nos procedimentos cautelares intende e a definição legal dos respectivos pressupostos, a remeter bem assim, como supra exposto, para os termos da identidade de causas subjacente ao caso julgado, se impõe, na particular situação decidenda, a conclusão pela identidade de objectos.
Na verdade, esta apreciação tem de sê-lo concreta e casuística, a partir agora da relação intercedente entre os direitos cuja tutela antecipada foi pedida. Assim, no procedimento primeiro, a garantia do capital correspondente a uma obrigação indemnizatória por resolução infundada de contrato; neste, a garantia dos juros daquele capital…
Ora, afigura-se-nos que a contra-indiciação do crédito de capital, no procedimento anterior já decidida, se impõe nestes autos, mediante a coincidência de objectos que é típica das relações de prejudicialidade já referidas.
A decisão que determinou a falta de indiciação do crédito de capital garantido nos autos sob referência, veda a possibilidade de, neste novo processo, ser tutelada a dívida correspondente aos juros.
Desde logo, não há dúvidas que são exactamente os mesmos factos espácio-temporalmente situados, no que importa à causa da obrigação de que os juros cuja garantia vem pedida são dependência… Basta atentar em que na situação versada se limitou a afirmação dos juros a garantir à reprodução pura e simples do crédito de capital como indiciado no procedimento de arresto anterior.
A particularidade da situação decidenda vem a sê-lo (o que justifica, parece-nos o apelo pela Recorrente ao caso julgado) a de a identidade apenas se afirmar por via da autoridade ou função positiva da decisão que houve por contra-indiciado aquele crédito.
Mas tal não altera a realidade que se evidencia: decidido que não se afirma indiciariamente o crédito quanto ao qual os juros cuja garantia aqui vinha pedida, não pode conceder-se a tutela antecipatória a estes juros, sob pena de incongruência lógica.
Ainda que não se concedesse esta solução processual e temos para nós que se impõe, sempre se concorda totalmente com o juízo naqueles autos feito quanto à infirmação indiciária da existência do crédito de capital e, logo, dos juros nestes autos tutelados.
Na verdade, aqui nos remetendo de muito perto à clarividente exposição da doutrina em causa no Acórdão do STJ de 27.05.2021, no 29/12.6TBPTL.G2.S1, acessível na base de dados da dgsi, estaremos perante uma situação de preclusão da pretensão indemnizatória objecto de pedido de tutela antecipatória nos autos sob o n.º 20882/22.4, já aludidos e, correspondentemente dos juros daquela nestes autos em questão; em termos de se evidenciar não a afirmação mas a infirmação da existência do direito cuja tutela está em causa em ambos os arrestos.
Assim quando se tenham presentes os contornos da acção que correu termos perante Tribunal Arbitral entre as partes, cuja decisão está junta.
Colhe-se desse acórdão, como se refere na decisão do processo n.º 20882/22.4, proferido na acção que correu termos no Tribunal Arbitral que, apesar de a ter declarado ilícita, o tribunal considerou eficaz a resolução do contrato de consórcio operada pela autora/reconvinda “B... L.da”, pelo que não seria juridicamente possível a declaração judicial de resolução, por justa causa, do mesmo contrato pedida pela ré/reconvinte “A...” e, sobre a indemnização a esta devida, discorreu: «Contudo, vale este pedido como balizamento temporal determinado pelo próprio credor (A...) à indemnização a pagar pelo devedor (a “B... L.da”), só sendo por isso devida ao A... a meação dos lucros auferidos pela “B... L.da” na atividade de exploração do Bingo levada a cabo por esta sociedade isoladamente nos anos de 2016 e 2017 – e já não nos anos posteriores a 2017. Com base na matéria de facto apurada, e na ilicitude da resolução contratual, é a Autora/Reconvinda condenada a pagar à Ré/Reconvinte a quantia de € 262 188,95, acrescida de juros moratórios à taxa legal a contar da citação e até efetivo e integral pagamento, a título de indemnização pela meação na totalidade dos lucros a que esta última teria direito pela atividade de exploração do Bingo desenvolvida nas instalações do antigo Cinema ..., no Porto, entre os anos de 2012 e 2017, mas que não chegou a receber do Chefe do Consórcio (a dita Autora/reconvinda), como devia ter recebido».
Ora, apesar da reconvenção ter, por regra, natureza facultativa, situação em que o não uso da faculdade de dedução de reconvenção não tem, em princípio, qualquer interferência negativa na consistência do direito material de que o réu seja titular, casos há em que a faculdade de reconvir transforma-se num ónus, na medida em que o réu necessita de reconvir para afastar o risco de futura preclusão do direito, por força do caso julgado que venha a constituir-se sobre a decisão favorável ao autor, estando-se, por isso, perante a chamada reconvenção necessária ou  compulsiva.
