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LEGITIMIDADE
HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
MODIFICAÇÃO DA INSTÂNCIA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
Sumário
I – O artº. 263º, do Cód. de Processo Civil prevê uma excepção à regra da coincidência entre a legitimidade processual e a substantiva, pois, apesar da coisa ou direito em litígio ser transmitida para terceiro, por acto entre vivos – ocorre transferência na titularidade ou disponibilidade do objecto do litígio -, enquanto não ocorrer a habilitação do adquirente ou transmissário, a legitimidade processual continua a pertencer ao cedente ou transmitente ; 2 - nesta situação, o cedente ou transmitente mantém-se como litigante em nome próprio, ainda que prosseguindo um interesse que apenas de forma indirecta é seu ; 3 - decorre de tal normativo uma situação de legitimidade extraordinária, indirecta, própria ou ad hoc, a qual não decorre já da titularidade da relação material em litígio que foi transmitida, mas antes da própria lei ; 4 – assumindo-se, assim, o transmitente como substituto processual do adquirente ou transmissário (actual titular da situação jurídica transmitida), ainda que não tenha interesse na acção, em virtude de ter deixado de ser o sujeito activo da relação substantiva, da qual já não é parte ; 5 - apesar de tal substituição, por natureza facultativa, pois vigora até que o transmissário ou adquirente seja habilitado, a sentença que venha a ser prolatada produz, em regra, relativamente àquele, efeitos de caso julgado, mesmo que não venha a habilitar-se ; 6 - ou seja, a actuação processual do transmitente ou substituto produz e repercute os seus efeitos materiais na esfera jurídica do transmissário ou substituído, daí decorrendo a vinculação deste ao caso julgado que venha a produzir-se ; 7 - efectivamente, o adquirente ou transmissário (detentor de uma legitimidade directa), para além do evidente interesse em que seja proferida decisão de mérito favorável a quem lhe transmitiu a posição jurídica em litígio, pode ter interesse em, de forma directa, dirigir o processo após tal transmissão, fazendo operar a habilitação e passando então a litigar como parte principal e verdadeiro sujeito processual do litígio relativo à coisa ou direito transmitido ; 8 - assim, e até que se opere a legal habilitação, nos termos do artº. 356º, do Cód. de Processo Civil, ocorre uma distonia entre os sujeitos da relação material ou substantiva – adquirente ou transmissário e a parte estranha à transmissão – e os sujeitos da relação processual ou adjectiva – cedente ou transmitente e parte estranha à transmissão ; 9 – isto é, até que ocorra legal habilitação, determinante de uma modificação subjectiva da instância, a parte principal continua a ser o cedente ou transmitente, apesar de não ser o sujeito da relação material litigada ; 10 - tendo ocorrido factor de suspensão da execução – óbito de um dos executados -, em plena pendência do incidente declarativo de habilitação, justificava-se, ou melhor impunha-se, que de tal suspensão da execução fosse dado conhecimento à Habilitanda, atenta a sua específica posição e a circunstância de se apresentar processualmente como putativa titular e sujeito da relação material litigada ; 11 - tendo já a transmissária adquirente/cessionária iniciado o procedimento incidental conducente à sua habilitação, o que evidencia clara intencionalidade de tomar o lugar da transmitente cedente, de forma a poder ter uma activa intervenção no processo onde as decisões prolatadas a vinculam, mais se justifica que lhe seja dado conhecimento do tramitar dos autos executivos, e não corroborar numa solução de total alheamento da mesma, enquanto não fosse operatória a reivindicada habilitação ; 12 - o que conduz ao reconhecimento de que a Recorrente Habilitante deveria ter sido notificada do termo de suspensão da execução, pelo que, não o tendo sido, incorreu o Tribunal a quo na prática de irregularidade processual, a qual, influindo nos ulteriores termos processuais, se converte ou transmuta em nulidade (secundária), nos termos do artº. 195º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, determinando a anulação dos termos processuais subsequentes. Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do artº. 663º, do Cód. de Processo Civil
Texto Integral
ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:
I – RELATÓRIO
1 – Por sentença datada de 02/04/2019, proferida no âmbito do Processo nº. 11698/09.4T2SNT-A, SA……………., S.A., foi julgada habilitada para ocupar a posição da Exequente IN…………………….BV, nos autos principais de execução nº. 11698/09.4T2SNT.
2 – T…………………, S.A., em 20/01/2023, veio deduzir incidente de habilitação de cessionário, requerendo a sua habilitação como Exequente, alegando ter-lhe sido cedido o crédito exequendo pela SA………………., S.A., por escritura pública datada de 12/01/2023, dando origem ao Processo nº. 11698/09.4T2SNT-B.
3 – No âmbito deste incidente de habilitação de cessionário – Processo nº. 11698/09.4T2SNT-B -, em 24/01/2023, as partes foram notificadas para, no prazo de 10 dias, contestarem, querendo, a habilitação requerida, inexistindo posteriormente a prolação de qualquer decisão.
4 – Em 02/02/2023, o Ilustre Mandatário do Executado ER……………, comunicou aos autos principais de execução o seu óbito, juntando a respectiva certidão.
5 – Em 03/02/2023, foi lavrado nos autos de execução TERMO DE SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO, com o seguinte teor:
“Em face do óbito do executado Er…………., suspende-se a presente execução nos termos do disposto do art.º 270º do CPC”.
6 – Tendo as partes sido notificadas de tal termo de suspensão da execução no mesmo dia 03/02/2023.
7 – Tal notificação do termo de suspensão da execução não foi efectuada à Requerente Habilitante T………………., S.A..
8 – Em 04/09/2023, foi lavrado nos autos executivos TERMO DE DESERÇÃO DA INSTÂNCIA, com o seguinte teor:
“Uma vez que os presentes autos se encontram parados há mais de 6 meses por negligência da exequente em promover o respectivo impulso processual, ao abrigo do disposto no artº 281, nº5 do CPC considera-se deserta a instância. Assim, determina-se o consequente levantamento da penhora sobre Prédio urbano sito ao Linhó ao Km 7,84 que confronta do norte com J……………. ou J……………….., bem como do sul e poente, e nascente com Estrada Nacional nº 9, Sintra - Estoril, registado na 1ª CRP de Sintra, sob o nº …………, freguesia de Sintra (S. Pedro de Penaferrim), concelho de Sintra e inscrito na matriz sob o artº …….. natureza urbana, atual nº ……….. da União de Freguesias de Sintra (Santa Maria e São Pedro de Penaferrim”.
9 – O que foi comunicado às partes por notificações datadas, igualmente, de 04/09/2023.
10 – Tal notificação do termo de deserção da instância executiva não foi efectuada à Requerente Habilitante T……………………….., S.A..
11 – A mesma Requerente Habilitante veio, em 04/10/2023, nos autos de execução, apresentar o seguinte requerimento:
“1. Por apenso aos autos principais, aos 20/01/2023, veio a ora Requerente deduzir Incidente de Habilitação de Cessionário com vista a ser habilitada nos autos na posição de Exequente em virtude de ter adquirido a titularidade dos créditos exequendos.
2. Tendo apurado no CITIUS que, não obstante expedidas, no dia 20/01/2023, pelo tribunal, notificações a todos os requeridos para, querendo, contestarem a habilitação de cessionária deduzida, do respectivo Apenso, não constava qualquer tramitação ulterior, no passado dia 29/09/2023, a Requerente contactou telefonicamente o Tribunal para apurar o estado dos autos.
3. Foi então confrontada com a existência de uma decisão de extinção da execução, por deserção, datada de inícios de setembro e da qual não foi notificada.
4. Questionado o Tribunal do motivo de tal decisão, foi transmitido à ora Requerente que tendo um dos executados falecido, a execução foi suspensa por óbito deste, em fevereiro de 2023.
5. Também desta decisão de suspensão da instância não foi a ora Requerente, notificada.
6. Salvo o devido respeito, tendo os créditos exequendos sido transmitidos em 12/01/2023 e tendo a ora Requerente, diligenciado, pela sua habilitação nos presentes autos no dia 20/01/2023, em substituição da exequente, era manifesto o seu interesse no prosseguimento dos autos
7. Contrariamente, não sendo já titular dos créditos transmitidos, o interesse da exequente no prosseguimento da lide também deixou de existir.
8. Tinha, por conseguinte, a ora Requerente, todo o interesse em ter sido notificada da suspensão da instância para, no limite, se assegurar que a exequente continuaria a impulsionar os autos até que fosse proferida decisão no apenso de habilitação de cessionário.
