I – As acções de simples apreciação, na sua vertente negativa, permitidas pelo artigo 10.º n.ºs 2 e 3, alínea a), do Código de Processo Civil, visam pôr termo a uma situação de incerteza, mediante a declaração da existência de um direito ou da inexistência de um direito.
II – O titular de um direito real pode instaurar acção contra quem se arroga titular de um direito real conflituante sobre a mesma coisa, visando a declaração da inexistência desse direito, competindo-lhe alegar e provar a correspondente causa de pedir: o facto jurídico do emerge o direito real por si invocado (art. 498º, nº 4 do CPC) e a incerteza jurídica criada pela parte demandada.
III – O ónus de prova de que o direito real conflituante existe, pertence ao demandado (artº 341, nº1 do C.C.), resultando da ausência de prova a procedência da acção.
IV – O artº 7 do Código do Registo Predial consagra a presunção de “que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”, presunção iuris tantum, que não abrange a descrição do imóvel, confrontações e áreas e é suscetível de ser ilidida mediante prova do contrário (cfr. art 350 n.º 2, do C.C.).
V – O exercício de poderes de facto sobre este imóvel pela A., na convicção de que integrava o domínio público, à vista de todos e sem oposição de ninguém, anterior ao registo de propriedade a favor dos RR., nos termos previstos no artº 1268 do C.C., obsta à presunção de aquisição derivada do mesmo que resulta do artº 7 do C.R.P..
(Sumário elaborado pela Relatora)
Tribunal Recorrido: Tribunal Judicial da Comarca da Guarda – Juízo de Competência Genérica de Almeida.
Recorrente: AA
Recorrida: A Freguesia ...
Juiz Desembargador Relator: Cristina Neves
Juízes Desembargadores Adjuntos: Teresa Albuquerque
Sílvia Pires
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Acordam os Juízes na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
(i) seja declarado que os Réus não são proprietários do imóvel de natureza rústica composto por terra de pastagem, com a área de 4.334 m2 a confrontar de Norte com estrada, Sul com DD, Nascente com EE e Poente com caminho, sito aos ..., limite da Freguesia ..., do município ..., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...75, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...17;
(ii) seja declarado que os Réus não adquiriram, nem por aquisição derivada, nomeadamente por sucessão, nem por aquisição originária, o prédio rústico identificado em (i);
(iii) seja ordenado o cancelamento da inscrição predial no serviço de Finanças ... a favor dos Réus e o cancelamento da inscrição respeitante à Apresentação 1 de 17/10/2005 a favor dos Réus.
Alegou, para tanto e em síntese, que desde tempos imemoriais, para lá da memória dos vivos e quer por si, quer através dos fregueses residentes em ..., tem vindo a usar, fruir e dispor do referido prédio rústico de modo geral e forma exclusiva como res sua, designadamente (i) aí sendo feitas as malhas de trigo, centeio e aveia e depositando as palhas sobrantes das malha, (ii) usando como recreio dos jovens, mormente para jogar futebol, (iii) fazendo obras, nomeadamente, em meados de 1998 procedendo a um desaterro para levar a cabo a construção de um campo de futebol, após 1998, data em que procedeu à construção de dois arruamentos e em 2008/2009, para execução de um ramal de saneamento; (iv), zelando pela sua conservação e manutenção, limpando-o e, desde meados de 2006/2008, plantando árvores; (v) ocupando-o com o depósito de materiais de construção, lenhas, trator, reboque e cisterna; (vi). tendo chegado a arrendar, em meados de 1980, por contrato verbal a FF, aí mantendo animais e vedando-o.
O que terá feito à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, de forma ininterrupta e na convicção de não estar a lesar o direito de ninguém por o sobredito imóvel estar, desde sempre, no domínio público.
Mais aduz que, em meados de 1995, a Freguesia ... figurava como titular do prédio na respetiva inscrição matricial e que até 2005 o mesmo se encontrava omisso na Conservatória do Registo Predial ..., sendo que atualmente este se encontra inscrito a favor dos Réus, o que não corresponde à verdade dos factos.
Mais acrescentaram que o prédio rústico nunca esteve inscrito nem na titularidade do domínio público, nem inscrito em nome da Autora Freguesia ..., sendo que, até ao ano de 1995, a matriz predial rústica do mesmo se identificava com o artigo 3251, tendo passado a ser identificado com o artigo ...75 após a renumeração das matrizes.
