Não sendo tomada decisão pelo Tribunal Constitucional - no prazo de 150 dias, contados da data de detenção do arguido - sobre recurso interposto de acórdão do Supremo Tribunal de Justiça confirmatório de decisão do Tribunal da Relação que determinou a execução de MDE e ordenou a oportuna entrega do requerido às autoridades do Reino de Espanha para efeitos de procedimento criminal, deve ser deferida providência de Habeas Corpus e determinada a imediata libertação do requerente.
1. O Pedido
AA, detido à ordem dos autos acima identificados - instaurados com vista à execução de mandado de execução europeu proveniente das autoridades do Reino de Espanha - veio,” nos termos do disposto no art.º 222º e 223º do CPP, art.º 31º da CRepPortuguesa, e art.º 5º n.º 4 da ConvEurDtosHomem”, requerer a providência de Habeas Corpus, com os seguintes fundamentos
(transcrição integral):
“1.º
Os presentes autos, autuados sob o n.º 1155/24.4YRLSB, versam sobre a execução do MDE, nos termos do art.º 18º n.º 2 da Lei 65/2003, proveniente das autoridades do Reino de Espanha contra o REQUERENTE AA.
2.º
O REQUERENTE foi detido em 15ABRIL2024 pelas 17h45, no âmbito do MDE, conforme resulta do auto de detenção constante dos autos, elaborado pela Polícia judiciária.
3.º
Em 16ABR2024, o MºPº apresentou Requerimento Inicial (ref.ª ..35), promovendo a execução do MDE proveniente das autoridades espanholas.
4.º
Em 17ABR2024, o REQUERENTE foi presente ao TRL para audição, não tendo consentido na execução do MDE e não renunciando ao benefício da regra da especialidade (vd. acta de 17ABR2024, ref.ª ......73).
5.º
O TRL manteve a detenção do REQUERENTE.
6.º
Concedido o prazo de 10 dias para deduzir oposição, o REQUERENTE fê-lo em 29ABR2024.
7.º
O MºPº apresentou contraditório em 05MAI2024 (ref.ª ......93).
8.º
Em 16MAI2024, o TRL prolatou Acórdão (ref.ª ......15).
9.º
O referido Acórdão foi notificado ao Mandatário do REQUERENTE, através de ofício da secretaria judicial de 16MAI2024, ref.ª ......19, considerado notificado em 20MAI2024.
10.º
Em 27MAI2024, do Acórdão do TRL (ref.ª ......15) o REQUERENTE interpôs recurso para STJ (ref.ª ....57).
11.º
Em 10JUN2024, o MºPº apresentou a contra-motivação ao recurso (ref.ª ..66).
12.º
Em 14JUNHO2024 cumpriram-se 60 dias de detenção do REQUERENTE.
13.º
Em 20JUN2024 o STJ prolatou Acórdão (ref.ª ......69).
14.º
O referido Acórdão foi notificado ao Mandatário do REQUERENTE, através de ofício da secretaria judicial de 21JUN2024, ref.ª ......99, considerado notificado em 24JUN2024.
15.º
Em 04JUL2024, por requerimento tempestivo (ref.ª ....13), o REQUERENTE suscitou vícios sobre o Acórdão (ref.ª ......69).
16.º
Em 11JUL2024, o STJ prolatou Acórdão (ref.ª ......71) sobre os vícios suscitados.
17.º
O referido Acórdão foi notificado ao Mandatário do REQUERENTE, através de ofício da secretaria judicial de 11JUL2024, ref.ª ......73, considerado notificado em 24JUN2024.
18.º
Em 14JULHO2024 cumpriram-se 90 dias de detenção do REQUERENTE.
19.º
Em 25JULHO2024, o REQUERENTE interpôs recurso para Tribunal Constitucional (ref.ª ....41).
20.º
Em 26JUL2024, foi proferido Despacho (ref.ª ......71) admitindo o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
21.º
Em 12SETEMBRO2024 cumpriram-se 150 dias de detenção do REQUERENTE.
Ora,
22.º
Os autos carecem de Acórdão do Tribunal Constitucional ao recurso interposto pelo REQUERENTE.
23.º
Até ao momento, 13SETEMBRO2024, o REQUERENTE não foi notificado de qualquer Acórdão do Tribunal Constitucional.