9. Mais, à ora Requerente sequer foi alguma vez dado acesso aos autos principais na plataforma CITIUS; o que inviabilizou a que, também por essa via, a ora Requerente tivesse tido oportuno conhecimento do processado em momento ulterior à sua intervenção nos autos e, consequentemente, pudesse ter reagido / impusesse à exequente que reagisse, de alguma forma, à decisões de suspensão e de extinção da instância.
10. Estando ciente da transmissão dos créditos e da dedução do Incidente de Habilitação de adquirente /cessionário e estando ademais os requeridos todos citados / notificados para, querendo, contestar aquele incidente em momento anterior à suspensão da execução por óbito do executado, ao douto Tribunal impunha-se, salvo o devido respeito, que tivesse, no limite, notificado a ora Requerente da suspensão daquela instância incidental com esse fundamento pois que, fundadamente, a Requerente continuava a aguardar a prolação de decisão ao incidente deduzido.
11. O que também não fez, inviabilizando, assim a possibilidade de, a título definitivo, a Requerente vir a ser conseguir a satisfação coerciva dos seus créditos nos presentes autos, com as consequências que uma extinção, por deserção, acarreta.
12. Acresce que, notificados / citados para contestarem o incidente deduzido em janeiro de 2023 e nenhum dos requeridos o tendo feito, o incidente de habilitação de cessionário já estaria, à partida, em condições de prosseguir para decisão final em momento, se não anterior, pelo menos muito próximo, da data em que veio a ser suspensa a execução por óbito do executado.
13. Com efeito, e desde logo, no incidente de habilitação de cessionário, atenta a não contestação do requerimento inicial, não haveria lugar a discussão oral, mas à imediata prolação de sentença final.
14. Ou seja, estando pendente incidente de habilitação de cessionário em condições de ser decidido em momento anterior à suspensão da execução por óbito do executado não tinha a Exequente que ter promovido a imediata habilitação de herdeiros do executado, antes de proferida aquela sentença, uma vez que, salvo o devido respeito, a suspensão da instância que decorre do disposto no art. 270.º, n.º 1, CPC, não impedia a prolação da mesma.
15. Pelo que, não ocorreria ainda assim a suspensão de tal incidente, apesar de um dos executados ter falecido – cfr. artigo 270.º n.º1 do CPC.
16. Desta feita, e salvo melhor juízo, não se encontravam verificados os pressupostos previstos no art. 281.º, n.º 1, CPC.
17. Deste modo, em inícios de fevereiro de 2023, cumpria ao julgador proferir sentença de habilitação de cessionário e só após a prolação da mesma, aí sim, se suspenderiam os autos principais a fim de ser deduzido o competente incidente de Habilitação de Herdeiros por quem tinha legitimidade (processual e substantiva).
18. Com efeito, não pode afirmar-se ter-se verificado uma verdadeira inércia por parte da exequente ao não propor incidente de habilitação de herdeiros quando, na verdade, aguardava a prolação de decisão de habilitação de cessionário em incidente em que tal sentença não dependia de qualquer atividade sua.
19. Ainda que assim não fosse, repisa-se, à cessionária, ora Requerente, não foi notificado, nem no âmbito do apenso, o despacho que, nos autos principais, declarou suspensa a instância por falecimento do Executado de modo que não poderá considerar-se existir também inércia desta – óbvia, única e verdadeira, interessada na prossecução do processo – na promoção dos trâmites da habilitação de herdeiros.
20. A omissão da notificação de suspensão da execução ou, pelo menos do incidente de habilitação – e ulterior extinção da execução, por deserção - à mandatária judicial da ora requerente é suscetível de influir negativamente no exame e decisão da causa, porquanto impediu a signatária de, em representação da sua constituinte, oportunamente reagir, querendo, às referidas decisões; direito que lhe estava legalmente assegurado.
21. Prescreve o artigo 195.º do CPC, que a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
22. Assim, a falta da notificação à mandatária judicial da decisão de suspensão da instância e a ulterior decisão de extinção da mesma por deserção, tem como consequência a nulidade de todo o processado subsequente; o que desde já invoca com todas as consequências legais.
23. Consequentemente, deverá a mesma notificação à ora signatária ser imediatamente ordenada, concedendo-lhe, por essa via, o direito a, querendo, requerer o prosseguimento dos autos para prolação de decisão no apenso de incidente de habilitação de cessionário e, ulteriormente, deduzir o competente incidente de habilitação de herdeiros com vista ao prosseguimento da execução”.
12 – Em 07/11/2023, conhecendo acerca de tal requerimento, foi prolatada a seguinte DECISÃO:
“Vem a T……………… S.A., requerente no apenso B, de habilitação de cessionário, alegar, em síntese, ter sido confrontada com a decisão de extinção da execução, por deserção, de que não foi notificada, defendendo que a falta dessa notificação é suscetível de influir negativamente no exame e decisão da causa, o que configura nulidade de todo o processado subsequente, uma vez que tem interesse no prosseguimento dos autos, que o incidente de habilitação de cessionário já estaria, à partida, em condições de prosseguir para decisão final em momento, se não anterior, pelo menos muito próximo, da data em que veio a ser suspensa a execução por óbito do executado, e que a suspensão da instância executiva não impedia a prolação de sentença no apenso de habilitação.
Com interesse para a decisão da questão suscitada relevam os seguintes factos:
1- A Sa…………….., S.A. foi habilitada na posição de exequente por sentença proferida em 02.04.2019, no âmbito do apenso A;
2- Em 20.01.2023, veio a T…………….. S.A. requerer a sua habilitação como exequente para tanto alegando ter-lhe sido cedido o crédito exequendo pela Sa……………., S.A., por escritura pública celebrada em 12.01.2023 (apenso B);
3- Em 24.01.2023, foram as partes principais notificadas, no âmbito desse apenso B, para, 10 dias, contestarem, querendo, a habilitação requerida;
4- Em 02.02.2023, veio o ilustre mandatário do executado Er.................. comunicar o falecimento deste, juntando aos autos a respetiva certidão de óbito;
5- Em 03.02.2023, foram as partes notificadas da suspensão da presente instância executiva em virtude desse óbito;
6- A T…………….. S.A. não foi notificada desta decisão de suspensão;
7- Em 04.09.2023, foram as partes notificadas da extinção da instância executiva, por deserção, por os autos se encontram parados há mais de 6 meses por negligência da exequente em promover o respetivo impulso processual;
8- A T..................também não foi notificada desta decisão;
9- Até hoje não foi proferida sentença no âmbito do apenso B, de habilitação de cessionário.
Sendo estes os factos a considerar, vejamos então o direito.
Como resulta do disposto no art. 195.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva produzirá nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa, ficando o conhecimento dessa nulidade condicionado à respetiva arguição por parte do interessado junto do tribunal que proferiu a decisão em causa.
No caso, argui a requerente nulidade processual decorrente do facto de não ter sido notificada das decisões de suspensão e de extinção da execução.
A requerente não é, contudo, parte nestes autos. Só o seria após ser habilitada na posição de exequente, uma vez que, em conformidade com o disposto no art. 263.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, no caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou objeto litigioso, é o transmitente (e não o transmissário) quem continua a ter legitimidade para a causa até que o adquirente seja, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo.
A requerente só a partir da sentença que a habilitasse como exequente é que passaria, portanto, a assumir esta posição processual, e poderia/deveria passar a ser notificada na execução nessa qualidade.
Até à habilitação a requerente, reafirma-se, não é parte nestes autos, pelo que não tinha de ser notificada de qualquer decisão aqui proferida.
E, ao contrário do que pretende, não poderia ter sido proferida sentença no apenso B, de habilitação de cessionário, uma vez que junto ao processo documento que prove o falecimento de uma parte, suspende-se imediatamente a instância executiva (art. 270.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sendo essa suspensão extensível aos apensos, pelo que o incidente de habilitação não podia ser tramitado enquanto não fossem habilitados os sucessores do falecido executado Er...................
Com efeito, comprovado nos autos o falecimento do aludido executado, em 02.02.2023, foram as partes notificadas da suspensão da execução logo no dia seguinte, em 03.02.2023.
O prazo para as partes contestarem o incidente de habilitação só terminava em 06.02.2023, uma vez que a notificação para o efeito tinha sido efetuada às partes em 24.01.2023.
Não sendo parte na execução não tinha a T..................de ser notificada das decisões aí proferidas.
Inexiste por isso a nulidade invocada.
Termos em que, face ao exposto, improcede a pretensão da requerente T..................manifestada através do requerimento de 04.10.2023.
Sem custas, atenta a simplicidade.
Notifique”.
13 – Inconformada com o decidido, a Requerente Habilitante interpôs recurso de apelação, em 29/11/2023, por referência à decisão prolatada.