“Nestes termos e com os fundamentos que antecedem, o Tribunal decide julgar a presente ação totalmente procedente, por provada, e em consequência:
- Declarar que os Réus não são titulares do direito de propriedade sobre o prédio rústico inscrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...52 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...75;
- Ordenar o cancelamento do registo decorrente da Ap. 1 de 2005/10/17, pela qual se encontra registada a aquisição, por sucessão legítima de II, do prédio rústico inscrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...52 e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...75 a favor de BB e de AA, casada com CC e a atualização da matriz predial nessa conformidade.”
Não conformados com esta decisão, vieram os RR. GG e AA interpor recurso, formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
(…).
Pela A. foram interpostas contra-alegações, concluindo da seguinte forma:
(…).
QUESTÃO PRÉVIA
Fundam o interesse na junção deste Acórdão na seguinte alegação: “ Por Douto Acórdão proferido pelo Tribunal Relação Coimbra no Processo 164/10...., Secção Cível, já transitado em julgado, encontrando-se aqui a Ré na mesma qualidade (estamos a falar de uma decisão judicial pública e não meramente de um qualquer documento particular) foi decidido e ficou assente (página 10 do mesmo), naturalmente com relevância e interesse para a matéria do trato sucessivo, decisão judicial que se junta aos presentes autos, e aqui se deixa o print, a qual não pode ser afastada nem negada” e que deste Acórdão resulta que "a aquisição derivada, em sentido distinto, funda-se num direito pré-existente, conformando-se nos precisos termos desse direito", sendo que, "na aquisição derivada impõe-se a prova de que tal direito existia, talqualmente, na esfera jurídica do transmitente." (fls. 20), o que os RR. conseguiram comprovar.
9º - Tratando-se precisamente de aquisição derivada do direito de propriedade em causa nos presentes autos por via sucessória os RR. lograram provar o direito de que se arrogam titulares, conseguiram fazer prova das sucessivas transmissões do direito de propriedade do prédio.
10º - Ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, os RR. conseguiram provar a sucessiva cadeia de transmissões do direito de propriedade que alegaram ser titulares, tendo ainda provado factualidade que conduz à aquisição originaria do prédio rústico em apreço, como resulta de decisão proferida no Douto Acórdão do Tribunal Relação Coimbra, acima identificado, transitado em julgado e que já se pronunciou precisamente sobre tal matéria, entenda-se sobre a cadeia da sucessão legítima até à Ré AA.”
A cópia do aludido Acórdão não se mostra junta para fundamentar qualquer excepção de caso julgado, ainda que na vertente de autoridade de caso julgado, pela total inexistência da tríplice identidade prevista no artº 581 do C.C., ou de prejudicialidade daquela outra acção face a esta acção de simples apreciação negativa.
Nestes termos, só se poderia proceder à junção como documento destinado a provar os factos que aos RR. caberia provar, nomeadamente os referentes à aquisição deste direito de propriedade a seu favor.
No entanto, a apresentação de documentos com as alegações de recurso está sujeita a critérios muito restritos, previstos no artº 651 nº1 do C.P.C. dispondo este preceito legal que “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.”
Por sua vez, o artº 425 do C.P.C., consigna que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”, norma esta excepcional, semelhante à prevista no nº3 do artº 423, no que se reporta à fase de junção de documentos em sede de audiência de julgamento.
Sendo esta uma fase excepcional, a junção de documentos com as alegações de recurso depende de alegação, por parte do apresentante, de uma de duas situações:
-a impossibilidade de apresentação deste documento em momento anterior ao recurso. A superveniência em causa, pode ser objectiva ou subjectiva: é objectiva quando o documento foi produzido posteriormente ao momento do encerramento da discussão; é subjectiva quando a parte só tiver conhecimento da existência desse documento depois daquele momento;[1]
-o ter o julgamento efectuado na primeira instância, introduzido na acção, um elemento adicional, não expectável, que tornou necessário esta junção, até aí inútil. Pressupõe esta situação, todavia, a novidade da questão decisória justificativa da junção pretendida, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão, sendo que isso exclui que a decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum.
Com efeito, como refere António Santos Abrantes Geraldes[2], “podem (…) ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.”
Prossegue ainda este autor, referindo que “a jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado”[3].
