I – À luz da interpretação atualista do art.º 505.º do CCiv., a concorrência da culpa (facto imputável ao lesado) com o risco do lesante pressupõe sempre que o risco próprio e inerente à circulação do veículo não seja eliminado enquanto causa concorrente para a produção do dano – seja porque, em termos objetivos, é isso que resulta das concretas circunstâncias do caso, seja porque o facto imputável ao lesado que deu causa ao acidente não tem relevância bastante para eliminar o risco próprio do veículo enquanto causa concorrente para a produção do acidente e do dano, por estar em causa um facto praticado com culpa leve (mero descuido ou distração) com escassa relevância causal para o acidente que torna plausível a efetiva comparticipação do risco próprio do veículo no processo causal que deu origem ao acidente.
II – Mesmo com essa interpretação atualista, a responsabilidade pelo risco sempre se consideraria excluída num caso em que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do peão/lesado, sem que se possa considerar estar em causa uma culpa leve, por ter violado frontalmente os comandos legais que lhe impunham o uso das passadeiras (que existiam no local) para fazer a travessia da via, optando por fazer a travessia fora desses locais, sem que tivesse adotado os cuidados necessários no sentido de se certificar e de garantir que o podia fazer em segurança.
III – Trata-se, em vez disso, de uma conduta deliberada que envolvia um risco relevante, como tal, assumido pelo lesado quando atravessou a via naquelas circunstâncias, ou seja, a existência de culpa grave e exclusiva do lesado sempre importaria a exclusão da responsabilidade pelo risco.
IV – No caso, não existiu sequer contribuição relevante do risco próprio do veículo no processo causal que deu origem ao dano, por o embate do veículo ter ocorrido do lado direito do peão, não havendo notícia de que este tenha sofrido qualquer lesão nesse lado do corpo, tudo indicando que o veículo parou de imediato e que o seu embate foi muito ligeiro.
1.º Adjunto: Paulo Correia
2.º Adjunto: Maria João Areias
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I.
AA, com domicílio na Rua ...., ... A..., instaurou acção, com processo comum, contra B... – Companhia de Seguros, SA, com domicílio na Rua ..., ... ..., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 50.009,00€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos em consequência de um acidente ocorrido no dia 16/07/2019.
Para fundamentar a sua pretensão, alega, em resumo:
- Que, na data referida e quando, seguindo a pé, terminava o atravessamento da via pública em local onde não existia passadeira, foi colhida, de forma imprevista, pelo veículo matrícula ..-..-RL, seguro na Ré;
- Que tal acidente ocorreu por culpa da condutora do veículo que, por circular desatenta e sem o cuidado necessário, não se apercebeu da presença da Autora;
- Que, por força desse acidente, a Autora sofreu lesões que determinaram assistência hospitalar, que lhe provocaram dores (ainda subsistentes e agravados pela marcha) e que lhe determinaram impossibilidade para o trabalho, necessidade de uso de canadianas durante três meses e necessidade de auxílio de terceira pessoa para as actividades do dia-a-dia;
- Que, por força dessas lesões, sofreu os seguintes danos:
· o dano sofrido pela ofensa à sua integridade física e psíquica que, dada a sua idade e rendimento profissional, deve ser compensado no valor de 35.000,00€;
· o dano correspondente ao valor do subsídio de alimentação que deixou de receber pelo facto de ter ficado incapacitada de trabalhar durante 13 meses (1.178,19€);
· o dano correspondente ao valor que gastou em transportes para realização de exames, consultas e tratamentos (70,00€);
· o dano correspondente ao valor que gastou em medicamentos, consultas e exames (310,81€);
· o dano correspondente ao valor que teve que pagar a terceira pessoa para a ajudar nas suas actividades diárias durante o período de três meses em que esteve incapacitada (2.700,00€);
· o dano correspondente ao valor da roupa e o calçado que usava no momento do acidente e que ficaram inutilizados (250,00€);
· o dano correspondente às dores que sofreu e continua a sofrer e à diminuição da sua capacidade de locomoção (5.000,00€);
· o dano correspondente ao sofrimento, tristeza, inquietação, angústia, medo e abatimento que sentiu – e sente – por força da sua situação clínica e pessoal (2.500,00€);
· o dano futuro resultante dos tratamentos que ainda terá que efectuar, provavelmente até ao final da sua vida (3.000,00€).