Apresentou, em conformidade, a Recorrente as seguintes CONCLUSÕES:
I. “O douto despacho a quo é recorrível à luz do disposto no artigo 630.º n.º 2, parte final, porquanto contende com os princípios da igualdade e do contraditório pelo que, deve o persente recurso ser admitido à luz do aludido dispositivo,
II. II. A ora Apelante, porque direta e efectivamente prejudicada pela douta decisão recorrida, tem legitimidade para o presente recurso nos termos do disposto no artigo 631.º n.º2 do CPC.
III. No dia 20/01/2023, por apenso aos autos principais de execução, a ora Apelante deduziu incidente de habilitação de adquirente/cessionário com vista a ser habilitada na posição e em substituição da exequente Sa..................
IV. A mencionada cessão de créditos incluiu a transmissão, para a Apelante, dos direitos, garantias e outros acessórios dos créditos transmitidos, nos termos previstos no artigo 582.º, n.º 1 do Código Civil, designadamente, a hipoteca que incide sobre o imóvel penhorado à ordem dos autos principais.
V. No dia 29/09/2023, através de contacto telefónico com o Tribunal com vista a questionar sobre o andamento do incidente de habilitação de adquirente / cessionário, foi a ora Apelante surpreendida com a informação de que os autos principais se encontravam extintos, por deserção, porquanto, tendo ocorrido o óbito do Executado Er.................. em fevereiro de 2023, a Exequente, não diligenciou pela apresentação do indispensável Incidente de Habilitação de Herdeiros; o que acabou levando à deserção da instância executiva.
VI. A ora Apelante nunca foi notificada da decisão de suspensão da execução, nem da ulterior decisão de extinção da execução, por deserção; consequentemente, nunca teve conhecimento de que o incidente de Habilitação de adquirente /cessionário, por si deduzido pura e simplesmente deixara de ser tramitado pelo douto tribunal a quo.
VII. A omissão de tais notificações, porque influíram no exame e decisão da causa são nulas ao abrigo do disposto no artigo 195.º n.º1 do CPC; nulidade que a aqui Apelante oportunamente arguiu.
VIII. A ora Apelante não se conforma com a atuação do tribunal, nem com o douto despacho a quo porquanto o mesmo contende, de forma gritante, com os princípios basilares do processo civil da igualdade e do contraditório, previstos nos artigos 3.º e 4.º do CPC.
IX. Quando, aos 03/02/2023, proferiu a decisão de suspensão da execução, por falecimento do executado, o douto Tribunal a quo já tinha conhecimento de que a exequente Sa…………… havia transmitido os créditos exequendos à Apelante.
X. Mais: a decisão de suspensão da execução, incompreensivelmente, foi proferida a dois dias do fim do prazo que as contrapartes dispunham para, querendo, contestarem a habilitação de cessionário deduzida pela Apelante.
XI. Se, por pura sorte da aqui Apelante, a decisão de suspensão da instância tivesse sido proferida dois ou três dias depois, o douto Tribunal a quo já estaria em condições de ter proferido a decisão de habilitação da ora Apelante uma vez que a suspensão da instância que decorre do disposto no art. 270.º, n.º 1, CPC, não impedia a prolação da mesma.
XII. Tudo se passou, porém, à revelia da ora Apelante que apenas recentemente e com a notificação do douto despacho a quo veio a ter efectivo conhecimento da exata data da notificação da decisão de suspensão da execução proferida e notificada às partes pelo douto tribunal a quo.
XIII. As consequências gravosas que as decisões de suspensão e ulterior extinção da execução acarretaram, em especial, para não dizer exclusivamente, para a ora Apelante não podiam, salvo o devido respeito, ter sido absolutamente desconsideradas pelo douto tribunal a quo que, comprovadamente, tinha já conhecimento, da transmissão dos créditos exequendos em momento anterior à prolação dessas decisões.
XIV. Ao deduzir o Incidente de Habilitação de Adquirente / cessionário por apenso aos autos principais, a Apelante demonstrou ter sério, real e efectivo interesse no prosseguimento da execução, em substituição da exequente.
XV. O interesse da Apelante na presente execução – na qualidade de atual titular dos créditos exequendos – é, no mínimo, idêntico (para não dizer, maior) do que o interesse da exequente.
XVI. Não sendo parte (originária) no processo inexistem dúvidas que a ora Apelante é a titular material dos créditos dados à execução: é inegável a sua legitimidade substantiva nos presentes autos.
XVII. O estatuto da Apelante não pode, pois, deixar de ser reconhecido de igualdade (substancial) ao da exequente.
XVIII. A integração do princípio da igualdade substancial deve buscar-se através de um critério que permita que se efetive a justa composição do conflito de interesses assegurando a paridade no que respeita ao exercício de faculdades, uso de meios de defesa e aplicação de cominações ou sanções processuais.
XIX. Nesta perspectiva, enquanto sujeito processual com interesses, em tudo idênticos ao da Exequente, a omissão de notificação das decisões de suspensão e extinção da execução à ora Apelante e a prolação do douto despacho recorrido, contende com o princípio da igualdade das partes (cfr. artigo 4.º do CPC).
XX. A Apelante não pode deixar de ser considerada também como parte do incidente de Habilitação deduzido cuja tramitação foi, incontornavelmente, afetada pelas decisões proferidas nos autos principais e que lhe foram, absolutamente, omitidas pelo douto tribunal a quo.
XXI. A justa composição do conflito de interesses, em face da transmissão dos créditos exequendos, impunha que a Apelante tivesse tido conhecimento, em especial, da decisão de suspensão da instância e, depois, da extinção da mesma.
XXII. As omissões cometidas e a prolação do douto despacho recorrido pelo douto Tribunal a quo contende ainda com o princípio do contraditório previsto no artigo 3.º do CPC que tem por fim evitar a prolação de decisões surpresa.
XXIII. À Apelante era, no mínimo, legítimo obter, do douto tribunal a quo uma decisão – fosse ela qual fosse - no apenso de Habilitação de Cessionário deduzido (para esse exclusivo fim, aliás, deduziu a sua pretensão, mediante liquidação prévia da correspondente taxa de justiça).
XXIV. Foi com absoluta surpresa, por mero acaso e através de contacto telefónico com o tribunal que a Apelante foi confrontada com a informação de que, após notificadas as contrapartes para, querendo, contestarem o Incidente deduzido, este não mais foi tramitado porque um dos executados faleceu e porque, em face da inercia da exequente na promoção da habilitação de herdeiros, a execução veio, depois, a ser julgada extinta, por deserção.
XXV. A ora Apelante não tem - nem nunca teve - acesso aos autos principais na plataforma CITIUS pelo que, ainda que tivesse consultado o processo não teria conseguido ver as notificações de suspensão e extinção da execução.
XXVI. Ainda que pudesse não dispor de legitimidade (processual) para, em nome próprio, deduzir a habilitação de herdeiros do executado falecido a Apelante podia, pelo menos, ter tratado de assumir o patrocínio judiciário do processo até se encontrar definitivamente habilitada e, em nome da ainda exequente, ter diligenciado pela promoção e tal incidente e /ou ter-se assegurado que aquela o fazia.
XXVII. A Apelante apenas dispõe de acesso ao Apenso do Incidente de Habilitação de Cessionário que, na Plataforma CITIUS, ainda aparece como Pendente e cujo último ato praticado são as notificações as contrapartes para contestarem o incidente – vide print screen supra.
XXVIII. Não fora ter telefonado para o Tribunal, repisa-se, a Apelante, aguardava, até hoje, pela decisão da sua Habilitação, como exequente, no processo!
XXIX. A Apelante nunca foi alertada para a falta da prática de qualquer ato, nem sobre uma eventual negligência das partes na promoção dos termos dos autos principais - de que o Apenso do incidente de habilitação de adquirente dependia - estando, por isso, absolutamente convicta de que, era uma questão de tempo (que estimava breve) para assumir a posição de exequente naqueles autos, aguardando apenas pela prolação da decisão da sua habilitação nos autos.
XXX. Na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições, factuais e jurídicas, não foram tomadas em consideração.
XXXI. As decisões de suspensão e de extinção da instância, por deserção, configuraram uma verdadeira decisão surpresa com a qual, legitimamente, a Apelante não contava (não tinha como contar) pelo que a omissão da respectiva notificação à Apelante não pode deixar de ser considerada violadora também do princípio do contraditório previsto no artigo 3.º do CPC.