Ainda segundo Antunes Varela[4], a propósito do regime anterior à Lei 41/2013 “A junção de documentos com as alegações da apelação, afora os casos da impossibilidade de junção anterior ou de prova de factos posteriores ao encerramento da discussão de 1ª instância, é possível quando o documento só se tenha tornado necessário em virtude do julgamento proferido em 1ª instância. E o documento torna-se necessário só por virtude desse julgamento (e não desde a formulação do pedido ou da dedução da defesa) quando a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado.
Todos sabem, com efeito, que nem o Juiz nem o Colectivo se podem utilizar de factos não alegados pelas partes (salvo o disposto nos artºs 514º e 665º do CPC). Mas que podem, em contrapartida, realizar todas as diligências probatórias que considerem necessárias à averiguação da verdade sobre os factos alegados (artºs 264º nº 3, 535º, 612º etc.) e que nem o juiz nem o tribunal se têm de cingir, na decisão da causa, às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação ou aplicação das regras de direito (artº 664º - 1ª parte).
A decisão de 1ª instância pode por isso criar pela primeira vez a necessidade de junção de determinado documento, quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam. Só nessas circunstâncias a junção do documento às alegações da apelação se pode legitimar à luz do disposto na parte final do nº 1 do artº 706º do CPC.”[5]
Neste caso concreto os recorrentes omitem de todo a justificação para a apresentação deste documento, apenas com as alegações, o que sempre imporia a sua rejeição.
Não se trata também de documento que se tenha tornado necessário após a decisão objecto de recurso e por causa dela, sendo certo que tal decisão, ainda que em eventual error in judicando, se pronunciou sobre os factos e os pedidos formulados na acção e que este documento é apresentado precisamente para contrariar a convicção do tribunal recorrido quanto à aquisição da propriedade deste imóvel pelos RR..
Não é, assim, admissível a junção deste documento com as alegações de recurso, indeferindo-se a sua junção.
Custas pelos recorrentes que se fixam em 1 U.C.
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QUESTÕES A DECIDIR
Nesta medida, as questões a decidir são:
a) Se se verificam os requisitos de admissibilidade do recurso relativamente à impugnação da matéria de facto e se esta deve ser alterada no sentido propugnado pelo recorrente;
b) Se, nessa medida deve ser declarada a improcedência desta acção por os RR. terem logrado a prova da propriedade deste imóvel.
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Corridos que se mostram os vistos aos Srs. Juízes Desembargadores adjuntos, cumpre decidir.
“1. Encontra-se descrito sob o n.º ...52 na Conservatória do Registo Predial ... e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...75.º, o prédio rústico composto por pastagem, com a área de 1910 m2, sito em ..., na Freguesia ..., concelho ..., a confrontar a norte com estrada, a sul com DD, a nascente com EE e a poente com caminho.
2. Pela Ap. 1 de 2005/10/17, encontra-se registada a aquisição, por sucessão legítima de passivo II, do prédio identificado em 1., a favor de BB e de AA casada com CC.
3. O prédio identificado em 1. encontra-se inscrito na matriz predial rústica desde o ano de 1995, sob o artigo ...75.
4. Desde o ano da inscrição do prédio identificado em 1. na matriz até, pelo menos, ao ano de 2015, constava como titular a Junta de Freguesia ....
5. Desde data não concretamente apurada, figura como titular na inscrição matricial do prédio identificado em 1. AA.
6. O prédio identificado em 1. é, há mais de 100 anos, conhecido como “...”.
7. Desde tempos imemoriais, para lá da memória dos vivos e há mais de cem anos, com uma periodicidade anual, os fregueses de ... utilizavam tal prédio:
7.1. Para fazer as malhas do trigo e centeio e aí depositavam as palhas sobrantes em tal prédio;
7.2. Como recreio para os jovens da freguesia, que ali brincavam e jogavam futebol.
7.3. Para aí manterem animais.
8. A utilização mencionada em 7. 1. manteve-se até data não concretamente apurada, mas não posterior a 1980.
9. Em meados de 1980, o prédio foi arrendado pela Autora, por contrato verbal, a FF, arrendamento que se manteve até meados de 1990.
10. Em data não concretamente apurada, situada entre os anos 1990 e 2000, foi reparado um arruamento já existente no prédio identificado em 1., pela Autora.
11. Em data não concretamente apurada, situada entre os anos 1996 a 1998, foi executado um ramal de Saneamento em tal prédio, pela Autora juntamente com a Câmara Municipal.
