DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
FACTOS-INDICES
INCUMPRIMENTO
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I - Considerando-se que o estado de insolvência não é imediatamente apreensível, o legislador lançou mão de factos que revelam esse estado e que estão descritos nas diversas alíneas do nº 1 do art.º 20º do CIRE, sendo designados usualmente por factos-índices ou presuntivos da insolvência.
II - Ao requerente da insolvência cabe demonstrar um qualquer dos factos-índices enumerados no nº 1 do art.º 20º do CIRE, podendo o requerido fundar a sua oposição, alternativa ou conjugadamente, na não verificação do facto-índice em que o pedido se baseia ou na inexistência da situação de insolvência.
III – O facto indiciador da insolvência previsto na al. b), do n.º 1 do art.º 20º do CIRE não se basta com o mero incumprimento de uma ou de algumas das obrigações vencidas. É igualmente imprescindível que o incumprimento, pelo seu montante ou pelas circunstâncias em que ocorre, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, o que impõe que o requerente alegue e prove, para além da obrigação incumprida, as circunstâncias em que ocorre esse incumprimento, de modo a poder-se concluir que se trata de uma impossibilidade de cumprimento do devedor resultante da sua penúria ou incapacidade patrimonial generalizada.
IV – Ao devedor, que se oponha ao pedido de declaração de insolvência, compete trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir. Isto é, caber-lhe-á ilidir a presunção emergente do facto-índice. «O devedor pode impedir a declaração de insolvência, demonstrando que não se verifica qualquer dos invocados “factos índice”, ou demonstrando que, não obstante a ocorrência desse(s) facto(s), não se verifica, no caso concreto, a situação de insolvência – art.º 30º, n.º 3, do CIRE»
V - A existência de um ativo que seja superior ao passivo, enquanto elemento determinativo da exclusão da insolvência, só releva se este ilustrar um quadro de viabilidade económica, do qual flua para a requerida a capacidade de gerar excedentes aptos a assegurar o cumprimento da generalidade das obrigações no momento do seu vencimento.

Texto Integral

Acordam os Juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório:
Instaurou (P), S.A., por requerimento de 6/12/2013 ação especial de insolvência contra (C) pedindo seja declarada a insolvência da requerida.
Fundamentou o seu pedido alegando, em síntese, que: é credora da requerida no montante total de 229.902,57€ (duzentos e vinte e nove mil novecentos e dois euros e cinquenta e sete cêntimos), proveniente de contratos de compra e venda com hipoteca, de mútuos com hipoteca, de contrato de crédito individual e conta a descoberto celebrados entre a requerida e a (CE), S.A., créditos cedidos à requerente por esta última, por contrato de Venda de Créditos, assinado em 12 de Julho de 2019, e que incluiu a transmissão de todos os direitos, garantias e acessórios inerentes aos créditos cedidos, designadamente das hipotecas constituídas sobre os prédios em causa; que a requerida deixou de conseguir cumprir as suas obrigações; os créditos que detém sobre a requerida encontra-se vencido e esse facto é demonstrador, pelo seu elevado montante e pelas circunstâncias do incumprimento, da grave situação económico-financeira em que a requerida se encontra; que a requerida tem um passivo exigível que atinge valores elevados, tendo acumulado dívidas, nomeadamente para com a requerente, das quais se conclui inequivocamente a impossibilidade de cumprir a generalidade das suas obrigações, isto sendo certo que o ativo é insuficiente para o efeito, encontrando-se insolvente nos termos do disposto nos arts. 3.º e 20.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Devidamente citada, a requerida deduziu oposição, aceitando a constituição dos créditos da requerente, mas não o valor em dívida, e alegando a sua solvabilidade, porquanto consegue pagar a sua única dívida, o que só não fez porque a requerente, sempre se recusou a aceitar tais propostas.
Concluiu pela improcedência do pedido, e juntou documentos.
Procedeu-se à realização da audiência de julgamento com observância das formalidades legais, conforme resulta da respetiva ata.
Designada e realizada audiência de julgamento, por sentença proferida em 27.06.2024 a ação foi julgada procedente e declarada a insolvência da requerida.
Não se conformando, a requerida recorreu da sentença, apresentando alegações com as seguintes conclusões:
1. A Sentença sob censura, ao ter declarado a insolvência da Apelante, incorreu em erro de julgamento da matéria de Facto e de Direito;
2. Competia à Requerente, “(P) S.A.”, fazer a devida prova das alegações que produziu, em sede da sua Petição Inicial, o que não logrou fazer, nomeadamente, quanto ao facto de a Apelante se encontrar, atualmente, numa situação de incapacidade económica para cumprir com a generalidade das suas obrigações pecuniárias;
3. Assim, não poderia o Tribunal a quo ter decidido no sentido em que o fez;
4. O Tribunal a quo dá como facto provado (facto provado n.º 21) que a Requerida, no ano de 2014, deu início a um processo de revitalização (que correu os seus termos no Juiz 4, Juízo do Comércio de Lisboa, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, sob o número (…), no âmbito do qual foram reclamados diversos créditos, ascendendo o passivo da Requerida, à data da homologação da lista de credores, a €455.462,38;