XXXII. A omissão das notificações das decisões de suspensão e extinção da execução deve ser sancionada com nulidade, nos termos previstos no artigo 195.º n.º1 do CPC, porquanto influíram, de forma decisiva, na decisão da causa; no caso, com grave e exclusivo prejuízo da ora Apelante.
XXXIII. Deve, em face do exposto, ser o presente recurso julgado procedente e, em consequência, ser proferido douto acórdão que revogue o douto despacho recorrido e o substitua por outro que declare nulo todo o processado após a comunica do falecimento do executado nos autos, ordenando-se a notificação da aqui Apelante da suspensão da execução”.
Conclui, no sentido de revogação da decisão apelada.
14 – Não foram apresentadas nos autos quaisquer contra-alegações.
15 - O recurso foi admitido por despacho datado de 16/01/2024, como apelação, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo.
16 – Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
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II – ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
“1 – o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão. 2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas ; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação da Recorrente Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente,apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Pelo que, na ponderação do objecto do recurso interposto pela Recorrente Habilitante, delimitado pelo teor das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede consubstancia-se em saber se ocorreu nulidade processual decorrente do facto da Apelante Habilitante não ter sido notificada das decisões de:
- suspensão da instância executiva, determinada por ocorrência do óbito de um dos Executados ;
- extinção da instância executiva, por deserção, pelo facto dos autos executivos se encontraram parados, há mais de 6 meses, sem que fosse promovido o respectivo impulso processual.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos, as ocorrências e a dinâmica processual a considerar encontram-se expostos no precedente relatório.
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B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
- Da extinção da instância por deserção
Estipulando acerca da deserção da instância, estatui o artº. 281º, do Código de Processo Civil, que:
“1 – sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses. 2 – O recurso considera-se deserto quando, por negligência do recorrente, esteja a aguardar impulso processual há mais de seis meses. 3 – Tendo surgido algum incidente com efeito suspensivo, a instância ou o recurso consideram-se desertos quando, por negligência das partes, o incidente se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses. 4 – A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator. 5 – No processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”[2].
Apreciando o regime legal da deserção[3], aduzem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro [4] que “com a extinção da figura da interrupção da instância, o requisito da negligência das partes em promover o impulso processual transita para a deserção. Sendo manifestamente injustificado o abandono da lide pelos seus sujeitos durante largos meses ou anos, o prazo de deserção da instância fixa-se agora em seis meses, prazo este que não se suspende durante as férias judiciais (art. 138º, nº. 1).
Diferentemente do que ocorria no direito anterior, a instância não se considera deserta «independentemente de qualquer decisão judicial». A ideia de negligência das partes não é conciliável com a ausência de uma decisão do juiz que a verifique. Embora a decisão prevista no nº. 4 seja meramente declarativa, até ser proferida não pode, pois, a instância ser considerada deserta, designadamente pela secretaria judicial” (sublinhado nosso).
Donde se conclui que, presentemente, o julgamento da deserção, no que concerne à relevância e natureza deste, é diferente do anteriormente previsto, fruto do desaparecimento da figura da interrupção da instância.
Nas palavras de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [5], “no esquema do código revogado, tal como no do C.P.C. de 1939, a deserção da instância pressupunha uma anterior interrupção da instância, quando as partes, maxime o autor, tivessem o ónus de impulso subsequente”.
Entendendo-se como “controvertido se a interrupção da instância dependia de despacho judicial ou se bastava com a inércia da parte e, no primeiro caso, se o despacho tinha natureza constitutiva, só com a sua notificação se iniciando a contagem do prazo conducente à interrupção, ou natureza declarativa, limitando-se a alertar a parte para a pendência do prazo já iniciado. A primeira questão era dominantemente resolvida, nos tribunais superiores, no primeiro sentido, pois as razões da paralisação deviam ser apreciadas pelo julgador (…), embora se entendesse bastar um despacho que mandasse aguardar o decurso do prazo da interrupção, por conter uma decisão implícita (ac. do STJ de 14.9.06, DUARTE SOARES, www.dgsi.pt. proc. 06B2400)” (sublinhado nosso).
Assim, naquele anterior quadro normativo, a deserção da instância, como causa de extinção desta, operava ope legis, existindo total identidade de redacção entre o presente nº. 4 do artº. 281º e o antecedente nº. 4 do artº. 291º.
Donde, “não se vê que tenha hoje sentido mais forte do que o que tinha já então, quando era sentida, apesar dela, a necessidade de a lei expressamente dispensar o despacho judicial prévio. Esta dispensa era justificada, pela jurisprudência dominante, com a exigência de despacho para a interrupção da instância. Com o desaparecimento desta -- e dos seus dois anos - e a redução a metade do prazo (de um ano) para a deserção, justifica-se que a exigência anterior passe de requisito da interrupção para requisito da deserção; e, para quem entendia que a lei não fazia essa exigência (assim nas edições anteriores desta obra), ela ganha hoje justificação em virtude, precisamente, desse drástico encurtamento do prazo global conducente à deserção” [6] (sublinhado nosso) [7].
Decorre assim do legalmente estatuído que na apreciação da verificação da deserção, como uma das modalidades ou formas de extinção da instância – cf., artº. 277º, alín. c), do Cód. de Processo Civil -, se não deva prescindir do “nexo entre a paragem do processo e a não actuação de ónus de impulso processual que recaia sobre a parte, e da negligência desta no que a tal omissão respeita.
No processo declarativo e nos recursos, sendo a deserção «julgada (….) por simples despacho do juiz ou do relator», e mesmo quando seja de atribuir a tal despacho natureza meramente declarativa, sempre importará que, o tribunal verifique a inobservância, por negligência, do ónus de impulso processual”.
Donde resulta que, “verificada que seja a existência de um ónus de impulso processual, importará ainda que a não atuação do mesmo se fique a dever à omissão da diligência do homem normal (um bom pai de família), em face das circunstâncias do caso concreto” [8][9][10].
Acrescenta Paulo Ramos de Faria [11], de forma assertiva, que “como resposta legal para o impasse processual, a extinção da instância só se justifica, no entanto, quando tal impasse não possa (não deva) ser superado oficiosamente pelo tribunal. Assim, determina a lei que a paragem do processo que empresta relevo ao decurso do tempo deve ser o efeito, isto é, o resultado (causalmente adequado) de uma conduta típica integrada por dois elementos: a omissão de um ato que só ao demandante cabe praticar; a negligência deste”.
Acrescenta, então, que “a deserção da instância prescinde de um juízo de culpa (censura) sobre a conduta do demandante. Por exemplo, ainda que não se censure o autor por, antes de praticar o ato em falta, passar largos meses tentando chegar a acordo com o réu – o que se admite, embora sem conceder, pois as demoradas tentativas de acordo devem ser ensaiadas antes de se provocar o funcionamento da pesada e onerosa máquina judiciária –, tal comportamento será de qualificar como negligente, para os efeitos que nos ocupam.
Resulta do exposto que negligente significa aqui imputável à parte (causalmente imputável), e não a terceiro – como a uma conservatória que se atrasa na entrega de uma certidão – ou ao tribunal. Em suma, a assunção pelo demandante de uma conduta omissiva que, necessariamente, não permite o andamento do processo, estando a prática do ato omitido apenas dependente da sua vontade, é suficiente para caracterizar a sua negligência.
Esta conclusão é confirmada pelo abandono da expressão empregue no Código de 1939 – a qual, de outro modo, seria mais correta. Resultando a deserção da instância da inércia das partes, e não apenas da inércia do autor, tal significa que ela ocorre porque o demandante não praticou o ato necessário ao andamento dos autos, não satisfazendo, negligentemente, o seu ónus de impulso processual, e porque o demandado não praticou qualquer ato sub-rogatório catalisador do processo, nos casos em que este ato está ao seu alcance – sem que, no caso do demandado, se possa formular, com propriedade, qualquer juízo de culpa. Ou seja, a deserção da instância resulta também (causalmente) da circunstância de o réu nada ter feito para a impulsionar – daí a lei antiga referir-se à inércia das partes –, mas não da sua negligência (hoc sensu), pois não tem este qualquer ónus ou dever de o fazer. A conduta omissiva e negligente da parte onerada com o impulso processual só cessará com a prática do ato que, utilmente, estimule a instância, ou com a superveniência de uma circunstância que subtraia à vontade da parte a possibilidade da sua prática” (sublinhado nosso).
Ainda em termos jurisprudenciais, o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça pugna em sentido idêntico e, aparentemente, incontroverso.