12. Em data não concretamente apurada, situada entre os anos 1998 a 2008, foram executadas obras de escavação para construção de um campo de futebol, o qual não se veio a concretizar.
13. Em data não concretamente apurada, mas pelo menos no ano de 2008, a Autora plantou árvores em tal prédio, de espécie e em número não concretamente apurado.
14. Posteriormente a 1990 e até à presente data, a Autora utiliza o prédio descrito em 1. para depósito de materiais de construção e outros materiais sobrantes das obras.
15. É também a Autora quem procede à limpeza de tal prédio.
16. A utilização do prédio identificado em 1. nos termos descritos em 7. a 15. sempre foi feita pela Autora e pelos fregueses de ... à vista de tudo e de todos, de forma ininterrupta, sem oposição de ninguém e na convicção de que o mesmo integra o domínio público.
17. Em data não concretamente apurada, mas anterior ao ano de 2013, a Autora teve conhecimento, através do Presidente da Junta à data, da inscrição predial referida em 2.
18. Em data não concretamente apurada, mas anterior ao ano de 2013, a Autora AA contactou os legais representantes da Autora, arrogando-se proprietária do imóvel em apreço.
19. Também no decurso do corrente ano de 2019, a Ré AA contactou os legais representantes da Autora, à data, nos termos referidos em 18.
20. Em momento anterior a 17., nunca ninguém se tinha oposto à utilização do prédio descrito em 1., nos termos referidos em 6. a 15.
21. Por escritura outorgada em 06/07/1942, no Cartório de ..., compareceram como outorgantes KK (primeiro outorgante), na qualidade de procurador de LL, MM (segundo outorgante), qualidade de procurador de JJ e NN (terceiro outorgante), na qualidade de procurador de OO, que declararam, além do mais, que «no dia 6 de setembro do ano passado e na sua residência em ... faleceu, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade PP no estado de casado em segundas núpcias (…) no regime de comunhão geral de bens (…) , deixando por seus únicos e universais herdeiros (…) JJ e o OO. (…) Que pela presente escritura e nas qualidades em que outorgam, vêm proceder à partilha dos bens da herança deixada pelo autor da herança, Senhor PP. Que os bens a partilhar (…) são os bens que constam da relação escrita. (…) Que aos constituintes do terceiro outorgante e sua esposa são adjudicados e ficam a pertencer os imóveis (…) sob os números (…) quarenta e três (…)”
22. Na relação de bens por óbito de PP, a qual integra a escritura mencionada em 24. encontra-se relacionado, entre o mais, o seguinte bem:
“(…) N.º 43
Uma sorte ao sítio dos ..., limite dito, a partir de nascente e poente com PP, do norte com caminho, e de sul com QQ, inscrita na respectiva matriz sob o artigo número três mil duzentos e cinquenta e um, com o valor matricial de oitenta e três escudos e quarenta e quatro centavos.”
23. Por escritura denominada Habilitação por Óbito de D. II, outorgada em ../../1966, no Cartório Notarial ..., compareceram como outorgantes RR, SS e TT que declararam, além do mais, o seguinte: «que têm pleno conhecimento de que no dia vinte e cinco de abril de mil novecentos e sessenta e seis, faleceu (…) D. II, doméstica, viúva do Engenheiro OO (…), sem testamento ou qualquer outra disposição de seus bens. Que, como herdeiros legítimos, sucederam-lhe sua irmã germana, BB, viúva (…); e sua sobrinha AA, casada com CC (…), como representante legal de seu pai, UU, que era irmão VV da falecida e cujo óbito ocorreu antes do da irmã referida D. II. Que não há outras pessoas que, segundo a lei, prefiram aos indicados herdeiros ou com eles possam concorrer, na sucessão (…). E que a herança compreende bens mobiliários cujo valor provável é de oitenta e um mil escudos (…)».