Neste último caso, uma vez apresentada a contestação, fica, em princípio, precludida, a partir desse momento, a invocação pelo réu, quer de outros meios de defesa, quer dos meios que ele não chegou a deduzir e até mesmo daqueles que ele poderia ter deduzido com base num direito seu.
Dito de outro modo, os termos do exercício do direito de reconvir pelo ora recorrido naquele processo arbitral impedem-no de exercer em acção autónoma o seu pretenso direito material conexo com a indemnização pela resolução infundada do contrato/consórcio[7].
Como se observa no Acórdão do STJ citado em último lugar: se é certo ter a reconvenção, em regra, natureza facultativa, o que constitui entendimento pacífico na doutrina[8] e parece resultar claro da letra do artigo 266º, nº1 do CPC, também não deixa de ser verdade que, por vezes, após o trânsito em julgado da sentença, o réu fica impedido de exercer, através de ação separada e distinta o seu direito, pelo que, segundo Miguel Mesquita[9], há que estabelecer a distinção entre a reconvenção facultativa (permissive counterclaim) e a reconvenção necessária ou compulsiva (compulsory counterclaim).
Assim, enquanto que, no primeiro caso, o não uso da faculdade de dedução de reconvenção não tem, em princípio, qualquer interferência negativa na consistência do direito material de que o réu seja titular, já no segundo, «a faculdade de reconvir transforma-se num ónus, na medida em que o réu necessita de reconvir para afastar o risco de futura preclusão do direito, por força do caso julgado que venha a constituir-se sobre a decisão favorável ao autor»[10].
E, acrescentamos, também a desfavorável ao autor, já que, no fundo, os factos em que assentou a Reconvenção efectivamente deduzida na acção arbitral (a causa de pedir, enquanto resolução ilícita do contrato) e, decisivamente, o pedido ali formulado (líquido e relativo à indemnização correspondente), vão imediatamente referidos ao objecto da acção de que este procedimento cautelar se constitui como dependente, com o que não escapando a “nova pretensão” ao efeito preclusivo resultante da autoridade do caso julgado.
Tudo para concluir que sobre o recorrido/requerente do arresto impendia o ónus de deduzir, naquela acção arbitral e na reconvenção que ali efectivamente deduziu, posto que relativa aos factos que integravam a defesa ali apresentada (a ilicitude da resolução) a pretensão indemnizatória que agora declara querer exercer em termos mais amplos, para afastar o risco da futura preclusão, por força do caso julgado que se constituiu no que tange à condenação concedida.
Não o tendo feito, a autoridade de caso julgado inerente à decisão naquela acção, impede a dedução de pretensão precludida.
E, assim, também nestes autos se infirma a realidade ou indiciação do crédito a garantir, pelo que a decisão não pode ser outra se não a do levantamento do arresto.
É o que torna desnecessária a apreciação do recurso em matéria de facto, por inútil, como a apreciação da caracterização do justificado receio de perda da garantia patrimonial, porquanto é o crédito mesmo que não se tem por indiciariamente subsistente.
Quanto à litigância de má fé
Impendendo sobre as partes o dever de pautar a sua atuação processual por regras de conduta conformes à boa fé - cfr. art. 8º, do Código de Processo Civil -, caso não o observem podem incorrer em responsabilidade processual.
O instituto da má fé processual, regulado nos artigos 542º a 545º, de tal diploma legal, visa sancionar a parte que preencha, com a sua atuação processual, a respetiva previsão.
Ao contrário do que sucedia antes da revisão do Código de Processo Civil operada pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro, atualmente as condutas passíveis de integrar má fé não têm de ser, necessariamente, dolosas, já que o instituto passou a abranger, também, a negligência grave. Atingiu-se uma maior responsabilização das partes.
Como resulta do preâmbulo do referido diploma, o atual Código de Processo Civil, com a nova filosofia de colaboração que lhe está ínsita, consagrou "expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos". Na reforma processual introduzida por este DL houve uma substancial ampliação do dever de boa fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má fé processual - quer a substancial quer a instrumental -, tanto na vertente subjetiva como na objetiva. A condenação por litigância de má fé pode agora fundar-se em negligência grave, para além da situação de dolo já anteriormente prevista.