Exemplificativamente, refere-se no douto Acórdão de 14/05/2019 [12]depender a deserção da instância da cumulativa verificação de dois diferenciados pressupostos, nomeadamente a “inércia de qualquer das partes em promover o andamento do processo, imputável a título de negligência”, a que acresce, por outro lado, “a paragem do processo por tempo superior a seis meses, a contar do momento em que a parte devia ter promovido esse andamento”.
Acrescenta que através do instituto da deserção, pretende-se que as partes cumpram o seu ónus de impulso processual, devendo manter-se activas na promoção do prosseguimento do processo.
Todavia, ressalva que tal ónus deve ser “conjugado com a circunstância de, num processo civil, como o atual, cada vez mais marcado pelo princípio do inquisitório e pelo primado da substância sobre a forma, cumprir igualmente ao juiz dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação (artigo 6.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), o que leva a que sejam cada vez mais raros os atos que só à parte incumbe praticar e que importam a paragem do processo (vejam-se, neste sentido, o acórdão do STJ, de 03 de maio 2018, revista n.º 217/12.5TNLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt; e Paulo Ramos de Faria, “O julgamento da deserção da instância declarativa – Breve roteiro jurisprudencial”, in Julgar on line, 2015, p. 4, disponível em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2015/04/O-JULGAMENTO-DA-DESER%C3%87%C3%83O-DA-INST%C3%82NCIA-DECLARATIVA-JULGAR.pdf).
É que, constituindo a deserção um efeito direto do tempo sobre a instância, que pressupõe uma situação jurídica pré-existente – a paragem do processo – a extinção da instância só se justificará quando o impasse processual não possa e não deva ser superado oficiosamente pelo tribunal. O mesmo é dizer, citando Paulo Ramos de Faria (ob. cit., p. 4), que a “paragem qualificada do processo” que empresta relevo ao decurso do tempo é apenas a que seja o efeito ou, dito de outro modo, o resultado (causalmente adequado) de uma conduta típica integrada por dois elementos: a omissão de um ato que só ao demandante cabe praticar; e a negligência deste” (sublinhado nosso).
No mesmo sentido o referenciado aresto de 03/05/2018 [13], elencando os mesmos pressupostos cumulativos para o preenchimento da figura da deserção, acrescenta que “tal vicissitude radica no princípio da auto-responsabilidade das partes, na medida em que lhes incumba o impulso processual subsequente, o que deve ser aferido, à luz do disposto na diretriz geral do artigo 6.º, n.º 1, do CPC, em função do ónus de impulso especialmente imposto por lei àquelas, cumprindo, por seu turno, ao juiz dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação”.
Por fim, o douto Acórdão do mesmo Alto Tribunal de 05/07/2018 [14], fazendo igualmente alusão às duas exigências de natureza cumulativa para preenchimento da figura, nomeadamente “uma de natureza objetiva (falta de impulso processual das partes, máxime do A., para o prosseguimento da instância) e outra de natureza subjetiva (inércia causada por negligência)”, considera que a alusão por parte do juiz a que os autos ficam a aguardar o impulso processual das partes, sem prejuízo do disposto no artº. 281º, do Cód. de Processo Civil, não tem a virtualidade de vincular as partes nas situações em que não depende das mesmas o efectivo prosseguimento da instância.
Acrescenta que, em tal situação, “a alusão que naquele despacho foi feita ao previsto no art. 281º do CPC revelou-se sem conteúdo, uma vez que, repita-se, o prosseguimento da instância não estava dependente de qualquer impulso processual; pelo contrário, era a prorrogação da situação de suspensão da instância que estaria dependente de alguma informação da qual resultasse a séria convicção de que o litígio sempre iria terminar por acordo das partes.
As normas de direito adjetivo devem potenciar uma interpretação uniforme que confira segurança a todos os intervenientes, o que conflitua com a previsão, por via de decisões avulsas, de efeitos que não são projetados por tais normas.
No caso, ante a falta de sustentação e algum preceito de um ónus de impulsionar o prosseguimento da instância, deveria ter sido determinado o prosseguimento da instância, relegando eventualmente para outro plano a apreciação do cumprimento do dever de boa fé ou do dever de cooperação que, no mínimo, determinariam a inviabilidade de outras iniciativas das partes no sentido de nova suspensão da instância, no pressuposto de que o processo não constitui matéria que seja deixada à pura iniciativa das partes, obedecendo a regras de interesse público”.
- Da extinção da instância executiva por deserção
Estando em causa a deserção da instância no âmbito do processo executivo, já constatámos que esta ocorre “independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
Apreciando o regime da deserção na instância executiva, referenciam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa [15] que esta “encontrará fortes motivos nos casos em que o exequente negligencie a prática dos atos necessários ao seu prosseguimento, com a única especialidade de que a contagem do prazo não depende de qualquer decisão judicial alusiva ao impulso processual”.
Acrescentam, ressalvando, “que as eventuais omissões do agente de execução não se repercutem na posição processual do exequente, sendo a inércia deste que deve ser valorada para efeitos de declaração de deserção”.
Apreciando tal normativo, que intitulam como “extensão ao processo executivo da figura da deserção da instância”, acrescentam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre [16] que “diversamente do que é determinado para a ação declarativa e em harmonia com o que é determinado, em geral, no art. 849 (cf. 1-f), a deserção é automática, não dependendo de qualquer decisão”.
O que é reafirmado por Rui Pinto [17], começando por consignar não produzir a deserção quaisquer efeitos “enquanto não for declarada pelo tribunal”, mas ressalvando que “assim não sucede nas ações executivas: nestas dispensa-se decisão judicial, competindo ao agente de execução a verificação da ocorrência dos pressupostos da extinção por deserção (cf. art. 849º nº. 1 al. f)). O nº. 3 do art. 849º determina que a extinção será depois comunicada, por via electrónica, ao tribunal, sendo assegurado pelo sistema informático o arquivo automático e electrónico do processo, sem necessidade de intervenção judicial ou da secretaria”.
Em idêntico sentido, referenciam Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro [18], que “ao contrário do previsto para a ação declarativa, a deserção ocorre independentemente de qualquer decisão judicial, como é apanágio da extinção da execução (art. 849º)”.
Desta forma, conforme legal exigência, para que ocorra a extinção da execução, por deserção, “não basta que o processo executivo permaneça sem qualquer impulso há mais de seis meses por parte do agente de execução”, tornando-se “igualmente necessário que essa falta de impulso processual fique a dever-se a uma conduta culposa do exequente”.
Pelo que, “o facto de o agente de execução, por incúria ou negligência, não dar andamento ao processo executivo há mais de seis meses não significa, necessariamente, que tenha havido uma conduta culposa imputável ao exequente. É que, muito embora o agente de execução seja, em princípio, escolhido pelo exequente (art. 720º, nº. 1), a verdade é que o agente de execução não é um mandatário, nem um representante do exequente (art. 162º. Nº. 3, do EOSAE), mas antes um «auxiliar da justiça que, na prossecução do interesse público, exerce poderes de autoridade pública no cumprimento das diligências que realiza nos processos de execução» (art. 162º, nº. 1, do EOSAE)” [19].
Efectuado o presente enquadramento, centremo-nos no caso concreto.
A controvérsia em equação tem o seguinte enquadramento:
- a Recorrente deu início ao incidente de habilitação de adquirente ou cessionário, nos termos do artº. 356º, do Cód. de Processo Civil, em 20/01/2023 ;
- neste incidente, as partes contrárias foram notificadas para contestar, querendo, o incidente deduzido, no prazo de 10 dias, mediante notificações remetidas em 24/01/2023 ;
- tal prazo de contestação terminava, assim, no dia 06/02/2023 ;
- entretanto, em 03/02/2023 (ou seja, durante aquele prazo de apresentação de contestação no incidente de habilitação), foi lavrado, nos autos principais de execução, termo de suspensão da instância, nos termos do artº. 270º, do Cód. de Processo Civil, em virtude, no dia antecedente – 02/02/2023 – ter sido junto aos autos documento comprovativo do óbito de um dos executados ;
- tal termo de suspensão da execução foi notificado às partes do processo executivo, no mesmo dia 03/02/2023, não o tendo sido à Requerente do incidente de habilitação, a ora Recorrente ;
- em 04/09/2023, foi lavrado nos autos executivos termo de deserção da instância, nos termos do disposto no nº. 5, do artº. 281º, do Cód. de Processo Civil ;
- no mesmo dia 04/09/2023, foi este termo notificado às partes do processo executivo, não o tendo sido à Requerente do incidente de habilitação, a ora Recorrente ;
- nos autos incidentais de habilitação não foi praticado qualquer outro acto processual ou prolatada qualquer decisão, após a concretizada notificação das partes contrárias para, querendo, contestarem.