24. Por escritura denominada Habilitação, outorgada em 25/05/2005, no Primeiro Cartório de ..., compareceu como outorgante AA que declarou, além do mais que «no dia vinte e dois de julho de mil novecentos e sessenta e oito (…) faleceu sem deixar descendentes nem ascendentes vivos, aquela, BB, que também usava e era conhecida por BB (…), no estado de viúva de WW. Que a falecida deixou testamento público outorgado no dia dezassete de Abril de mil novecentos e cinquenta e oito, (…) no qual instituiu como seu único e universal herdeiro, seu sobrinho XX. Que por sentença de seis de Outubro de dois mil e quatro, transitada em julgado em dezoito de Outubro de dois mil e quatro, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca ..., foi declarada a caducidade do direito de aceitação da herança aberta por óbito de BB pelo réu, aquele XX, e declarada como única e universal herdeira de BB a autora AA. Que, assim, aquela BB deixou coimo sua única e universal herdeira a sua sobrinha AA, ao tempo casada com CC, segundo o regime da comunhão geral, de quem se divorciou (..). Que, não há outras pessoas que segundo a Lei, lhe prefiram ou com ela possam concorrer à sucessão».
b) Factos não provados
Em sentido distinto, resultou não provado que:
a) Em 1998 a Autora tenha feito dois arruamentos.
b) Até 2005 o prédio identificado em 1. estava omisso na Conservatória do Registo Predial ....
c) Até ano de 1995, a matriz predial rústica do prédio identificado em 1. se identificasse sob o artigo ...51 e, após a renumeração das matrizes rústicas, tenha passado a estar inscrito sob o artigo ...75.”
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O pedido formulado pela A. integra-se no âmbito das acções de simples apreciação, na sua vertente negativa, permitidas pelo artigo 10.º n.ºs 2 e 3, alínea a), do Código de Processo Civil.. Este tipo de acções visam pôr termo a uma situação de incerteza, mediante a declaração da existência de um direito ou da inexistência de um direito, pelo que, só é legitimo lançar meio deste tipo de acções quando a parte que a ela recorre estiver perante uma incerteza real, séria e objectiva, e quando, dessa incerteza, lhe possa advir um dano.
Ao contrário das acções de condenação, não se destinam a condenar a parte, mas apenas a afirmar na ordem jurídica a existência de um direito da parte demandante ou a inexistência desse direito por parte da demandada.
Assim, na acção declarativa de simples apreciação, de acordo com os ensinamentos de Alberto dos Reis, “não se exige do réu prestação alguma, porque não se lhe imputa a falta de cumprimento de qualquer obrigação. O autor tem simplesmente em vista pôr termo a uma incerteza que o prejudica: incerteza sobre a existência de um direito.”[6]
Como justificação das acções de simples apreciação, escreve ainda o mesmo autor: “o estado de incerteza sobre a existência de um direito ou de um facto é susceptível de causar prejuízo a uma pessoa; deve, por isso, pôr-se à disposição dessa pessoa um meio de se defender contra tais prejuízos. Esse meio é a acção declarativa. Quer dizer, o prejuízo inerente à incerteza do direito ou do facto legitima e justifica o uso da acção de simples declaração positiva ou negativa”.[7]
Estas acções podem servir igualmente para afirmar ou negar direitos reais. A este respeito Menezes Cordeiro[8] elenca como acções de simples apreciação negativa ou negatórias aquelas pelas quais “o titular de um direito sobre determinada coisa consegue que seja judicialmente declarada a inexistência de outro direito real sobre a mesma coisa.”
Do mesmo modo José Alberto Vieira[9], sobre a legitimidade para a acção negatória, que identifica como acção de simples apreciação negativa, defende que pode ser instaurada pelo titular de um direito real maior (v.g. propriedade), quer contra quem se arroga titular de um direito real menor (servidão, usufruto), quer contra quem se arroga titular de um direito da mesma natureza. Nesta medida, o proprietário de uma coisa pode intentar acção de simples apreciação negativa contra quem se arroga titular do mesmo direito, de forma a ver declarada a sua inexistência. Nesta medida, esta acçao não é de “reivindicação porquanto não se pede a restituição da coisa, e é negatória, uma vez que o pedido consiste na declaração da inexistência do direito do réu.”
Diversamente, para Nuno Pissarra[10] as acções de simples apreciação negativa não se identificam com as negatórias que exigem o prévio acertamento do direito de quem se arroga titular de um direito real sobre uma coisa e a declaração da inexistência do direito real que o R. se arroga. Nas primeiras não se pretende fazer valer uma pretensão real, uma vez que “nunca se pede a condenação numa prestação, positiva ou negativa. Quer-se tão somente eliminar uma situação de incerteza jurídica, não mudar um estado de facto.”, ou seja, eliminar uma perturbação do gozo da coisa pelo titular do direito real. Ainda assim, ao aludido autor não se suscita qualquer objecção “a prerrogativa do proprietário, por exemplo de demandar a declaração de inexistência do direito de propriedade que outrem reclama ter publicamente sobre a coisa.”