24.º
Os autos carecem de decisão transitada em julgado para execução do MDE proveniente das autoridades do Reino de Espanha.
25.º
O REQUERENTE encontra-se detido ininterruptamente há mais de 150 dias.
Ora,
26.º
Estatui o art.º 30º da Lei 65/2003_23AGO (Regime Jurídico do Mandado de Detenção Europeu) que:
“Prazos Máximos da Detenção
1 - A detenção da pessoa procurada cessa quando, desde o seu início, tiverem decorrido 60 dias sem que seja proferida pelo tribunal da relação decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu, podendo ser substituída por medida de coacção prevista no Código de Processo Penal.
2 - O prazo previsto no número anterior é elevado para 90 dias se for interposto recurso da decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu proferida pelo tribunal da relação.
3 - Os prazos previstos nos números anteriores são elevados para 150 dias se for interposto recurso para o Tribunal Constitucional.
4 - A detenção da pessoa procurada cessa ainda quando tiverem decorrido os prazos referidos nos n.os 2, 3 e 5 do artigo anterior.”
(sublinhado nosso)
27.º
Como já se decidiu em Acórdão do STJ de 06OUT2022, no âmbito do proc. n.º 1252/22.0YRLSB-B, da 5.ª Secção:
“13. Entre as disposições da Lei 65/2003, aplicáveis ao caso consta o artigo 30, com a epígrafe, prazos de duração máxima da detenção, que diz o seguinte:
1 – A detenção da pessoa procurada cessa quando, desde o seu início, tiverem decorrido 60 dias sem que seja proferida pelo tribunal da relação decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu, podendo ser substituída por medida de coacção prevista no Código de Processo Penal.
2 – O prazo previsto no número anterior é elevado para 90 dias se for interposto recurso da decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu proferida pelo tribunal da relação.
3 – Os prazos previstos nos números anteriores são elevados para 150 dias se for interposto recurso para o Tribunal Constitucional.
14. A epígrafe da norma tem valor interpretativo e o que nela se diz é «[p]razos de duração máxima da detenção». A génese da norma é conhecida, o art.º 17º da Decisão-Quadro do Conselho, de 13 de Junho de 2002, que no seu n.º 3, não deixa margem para dúvida de que dentro do prazo máximo de detenção deve ser tomada a decisão definitiva, dada a sua formulação imperativa «a decisão definitiva sobre a execução do mandado de detenção europeu deve ser tomada…».
15. O prazo máximo referido pela Decisão Quadro é de 90 dias (60+30) enquanto o legislador nacional depis de ponderar os interesses em conflito consagrou um prazo máximo bem superior de 150 dias (art.º 30º Lei 65/2003), prazo esse que temos de reuptar como proporcionado. Sendo o prazo de 150 dias um prazo imperativo não permite alargamento. A manutenção em detenção da pessoa a extraditar, para além desse prazo constitui desconformidade com o direito nacional é excessiva e desproporcionada. Numa primeira conclusão podemos assentar que a detenção para a extradição não pode ultrapassar o prazo de 150 dias.
16. A liberdade é a regra, pelo que ninguém pode ser total ou parcialmente provado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança. Muito excepcionalmente, pode ocorrer a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, de pessos contra a qual esteja em curso o processo de extradição (art.º 27º/3/c, CRP). Vigorando nesta matéria princípios de legalidade, tipicidade e de segurança jurídica, está assim vedado ao juiz o alongamento dos prazos de detenção fixados por lei, concretamente os referidos no art.º 30º da Lei 65/2003.