Assim, a questão que se coloca é a seguinte: devia a ora Apelante, requerente no incidente de habilitação de adquirente ou cessionário, ter sido igualmente notificada do termo da suspensão da execução, bem como do consequente termo de deserção da instância ? Ou, não tendo ainda sido declarada habilitada, de forma a ocupar a posição processual da exequente transmitente, tal notificação não deveria ser concretizada ?
Conforme vimos, a decisão sob sindicância optou por esta segunda posição, argumentando que a Requerente, e ora Apelante, não era, à altura, parte nos autos de execução, pois só o seria após ser habilitada na posição de exequente.
Recorrendo ao disposto no nº. 1, do artº. 260º, do Cód. de Processo Civil, aduz que no caso de transmissão, por acto entre vivos, de coisa ou objecto litigioso, é o transmitente (e não o transmissário) quem continua a ter legitimidade para a causa até que o adquirente seja, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo.
Efectivamente, acrescenta, a adquirente, só a partir da sentença que a habilitasse como exequente é que passaria a assumir tal posição processual, e então poderia/deveria passar a ser notificada na execução nessa qualidade. Pois, até aí, não sendo parte nos autos de execução, não tinha que ser notificada de qualquer decisão nos mesmos proferida.
Por outro lado, referencia, tendo-se suspendido imediatamente a instância executiva, decorrente da prova do falecimento de uma parte (o artº. 270º, nº. 1, do CPC), não poderia ter sido proferida sentença no apenso de habilitação de cessionário, pois tal suspensão é extensível aos apensos, isto é, o incidente de habilitação não podia ser tramitado enquanto não fossem habilitados os sucessores do falecido executado.
Donde, conclui, não sendo parte na execução, não tinha a Requerente (ora Apelante) de ser notificada das decisões proferidas nos autos executivos.
Vejamos, começando-se por aferir acerca dos pressupostos ou requisitos da transmissibilidade da coisa ou direito em litígio, nomeadamente quais os efeitos processuais daí decorrentes para transmitente e transmissário.
- Da transmissão da coisa ou direito em litígio
Prevendo acerca da legitimidade do transmitente – Substituição deste pelo adquirente, estatui o artº. 263º, do Cód. de Processo Civil, que:
“1 - No caso de transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, o transmitente continua a ter legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio de habilitação, admitido a substituí-lo. 2 - A substituição é admitida quando a parte contrária esteja de acordo e, na falta de acordo, só deve recusar-se a substituição quando se entenda que a transmissão foi efetuada para tornar mais difícil, no processo, a posição da parte contrária. 3 - A sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ainda que este não intervenha no processo, exceto no caso de a ação estar sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes de feito o registo da ação”.
Referenciam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa – Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 297 e 298 – que o presente normativo “confronta-nos com uma exceção à regra da coincidência entre a legitimidade processual e a substantiva, prescrevendo que, apesar da transmissão para terceiro, por ato inter vivos, da coisa ou do direito em litígio, a legitimidade processual continua a pertencer ao transmitente, enquanto o adquirente ou o cessionário não for habilitado, nos termos do art. 356º. Embora em prossecução de um interesse que só indiretamente é seu, o transmitente litigará, nesse caso, em nome próprio (…)”.
Acrescentam que esta norma “cria uma situação de legitimidade extraordinária, porque a mesma não decorre já da titularidade da relação material litigada. Na medida em que da ilegitimidade do alienante poderiam resultar graves prejuízos para a outra parte, o legislador atribuiu uma legitimidade extraordinária àquele, permitindo que a instância decorra regularmente até final, situação que só cessará quando se efetivar a habilitação do transmissário” (sublinhado nosso).
Por sua vez, defendem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre – Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª Edição, Almedina, pág. 523 – que o nº. 1, do mesmo normativo, utilizando o conceito de legitimidade em sentido diverso do enunciado no nº. 3, do artº. 30º, “mantém a legitimidade do transmitente até que o adquirente seja julgado habilitado”, o que se configura como “consequência do caráter facultativo da habilitação por transmissão entre vivos (…)”.
Assim, “a partir da transmissão, o transmitente, que já não é titular da situação jurídica transmitida, substitui processualmente o adquirente, seu atual titular, litigando em nome próprio, mas em prossecução dum interesse que só indiretamente é seu”.
Assim, a regra do interesse directo, configuradora do conceito de legitimidade, definido nos nºs. 1 e 2, do artº. 30º, do Cód. de Processo Civil, “só deixa de se aplicar nos casos excecionais de atribuição do direito de ação ou do direito de defesa a titulares de um interesse indireto (substituição processual, de que são exemplo (….) a continuação da ação com o adquirente singular, não habilitado, do direito litigioso (….)”- Idem, pág. 92.
Referencia Salvador da Costa – Os Incidentes da Instância, 10ª Edição Atualizada e Ampliada, Almedina, 2019, pág. 196, 225 e 226 -, prever a lei dois tipos de habilitação incidental, “uma por sucessão, obrigatória, porque a causa deve suspender-se desde o falecimento da pessoa singular ou da extinção da pessoa coletiva, e a outra, entre vivos, facultativa”.
Assim, a facultatividade desta segunda habilitação “ocorre porque a transmissão do direito em litígio não implica a suspensão da instância, porque o transmitente continua a ter legitimidade ad causam até à habilitação do adquirente, agindo, entretanto, como seu substituto processual – artigo 263º, nº. 1”.
Este normativo, conexionado com o prescrito na 2ª parte da alínea a), do artigo 262º, prevê, assim, acerca duma “substituição facultativa, que não implica a suspensão da instância na causa, certo que o transmitente por ato entre vivos do direito litigioso continua a ter legitimidade para a mesma, não obstante a sentença produzir, em regra, em relação ao adquirente, mesmo que nela não intervenha, efeitos de caso julgado, salvo se a ação estiver sujeita a registo e o adquirente registar a transmissão antes do registo da ação – artigo 263º, nºs. 1 e 3”.
Desta forma, “o transmitente, alienada a coisa objeto do litígio, embora já sem interesse na ação, por ter deixado de ser o sujeito ativo da relação substantiva, continua a ter legitimidade ad causam até ao seu termo, configurando-se a sua posição como a de substituto processual do adquirente até que ocorra a sua habilitação. Em suma, é uma situação em que o transmitente continua a ter legitimidade, derivada da lei, para litigar por causa de uma relação jurídica substantiva em relação à qual já não é parte” (sublinhado nosso).
Assim, tal normativo visa, apenas, “a habilitação do adquirente ou do cessionário de coisa ou direito em litígio, ou seja, o objeto imediato da controvérsia, desde que a aquisição ou a cessão tenham ocorrido na pendência da causa em que aquela controvérsia se dirime”.
Aduz Paula Costa e Silva – A Transmissão da Coisa ou Direito em Litígio, Coimbra Editora, 1992, pág. 92, 94, 99 e 100 – resultar deste normativo, em conjugação com o 356º, uma “figura muito peculiar. Na verdade, apesar de ocorrer uma transferência na titularidade ou disponibilidade do objecto do litígio, a instância não se extingue, por ilegitimidade superveniente, nem se suspende até à substituição das partes principais na acção. Antes se atribui uma legitimidade extraordinária ao transmitente, a fim de este continuar a litigar por uma relação jurídica substantiva, na qual já não é parte”.
Possui, deste modo, o artº. 263º várias funções. Visa, “em primeiro lugar, proteger a parte estranha à transmissão. Em segunda linha, pode atribuir-se-lhe a finalidade de proteger, em alguma medida, os interesses do transmissário”, configurá-lo como “um corolário do princípio da economia processual”, descortinando-lhe, ainda, “a protecção de interesses do transmitente e do tráfego jurídico”.
No que concerne aos interesses do transmissário, “ao adquirir um direito – ou uma situação passiva – o transmissário pretenderá retirar todas as vantagens e benefícios que a nova situação jurídica lhe poderá proporcionar. Deste modo, o adquirente tem um interesse sério no proferimento de uma decisão de mérito favorável a quem lhe transmitiu a posição jurídica dentro do mais curto espaço de tempo.
Acresce que o transmissário se pode encontrar ainda interessado em dirigir o processo a partir do momento em que adquire a coisa ou direito em litígio. Este interesse do adquirente vem a ser tutelado através da faculdade que o legislador lhe atribui de intervir na acção enquanto parte principal”, pelo que, “uma vez habilitado, o transmissário litigará enquanto parte principal, cabendo-lhe todos os poderes e deveres atribuídos aos sujeitos processuais”.