5. A Apelante fez prova, documental, nos autos, que, à presente data, a única dívida que resta por liquidar, de acordo com o seu Mapa das Responsabilidades do Banco de Portugal, são os créditos aqui reclamados pela Requerente, no valor de €232.115,17;
6. Facto que o Tribunal a quo considerou como provado (facto provado n.º 25);
7. Pelo que não é sério que o Tribunal de 1ª Instância dê como provado (facto provado n.º 34) que a Requerida se tenha confessado devedora de quantia superior, designadamente, €272.715,04 (a ora Apelante indicou aquele valor na sua relação de credores por mero lapso, levada ao engano pelo valor da ação indicado na Petição Inicial da Requerente; e não podem existir dúvidas de que se trata de um simples erro, analisando-se o Mapa das Responsabilidades do Banco de Portugal junto aos autos);
8. A Apelante nunca afirmou ter liquidado todos os créditos reclamados no âmbito daquele processo de revitalização;
9. O que a Requerida afirmou, na sua contestação, foi que “liquidou todas as suas dívidas, nomeadamente as que subsistiam em 2014, à exceção dos valores reclamados pela Requerente”;
10. E se é verdade que os créditos fiscais não surgem espelhados naquele Mapa, também é verdade que a Apelante não é atualmente devedora de qualquer valor a esse título;
11. Mas mesmo que assim não fosse considerando o valor global dos créditos reclamados naquele processo de revitalização (€455.462,38) nunca seria o valor dos créditos fiscais (€668,80) a colocar em risco, ou a determinar, a (in)solvabilidade da Requerida;
12. É inaceitável que o Tribunal a quo afirme que a Requerida está impossibilitada de cumprir a generalidade das suas obrigações, baseando as suas conclusões em factos alegados pela Requerente que remontam há 10 anos;
13. Sendo que a situação que existia em 2014 não é, de todo, aquela que existe atualmente, como se exige no artigo 3.º do CIRE;
14. A única dívida da Apelante são os créditos reclamados pela Requerente;
15. A Apelante tem capacidade económica para honrar tais compromissos, caso a Requerente assim o quisesse;
16. Os valores reclamados pela “(P), S.A.” só ainda não estão pagos, ou garantidos por um plano prestacional, à presente data, pois aquela nunca se dignou responder às propostas formuladas pela Requerida, remetendo-se ao silêncio e fechando as portas a qualquer negociação, conforme factos provados na sentença de primeira instância (factos provados sob os n.ºs 26 a 29);
17. Sendo que a ora Apelante tem património imobiliário suficiente para garantir qualquer plano de pagamentos que viesse a ser acordado e/ou saldar as dívidas existentes, facto que sempre foi do conhecimento da Requerente e que o Tribunal a quo concedeu na materialidade assente;
18. A Apelante conseguia – como consegue hoje – pagar um avultado montante e extinguir a sua única dívida, designadamente, os créditos reclamados pela Requerente, garantidos que estão através de três hipotecas voluntárias registadas sobre o imóvel da ora Apelante (de resto, são os únicos ónus registados sobre o imóvel), melhor identificado nos autos;
19. E só não o fez porque a sua única credora sempre recusou aceitar tais propostas;
20. Acontece que a postura adotada pela Requerente sempre foi a de intimidação e ameaça, disparando sobre a ora Apelante várias cartas de interpelação de pagamento, enviadas pela própria Requerente e por empresas de recuperação de créditos, ao invés de responder às propostas que pagamento que iam sendo apresentadas pela mesma, o que o Tribunal de 1ª instância atestou, ao considerar também deu como provado (factos provados sob os n.ºs 30 a 33);
21. Com efeito, não foi feita prova contundente, ou sequer indiciária, de que, à presente data, o passivo da Requerida seja impagável e que a mesma esteja impossibilitada de cumprir a generalidade das suas obrigações, já que o que é dito é que, há 10 anos, se encontrava nessa situação, o que não é, de todo, a situação à data atual;
22. Ao contrário daquilo que é afirmado em sede de sentença de primeira instância, decorre dos argumentos expostos que a ora Apelante tem liquidez e disponibilidade financeira, e que poderia pagar grande parte do montante em dívida, pelo que não se encontra na situação deficitária que a Requerente quis fazer crer ao tribunal (recorrendo a elementos documentais que reportam há 10 anos atrás);
23. Com efeito, ser titular de um imóvel cujo valor de mercado não pode ser computado em não menos de €350.000,00, não pode ser um fator subvalorizado;
24. O imóvel titulado pela ora Apelante é sito na Av. (…), tal como consta das escrituras juntas pela Requerente na sua Petição Inicial;
25. Trata-se de um imóvel de tipologia T4, com cinco assoalhadas, com uma área total de cerca de 120m2, sendo que em Almada, naquela localização, com tais características, o preço por metro quadrado atinge, em média, 3.310,00 €/m2;
26. E os preços de venda praticados atualmente, para essa tipologia, naquela localização, atingem, em média, os €350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros);
27. Facto que é notório e do conhecimento público;
28. Assim sendo, cremos, andou mal o Tribunal a quo ao desvalorizar o facto da ora Apelante ser titular de um imóvel com estas características;
29. Pelo exposto, considera-se que não foi demonstrada a situação de insolvência atual da Requerida, não se pode extrair da prova produzida o preenchimento de nenhum dos factos-índice do artigo 20.º do CIRE, e consequentemente, não se pode considerar a Requerida como estando em situação de insolvência;
30. Assim, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento ao concluir como não provadas as matérias vertidas nas alíneas a), b) e c) dos Factos Não Provados.