17. No caso, o acórdão do STJ de 31.08.2022, foi proferido para além dos noventa dias do art.º 30º/2 Lei 65/2003. E o acórdão do STJ de 26.09.2022, que decidiu nulidades arguidas pelo requerente ao acórdão do STJ de 31.08.2022, foi proferido no dia em que se completavam os 150 dias a que alude o art.º 30º/3 Lei 65/2003. Na mesma data, no TC, foi proferida decisão sumária que não conheceu de recurso interposto pelo requerente do acórdão de 31.08.2022. Temos assim que o prazo estabelecido no art.º 30º/2 Lei 65/2003, não foi respeitado. Admitamos que, no caso, o prazo de 150 dias possa ser repartido entre o STJ e TC, porquanto foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional e a declaração de inconstitucionalidade originou a remessa dos autos do TC ao STJ. Mas sendo assim, dentro dos 150 dias teria de ser proferida decisão definitiva nos autos. Acontece que decorreram os 150 dias e não temos decisão definitiva. A do STJ ainda não o é, porque o arguido está em prazo para recorrer para o TC do acórdão do STJ de 31.08.2022, complementado com o acórdão de 26.9.2022. É que, como se diz na decisão sumária, o recurso do acórdão de 31.08.2022, admitido por despacho de 21.9.2022, foi prematuro, pois a decisão recorrida não tinha o carácter de definitividade, o que só podia ocorrer depois do conhecimento pelo STJ da arguição de nulidade, o que ocorreu em 26.09.2022. Neste momento, decorridos os 150 dias de prazo máximo admissível para a detenção, tem ainda o arguido em aberto duas vias de reacção: (1) a possibilidade de recurso do ac. do STJ de 31.08.2022, para o TC, recurso que a decisão sumária não afasta; (2) a possibilidade de reclamação da decisão sumária para a «Conferência» (art.º 78º-B/2, LTC). Em conclusão, as decisões do STJ foram proferidas depois de ultrapassados os 90 dias (art.º 30º/2, Lei 65/2003) e decorridos os 150 dias não há decisão com carácter de definitividade, do STJ ou do TC, pois o requerente não prescindiu do seu direito de recurso e reclamação para a conferência.
18. A ultrapassagem dos prazos de detenção (arts. 30º, da Lei 65/2003 ex vi art.º 78º-B Lei 144/99), concretamente a manutenção da detenção do requerente depois de transcorridos os 150 dias, porque para além dos prazos fixados pela lei, é fundamento de pedido de habeas corpus (art. 222º/2/c, CPP). Impõe-se fazer cessar a detenção pois mantém-se para além dos prazos fixados pela lei (art. 30/1/2/3, Lei 65/2003, ex vi Lei 144/99, art. 222/2/c, CPP).”
(sublinhados e destaques nossos, mas não os itálicos, que são da pluma do Senhor Conselheiro Relator)
28.º
O REQUERENTE encontra-se detido desde 15ABRIL2024 (17h45), ininterruptamente, à ordem dos presentes autos, até à presente data (13SETEMBRO2024)
29.º
Em 12SETEMBRO2024 cumpriram-se 150 dias de detenção.
30.º
O art.º 30º n.º 3 da Lei 65/2003_23AGO estatui que o prazo máximo de detenção é de 150 dias caso seja interposto recurso para o Tribunal Constitucional.
31.º
Até ao presente 13SETEMBRO2024, o ora REQUERENTE não foi notificado de qualquer decisão do Tribunal Constitucional ao recurso que interpôs.
32.º
Sendo certo que, perante a notificação, o REQUERENTE tem ainda a possibilidade de arguição de vícios ou reclamação para a Conferência (art.º 78º-B n.º 2 da LTC), direito do qual não renuncia.
33.º
Não existe, portanto, decisão com carácter de definitividade (termos do Acórdão do STJ supra transcrito) no prazo de 150 dias fixado no art.º 30º da Lei 65/2003_23AGO.
34.º
Sendo certo que, sempre será INCONSTITUCIONAL a norma do art.º 30º n.º 3 da Lei 65/2003_23AGO quando interpretada no sentido de que ultrapassado o prazo máximo de detenção de 150 dias sem que exista acórdão do TC transitado em julgado que decida sobre o MDE, o Juiz pode aplicar medida de coacção de prisão preventiva para aguardar o trânsito em julgado;
Ou
Quando interpretada no sentido de que ultrapassado o prazo máximo de detenção de 150 dias sem que exista acórdão do TC transitado em julgado que decida sobre o MDE, o juiz pode manter a detenção para aguardar o trânsito em julgado, ou aguardar que nos autos ainda venha a ter início o curso do prazo para arguição de vícios da decisão do TC ou de reclamação da decisão do TC para a Conferência (art.º 78º-B n.º 2 da LTC);
Ou
Quando interpretada no sentido de que pode o Juiz prorrogar a detenção para a execução do mandado de detenção europeu para além dos prazos fixados na lei.