Perfilhando a posição que identifica as acções negatórias com as acções de simples apreciação negativa, nestas o putativo titular de um direito real sobre uma coisa pode instaurar acção contra quem se arroga titular de um direito real conflituante sobre essa mesma coisa, visando a declaração da inexistência desse direito, competindo-lhe alegar a correspondente causa de pedir: factos dos quais resulte a titularidade de um direito sobre a coisa e a incerteza jurídica criada pela parte demandada, com o consequente pedido de declaração da inexistência desse direito conflituante.
Com efeito, volvendo a José Alberto Vieira[11], “O fundamento da acção negatória é o direito real do autor; a causa de pedir, o facto jurídico do qual emerge o direito real invocado pelo autor da acção (art. 498º, nº 4 do CPC) e o pedido, a declaração da inexistência do direito real (…) do réu.”
Nestes termos, ao autor incumbe a prova do facto aquisitivo do direito real invocado e à parte demandada incumbe o ónus de prova “dos factos constitutivos do direito que se arroga.” (artº 341, nº1 do C.C.), resultando da ausência de prova destes factos a procedência da acção.
Quer isto dizer que aos RR. cabia o ónus de prova do seu direito de propriedade e conforme certeiramente considerou a decisão sob recurso “aos Autores, para além da alegação da inexistência do direito e dos factos indiciadores do estado de incerteza ou de insegurança que justificam a demanda judicial, a alegação e prova de factos impeditivos, modificativos e extintivos do direito invocado pelos Réus.” que mais do que factos impeditivos do direito invocado pelos RR., constituem afinal a sua causa de pedir e que justificam a sua legitimidade para a instauração desta acção.
Nestes termos se o ónus de prova de que o direito existe a seu favor cabia aos RR., à A. cabia a alegação e prova dos factos indiciadores do seu estado de incerteza e dos factos que demonstram o seu direito (real) sobre o imóvel e que são, ao mesmo tempo, impeditivos do (presumido) direito de propriedade a favor dos RR., por ilidirem a presunção decorrente do registo de propriedade deste imóvel a favor destes RR.
É certo que, conforme defende ainda José Alberto Vieira[12], “não estando em causa a declaração da existência do direito do autor, mas a declaração da existência do direito do réu, a prova do direito deve ser menos rigorosa e exigente (…) bastando formar no tribunal a convicção de que o direito existe e o autor é o seu titular.”, nomeadamente pelo recurso a presunções legais de titularidade do direito real, nomeadamente a decorrente da posse.
Expostos estes considerandos, alegavam os RR. a presunção de titularidade do direito real, decorrente do registo do imóvel a seu favor. Com efeito, conforme resulta do disposto no artº 1 do C.R.P. o registo predial visa dar publicidade à situação jurídica dos prédios, visando conferir segurança ao comércio jurídico imobiliário. Esta segurança jurídica registral, segundo Isabel Pereira Mendes[13], assume um duplo aspecto estático e dinâmico. A primeira visa essencialmente a protecção dos titulares inscritos, sobretudo no domínio dos direitos com eficácia real e das relações jurídicas de carácter patrimonial; a segunda encontra-se direcionada para a protecção da comunidade em geral, condição aliás de eficácia dos actos sujeitos a registo perante terceiros (artº 5, nº1 do C.R.Predial).
Por assim ser, o artº 7 do C.R.P consagra a presunção de “que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.”, presunção iuris tantum, que não abrange a descrição do imóvel, confrontações e áreas, suscetível de ser ilidida mediante prova do contrário (cfr. art 350 n.º 2, do C.C.) nomeadamente e conforme refere a decisão sob recurso, “por uma presunção prevalecente, mais concretamente a que decorre da presunção da titularidade do direito fundada na existência de uma posse anterior à inscrição registral, nos termos previstos no artigo 1268.º, do Código Civil.”
Com efeito, como nos ensina José Alberto Vieira[14], a “presunção fundada no registo pode colidir com a presunção fundada na posse (art. 1268º, nº1). Nessa altura, prevalece a mais antiga (…). Isto quer dizer, que a presunção assente no registo predial não vale de nada se houver uma posse anterior ao registo. Nesse caso, o titular do direito terá de levar a cabo a actividade probatória tendente a demonstrar a titularidade substantiva do direito em causa.”