31. Pelo que deverá a matéria vertida nessas alíneas do elenco factual não provado ser considerada como provada;
32. A Sentença sob censura, ao pronunciar-se sobre a declaração de insolvência da Apelante, incorreu em erro de julgamento, na medida em que os factos dados como provados e não provados, não permitem concluir que a Apelante está perante uma impossibilidade de cumprimento das dívidas vencidas;
33. Efetivamente, a sentença sob censura enferma de erro quando à correta aplicação do direito insolvencial, na medida em que a factualidade dada como provada não permite concluir que o Apelante encontra-se inequivocamente impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, como exige o artigo 3.º, n.º 1 do C.I.R.E.;
34. Na verdade, e contrariamente ao que afirma a sentença sob censura, não se demonstra que a falta de cumprimento das obrigações constantes da factualidade provada revele a impossibilidade de a devedora satisfazer a generalidade das suas obrigações;
35. Quanto à extensão das dívidas da ora Apelante, ficou demonstrado que as mesmas se circunscrevem aos créditos reclamados pela Requerente;
36. Efetivamente, cremos, que outro não pode ser o entendimento de que não existe suficiência probatória para se poder concluir que existe impossibilidade de cumprimento das dívidas da aqui Apelante;
37. Aliás, da factualidade assente não consta que a Apelante tenha outro tipo de dívidas além das que se encontram garantidas por hipotecas sobre o imóvel melhor identificado nos autos, nem sequer dívidas fiscais;
38. A Apelante é proprietária de um imóvel cujo valor de mercado não é inferior a €350.000,00;
39. Da factualidade considerada como provada, bem como dos elementos probatórios juntos aos autos de insolvência, não permitem ao Tribunal a quo retirar a conclusão de que o Apelante se encontra numa situação de insolvência;
40. Conforme se procurou demonstrar, pese embora o considerável valor da dívida da Apelante à “(P), S.A.”, i. é, atualmente de €232.115,17, certo é que a mesma se encontra garantida pelo património imobiliário da Apelante;
41. Além disso, o ativo da Apelante é manifestamente superior ao passivo, ascendendo aquele ao montante aproximado de €350.000,00;
42. A declaração de insolvência, como medida mais gravosa é um ato extremo, dir-se-á mesmo a última ratio;
43. O Tribunal a quo, em erro de julgamento, ignorou que a Apelante é titular de um ativo superior ao passivo;
44. Termos em que, salvo melhor e douta opinião, deverá a Sentença sob censura ser revogada e substituída por douto Acórdão que julgue procedente a oposição à declaração de insolvência do aqui Apelante.

Recebida a apelação, foram os autos aos vistos das Meritíssimas Juízas Adjuntas.

FUNDAMENTAÇÃO
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II. Do Objeto do recurso:
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.

As questões a decidir são as seguintes:
I) Impugnação da matéria de facto;
II) Verificação do facto presuntivo de insolvência previsto no art.º 20º, nº 1, als. b) do CIRE.

Na sentença recorrida foi dada como provada a seguinte factualidade:
1) Por contrato de venda de créditos, assinado em 12 de Julho de 2019, (CE), S.A., vendeu os créditos identificados como (…) que detinha sobre a devedora e todas as garantias acessórias a eles inerentes, a (P), S.A., incluindo as hipotecas constituídas sobre o prédio em causa.
2) Mostra-se inscrita no registo predial a transmissão do crédito a favor da requerente no que respeita às hipotecas inscritas sobre a fracção autónoma designada pela letra “N” do prédio urbano descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º (…).
3) No exercício da sua actividade creditícia (CE), S.A., celebrou com a Requerida (C) e (J), na qualidade de mutuários, um Contrato de Compra e Venda e Mútuo com Hipoteca, a que foi atribuído internamente o n.º (…), formalizado por Escritura Pública no dia 19 de Agosto de 1993, outorgada no 3.º Cartório Notarial de Almada, e respectivo documento complementar, nos termos do qual aquela instituição bancária emprestou à requerida e a (J) a quantia de €44.891,81 (9.000.000$00), da qual estes se confessaram devedores.
4) Para garantia das obrigações assumidas, foi constituída hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma designada pela letra “N” do prédio urbano sito (…), hipoteca esta que foi inscrita na referida Conservatória do Registo Predial através da apresentação 28 de 1993/06/30.
5) A Requerida não procede ao pagamento das prestações a que estava vinculada no âmbito do aludido contrato desde 14/04/2012.
6) Mostram-se em dívida, na presente data, as seguintes quantias: capital em dívida – 22.629,97€, juros contabilizados desde 14-04-2012, à taxa de 4% – 4.043,22€ e despesas – 2,501.49€.
7) De igual modo, no exercício da sua actividade creditícia  (CE), S.A., celebrou com a Requerida (C) e (J), na qualidade de mutuários, um Contrato de Mútuo com Hipoteca, a que foi atribuído internamente o n.º (…), formalizado por Escritura Pública no dia 19 de Dezembro de 2007, outorgada no Cartório da Notária (…), e respectivo documento complementar, nos termos do qual aquela instituição bancária emprestou à requerida e a (J) a quantia de €113.000, da qual estes se confessaram devedores.
8) Para garantia das obrigações assumidas, foi constituída hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma acima descrita, hipoteca esta que foi inscrita na Conservatória do Registo Predial através da apresentação 49 de 2008/01/17.
9) A Requerida não procede ao pagamento das prestações a que estava vinculada no âmbito do aludido contrato desde 14/04/2012.
10) Mostram-se em dívida, na presente data, as seguintes quantias: capital em dívida – 101.431,43€, juros contabilizados desde 14-04-2012, à taxa de 4% – 18.122,42€ e despesas – 11.285,78€.
11) Da mesma forma, no exercício da sua actividade creditícia, (CE), S.A. celebrou com a Requerida e (C) e (J), na qualidade de mutuários, um Contrato de Mútuo com Hipoteca, a que foi atribuído internamente o n.º …, formalizado por Escritura Pública no dia 31 de Maio de 2011, outorgada na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Almada, e respectivo documento complementar, nos termos do qual aquela instituição bancária emprestou à requerida e a (J) a quantia de €40.000, da qual estes se confessaram devedores.
12) Para garantia das obrigações assumidas, foi constituída hipoteca voluntária sobre a fracção autónoma supra identificada, hipoteca esta que foi registada na Conservatória do Registo Predial através da apresentação 160 de 2011/05/31.
13) A Requerida não procede ao pagamento das prestações a que estava vinculada no âmbito do aludido contrato desde 14/04/2012.
14) Mostram-se em dívida, na presente data, as seguintes quantias: capital em dívida – 39.213,12€, juros contabilizados desde 14-04-2012, à taxa de 4% – 7,006.08€ e Despesas – 15,059.74€.