A Ré contestou, impugnando as circunstâncias do acidente que foram alegadas na p.i. e imputando a sua eclosão a culpa da Autora pelo facto de esta ter feito a travessia da via fora das passadeiras existentes nas proximidades e sem se certificar que o podia fazer sem perigo de acidente, sendo certo que podia avistar o veículo a aproximar-se.
No mais, impugna – por desconhecimento – os danos alegados e sustenta serem indevidas e excessivas as quantias reclamadas.
Conclui pela improcedência da acção.
Foi realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, foi fixado o objecto do litígio e foram delimitados os temas da prova.
Após realização do julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu julgar a acção improcedente e absolver a Ré do pedido.
Inconformada com essa decisão, a Autora veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…).
A Ré/Apelada respondeu ao recurso, sustentando a sua improcedência.
II.
Questões a apreciar:
Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
· Saber se há razões para alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos propostos pela Apelante;
· Saber se o acidente em causa foi (ou não) imputável a conduta culposa da Autora;
· Saber – caso se conclua pela culpa da Autora – se, à luz do disposto no art.º 505.º do CC, deve ser admitida a concorrência do risco próprio do veículo para o acidente – com a consequente responsabilidade da Ré –, apurando, em caso afirmativo, a medida da contribuição da culpa da Autora e a medida da contribuição do risco próprio do veículo.
III.
MATÉRIA DE FACTO
Comecemos por apreciar a impugnação dirigida à decisão proferida sobre a matéria de facto.
(…)
A matéria de facto provada – com as alterações agora efectuadas – é a seguinte:
1. No dia 16 de Julho de 2019, entre as 15:30 horas e as 16:00 horas, ocorreu um embate, no Largo ... (sensivelmente em frente à antiga agência da Companhia de Seguros C...), cidade ..., onde foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, marca Opel, modelo ..., matrícula ..-..-RL, propriedade de BB, e por esta então conduzido, e a aqui Autora, como peão.
2. No local do embate, a faixa de rodagem do Largo ... tem uma largura de 11,60 metros, e estava afecta a um sentido de trânsito.
3. Ao centro do Largo ... existia em ilhéu, com forma oval, sendo que o sentido de trânsito dos veículos automóveis se fazia contornando o ilhéu e dando a esquerda ao mesmo.
4. Esse ilhéu media cerca de 50 metros cumprimento por 20 metros de largura.
5. Para o atravessamento da via que circunda o ilhéu, seja deste para as ruas circundantes, seja destas para aquele, estavam marcadas a toda a largura da faixa de rodagem duas marcas M11 do Regulamento de Sinalização do Trânsito, uma do lado nascente e outra do lado poente do ilhéu, que indicavam o local por onde os peões deviam efectuar o atravessamento da faixa de rodagem.
6. Essas marcas localizavam-se, uma a cerca de 7 metros e outra a cerca de 12 metros do local onde a Autora iniciou a travessia da faixa de rodagem, saída do referido ilhéu.
7. O veículo ..-..-RL circulava pela faixa de rodagem do Largo ....
8. A Autora encontrava-se no mencionado ilhéu e pretendia dirigir-se às instalações da Antiga Casa de Saúde ....
9. Após ter transposto a passadeira localizada a poente do ilhéu, e no momento em que o contornava, curvando para a sua esquerda, a condutora do veículo ..-..-RL foi surpreendida com a presença da Autora a fazer a travessia da faixa de rodagem, da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha desse veículo.
10. A Autora efectuou o atravessamento da faixa de rodagem fora da zona regulamentar especialmente destinada para o efeito, não obstante a passadeira mais perto da Rua ..., local onde se situa a Antiga Casa de Saúde ..., distar cerca de 12 metros do local onde a Autora se lançou a atravessar a faixa de rodagem.