Ora, dos factos assentes nos pontos, 7 a 16 e 20, resultam praticados actos de posse sobre este imóvel que preenchem os requisitos da titularidade deste direito a favor da A., anteriores ao registo de propriedade a favor dos RR. e que obstam à presunção de aquisição derivada do mesmo que resulta do artº 7 do C.R.P.
Como refere a decisão recorrida, está “em causa um terreno que, desde tempos imemoriais, era utilizado em proveito da população de ... – e não de pessoas concretizadas e suscetíveis de contabilização –, servindo utilidades coletivas distintas, tidas como essenciais em tempos de marcada ruralidade e, sobretudo, para populações que não dispunham de terrenos para proceder a tais atividades. E tal utilização, caracterizando um uso direito e imediato sobre tal prédio, foi realizada à vista de tudo e de todos, de forma ininterrupta, sem oposição de ninguém e na convicção de que o mesmo integra o domínio público. Em face do exposto, resulta inequívoco que, efetivamente, foram e são exercidos poderes de facto sobre o prédio pela Freguesia ..., por si e através dos seus fregueses, na convicção de que o mesmo pertence ao domínio público, há mais de 100 anos, desde tempos imemoriais, para lá da memória dos vivos.”
Assente esta matéria de facto referida nos pontos 7 a 16, a alegação da A. de que todos estes actos eram permitidos, tolerados pelo proprietário, é contrária ao dado como provado no ponto 16. Na realidade o que resultou dos autos é “uma posse tão antiga que o seu início é insuscetível de ser concretizado temporalmente pelos vivos.”, a prática de actos pela A. que correspondem aos poderes de facto exercidos pelo proprietário, sem oposição de quem quer que fosse, na convicção de que este terreno integrava o domínio público, inclusive registado na matriz em nome da A. que pagava os competentes impostos, que nele plantou árvores, efectuou arruamentos, procedeu ao seu arrendamento, etc.
Já a recorrente não conseguiu demonstrar a titularidade substantiva do direito em causa.
Por outro lado, a oposição pela R. ao exercício destes poderes de facto, é irrelevante pois que a posse exercida pela A. nos moldes referidos nos pontos 7 a 16 é forçosamente anterior e prevalece sobre a presunção derivada do registo do imóvel a favor da R.
Nesta medida, conforme refere a decisão recorrida porquanto o registo de propriedade do prédio rústico somente se mostra inscrito a favor da Ré desde 2005, dúvidas inexistem no sentido de que a posse do mesmo pela Freguesia ... é, necessariamente, anterior.”
Nestes termos, dos factos que se apuraram resultou ilidida a presunção constante do registo a favor dos RR., não tendo sido lograda a prova da titularidade substantiva deste direito, com a consequente procedência da acção.
O cancelamento do registo de propriedade deste imóvel a favor dos RR. é afinal a decorrência lógica da declaração de que este direito não existe a favor do titular aparente inscrito.
As custas do recurso fixam-se pelos apelantes (artº 527 nº1 do C.P.C.)
Coimbra 24/09/24
[1] Ac. Tribunal Relação de Coimbra de 20/01/2015, relator Henrique Antunes, proc. nº 2996/12.0TBFIG.C1
[2] GERALDES, António Santos Abrantes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª edição, pág. 184.
[3] Ob. cit., pág. 185.
[4] RLJ, Ano 115,º, pág. 95 e segs.
[5] Ac. do S.T.J. de 26/09/12, relator Gonçalves Rocha, Proc. nº 174/08.2TTVFX.L1.S1
[6] ALBERTO DOS REIS, José, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 15.
[7] R.L.J. Ano 80º- 231.
[8] CORDEIRO, António de Menezes, Direitos Reais, Lex, 1993, pág. 594.
[9][9] VIEIRA, José Alberto, Direitos Reais, Almedina, 2º edição, 2018, págs. 444.
[10] PISSARRA, Nuno Andrade, Das Acções Reais, Parte II, FDUL, 2021, pág. 1789.
[11] VIEIRA, José Alberto, ob. cit, pág. 445.
[12] Ibidem.
[13] MENDES, Isabel Pereira, Estudos sobre Registo Predial, Almedina 2003, págs. 84 e segs.
[14] VIEIRA, José Alberto, ob. cit. pág. 263.