Tais interpretações são INCONSTITUCIONAIS por violação dos art.ºs 2º, 18º, 17º, 18º n.º 4 e 30º, todos da CRepPortuguesa e ainda art.ºs 1º, 7º n.º 1, 8º n.ºs 1, 2, 3 e 4, 32º n.ºs 1, 2 e 5 da CRepPortuguesa, quando conjugadas com os art..º 5º n.º 3 e 6º da ConvEurDtosHomem.
INCONSTITUCIONALIDADE que se dá por devidamente arguida.
35.º
O REQUERENTE encontra-se, portanto, ilegalmente privado da liberdade, em violação do art.º 30º n.º 3 da Lei 65/2003, art.º 27º, 28º, 30º, 32 da CRepPortuguesa e ainda art.º 5º n.º 4 da ConvEurDtosHomem
36.º
Por conseguinte, na salvaguarda e respeito da CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA e do DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS DO HOMEM, com os fundamentos supra expostos,
O ORA REQUERENTE ROGA A VOSSA EXCELÊNCIA, SÁBIO CONSELHEIRO QUE PRESIDE A ESTE COLENDO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA,
CONCEDA PROCEDÊNCIA À PRESENTE PETIÇÃO DE HABEAS CORPUS,
E, CONSEQUENTEMENTE, REPONDO A LEGALIDADE, ORDENE A LIBERTAÇÃO IMEDIATA DO REQUERENTE.”
2. A informação judicial
A 13 de setembro de 2024, em obediência ao disposto no artigo 223.º, nº 1, do Código de Processo Penal, foi prestada, pelo Juiz Relator da 9º secção do Tribunal da Relação de Lisboa, a seguinte informação (transcrição integral):
“AA veio apresentar petição de habeas corpus, ao abrigo do artigo 222º e 223º do CPP, requerendo a sua libertação imediata, com fundamento, em síntese, no facto de estar detido há mais de 150 dias.
Iter processual relevante:
1 – No âmbito do processo nº 1155/24, que se iniciou com o Mandado de Detenção Europeu, emitido em 15.04.2023 por autoridade judiciária do Reino de Espanha, pedindo a entrega do requerido, AA, para efeitos de procedimento criminal [o qual foi detido em 15.04.24 tendo a detenção sido mantida, após audição do requerido, por decisão do TRL de 17.04.24], veio a ser proferido, na sequência de oposição deduzida pelo requerido, o acórdão do TRL de 16.05.2024 (refª ......15), que decidiu e determinou a execução do Mandado de Detenção Europeu;
2 - Inconformado com a decisão, o requerido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo este tribunal mantido integralmente a decisão do TRL, por acórdão de 20.06.24, proferido nos autos principais em epígrafe ( refª. ......69)
3. O requerido/detido apresentou reclamação para a conferência, por alegada nulidade daquele acórdão do STJ, a qual foi julgada totalmente improcedente por acórdão de 11.07.2024, deste mesmo tribunal, (refª ......71) notificado ao mandatário do detido nessa mesma data;
4. Em 25-07-2024, o requerido/detido interpôs recurso do acórdão do STJ para o Tribunal Constitucional (refª ....41), o qual foi admitido no STJ por despacho de26.07.24 (refª ......71), tendo sido remetidos os autos ao TC nesse mesmo dia (refª ......08);
5. De acordo com informação telefónica [a confirmar] o Tribunal Constitucional rejeitou o recurso por decisão de 03.09.2024.
Conforme se afirma no último acórdão proferido pelo STJ nos autos «os prazos de 60, 90 e 150 dias de duração máxima da detenção previstos nos nºs 1, 2 e 3 do art. 30º da LMDE, cujo início tem lugar na data da detenção, têm o respetivo ad quem na data em que é proferida a decisão do tribunal da Relação sobre a execução do MDE (art. 30º nº1, quanto ao prazo de 30 dias), na data em que é decidido pelo STJ o recurso interposto da decisão do Tribunal da Relação, quanto ao prazo de 90 dias e, finalmente, na data em que é decidido o recurso de inconstitucionalidade, relativamente ao prazo de 150 dias.».
Por conseguinte e para efeitos do disposto no artigo 223º, nº 1 do CPP informa-se o a detenção do requerido e respectiva manutenção ocorreu nas condições descritas nas decisões judiciais acima identificadas e se mantém.