11. A Autora iniciou o atravessamento da via sem previamente se certificar de que o podia fazer sem perigo de acidente, até porque o local forma uma ligeira curva à esquerda atento o sentido de transito do veículo, de matricula ..-..-RL.
12. Por seu lado, no momento em que iniciou essa travessia, a Autora podia avistar o veículo de matricula ..-..-RL a aproximar-se.
13. Nas circunstancias de tempo e lugar mencionadas em 1) e 10) dos factos provados, a Autora foi colhida pelo veículo que circulava na via pública, contornando a placa central do Largo ....
14. Após o embate no veículo automóvel supra identificado, a Autora foi projectada caindo ao solo.
15. O embate ocorreu a menos de 3 metros do limite do ilhéu donde proveio a Autora.
16. No dia e hora referidos, o piso encontrava-se seco e fazia sol.
17. E não circulavam outros veículos na via pública supra indicada.
18. No local onde ocorreu o embate não existia passadeira que ligue a placa central do Largo ... às instalações da Antiga Casa de Saúde ....
19. À data do embate identificado em 1) dos factos provados, o veículo matrícula ..-..-RL tinha a responsabilidade civil decorrente da sua utilização transferida para a Ré, por contrato de seguro titulado pela apólice nº ...86.
20. Em consequência do embate supra mencionado, a Autora recorreu aos serviços de urgência da Unidade Local de Saúde da A..., EPE- Hospital ..., onde foi observada, apresentando «hematoma no couro cabeludo», «hematoma na região lateral do pé», e apresentando queixas de «dor na tibiotársica esquerda e anca direita».
21. Nesse mesmo dia foi dada alta à Autora, tendo-lhe sido receitado «paracetamol» (1 comprimido de 8 em 8 horas) e «celecoxib, 200 mg» (1 comprimido de 12 em 12 horas).
22. Em 20.07.2019, porque sentia dores e persistia o hematoma no pé, a Autora dirigiu-se novamente ao Serviço de Urgência da Unidade Local de Saúde da A..., EPE – Hospital ..., a fim de aí ser (novamente) observada.
23. E, então, foi diagnosticada à Autora (em consequência directa, necessária e adequada do atropelamento supra referido), uma «fratura escafoide társico à esquerda», sendo nessa ocasião efectuada a «imobilização com aparelho gessado».
24. Na mesma ocasião, a Autora foi encaminhada para a consulta externa de ortopedia, agendada para dia 06.08.2019.
25. Em 23.07.2019 a Autora, porque continuava a sentir-se doente, foi medicada com «apixabano, 2,5 mg».
26. Entretanto, e independentemente de ser seguida na consulta externa de ortopedia (Unidade Local de saúde da A..., EPE- Hospital ...), foi agendada à Autora (para 22 de Agosto de 2019), nos serviços da Unidade Local de Saúde da A..., EPE – Hospital ..., consulta externa da especialidade de fisiatria.
27. A Autora compareceu a tal consulta, a qual deu origem ao seguinte relatório: «Atropelamento a 16/07/2019 da qual resultou # do angulo supero-interno do navicular. Teve imobilização gessada até dia 12/08/2019. EO: dor major na região interna do mediopé. Edema do pé, hematoma plantar. Feito ensino de automobilizações, crioterapia, banho de contraste. Marcha com carga parcial apenas após 6 semanas de fratura. Plano: fisioterapia muito urgente no Serviço de Medicina Física Reabilitação do ....»