Alberto dos Reis[11] distinguia, em matéria de conduta processual das partes, quatro tipos de lide: lide cautelosa (aquela em que a parte esgota todos os meios para se assegurar de que tem razão e apesar disso vê inviabilizada a sua pretensão (ou oposição)), lide imprudente (aquela em que a parte comete imprudência leve ou levíssima), lide temerária (aquela em que a parte, embora convencida que tem razão, incorre em culpa grave ou erro grosseiro, indo a juízo sem tomar em consideração as razões ponderosas (de facto ou de direito) que devia empregar para desfazer o seu erro, comprometendo a sua pretensão) e lide dolosa (aquela em que a parte, apesar de ciente de que não tem razão, litiga e deduz pretensão (ou oposição) conscientemente infundada).
Ao sancionar, atualmente, a litigância com negligência grave a lei está a proibir, para além da lide dolosa, a lide temerária, a qual pressupõe culpa grave ou erro grosseiro[12].
“Segundo o nº2 (do art. 542º do CPC), constituem atuações ilícitas da parte: a dedução de pretensão ou oposição com manifesta falta de fundamento, por inconcludência ou inadmissibilidade do pedido ou da exceção (alínea a)); a apresentação duma versão dos factos, deturpada ou omissa, em violação do dever de verdade (alínea b)); a omissão do dever de cooperação (alínea c)); em geral, o uso reprovável do processo ou de meios processuais, visando um objetivo ilegal, o impedimento da descoberta da verdade, o entorpecimento da ação da justiça ou o protelamento, sem fundamento sério, do trânsito em julgado da decisão (alínea d))”[13].
O juízo de censura que enforma o instituto radica na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa fé a que as partes estão adstritas, para que o processo seja “justo e equitativo”, e daí a designação, segundo alguns autores, de responsabilidade processual civil. Litiga de má fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado e prudência, bem assim com o dever de indagar a realidade em que funda a pretensão[14].
Distingue-se entre má fé material ou substancial e má fé processual ou instrumental.
A primeira tem a ver com o mérito da causa, a segunda com a conduta processual. Na primeira “a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objetivo que se afasta da função processual. A segunda abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo. Assim, só a parte vencida pode incorrer em má fé substancial, mas ambas as partes podem atuar com má-fé instrumental, podendo portanto o vencedor da ação ser condenado como litigante de má-fé”[15].
A má fé a se reportam as supra referidas als. a) e b) é a má fé material ou substancial, aquela que se refere à relação jurídica material; as restantes alíneas contendem com a má fé instrumental.
No dolo substancial deduz-se pretensão ou oposição cuja improcedência não poderia ser desconhecida – dolo directo – ou altera-se a verdade dos factos, ou omite-se um elemento essencial – dolo indirecto; no dolo instrumental faz-se dos meios e poderes processuais um uso manifestamente reprovável (v. Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Ação e Culpa "In Agendo" (3ª Edição)).
Verifica-se a negligência grave naquelas situações resultantes da falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das desaconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos usos correntes da vida.
Em qualquer caso, a conclusão pela actuação da parte como litigante de má-fé será sempre casuística, não se deduzindo mecanicamente da previsibilidade legal das alíneas do art.º 456º do Código de Processo Civil e a responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça”[16].
A questão da má fé material não pode ser vista de forma linear, sob pena de se limitar o direito de defesa que é um dos princípios fundamentais do nosso direito processual civil, com foros de garantia constitucional, tendo de ser feita uma apreciação casuística, não cabendo a análise do dolo ou da negligência grave no processo civil em estereótipos rígidos. A má fé processual não opera no domínio da interpretação e aplicação das regras do direito, mas tão só no domínio dos factos. A sustentação de posições jurídicas, mesmo que desconformes com a correta interpretação da lei, não basta à conclusão da litigância de má fé de quem as propugna.
Sempre necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão infundada, pelo que se torna necessário que a parte tenha procedido com intenção maliciosa ou com falta das precauções exigidas pela mais elementar prudência ou previsão, que deve ser observada nos usos correntes da vida.
Ora, vista a Doutrina e a Jurisprudência tendo-se em atenção a lição assim colhida, que em nosso entender plasma a interpretação mais avisada da figura jurídica do litigante de má fé, e analisando a conduta processual do Apelado, não podemos considerar que o mesmo actuou com dolo ou negligência grave, pondo em causa os seus deveres como litigantes, já que se apresentaram a exercer um direito – o de solicitar nova providência invocando crédito distinto e antes da decisão do arresto anteriormente instaurado, pelo que se não justifica a sua condenação como litigantes de má fé. Não resulta dos autos consciência do requerente de não ter direito à satisfação da pretensão, não resultando o dolo, sequer negligência, do requerente ao formulá-la.