Crie o respectivo incidente e remeta ao Exmo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça nos termos do artigo 222º e 223º, nº 1 do CPP, com as peças processuais identificadas na petição e que constem do translado.”
1.3. Sequência processual
Convocada a Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça e notificado o Ministério Público e o Defensor do requerente, procedeu-se à audiência, de harmonia com as formalidades legais, após o que o Tribunal reuniu e deliberou como segue (artigo 223º, n.º 3, do Código de Processo Penal).
II. QUESTÃO A DECIDIR:
Da eventual ilegalidade da privação da liberdade do requerente, por ter sido excedido o prazo de 150 dias a que alude o nº 3 do artigo 30º do Regime Jurídico do Mandado de Deteção Europeu (aprovado pela Lei 65/2003, de 23 de agosto1 e doravante designado por LMDE”) sendo que, nesse caso e por obediência ao disposto no artigo 222º nºs 1 e 2 al. c) do Código de Processo Penal, a detenção deve ser considerada ilegal e o requerente colocado imediatamente em liberdade.
III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. Os factos
Das peças processuais juntas aos autos, do teor da informação prestada nos termos do art.223.º do Código de Processo Penal e das informações verbais recebidas do Tribunal Constitucional, emergem apurados os seguintes factos, relevantes para a decisão da providência requerida:
1 – No âmbito do processo nº 1155/24, que se iniciou com o Mandado de Detenção Europeu emitido em 15.04.2023 por autoridade judiciária do Reino de Espanha, pedindo a entrega do requerido, AA, para efeitos de procedimento criminal, foi este cidadão detido pela Polícia Judiciária a 15 de abril de 2024;
2 – Conduzido e ouvido no Tribunal da Relação de Lisboa aquela detenção foi mantida, através de despacho proferido 17 de abril de 2024, por Juiz Desembargador;
3 – Apresentada oposição, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, por acórdão proferido a 16 de maio de 2024, determinar a execução do MDE e ordenar a oportuna entrega do requerido às autoridades do Reino de Espanha, para efeitos de procedimento criminal:
4 – Inconformado com essa decisão, dela recorreu o requerente para este Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por acórdão de 20 de junho de 2024, manteve a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa;
5 – Apresentou então o requerente reclamação para a conferência, por alegada omissão de pronúncia do acórdão mencionado no ponto anterior, a qual foi indeferida por acórdão deste Alto Tribunal, datada de 11 de julho de 2024;
6 – Continuando inconformado, recorreu para o Tribunal Constitucional, através de requerimento que deu entrada a 25 de julho de 2024.
7 – Através de oficio expedido a 16 de setembro de 2024 (refª ......09) pediu-se ao Tribunal Constitucional que informasse sobre o estado do recurso interposto para esse Tribunal (designadamente se -e, na afirmativa, quando – tinha sido proferida decisão) não tendo obtido, até agora, resposta escrita, mas conseguindo informação telefónica no sentido de que – até ao presente momento - não foi proferida qualquer decisão relativa ao recurso interposto nos presentes autos (mais se esclarecendo que a decisão sumária de 3 de setembro, a que se alude na informação supra, foi proferida no apenso 1155/24.4YRLSB-A.S1 e não nos presentes autos2)
8 – Por considerar esgotado o prazo máximo de detenção de 150 dias previsto na lei AA apresentou, a 13 de setembro de 2024 e nos termos anteriormente transcritos, a presente providência de habeas corpus, na qual pede a sua imediata libertação.
3.2. O Direito.
3.2.1. Introdução
O art. 27º da Constituição da República Portuguesa estabelece, designadamente, que:
“1 - Todos têm direito à liberdade e à segurança.
2 - Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.
3 – Exceptua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos seguintes casos:
(…)
b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos”
Estas normas inspiraram-se, diretamente, nos artigos 3º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 9º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que vinculam Portugal ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos, garantindo, designadamente, o direito à liberdade física e à liberdade de movimentos, isto é, o direito de não ser detido, aprisionado ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço ou impedido de se movimentar (assim, por todos, o acórdão de 29.12.2021, Proc. 487/19.8PALSB-A.S1, em www.dgsi.pt).
Mais recentemente estes princípios foram reafirmados no artigo 6º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, da qual Portugal faz parte.