28. Em consulta externa da especialidade de fisiatria, efectuada à Autora na Unidade Local de Saúde da A..., EPE - Hospital ..., realizada em 21 de Outubro de 2019, foi efectuado o seguinte relatório: «Atropelamento a 16/07/2019 da qual resultou fractura do ângulo supero-interno do navicular. Teve imobilização gessada até dia 12/08/2019. Iniciou tratamentos de fisioterapia meados de setembro. Mantem auxiliar no exterior em pisos irregulares, hoje recorre a consulta sem auxiliar. Ainda não consegue alternar escadas. EO: dor referida na região interna do mediopé e perimaleolar ESQ. Edema ligeiro do pé. Dorsiflexão de 20º, flexão plantar de 30º. FM grau 4+ dos dorsiflexores e grau 4 dos flexores plantares. Sem instabilidade clínica do tornozelo mas com dor na região do liga peroniaoastragalino anterior na hiperinversão. Marcha sem auxiliares. 1 canadiana no exterior. Sem auxiliares indoor com claudicação minor. Não alterna escadas. TAC (22/08/2019): Fraturas da extremidade medial do escafoide e cuboide e posterior de 3º cuneiforme, de caráter aparentemente não agudo, mas sem sinais de consolidação. As superfícies articulares são regulares e os espaços articulares conservados na tibiotársica e sub-talar. Ligeiro derrame articular. Plano: mantem tratamentos de fisioterapia no Serviço ....».
29. Em consulta externa da especialidade de fisiatria, efectuada à Autora na Unidade Local de Saúde da A..., EPE - Hospital ..., realizada em 19 de Dezembro de 2019 foi efectuado o seguinte relatório: «Atropelamento a 16/07/2019 da qual resultou “do ângulo supero-interno do navicular. Teve imobilização gessada até dia 12/08/2019. Iniciou tratamentos de fisioterapia meados de setembro. Retorna por agravamento de queixas. EO: dor referida na região e perimaleolar ESQ. Sem edema. Dorsiflexão de 25º, flexão plantar de 30º. FM grau 5- dos dorsiflexores e grau 5- dos flexores plantares. Sem instabilidade clínica do tornozelo. Marcha sem auxiliares inclusive no exterior. Alterna escadas, sem auxílio a subir, com necessidade de corrimão a descer. TAC (22/08/2019): Fraturas da extremidade medial do escafoide e cuboide e posterior de 3º cuneiforme, de caráter aparentemente não agudo, mas sem sinais de consolidação. As superfícies articulares são regulares e os espaços articulares conservados na tibiotársica e sub-talar. Ligeiro derrame articular. Plano: sem indicação para retomar programa de reabilitação. Explico dor sequelar pós-traumática. Revejo aos 6 meses pós-OP.» (doc. 13, adiante junto e aqui considerado integralmente reproduzido)
30. Em consulta externa da especialidade de ortopedia, efectuada à Autora na Unidade Local de Saúde da A..., EPE - Hospital ..., realizada em 30 de Dezembro de 2019 foi efectuado o seguinte relatório: «Fraturas da extremidade medial do escafoide e cuboide e posterior do 3º cuneiforme detetadas na TC. Clinicamente com dor a nível da interlinha articular anterior e lateral, sobretudo no extremo da dorsiflexão. Queixas no trajeto dos peroniais. Dor ao nível do 1º raio sobretudo articulação MTF com a carga. Pedida RMN para investigação das queixas sobretudo da articulação tibiotársica que poderá ter sofrido lesão dos tecidos moles na altura do acidente e não ter sido diagnosticada dado o estado inflamatório do pé em contexto das fraturas supramencionadas. Volta após realização de RMN ainda a agendar. Dadas as dificuldades da marcha em planos com declive e escadas recomendo manter baixa médica.»