Sempre em causa uma questão do domínio da interpretação e aplicação das regras do direito, não se evidenciando a pretendida actuação como litigante de má fé, não podendo, por isso, ser proferida condenação como tal.


III.
Pelos fundamentos expostos, concede-se parcial provimento ao recurso e determina-se/ordena-se o levantamento do arresto decidido e mantido.
Julga-se improcedente a pretendida condenação do Recorrido como litigante de má fé.

Custas pelo Recorrido/requerente, sem prejuízo de atendibilidade na acção respectiva.

Notifique.







Porto, 26 de Setembro de 2024
Isabel Peixoto Pereira
Ana Luísa Loureiro
Isabel Rebelo Ferreira

____________________
[1] Ressalvada a hipótese, excluída, de inversão do contencioso.
[2] Castro Mendes, Limites Objectivos do caso Julgado, Lisboa, l968, pp. 178- 186.
[3] O caso julgado visa, essencialmente, obstar a que «o tribunal decida de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta, já definida por decisão anterior, ou seja, desconheça de todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados» (Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, p. 391 e s).
[4] Por todos,  Ac. STJ de 12.02.2021, no processo 2030/11.8TBFLG-C.P1.S1, acessível em https://jurisprudencia.pt/acordao/198429/ e o acórdão do STJ, de 20/06/2012, relatado pelo Juiz Cons. Sampaio Gomes, no processo 241/07.0TLSB.L1.S1, acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj; Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, p. 354, e na mesma obra, 2.º volume, 3.ª edição, pág. 599;  Miguel Teixeira de Sousa,  Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pp. 578-579 e também em “Preclusão e caso julgado”, LLR2017/1, pp.149-175. Cfr. Rui Pinto, Excepção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar Online, novembro de 2018.
[5] Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, página 111.
[6] Aberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume III, página 107.
[7] Discutível já, o que para o caso não releva, por estar em causa, justamente, os juros da obrigação de indemnização pela resolução do contrato, se este efeito se estende a todo e qualquer crédito conexo com a relação contratual. Assim outras relações de deve e haver emergentes da execução do contrato entre as partes, não relacionadas à liquidação de indemnização pelo termo deste… Nessa medida, inócuo o apelo pelo recorrido ao segmento da decisão arbitral que parece aventar uma possibilidade de discussão ulterior destas outras.
[8] Cfr. Alberto dos Reis, in, “Comentário ao Código de Processo civil”, Vol. III, pág. 97; Anselmo de Castro, in, “ Direito Processual civil declaratório”, Vol. III, pág. 222, nota 2; CSTRO Mendes, n, “ Direito Processual Civil”, Vol. II, pág. 295; Lebre de Freitas e Ribeiro Mendes, in, “ Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. III, pág. 649; Rodrigues Bastos, in, “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol. II, pág. 31; Lopes Cardoso, em anotação ao art. 274º, in, “ Código de Processo Civil, anotado” e Abrantes Geraldes, in, “Temas da reforma do processo civil”, Vol. I, pág. 56.
[9] Cfr. In “Reconvenção e Excepção no Processo Civil [O dilema da escolha entre a reconvenção e a excepção e o problema da falta de exercício do direito de reconvir], Almedina, págs. 439 e 450.
[10] Loc. cit. p. 440 e 441.
[11] Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª Ed. 1981, p. 262 e seguintes.
[12] Ac. do STJ, de 20/3/2014: Processo 1063/11.9TVLSB.L1.S1,in dgsi.net, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição Revista e Ampliada, Março de 2017, pág 703, onde se decidiu que “a condenação como litigante de má fé pode ser imposta tanto na lide dolosa como na lide temerária, constituindo lide temerária aquela em que o litigante deduz pretensão ou oposição “cuja falta de fundamento não devia ignorar”, ou seja, não é agora necessário, para ser sancionada a parte, como litigante de má fé, demonstrando-se que o litigante tinha consciência “de não ter razão”, pois é suficiente a demonstração de que lhe era exigível essa consciencialização”.
[13] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 2º Volume, 3ª Edição, Almedina, pág 457.
[14] Ac. da Relação de Coimbra de 16/12/2015, processo 298/14.7TBCNT-A.C1, na base de dados da dgsi.
[15] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág 457.
[16] Ac. da Relação de Guimarães de 10/11/2011, Processo 387645/09.9YIPRT.G1, in dgsi.net.