Por outro lado, e com vista a pôr termo à privação da liberdade ilegal, decorrente de abuso de poder, o nº 1 do art. 31º da Lei Fundamental veio consagrar o instituto do habeas corpus, a requerer perante tribunal competente.
O habeas corpus sempre foi concebido como um mecanismo de utilização simples, sem grandes formalismos, de rápida atuação - dado que o constrangimento de um direito fundamental, como o direito à liberdade, não se compactua com atrasos e demoras - e que deve abarcar todas as situações de privação ilegal de liberdade.
Estando inserido no Título II, da Parte I, da Constituição da República Portuguesa tem, por força do disposto no artigo 18º da Lei Fundamental, aplicabilidade direta e vincula entidades públicas e privadas.
Este “remédio”, de consagração constitucional, visa solucionar situações anormais, em que a pessoa foi restringida de sua liberdade por via de abuso de poder, colocando o Estado à pessoa que sofre dessa restrição, um meio idóneo e célere para que seja apreciada a ilegalidade, ou não, daquela limitação de liberdade.
Com efeito, a nossa doutrina3 e jurisprudência4 têm entendido que o habeas corpus constitui uma providência expedita e urgente, de garantia do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, “cujo pressuposto constitucional é o abuso de poder”, em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», “distinto dos recursos” sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito, por motivos penais ou outros.
Assim, em sintonia e no desenvolvimento destes princípios constitucionais e por forma a permitir a sua adequada aplicação prática, o artigo 222º do Código de Processo Penal estabelece o seguinte:
“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”
Ou seja, e como tem repetida e uniformemente decidido o Supremo Tribunal de Justiça,
“(A) providência de habeas corpus corresponde a uma medida extraordinária ou excecional de urgência – no sentido de acrescer a outras formas processualmente previstas de reagir contra a prisão ou detenção ilegais – perante ofensas graves à liberdade, com abuso de poder, ou seja, sem lei ou contra a lei que admita a privação da liberdade, referidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, e que não constitui um recurso de uma decisão judicial, um meio de reação tendo por objeto a validade ou o mérito de atos do processo através dos quais é ordenada ou mantida ou que fundamentem a privação da liberdade do arguido ou um «sucedâneo» dos recursos admissíveis (artigos 399.º e segs. do CPP), que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais (assim e quanto ao que se segue, por todos, de entre os mais recentes, o acórdão de 22.03.2023, Proc. n.º 631/19.5PBVLG-MC.S1, em www.dgsi.pt).
Assim e procurando concluir esta introdução, os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessária e exclusivamente, às situações previstas nas alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.
Com efeito, como se tem afirmado em jurisprudência uniforme e reiterada, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionante atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, proferida por autoridade judiciária competente, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (assim, de entre os mais recentes, por todos, os acórdãos de 16.11.2022, Proc. 4853/14.7TDPRT-A.S1, de 06.09.2022, Proc. 2930/04.1GFSNT-A.S1, de 9.3.2022, proc. 816/13.8PBCLD-A.S1, e de 29.12.2021, proc. 487/19.8PALSB-A.S1, em www.dgsi.pt).
3.3.2. O caso concreto
O Requerente apoia a sua pretensão num alegado incumprimento dos prazos da sua privação da liberdade.
Como atrás se referiu, essa privação da liberdade decorre da emissão, a 15 de abril de 2023 e por autoridade judiciária do Reino de Espanha, de um Mandado de Detenção Europeu pedindo a sua entrega para efeitos de procedimento criminal.
Assim, no caso em apreço, os prazos da privação da liberdade são os fixados no artigo 30º do RMDE, que estabelece o seguinte:
“Artigo 30.º
Prazos de duração máxima da detenção
1 - A detenção da pessoa procurada cessa quando, desde o seu início, tiverem decorrido 60 dias sem que seja proferida pelo tribunal da relação decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu, podendo ser substituída por medida de coacção prevista no Código de Processo Penal.
2 - O prazo previsto no número anterior é elevado para 90 dias se for interposto recurso da decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu proferida pelo tribunal da relação.
3 - Os prazos previstos nos números anteriores são elevados para 150 dias se for interposto recurso para o Tribunal Constitucional.