31. Em consulta externa da especialidade de fisiatria, efectuada à Autora na Unidade Local de Saúde da A..., EPE - Hospital ..., realizada em 10 de Setembro de 2020 foi efectuado o seguinte relatório: «Atropelamento a 16/07/2019 da qual resultou # do ângulo supero-interno do navicular. Teve imobilização gessada até dia 12/08/2019. Iniciou tratamentos de fisioterapia meados de setembro. Última avaliação a 16/01/2020: EO: dor referida na região e perimaleolar ESQ. Sem edema. Dorsiflexão de 30º, flexão plantar de 30º. FM grau 5- dos dorsiflexores e grau 5- dos flexores plantares. Sem instabilidade clínica do tornozelo. Marcha sem auxiliares inclusive no exterior, com claudicação sem desenrolar completamente o pé. Alterna escadas, sem auxílio a subir, com necessidade de corrimão a descer. TAC (22/08/2019): Fraturas da extremidade medial do escafoide e cuboide e posterior do 3º cuneiforme, de caráter aparentemente não agudo, mas sem sinais de consolidação. As superfícies articulares são regulares e os espaços articulares conservados na tibiotársica e sub-talar. Ligeiro derrame articular. Última avaliação a 16/01/2020 – sem indicação para retornar programa de reabilitação»
32. Em consequência do embate supra referido, a Autora ficou com incapacidade temporária para o trabalho no dia 24 de Julho de 2019; entre 02.09.2019 e 09.09.2019; entre 10.09.2019 e 09.10.2019; entre 10.10.2019 e 08.11.2019; entre 09.11.2019 e 08.12.2019; entre 09.12.2019 e 07.01.2020.
33. A Autora foi sujeita a Junta Médica da ADSE, realizada em 20.12.2019, a qual «deliberou por unanimidade pela (…) impossibilidade de regresso ao serviço. (…) Foi marcada nova junta médica para o dia 05/02/2020, às 17.30 horas (…)»
34. A Autora foi sujeita a Junta Médica da ADSE, realizada em 05.02.2020, a qual «deliberou por unanimidade pela (…) impossibilidade de regresso ao serviço. (…) Foi marcada nova junta médica para o dia 17/03/2020, às 14.30 horas (…)”.
35. A Autora foi sujeita a Junta Médica da ADSE, realizada em 29.06.2020, a qual «deliberou por unanimidade pela (…) impossibilidade de regresso ao serviço. (…) Foi marcada nova junta médica para o dia 03.08.2020, às 09.30 horas (…)»
36. Após o embate, e durante pelo menos três meses, a Autora necessitou de se locomover com o apoio de uma canadiana.
37. Por isso, necessitou do auxílio de pessoa terceira para as actividades do dia-a-dia.
38. À data do acidente ora em apreço a Autora era uma pessoa saudável, alegre e divertida.
39. Exercia a função de professora do ensino preparatório.
40. Em consequência das lesões sofridas, a Autora tem dores e edema no pé, agravados pela marcha,
41. O que determina que, por vezes, tenha de usar uma meia elástica.
42. Ainda em consequência das lesões advenientes do acidente aqui em causa a Autora apresenta diminuição das mobilidades do pé, na flexão/extensão, tendo dificuldade em subir/descer escadas e em fazer marcha em planos inclinados,
43. Tem a sensação de formigueiros no pé, com dores esporádicas.
44. Coxeando ao andar e tendo a sensação de que o pé “lhe falha”.
45. Sendo que o claudicar do pé magoa e angustia a Autora.
46. Ainda hoje a Autora sente esporadicamente dores.
47. A Autora nasceu a ../../1953.
48. À data do acidente, auferia um salário base de € 1.418,60.
49. E consequência do embate, e durante o período de tempo em que esteve incapacitada de comparecer ao serviço (13 meses), a Autora deixou de receber o subsídio de alimentação, à razão de € 90,63/ mês.
50. A Autora gastou em transportes (aquando da deslocação para a realização dos exames, consultas e tratamentos a que foi submetida por força do acidente em causa) a quantia de € 70,00.
51. E em medicamentos e consultas médicas e realização de exames complementares de diagnóstico, gastou a Autora, pelo menos, € 310,81.
52. Nos três meses subsequentes ao embate, a Autora viu-se forçada a recorrer aos serviços de uma pessoa terceira (que a ajudava na sua higiene diária; que lhe “limpava e arrumava a casa”; que lhe confeccionava as refeições), com o que despendeu a quantia de € 2.700,00 [90 dias x 5 horas x € 6,00].
53. A roupa e o calçado usados pela Autora no momento do acidente ficaram inutilizados, sendo que o respectivo valor ascendia, pelo menos, ao montante de €250,00.