15) Ainda, no exercício da sua actividade creditícia,  (CE), S.A. celebrou com a Requerida (C ) e (J), na qualidade de mutuários, em 02/06/2009, um Contrato de Crédito Individual, a que foi atribuído internamente o n.º (…), nos termos do qual aquela instituição bancária emprestou à requerida e a (J) a quantia de €29.099,21, da qual estes se confessaram devedores.
16) A Requerida não procede ao pagamento das prestações a que estava vinculada no âmbito do aludido contrato desde 02/11/2011.
17) Mostram-se em dívida, na presente data, as seguintes quantias: capital em dívida – 5.262,95€, juros contabilizados desde 14-04-2012, à taxa de 4% – 940.31€ e despesas – 445.84€.
18) Por fim, também no exercício da sua actividade creditícia, (CE), S.A., celebrou com a Requerida (C) e (J), um contrato de abertura de conta, a que foi atribuído internamente o n.º ….
19) A Requerida não procede ao pagamento das prestações a que estava vinculada no âmbito do aludido contrato desde 29-03-2012.
20) Mostram-se em dívida, na presente data, as seguintes quantias: capital em dívida – 1.663,08 € e juros contabilizados desde 14-04-2012, à taxa de 4% – 297.14€.
21) Correu termos sob o n.º (…), do Juízo de Comércio do (…)  - Juiz 4, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, processo especial de revitalização intentado pela requerida e cônjuge, no âmbito do qual foram reclamados diversos créditos, tendo sido incluídos na lista de créditos reconhecidos apresentada pelo administrador judicial provisório créditos no montante global de €455.462,38, sendo deste o valor de €225.693,16 da titularidade de (CE).
22) O plano de recuperação ali proposto mereceu a aprovação por mais de 2/3 da totalidade dos votos emitidos, sendo mais de metade correspondentes a créditos não subordinados, tendo sido homologado por sentença, transitada em julgado, datada de 26/03/2015.
23) Mostra-se inscrita aquisição, por compra, a favor de (C) da fracção autónoma designada pela letra “N” do prédio urbano descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º (…), com o valor tributável de €37.886,88.
24) À requerida, para além do aludido bem imóvel, não são conhecidos outros bens.
25) Do resumo das responsabilidades de crédito emitido pelo Banco de Portugal referente ao mês de Março de 2024, no que respeita à requerida, constam as seguintes responsabilidades comunicadas por (H), S.A., no total de €232.115,17, correspondentes aos créditos reclamados nestes autos, sendo:
- €6.717,52, em incumprimento com início em 13/04/2012, referente a outros créditos;
- €132.158,23, em incumprimento com início em 13/04/2012, referente a outros créditos;
- €29.468,87, em incumprimento com início em 13/04/2012, referente a crédito à habitação;
- €1.981,84, em incumprimento com início em 14/03/2012, referente a facilidades de descoberto;
- €61.788,71, em incumprimento com início em 13/04/2012, referente a outros créditos.
26) A requerida dirigiu cartas a (W), S.A., entre Maio de 2020 e Julho de 2021, cujas cópias foram juntas à oposição como documentos 2 a 4 e que se dão por integralmente reproduzidas.
27) Em 30 de Novembro de 2021, a requerida dirigiu carta a (W), S.A., propondo a “regularização total da dívida hipotecária no montante de €187.184,18 (…), a liquidar integralmente no prazo máximo de seis meses a contar de 1 de Dezembro de 2021”, o que não foi aceite por aquela sociedade.
28) Em 6 de Setembro de 2022, a requerida dirigiu carta a (W), S.A., propondo a “regularização total da dívida hipotecária no montante de €200.000 (…), a liquidar integralmente no prazo máximo de seis meses a contar da receção da presente”.
29) Por carta de 15 de Dezembro de 2022, a requerida reiterou a proposta avançada na missiva anterior.
30) (P), S.A., dirigiu à requerida as cartas datadas de 13/02/2020, interpelando-a ao pagamento dos valores em dívida, sob pena de se considerar verificado incumprimento definitivo, cujas cópias foram juntas à oposição como documentos 9 e 10 e se dão por integralmente reproduzidas.
31) (P), S.A., dirigiu à requerida as cartas datadas de 20/03/2020, informando-a da resolução dos contratos por incumprimento definitivo, cujas cópias foram juntas à oposição como documentos 11 e 12 e se dão por integralmente reproduzidas.
32) (P), S.A., intitulando-se gestora dos créditos em causa, dirigiu à requerida cartas datadas de 27/04/2020, informando-a que iria reportar ao Banco de Portugal os valores em dívida, cujas cópias foram juntas à oposição como documentos 13 e 14 e se dão por integralmente reproduzidas.
33) (W), S.A., dirigiu à requerida cartas datadas de 10/08/2022 e 22/12/2022, solicitando que esta a contactasse com urgência sobre assunto relacionado com o seu contrato de crédito hipotecário, “por forma a evitar que (W) se veja forçada a recorrer às medidas legais previstas que tem ao seu alcance, com todas as consequências negativas que poderão decorrer para V. Exa.”, cujas cópias foram juntas à oposição como documentos 15 e 16 e se dão por integralmente reproduzidas.
34) Na relação de credores junta com a oposição, a requerida indicou como credora (P), S.A., e o montante em dívida de € 272.715,04.
Não se provaram os seguintes factos:
- que a requerida pagou todos os créditos incluídos na lista de créditos do processo especial de revitalização, designadamente o crédito da Fazenda Nacional;
- que a requerida conseguia, e consegue, pagar um avultado montante a fim de extinguir a sua única dívida, o crédito reclamado pela requerente, só não o tendo feito, por a requerente recusar sempre aceitar as suas propostas;
- que a Requerida tem disponibilidade financeira e que poderia pagar grande parte do montante em dívida.