Relativamente à observância do princípio da economia processual, anota que “o conflito de interesses que opusera o transmitente à parte estranha à transmissão e que, após o acto translativo da coisa ou direito em litígio, opõe o transmissário a esta última, é resolvido através de um único processo, evitando-se assim que os tribunais sejam sobrecarregados com uma multiplicidade de acções, tendentes a pôr termo a uma mesma questão jurídica.
Mais ainda, decorre do princípio da economia processual que a determinado litígio será posto termo pela via mais célere, devendo ser praticados apenas os actos estritamente necessários ao proferimento da decisão final de mérito”.
Resulta, deste modo, conferir o artº. 263º, do Cód. de Processo Civil, “legitimidade ao transmitente para continuar a litigar por um direito, de que já não é titular”, pelo que “haverá que concluir que as partes principais na acção são a parte estranha à transmissão e o alienante ou cedente. Porque a legitimidade para a causa continua a pertencer ao transmitente, é ele a parte principal”.
O que implica a necessidade de “encontrar um conceito de parte que nos permita justificar o desfasamento existente entre os sujeitos da relação material (adquirente e a parte estranha à transmissão) e os sujeitos da relação processual (transmitente e parte estranha à transmissão)”.
Conclui, então, que a atribuição da qualidade de parte ao transmitente “traduz uma concessão necessária à teoria formal das partes”, pois, “apesar de a parte principal ser o transmitente, não pode esquecer-se que ele não é o sujeito da relação material litigada. Assim, na aplicação das normas, que integram no seu tipo o conceito de parte, deverá o intérprete determinar a que sujeito se refere o legislador, se ao sujeito da relação processual, se ao sujeito da relação material”.
Pelo que, “e se bem que a posição do alienante seja explicável através da teoria formal das partes, não pode esquecer-se que o conceito de parte deve ser funcionalizado, pelo que a sua concretização dependerá sempre das circunstâncias do caso concreto” – Idem, pág. 108, 109, 125 e 130.
Relativamente à legitimidade, o mesmo artº. 263º “cria uma situação de legitimidade ad hoc extraordinária, não só porque a legitimidade não decorre da titularidade da relação material litigada, mas também porque esta legitimidade não se funda num interesse directo da parte formal em demandar ou contradizer”.
Pelo que, “são fundamentalmente os interesses da parte estranha à transmissão que justificam a permanência do transmitente enquanto parte legítima na acção. Porque da ilegitimidade do alienante resultariam graves prejuízos para a outra parte, o legislador atribuiu uma legitimidade extraordinária àquela, a fim de a instância decorrer regularmente até final”.
Donde, sendo a legitimidade do transmitente “indirecta, extraordinária e própria”, enquanto a do transmissário “é directa”, tais legitimidades “são concorrenciais e alternativas, sendo a segunda subsidiária relativamente à primeira” – Ibidem, pág. 166, 169, 170 e 171.
Conclui, assim, que a substituição prevista no normativo em análise (263º) “é uma substituição processual legal”, a vigorar “desde que não ocorra uma modificação subjectiva da instância por habilitação do transmissário”, na qual a “actuação processual do substituto repercutirá os seus efeitos materiais sobre a esfera jurídica do substituído, encontrando-se este último vinculado ao caso julgado proferido na acção, em que não interveio, em virtude da legitimidade extraordinária, que é atribuída ao transmitente. Porém, esta legitimidade do substituto é uma legitimidade própria, decorrente da lei e não da vontade do substituído” (sublinhado nosso) – Ibidem, pág. 308.
Do exposto resulta, no essencial, o seguinte:
- o artº. 263º, do Cód. de Processo Civil prevê uma excepção à regra da coincidência entre a legitimidade processual e a substantiva, pois, apesar da coisa ou direito em litígio ser transmitida para terceiro, por acto entre vivos – ocorre transferência na titularidade ou disponibilidade do objecto do litígio -, enquanto não ocorrer a habilitação do adquirente ou transmissário, a legitimidade processual continua a pertencer ao cedente ou transmitente ;
- nesta situação, o cedente ou transmitente mantém-se como litigante em nome próprio, ainda que prosseguindo um interesse que apenas de forma indirecta é seu ;
- decorre, assim, de tal normativo uma situação de legitimidade extraordinária, indirecta, própria ou ad hoc, a qual não decorre já da titularidade da relação material em litígio que foi transmitida, mas antes da própria lei ;
- antes se assumindo o transmitente como substituto processual do adquirente ou transmissário (actual titular da situação jurídica transmitida), ainda que não tenha interesse na acção, em virtude de ter deixado de ser o sujeito activo da relação substantiva, da qual já não é parte ;
- apesar de tal substituição, por natureza facultativa, pois vigora até que o transmissário ou adquirente seja habilitado, a sentença que venha a ser prolatada produz, em regra, relativamente àquele, efeitos de caso julgado, mesmo que não venha a habilitar-se ;
- ou seja, a actuação processual do transmitente ou substituto produz e repercute os seus efeitos materiais na esfera jurídica do transmissário ou substituído, daí decorrendo a vinculação deste ao caso julgado que venha a produzir-se ;
- efectivamente, o adquirente ou transmissário (detentor de uma legitimidade directa), para além do evidente interesse em que seja proferida decisão de mérito favorável a quem lhe transmitiu a posição jurídica em litígio, pode ter interesse em, de forma directa, dirigir o processo após tal transmissão, fazendo operar a habilitação e passando então a litigar como parte principal e verdadeiro sujeito processual do litígio relativo à coisa ou direito transmitido ;
- assim, e até que se opere a legal habilitação, nos termos do artº. 356º, do Cód. de Processo Civil, ocorre uma distonia entre os sujeitos da relação material ou substantiva – adquirente ou transmissário e a parte estranha à transmissão – e os sujeitos da relação processual ou adjectiva – cedente ou transmitente e parte estranha à transmissão ;
- ou seja, até que ocorra legal habilitação, determinante de uma modificação subjectiva da instância, a parte principal continua a ser o cedente ou transmitente, apesar de não ser o sujeito da relação material litigada.
Não se discute, conforme exarado na decisão sob apelo, que a adquirente ou transmissária/cessionária (ora Recorrente) só a partir da sentença que a habilitasse como exequente é que passaria a assumir tal posição processual, pois, até tal prolação, continua a transmitente ou cedente a ser parte principal nos autos de execução, aí figurando em substituição daquela, apesar de já não ser sujeito da relação material substantiva.
Também não se discute que, lavrado termo de suspensão da execução, tal suspensão também abrangeria os próprios autos declarativos incidentais de habilitação de adquirente ou cessionário, em plena pendência, pois encontrava-se a decorrer o prazo para a apresentação de contestação. Efectivamente, conforme referenciado por Rui Pinto – A Ação Executiva, 2020, Reimpressão, AAFDL, pág. 955 e 956 -, suspensa a marcha do processo executivo, “não podem ocorrer mais atos processuais tanto executivos, como os dos apensos declarativos”, ainda que, naturalmente, não se suspenda “a marcha do incidente que deu causa à suspensão”.
Todavia, não podemos deixar de atender à específica posição e natureza da Habilitanda, a qual já havia dado início ao incidente de habilitação aquando da decretada suspensão dos autos executivos.
Efectivamente, a Habilitanda transmissária/cessionária, como efectivo sujeito e titular da relação material em litígio, deve merecer uma específica protecção, que uma linear visão do conceito de parte, defendida na decisão recorrida, não tutela nem garante.
Com efeito, se apenas tivermos em consideração o conceito de parte processualmente legítima, a decisão apelada teria que merecer a nossa plena confirmação, pois, na realidade, apesar da transmissão do direito em litígio, e apesar da propositura da habilitação, é a transmitente quem continuava a figurar como parte legítima na execução, em nome próprio, até que tal habilitação fosse decretada.
E isto, apesar de prosseguir um interesse que, agora, só indirectamente é seu, de já não ser titular da relação material em litígio que foi transmitida, e de já não ter qualquer interesse na prossecução dos autos executivos, em virtude de ter deixado de ser o sujeito activo da relação substantiva em discussão (de que já não é parte).
Porém, não cremos que tal tutele, de forma minimamente tolerável, a posição da Habilitanda transmissária/cessionária, instaurado que se encontrava o apenso declarativo através do qual pretendia passar a figurar como parte principal nos autos executivos, de forma a fazer coincidir a sua legitimidade substantiva com a legitimidade processual.
Nesta situação, em que o novo sujeito da relação material litigada já havia inclusive concretizado a sua intenção de dirigir o processo, operada que estava a transmissão, de forma a passar a litigar como parte principal e verdadeiro sujeito processual do litígio relativo ao direito transmitido, cremos justificar-se uma acrescida preocupação com a sua posição processual, de forma a acautelá-la, o que passa pelo necessário reconhecimento de uma maior participação nas vicissitudes que fossem ocorrendo nos autos principais de execução.