54. A Autora sofre ainda dores quando pretende deslocar-se, e, sobretudo, quando “muda o tempo”.
55. A Autora tem dificuldade em subir/ descer escadas e em caminhar em planos inclinados.
56. Tem diminuição da capacidade de locomoção e claudica.
57. Em consequência do embate que sofreu, a Autora sentiu inquietação, angústia e medo, e temeu pela sua saúde.
58. Os factos que se encontram descritos deram origem ao processo de inquérito que correu termos pela Procuradoria do Juízo Local Criminal ..., ... Secção de Inquéritos, sob o n.º 990/19...., o qual veio a merecer despacho de arquivamento, entretanto transitado em julgado, notificado à autora por ofício datado de 06/04/2021.
59. Do mencionado despacho de arquivamento consta que “...realizadas as diligências de investigação foi possível identificar duas causas possíveis para a ocorrência do acidente, a saber, a distração da condutora do veículo que não se apercebeu da presença da peã a realizar o atravessamento da faixa de rodagem e/ou, a mais provável, o facto de a peã ter realizado a travessia da faixa de rodagem em local inapropriado, não se tendo certificado previamente de que poderia realizar o atravessamento sem qualquer perigo, tendo em conta a distância que a separava do veículo e a velocidade a que este circulava...”, que “...a peã realizou o atravessamento da via fora de qualquer passadeira, o que sempre implicaria da sua parte um cuidado redobrado ao efectuar a referida travessia” e que “...atenta a sua morada, é possível concluir que conhece bem o local e que sabia existirem outras passadeiras ali próximas – uma a cerca de 7 metros e outra a cerca de 12 metros do local do atropelamento – que lhe permitiam realizar a travessia de forma mais segura, Indicia-se, portanto, que desrespeitou as regras de trânsito e os deveres gerais de prudência”.
a) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 13) da factualidade provada a Autora encontrava-se a terminar o atravessamento da via pública.
b) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 13) da factualidade provada, a Autora foi colhida de forma imprevista e inexplicável.
c) Logo após ocorrer o embate do veículo na Autora, e consequente queda desta ao solo, a Autora apercebeu-se que a condutora do veículo matrícula ..-..-RL disse repetidamente que não se tinha apercebido que a Autora estava na parte final do atravessamento da via pública.
d) Por isso que circulava de forma desatenta e sem o cuidado a tanto necessário e dela exigível.
e) Atendendo ao tipo de fractura sofrida pela Autora, é adequado e pertinente prever o risco de uma evolução para artrose, provocando um agravamento das alterações anatomo- funcionais já existentes.
f) Em consequência do embate mencionado em 1) dos factos provados, a Autora pode vir a necessitar de novos tratamentos (ou mesmo intervenções cirúrgicas).
g) A Autora sofre com a sua actual situação clínica e pessoal, tendo momentos de grande tristeza e abatimento.
IV.
DIREITO
A sentença recorrida julgou improcedente a pretensão da Autora (a Apelante) por ter considerado que não se verificavam os pressupostos de que dependia a responsabilidade civil da condutora do veículo seguro na Ré, inexistindo, por isso, qualquer responsabilidade desta pelos danos sofridos pela Autora.
Considerou, para o efeito, que não resultou provado qualquer facto que permita imputar o acidente a conduta culposa da condutora do veículo, resultando demonstrado, pelo contrário, que o acidente ocorreu por culpa exclusiva da Autora por ter procedido à travessia da via em local onde não existia passadeira em infração ao disposto no art.º 101.º, n.º 3, do CE, uma vez que existia uma passadeira a cerca de 12 metros.
Tentando contrariar a decisão e os respectivos fundamentos, a Apelante sustenta, por um lado e com base na alteração da matéria de facto que propugna, que não existiu culpa da Autora e sustenta, por outro lado (a título subsidiário), que, à luz de uma interpretação actualista dos arts. 505.º e 570.º do Código Civil, deve ser admitida a concorrência causal entre os riscos próprios do veículo automóvel e a conduta, culposa ou não culposa, imputável do lesado e que, com base nessa interpretação deve ser atribuída a causalidade do atropelamento em 25% à Autora e em 75% aos riscos próprios do veículo, com a atribuição da correspondente indemnização.