III. Do mérito do recurso.
I – Impugnação da matéria de facto
Insurge-se a requerida nas suas conclusões contra o facto provado na sentença recorrida sob o n.º 21 nos termos do qual se deu como provado que “Correu termos sob o n.º …/14.0T8BRR, do Juízo de Comércio do ... - Juiz 4, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, processo especial de revitalização intentado pela requerida e cônjuge, no âmbito do qual foram reclamados diversos créditos, tendo sido incluídos na lista de créditos reconhecidos apresentada pelo administrador judicial provisório créditos no montante global de €455.462,38, sendo deste o valor de €225.693,16 da titularidade de (CE).”, alegando que fez prova documental nos autos, de que, à presente data, a única dívida que resta por liquidar, de acordo com o seu Mapa das Responsabilidades do Banco de Portugal, são os créditos aqui reclamados pela Requerente, no valor de €232.115,17, facto que o Tribunal deu como provado sob o n.º 25.
Considera, pois, que o Tribunal a quo não poderia ter dado como provado sob o facto 34 que a Requerida se tenha confessado devedora de quantia superior, designadamente, €272.715,04 pois a ora apelante indicou aquele valor na sua relação de credores por mero lapso, levada ao engano pelo valor da ação indicado na Petição Inicial da Requerente, tratando-se de um erro, que resulta da análise do Mapa de Responsabilidades do Banco de Portugal.
Vejamos.
No facto 34 o Tribunal a quo não deu como provado que a recorrente se tenha confessado devedora da quantia de €272.715,04.
O que ali consta como provado é que: “Na relação de credores junta com a oposição, a requerida indicou como credora (P), S.A., e o montante em dívida de €272.715,04 e fê-lo, como decorre da motivação da matéria de facto, de acordo com “o teor da relação de credores junta com a oposição.” Vista esta lista, que se mostra junto aos autos com a oposição sob o doc. n.º 17 ali consta que o total do montante em divida à requerente (P), S.A. é o de €272.715,04.
O conteúdo do facto dado como provado plasma, pois, o vertido documento junto pela requerente relativo à lista a que alude o art.º 24º, n.º 1, al. a) do CIRE.
Por seu turno, deu o Tribunal a quo como provado, sob o facto 25) da sentença sob censura que “Do resumo das responsabilidades de crédito emitido pelo Banco de Portugal referente ao mês de Março de 2024, no que respeita à requerida, constam as seguintes responsabilidades comunicadas por (H), S.A., no total de €232.115,17, correspondentes aos créditos reclamados nestes autos, sendo:
- €6.717,52, em incumprimento com início em 13/04/2012, referente a outros créditos;
- €132.158,23, em incumprimento com início em 13/04/2012, referente a outros créditos;
- €29.468,87, em incumprimento com início em 13/04/2012, referente a crédito à habitação;
- €1.981,84, em incumprimento com início em 14/03/2012, referente a facilidades de descoberto;
- €61.788,71, em incumprimento com início em 13/04/2012, referente a outros créditos.”
O Tribunal a quo fundamentou a prova deste facto com “o teor do resumo das responsabilidades de crédito emitido pelo Banco de Portugal referente ao mês de Março de 2024.” documento junto pela recorrente com a oposição.
Os factos impugnados pela recorrente refletem a prova documental que por si foi junta aos autos, sendo certo que, existindo erro de escrita ou qualquer outro lapso no que se reporta à Lista apresentada ao abrigo do disposto no art.º 24º, n.º 1, al. a) do CIRE, como vem sustentado, sempre a recorrente poderá proceder à sua retificação, quanto mais não seja, ao abrigo do disposto 249º do Cód. Civil.
Assente que está a prova dos factos 34) e 25) da matéria de facto provada no teor dos documentos juntos pela recorrente com a sua oposição, nada há a alterar.
Para além, insurge-se também a apelante quanto aos factos dados como não provados pelo Tribunal a quo, a saber:
- que a requerida pagou todos os créditos incluídos na lista de créditos do processo especial de revitalização, designadamente o crédito da Fazenda Nacional;
- que a requerida conseguia, e consegue, pagar um avultado montante a fim de extinguir a sua única dívida, o crédito reclamado pela requerente, só não o tendo feito, por a requerente recusar sempre aceitar as suas propostas;
- que a Requerida tem disponibilidade financeira e que poderia pagar grande parte do montante em dívida.
A Mma. Juiz a quo fundamentou a sua convicção negativa na sentença em crise nos seguintes termos: “Quanto aos factos não provados, a convicção do tribunal assentou na ausência de prova.
Não demonstrou a requerida ter liquidado todos os créditos incluídos na lista de créditos do processo especial de revitalização, tanto mais que, no que respeita ao crédito ali incluído da Fazenda Nacional, não são jamais créditos fiscais incluídos no resumo de responsabilidades do Banco de Portugal.
Ora, quanto ao primeiro dos factos dados como não provados, alegou a requerida, em sede de oposição ao pedido de insolvência, que liquidou todas as suas dívidas, nomeadamente as que subsistiam em 2014, à exceção dos valores reclamados pela Requerente, conforme Mapa de Responsabilidades que se junta como Doc. 1 (artigo 8º da oposição).
Para prova do ali alegado juntou «Resumo de responsabilidades do Banco de Portugal», do qual não consta o crédito da Fazenda Nacional, o qual se mostrava incluído na lista de créditos do processo especial de revitalização que correu os seus termos sob o n.º …/14.0T8BRR, do Juízo de Comércio do ... - Juiz 4, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
O ónus da prova encontra-se claramente delimitado no processo de insolvência - ao credor requerente cumpre provar os factos que formam a (provados) presunção de insolvência e ao devedor cumpre ilidir tal presunção arts. 20.º e 30.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa.
Assim, competia à recorrente a prova do facto alegado em 8 da contestação - de que liquidou todas as suas dívidas, nomeadamente as que subsistiam em 2014, à exceção dos valores reclamados pela Requerente.