Ou seja, e concretizando, tendo ocorrido factor de suspensão da execução – óbito de um dos executados -, em plena pendência do incidente declarativo de habilitação, justificava-se, ou melhor impunha-se, que de tal suspensão da execução fosse dado conhecimento à Habilitanda, atenta a sua específica posição e a circunstância de se apresentar processualmente como putativa titular e sujeito da relação material litigada.
Com efeito, a solução defendida no despacho apelado, de mantê-la completamente afastada e alheia ao tramitar dos autos de execução, chegando ao ponto de, inclusive, nada mais lhe ter sido transmitido após a instauração do incidente de habilitação, ficando este num estado de latência não comunicada, afigura-se-nos totalmente desprovida de lógica e razoabilidade. E, ainda que formalmente incólume ou inatacável, não deixa de ser substancialmente incompreensível e violadora dos mais básicos direitos processuais da Requerente Habilitanda, bem como da posição de verdadeiro titular da relação substantiva em discussão.
Por outro lado, não se olvide, ainda, os efeitos decorrentes para o transmissário ou adquirente que necessariamente se produzem nos autos em litígio, pois, o que nestes vier a ser decidido produz, em regra, relativamente àquele, efeitos de caso julgado, mesmo que não se venha a habilitar.
Ora, tendo já a transmissária adquirente/cessionária iniciado o procedimento incidental conducente à sua habilitação (e fê-lo logo em 20/01/2023, ou seja, apenas 8 dias após a outorgada cessão de créditos, datada de 12/01/2023), o que evidencia clara intencionalidade de tomar o lugar da transmitente cedente, de forma a poder ter uma activa intervenção no processo onde as decisões prolatadas a vinculam, mais se justifica que lhe seja dado conhecimento do tramitar dos autos executivos, e não corroborar numa solução de total alheamento da mesma, enquanto não fosse operatória a reivindicada habilitação.
O que conduz, na presente sede, ao reconhecimento de que a Recorrente Habilitante deveria ter sido notificada do termo de suspensão da execução, datado de 03/02/2023 (bem como, consequentemente, do termo de deserção da instância, datado de 04/09/2023).
Pelo que, não o tendo sido, incorreu o Tribunal a quo na prática de irregularidade processual, a qual, influindo nos ulteriores termos processuais, se converte ou transmuta em nulidade (secundária), nos termos do artº. 195º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, determinando a anulação dos termos processuais subsequentes.
O que conduz, nesta sede, à procedência das conclusões recursórias, determinando-se a revogação do despacho recorrido/apelado, o qual se substitui por despacho que declara nulo todo o processado subsequente à aposição do termo de suspensão da execução, datado de 03/02/2023, com consequente determinação da sua notificação à Requerente Habilitante.
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Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, tendo a Apelante obtido vencimento no recurso interposto, e não tendo os Recorridos/Apelados apresentado contra-alegações, as custas devidas no âmbito da presente apelação ficam a cargo da(s) parte(s) vencida(s) a final.
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IV. DECISÃO
Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a) Julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Requerente/Habilitanda/Apelante T……………….., S.A. ;
b) Em consequência, revoga-se o despacho recorrido/apelado, o qual se substitui por despacho que declara nulo todo o processado subsequente à aposição do termo de suspensão da execução, datado de 03/02/2023, com consequente determinação da sua notificação à Requerente Habilitante ;
c) Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, tendo a Apelante obtido vencimento no recurso interposto, e não tendo os Recorridos/Apelados apresentado contra-alegações, as custas devidas no âmbito da presente apelação ficam a cargo da(s) parte(s) vencida(s) a final.
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Lisboa, 26 de Setembro de 2024
Arlindo Crua
Laurinda Gemas
Vaz Gomes
_______________________________________________________ [1] A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original. [2] Corresponde ao artigo 291º, do Cód. de Processo Civil, na redacção antecedente à Lei nº. 41/2013, de 26/06, o qual dispunha nos nº.s 1 e 4 que:
“1 – considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando esteja interrompida durante dois anos. (…) 4 – A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou relator”. [3] Na presente decisão seguiremos, de perto, na parte ora em equação, o Acórdão proferido pelo mesmo Relator e 1ª Ajunto, datado de 16/11/2017, Apelação nº. 267/12.1TBVFX.L1. [4]Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª Edição, Almedina, pág. 273. [5]Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 3ª Edição, Coimbra Editora, 2014, pág. 555. [6]Idem, pág. 556 e 557. [7] Refere expressamente o douto aresto desta Relação de 06/06/2017 – Relatora: Rosa Ribeiro Coelho, Processo nº. 1940/09.7TJLSB.L1-7, in www.dgsi.pt/jtrl.nsf - que “enquanto no velho Código a deserção operava independentemente de despacho judicial – nº 1 do art. 291º -, ficando sob a alçada do tribunal apenas o controle da verificação dos pressupostos da interrupção, em cujo âmbito lhe cabia aferir se a paragem do processo por mais de um ano fora devida a negligência da parte a quem cabia impulsioná-lo, já no atual Código o confronto dos nºs 1 e 4 com o nº 5 do citado 281º permite conclusão segura no sentido de que no processo de declaração a deserção da instância depende de despacho judicial que, após constatar a inércia negligente da parte em promover os ulteriores termos do processo, a julgue verificada”. [8] Cf., o douto aresto deste mesmo Tribunal e Secção, de 27/04/2017, Relator: Ezagüy Martins, Processo nº. 239/13.9TBPDL-2, in www.dgsi.pt/jtrl.nsf . [9] Conforme aduzido em douto aresto deste mesmo Tribunal e Secção, de 15/12/2016 – Relatora: Maria Teresa Albuquerque, Processo nº. 98/13.1TYLSB.L1-2, in www.dgsi.pt/jtrl.nsf -, “constitui hoje jurisprudência uniforme a que entende que no âmbito do art 281º CPC não deverá o juiz fazer uma aplicação automática da deserção, nem mesmo quando tenha existido o atrás referido despacho intermediário a alertar a parte para a consequência da deserção da instância no caso de não tomar determinado comportamento – nem por isso o juiz deve ter por deserta a instância simplesmente em função do decurso dos seis meses sem que a parte haja evidenciado a adopção desse comportamento”. [10] Corroborando, de forma clara, o douto Acórdão desta Relação de 03/03/2016 – Relatora: Maria de Deus Correia, Processo nº. 1423-07.0TBSCR.L1-6, in www.dgsi.pt/jtrl.nsf -, mencionando que “no regime actual, portanto, a deserção da instância deixou de ser automática carecendo, portanto, de ser julgada por despacho do juiz, ao contrário do que acontecia no sistema anterior no qual, como acima ficou dito, a instância ficava deserta independentemente de qualquer decisão judicial.
Sucede, porém, que no despacho que julga deserta a instância o julgador terá de apreciar se a falta de impulso processual se ficou a dever à negligência das partes, o que significa que lhe incumbe efectuar uma valoração do comportamento das partes, por forma a concluir se a falta de impulso em promover o andamento do processo resulta, efectivamente, da negligência destas” ; no mesmo sentido, ainda, o douto aresto desta Relação e Secção, de 26/02/2015, Relatora: Ondina Carmo Alves, Processo nº. 2254/10.5TBABF.L1-2, in www.dgsi.pt/jtrl.nsf , bem como os doutos Acórdãos da RC de 04/04/2017 - Relator: Luís Cravo, Processo nº 407/09.8TBNZR-A.C1 –, de 18/05/2016 – Relator: Falcão de Magalhães, Processo nº. 127/12.6TBVLF.C1 -, e de 05/05/2015 – Relator: Arlindo Oliveira, Processo nº. 131/04.8TBCNT.C1 -, todos in www.dgsi.pt/jtrc.nsf . [11]O julgamento da deserção da instância declarativa (breve roteiro jurisprudencial), disponível para consulta na Julgar online. [12] Relator: Pedro de Lima Gonçalves, Processo nº. 3422/15.9T8LSB.L1.S2, in www.dgsi.pt . [13] Relator: Tomé Gomes, Revista nº. 217/12.5TNLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt . [14] Relator: Abrantes Geraldes, Revista nº. 105415/12.2YIPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt . [15]Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, Reimpressão, pág. 331. [16]Ob. cit., pág. 574. [17]Notas ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág. 256. [18]Ob. cit., pág. 274. [19] Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 3ª Edição, Almedina, 2019, pág. 518 e 519.