Em relação à 1.ª questão, não assiste razão à Apelante, uma vez que, não obstante a alteração da matéria de facto (nos termos acima mencionados), continua evidente que o acidente ocorreu por culpa da Autora, sem que tenha resultado provada e sem que se vislumbre qualquer actuação culposa da condutora do veículo que pudesse ter determinado o acidente ou que, de algum modo, tivesse contribuído para a sua eclosão.
No que toca ao trânsito de peões, dispõe o art.º 99.º do Código da Estrada (na parte que agora releva):
“1 - Os peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas.
2 - Os peões podem, no entanto, transitar pela faixa de rodagem, com prudência e por forma a não prejudicar o trânsito de veículos, nos seguintes casos:
a) Quando efetuem o seu atravessamento;
b) Na falta dos locais referidos no n.º 1 ou na impossibilidade de os utilizar;
(...)”.
No que toca especificamente ao atravessamento da faixa de rodagem, o art.º 101.º do mesmo diploma dispõe nos seguintes termos:
“1 - Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.
(...)
3 - Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem.
(...)”.
À luz do disposto nas normas citadas, é evidente que os peões estão obrigados a usar as passagens especialmente sinalizadas para esse efeito (as passadeiras) sempre que elas existam a distância inferior a 50m, não sendo legítima, portanto, – correspondendo a violação do referido comando legal – a travessia da via de trânsito fora da passadeira quando elas existam a distância inferior à referida.
Em qualquer caso, os peões estão sempre obrigados a tomar os cuidados e precauções adequados no sentido de se certificarem que podem proceder à travessia sem perigo de acidente, verificando a existência de eventuais veículos e avaliando, em função da distância a que os mesmos se encontram e da velocidade a que circulam, se estão efectivamente reunidas as condições necessárias para fazer a travessia em segurança. Esses cuidados e precauções terão que ser, naturalmente, redobrados quando a travessia é feita fora de uma passadeira e, portanto, num local em que, em termos de razoabilidade, não é exigível aos condutores que possam e devam prever a passagem de peões e que, nessa medida, adoptem as precauções adequadas a tal possibilidade/eventualidade.
Ora, no caso dos autos, é evidente que a Autora não respeitou os referidos comandos legais.
Conforme resulta da matéria de facto, a Autora encontrava-se no ilhéu existente no centro do Largo ... e, para dele sair (em direcção à Casa de Saúde ... para onde se dirigia), tinha à sua disposição duas passadeiras (uma localizada a poente do ilhéu e outra do lado nascente), sendo que qualquer uma delas se situava a distância bem inferior a 50m do local onde a Autora efectuou a travessia da via (uma delas estava a 7 metros e a outra estava a 12m). É certo, portanto, que, à luz do disposto no n.º 3 do citado art.º 101.º, estava obrigada a usar uma dessas passadeiras para sair do ilhéu e é indiscutível que violou essa obrigação, incorrendo em expressa e frontal violação da referida disposição legal, uma vez que não usou nenhuma das passadeiras ali existentes (que eram as zonas destinadas à travessia de peões) e fez a travessia num local onde nenhuma passadeira existia e que se encontrava a menos de 50m.
Conforme se referiu supra e ao contrário do que sustenta a Apelante, a circunstância de não existir nenhuma passadeira que fizesse uma ligação directa entre o ilhéu e a Clínica ..., não a legitimava a fazer a travessia em qualquer ponto. As zonas regulamentares especialmente destinadas à travessia dos peões que pretendessem sair do ilhéu – onde a Apelante se encontrava – para as ruas adjacentes eram as referidas passadeiras e porque elas se encontravam a menos de 50m eram esses os locais que a Autora tinha que utilizar para fazer a travessia da via (cfr. art.º 101.º do CE), ainda que isso implicasse a necessidade de percorrer uma maior distância para chegar ao seu destino e ainda que para tal tivesse ainda que atravessar uma outra via (designadamente, a Rua ..., uma vez que a ... se situava do lado da rua contrário àquele onde a Autora acedia através da referida passadeira).