Como se anota na fundamentação da sentença recorrida os créditos da Fazenda Nacional, não são incluídos no resumo de responsabilidades do Banco de Portugal, pelo que, não tendo a recorrente junto outra prova documental, designadamente certidão de divida à Fazenda Nacional que espelhasse a atual inexistência de tais créditos, não merece qualquer censura a factualidade dada como não provada quanto a este facto.
Por fim, defende a recorrente que não foi feita prova contundente, ou sequer indiciária, de que, à presente data, o passivo da Requerida seja impagável e que a mesma esteja impossibilitada de cumprir a generalidade das suas obrigações, pelo que foram incorretamente julgados os restantes factos dados como não provados.
Fundamentou da seguinte forma a Mma. Juiz a quo a resposta negativa a estes factos: “Incumbindo à requerida a prova da sua solvência, nos termos do art.º 30.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não produziu aquela prova da alegada capacidade/disponibilidade financeira para pagar um avultado montante a fim de extinguir o crédito da requerente.”
Adianta-se, igualmente, que da análise dos documentos juntos não merece censura este segmento da decisão da matéria de facto.
A prova oferecida pela recorrente é documental, junta com a oposição.
Desta, para além do imóvel descrito em 23), não consta qualquer outra prova (ou sequer alegação) que permita concluir pela atual liquidez para pagamento do montante do crédito da requerente, designadamente, a existência de atual fonte de rendimentos provenientes de atividade que desenvolva, a titularidade de ativos financeiros ou acesso a crédito bancário, que lhe permita satisfazer os créditos vencidos alegado pela requerente, que são, no seu total, de valor considerável - €229.902,57 (correspondente a três mútuos garantidos por hipotecas sobre imóvel propriedade da requerida, um mútuo individual e um contrato de abertura de conta com facilidades de descoberto), sendo que este imóvel, onerado com hipotecas, não confere à requerida a liquidez necessária para o pagamento integral dos créditos reclamados pela credora requerente, mesmo tendo por referência o valor de mercado €350.000,00 indicado pela apelante.
Em conclusão, mantém-se inalterada a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida.

II - Verificação dos factos presuntivos de insolvência previstos no art.º 20º, nº 1, als. b) do CIRE
Declarou o Tribunal a quo a insolvência da requerida com fundamento na alínea b) do art.º 20º, nº 1 do CIRE.
Este entendimento merece a discordância da requerida em sede recursiva, pugnando pelo erro de julgamento em que incorreu a sentença, por entender que os factos dados como provados e não provados, não permitem concluir que a apelante está perante uma impossibilidade de cumprimento das dívidas vencidas.
Vejamos.
Dispõem o art.º 1º do CIRE que «o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.»
Depois, estabelece-se o art.º 3º, nº 1 do mesmo diploma que «é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas».
Conforme referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa Anotado, pág. 86, de há muito que tem sido geral e pacificamente entendido pela doutrina e pela jurisprudência que, para caracterizar a insolvência, a impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas. O que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciem a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
Por outro lado, como refere Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, 2ª Edição, pág. 55, a única exigência legal para que se verifique a insolvência é que haja uma ou mais obrigações vencidas, podendo a impossibilidade de cumprimento revelar-se quando o devedor está meramente constituído em mora, não havendo incumprimento em sentido próprio. Poderá assim suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, da mesma forma que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante (Cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Ob. cit., Loc cit.).
Considerando-se que o estado de insolvência não é imediatamente apreensível, o legislador lançou mão de factos que revelam esse estado e que estão descritos nas diversas alíneas do nº 1 do art.º 20º do CIRE, sendo designados usualmente por factos-índices ou presuntivos da insolvência.
São os seguintes:
a) a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas;
b) a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações;
c) a fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor ou o abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo;
d) a dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e a constituição fictícia de créditos;
e) a insuficiência dos bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra o devedor;
f) o incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos, nas condições previstas na alínea a) do nº 1 e no nº 2 do art.º 218º do CIRE;
g) o incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de alguns seguintes tipos; i) tributárias; ii) de contribuições e quotizações para a segurança social; iii) emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação desse contrato; iv) rendas de qualquer tipo de locação, incluindo financeira, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência;
h) sendo o devedor uma das entidades referidas no nº 2 do art.º 3º, a manifesta superioridade do passivo sobre o ativo segundo o último balanço efetuado, ou o atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver legalmente obrigado.
O estabelecimento de factos presuntivos da insolvência tem por principal objetivo permitir aos legitimados o desencadeamento do processo, fundados na ocorrência de alguns deles, sem haver necessidade de, a partir daí, fazer a demonstração efetiva da situação de penúria traduzida na insusceptibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, nos termos em que ela é assumida, no art.º 3º, nº 1 do CIRE, como característica nuclear da situação de insolvência.
Resulta, depois, do disposto nos nºs 3 do art.º 30º do CIRE, nos termos do qual «a oposição do devedor à declaração de insolvência pretendida pode basear-se na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido formulado ou na inexistência da situação de insolvência», que caberá ao devedor, que se oponha ao pedido de declaração de insolvência, trazer ao processo factos e circunstâncias probatórias de que não está insolvente, pese embora a ocorrência do facto que corporiza a causa de pedir. Isto é, caber-lhe-á ilidir a presunção emergente do facto-índice. «O devedor pode impedir a declaração de insolvência, demonstrando que não se verifica qualquer dos invocados “factos índice”, ou demonstrando que, não obstante a ocorrência desse(s) facto(s), não se verifica, no caso concreto, a situação de insolvência – art.º 30º, n.º 3, do CIRE» (Cf. os Acórdãos desta 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/05/2019, Relator Manuel Ribeiro Marques, proferido no processo n.º 3561/18.9TBRR-A.L1-1, do Tribunal da Relação de Coimbra de 8/07/201, Relator Freitas Neto proferido o processo n.º 724/21.9T8CBR-A.C1, do Tribunal da Relação do Porto de 20/09/201, Relatora Eugénia Cunha, proferido no processo n.º 1376/20.9T8STS-A.P1, todos disponíveis para consulta in www.dgsi.pt).