4 - A detenção da pessoa procurada cessa ainda quando tiverem decorrido os prazos referidos nos n.os 2, 3 e 5 do artigo anterior”
No caso em apreço, o requerente foi detido pela Polícia Judiciária no dia 15 de abril de 2024.
Dado que o Requerente se opôs à execução do mandado o processo prosseguiu para julgamento, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa decidido, por acórdão proferido a 16 de maio de 2024, determinar a execução do MDE e ordenar a oportuna entrega do requerido às autoridades do Reino de Espanha, para efeitos de procedimento criminal. Ou seja, tal decisão foi proferida dentro do prazo estabelecido no nº1 da norma atrás citada.
Tendo recorrido dessa decisão para o Supremo Tribunal de Justiça veio este a conformar aquela decisão, através de acórdãos proferidos a 20 de junho de 2024 e, na sequência de reclamação para a conferência por alegada omissão de pronúncia, a 11 de julho de 2024.
Ou seja, também neste caso a decisão deste Alto Tribunal foi proferida dentro do prazo estabelecido no nº 2 da aludida norma.
Finalmente, o requerente recorreu dessa decisão para o Tribunal Constitucional a 25 de julho de 2024, sendo que, até ao presente momento, não foi proferida qualquer decisão por esse tribunal.
Face ao exposto e tendo em conta a data da detenção, mostra-se excedido o prazo de 150 dias a que alude o nº 3 do artigo 30º do RMDE e que se completou a 12 de setembro de 2024.
Ou seja, e usando a terminologia legal, o fundamento para a detenção do requerente cessou na data indicada no parágrafo anterior.
Assim, e em obediência ao disposto no 222º do Código de Processo Penal há que deferir a pretensão do requerente – que foi apresentada a 13 de setembro de 2024 - e ordenar a sua libertação imediata.
Perde, por isso, interesse a discussão sobre se o dies ad quem do prazo estabelecido no nº 3 do artigo 30º do RMDE é o da decisão ou o do seu trânsito em julgado, bem como a relativa às questões de inconstitucionalidade suscitadas pelo requerente.
Naturalmente que a libertação do arguido nada tem a ver com o prosseguimento do processo, devendo ser adotadas as medidas necessárias à sua execução, fase que se iniciará com o trânsito em julgado de decisão que determinou ordenar a oportuna entrega do requerido às autoridades do Reino de Espanha para efeitos de procedimento criminal.
IV - DECISÃO
1 - Deferir, nos termos acima expostos, a providência de habeas corpus apresentada pelo requerente AA;
“2 - Determinar a imediata libertação do requerente, devendo, previamente, dar conhecimento do presente acórdão ao Tribunal da Relação de Lisboa, com nota de “muito urgente/libertação de recluso”, para que possa ponderar a eventual aplicação de medidas de coação;
3 - Sem custas por não serem devidas.
Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada
Os Juízes Conselheiros,
Celso Manata (Relator)
João Rato (1º Adjunto)
Jorge Gonçalves (2º Ajunto)
Helena Moniz (Presidente da Secção)
_______
1. Com as alterações introduzidas pela Lei 52/2023, de 28 de agosto
2. Este apenso reporta-se a despacho proferido a 15 de julho de 2024 pelo Tribunal da Relação de Lisboa, através do qual se pretendia manter o requerente em “prisão preventiva”. O recurso desse despacho interposto para o supremo Tribunal de Justiça não obteve provimento (acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça a 13 de agosto de 2024), por se ter entendido que “à data da mencionada aplicação de prisão preventiva pelo TRL, de que derivou manter-se a detenção do requerido nessa data, não havia decorrido o prazo máximo de 90 dias “uma vez que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça foi proferido a 11 de julho de 2024, sendo que o requerente fora detido a 15 de abril de 2024. Do acórdão do STJ de 13 de agosto de 2024 interpôs o requerente também recurso para o Tribunal Constitucional que deu entrada a 26 de agosto de 2024 e teve decisão sumária de não admissão do recurso, proferida a 3 de setembro de 2024.
3. José Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508” e Jorge Miranda e Rui Medeiros “Constituição Portuguesa Anotada, Vol. I, pág. 503 e sgs. e Germano Marques da Costa, “Curso de Processo Penal” II, pág. 321
4. Por todos Ac. do STJ de 10 de maio de 2023 – Proc. 196/20.5JAAVR-B.S1 in www.dgsi.pt