Como tivemos já ocasião de referir, o incumprimento de só alguma ou algumas obrigações apenas constitui facto-índice, quando pelas suas circunstâncias, evidencia a impossibilidade de pagar, devendo o requerente, então, juntamente com a alegação de incumprimento, trazer ao processo essas circunstâncias, das quais seja razoável, uma vez demonstradas, deduzir a penúria generalizada.
Só não será assim quando o incumprimento diga respeito a um dos tipos de obrigações enumeradas na alínea g), porquanto, tal ocorrência, verificada pelo período de seis meses aí referido, fundamenta, só por si, sem necessidade de outros complementos, a instauração de ação pelo legitimado, deixando para o devedor o ónus de demonstrar a inexistência da impossibilidade generalizada de cumprir e, logo, da insolvência – Cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 205/6.
Em conclusão, ao requerente cabe demonstrar um qualquer dos factos-índices enumerados no nº 1 do art.º 20º do CIRE, podendo o requerido fundar a sua oposição, alternativa ou conjugadamente, na não verificação do facto-índice em que o pedido se baseia ou na inexistência da situação de insolvência - Cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., Loc. Cit.
O Tribunal a quo considerou verificado o facto-índice constante da alínea b) do art.º 20º do CIRE – [falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações].
Convocando-se o supra referido, este facto indiciador da insolvência não se basta com o mero incumprimento de uma ou de algumas das obrigações vencidas. É igualmente imprescindível que o incumprimento, pelo seu montante ou pelas circunstâncias em que ocorre, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, o que impõe que o requerente alegue e prove, para além da obrigação incumprida, as circunstâncias em que ocorre esse incumprimento, de modo a poder-se concluir que se trata de uma impossibilidade de cumprimento do devedor resultante da sua penúria ou incapacidade patrimonial generalizada.(cf. entre vários o Acórdão desta secção de 31/10/2023, relatora Amélia Sofia Rebelo, proferido no processo n.º 2343/22.3T8VFX-B.L1-1, disponível para consulta in www.dgsi.pt).
Relevarão, pois, os factos que preencham a insatisfação de uma ou mais obrigações e o circunstancialismo que a rodeou, e que sejam tidos como idóneos e vocacionados para, razoavelmente e em consonância com os ditames próprios da experiência comum, fazer concluir pela falta de meios do devedor para solver em tempo os seus vínculos. Ou seja, do incumprimento terá que se inferir a impossibilidade de o devedor satisfazer a generalidade dos seus compromissos (cf. Luís Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, Almedina, 8ª ed., pág. 143).
Para sustentar a sua legitimidade e para fundamentar o seu pedido, a requerente invocou crédito no montante total de 229 902,57€ que detém sobre os recorrentes emergente de contrato de compra e venda com hipoteca, de mútuos com hipoteca, de contrato de crédito individual e conta a descoberto celebrados entre a requerida e a (CE), S.A., créditos que foram cedidos à requerente por esta última, por contrato de Venda de Créditos, assinado em 12 de Julho de 2019, e que incluiu a transmissão de todos os direitos, garantias e acessórios inerentes aos créditos cedidos, designadamente das hipotecas constituídas sobre os prédios em causa; que a requerida deixou de conseguir cumprir as suas obrigações; os créditos que detém sobre a requerida encontra-se vencido. Deu assim cabal cumprimento, como se refere na sentença recorrida ao disposto no art.º 25.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, especificando a origem, natureza e montante dos seus créditos.
Dos factos provados resulta a demonstração da existência dos créditos da requerente, decorrente da celebração de cinco contratos de mútuo, que foram incumpridos.
Por outro lado, como se refere na sentença recorrida, a requerente logrou provar factos que justificam a existência dos seus créditos, considerando-se preenchido o requisito que lhe confere legitimação (substantiva) para demandar a declaração de insolvência da requerida, créditos estes que se mostram vencidos na integra, quer os emergentes dos mútuos hipotecários, quer os decorrentes do mútuo individual e da abertura de conta com facilidades de descoberto, como resulta das cartas enviadas pela requerente à requerida em 13/02 e 20/03/2020 (factos 30) e 31)), circunstância que a requerida nem contestou.
Este conjunto de factos, a que a sentença recorrida reconheceu valor presuntivo da situação de insolvência, permite concluir pelo correto julgamento de direito na verificação da situação de insolvência com fundamento na al. b) do nº 1 do art.º 20º, excluindo a verificação do facto presuntivo previsto na alínea a) do art.º 20º - suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas - tendo presente que, sem prejuízo da sua verificação cumulativa no caso concreto, cada uma das alíneas do art.º 20º vale per si como facto índice de insolvência e não exige mais do que a verificação dos pressupostos legais que a integram.
Com efeito, o montante do crédito sobre a recorrente agora detido pela requerente remonta há mais de 12 anos.
Está provado que a requerida propôs à empresa encarregada da gestão dos créditos, em dezembro de 2021 e em setembro de 2022, a regularização total da dívida hipotecária no montante de, respetivamente, 187.184,18€ e de 200.000,00€, a entregar no prazo de 6 meses após a aceitação da proposta. A primeira proposta não mereceu a aprovação da credora e quanto à segunda não há notícia de resposta, presumindo-se, como bem se faz na sentença recorrida, que foi negativa em face do comportamento subsequente por parte da credora. Todavia, a requerida não alegou e, consequentemente, não provou, que desde a data de início do incumprimento dos mútuos haja realizado qualquer pagamento, seja das prestações vencidas, seja de montante superior que pudesse demonstrar a capacidade para retomar o cumprimento pontual das obrigações assumidas.
O montante dos créditos detidos, a sua longevidade e a ausência demonstrada de quaisquer rendimentos, ativos financeiros ou possibilidade de recurso a crédito, apenas permitem a conclusão de que o não cumprimento da dívida assente nos autos é revelador da situação de penúria e de impossibilidade, atual, de a recorrente satisfazer pontualmente as suas obrigações por falta de liquidez para satisfazer a totalidade das dívidas vencidas.
Em face dessa demonstração, competia à devedora provar que tinha capacidade para cumprir, com regularidade e pontualidade, as suas obrigações, isto é, demonstrar que possuía crédito e património ativo líquido suficientes para saldarem o seu passivo, o que não fez.
Como elemento de presunção da situação de insolvência, o incumprimento do crédito da requerente, associado à ausência demonstrada de liquidez e/ou de rendimentos para proceder ao seu pagamento, mais do que uma presunção, é revelador da comprovada situação de insolvência.
Nas suas conclusões recursivas contrapõem a recorrente que é proprietária de um imóvel cujo valor de mercado não é inferior a €350.000,00 e que pese embora o considerável valor da dívida da Apelante à requerente, i. é, atualmente de €232.115,17, certo é que a mesma se encontra garantida pelo património imobiliário desta, pelo que o ativo da apelante é manifestamente superior ao passivo.
A este propósito escreveu-se acertadamente na sentença recorrida o seguinte: «Da materialidade assente decorre que a requerida é proprietária da fracção autónoma designada pela letra “N” do prédio urbano descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º …/20080128, ela apresentação n.º 27 de 1993/06/30, com o valor tributável de €37.886,88, sobre o qual se mostram inscritas três hipotecas a favor da requerente. A requerida nada mais alegou, nem provou, no que respeita à sua situação financeira e patrimonial. O valor tributável do imóvel será, certamente, inferior ao respectivo valor de mercado, desde logo face ao montante garantido pelas hipotecas a favor da requerente que sobre aquele incidem (sob pena de insuficiência das garantias oferecidas, no que não se crê, face à experiência comum neste tipo de contratos). A circunstância de a requerida ser proprietária de um imóvel, onerado com hipotecas (que beneficiam a requerente da insolvência), não confere, contudo, à requerida a liquidez necessária para o pagamento integral dos créditos reclamados pela credora requerente. Na verdade, só através do resultado da alienação do referido imóvel poderia a requerida fazer face às obrigações vencidas, pelo que acaba sendo indiferente o valor que àquele se atribua. Na realidade, o facto de o valor do imóvel propriedade da requerida poder ser superior ao dos créditos da requerente não permite afastar a presunção de insolvência decorrente do preenchimento da al. b) do n.º 1, do art.º 20.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, nem demonstrar a solvência da devedora.»
Com efeito, admitindo-se que o valor de mercado do imóvel de que a recorrente é proprietária seja superior ao seu valor tributário, porque a tal conclusão nos conduzem as regras da experiência em face da recente valorização do património edificado, e que, por consequência, o seu ativo seja superior ao passivo que lhe é conhecido, facto é que, como anotou a Mma. Juiz a quo, aquele imóvel se encontra onerado com hipotecas que beneficiam a requerente da insolvência. À requerente apenas seria possível fazer face ao pagamento dos créditos da requerente mediante o produto da venda do imóvel. Porém, decorrido o lapso de tempo demonstrado nos autos, não o vendeu obtendo a necessária liquidez para pagamento dos créditos da requerente.
Ora, a existência de um ativo que seja superior ao passivo, enquanto elemento determinativo da exclusão da insolvência, só releva se este ilustrar um quadro de viabilidade económica, do qual flua para a requerida a capacidade de gerar excedentes aptos a assegurar o cumprimento da generalidade das obrigações no momento do seu vencimento (cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/04/2021, Relator Rodrigues Pires, proferido no processo n.º 1595/20.8T8AMT.P1, os Acórdãos desta 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, Relatora Amélia Sofia Rebelo, mencionado na sentença recorrida), situação que não se revela no caso “sub judice”.
Como se escreveu no Acórdão desta 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa de 31/10/2023, Relatora Amélia Sofia Rebelo, proferido no processo n.º 2343/22.3T8VFX-B.L1-1 «para além da relação de alternatividade prevista pelos nºs 1 e 2 do art.º 3º do CIRE, sempre acrescentamos que a existência de ativo inferior ao passivo é legalmente apta a indiciar a situação de insolvência do devedor (pessoa coletiva) nos termos das normas citadas (cfr. art.ºs 3º, nº 2 e 20º, nº 2, al. h). Porém, o contrário já não sucede, ou seja, a existência de ativo superior ao passivo não constitui pressuposto legal de solvabilidade nem sequer indício como tal legalmente previsto pois que, ainda que assim suceda, o devedor está insolvente se, por ausência de liquidez, estiver impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, como urge ser o caso. (…) decorridos mais de cinco anos ele não se vendeu, nem por um nem por outros valores, demonstrando a respetiva incapacidade de ser transformado em liquidez».
Concluindo, demonstrado o facto presuntivo previsto na al. b) do nº 1 do art.º 20º do CIRE, não logrou a recorrente afastar a presunção de situação de insolvência que dele decorre, como supra se referiu.
Por outro lado, não decorrendo que da propriedade do imóvel a requerida tenha capacidade de gerar receitas que permitam assegurar o cumprimento da generalidade das obrigações no momento do seu vencimento, improcedem as conclusões de recurso, confirmando-se a decisão recorrida que declarou a insolvência da apelante.

IV - Decisão:
Por todo o exposto julga-se a apelação improcedente, com consequente manutenção da sentença recorrida.
Custas em ambas as instâncias a cargo da massa insolvente ou, na ausência ou insuficiência desta, da recorrente (cfr. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC e art.º 51º, nº 1, al. a) do CIRE), sem prejuízo do benéfico do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Registe e Notifique

Lisboa, 01-10-2024
Susana Santos Silva
Amélia Rebelo
Renata Linhares de Castro