Mas, além de ter violado esse comando legal, a Autora também não tomou os cuidados adequados no sentido de se certificar que podia atravessar a via sem perigo de acidente e/ou prejuízo para o trânsito que ali circulasse. Importa notar que, ao contrário do que acontece nas passadeiras – onde os condutores dos veículos estão obrigados a prever a passagem de peões e a adoptar os cuidados inerentes a essa eventualidade –, não poderemos, em termos de razoabilidade, exigir aos condutores que, a todo o momento e em qualquer local, contem com a eventual presença de peões a atravessar a via e que orientem a sua condução em função dessa eventualidade, sendo perfeitamente legítimo que possam pautar a sua actuação e a sua condução com base na confiança de que os demais utilizadores da via – designadamente os peões – irão respeitar as normas e deveres de cuidados a que estão obrigados.
Ora, no caso e não existindo no local qualquer passadeira, não era exigível à condutora do veículo que devesse contar com a possibilidade de ali surgir um peão, tanto mais que, existindo passadeiras nas proximidades, era perfeitamente legítimo presumir e confiar que os peões utilizariam essas passadeiras – como era sua obrigação – e que, nessa medida, não atravessariam a via em qualquer outro local. E a Autora – aprestando-se a atravessar da via nas circunstâncias descritas – sabia (ou devia saber) que não podia nem devia contar com a possibilidade de os condutores dos veículos adaptarem a sua condução em função dessa possibilidade, o que implicaria, naturalmente, que reforçasse as suas cautelas e cuidados no sentido de se assegurar que a travessia da via que pretendia efectuar não interferia com a trajectória dos veículos que ali circulassem, avaliando a eventual existência de veículos, a distância a que se encontravam e a velocidade a que circularam no sentido de apurar – com certeza – que tinha tempo para proceder à travessia antes de qualquer veículo chegar ao local onde se encontrava. E, como é evidente, a Autora não tomou essas precauções; se as tivesse tomado, não teria ocorrido qualquer acidente.
É indiscutível, portanto, que o acidente ocorreu por culpa da Autora, conforme se considerou na decisão recorrida.
Passemos a analisar a segunda questão suscitada – a título subsidiário – pela Apelante e que se prende com a concorrência entre o risco e a culpa do lesado.
Não obstante a aparente clareza do art.º 505.º do CC – do qual resulta que a responsabilidade pelo risco é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado e com fundamento no qual a doutrina tradicional entendia não ser admissível a concorrência, para efeitos de responsabilidade civil, entre o risco e a culpa do lesado[1] –, a doutrina e a jurisprudência têm vindo a admitir, em determinadas circunstâncias, a concorrência entre risco e culpa do lesado (ou, melhor dizendo, facto imputável ao lesado, seja ele culposo ou não) no âmbito da responsabilidade civil por acidente de viação[2].
Importa notar, no entanto, que essa possibilidade não tem sido – pensamos nunca ter sido – aplicada genericamente a toda e qualquer situação em que haja intervenção de um veículo em termos de responsabilizar (sempre e de forma automática) o detentor do veículo pelos danos sofridos pelo lesado.
Na verdade, a interpretação – dita actualista ou progressista – do citado art.º 505.º que tem vingado na jurisprudência do STJ vai no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, e que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo. Foi essa a posição adoptada no Acórdão do STJ de 04/10/2007[3] (considerado como sendo aquele que rompeu com o entendimento tradicional e marcou a viragem da nossa jurisprudência nacional) e tem sido essa, no essencial, a posição que tem continuado a ser adoptada pelo STJ.
Esclareça-se que, conforme refere Antunes Varela[4], o que está em causa na citada disposição legal não é um problema de culpa, mas sim um problema de causalidade que consiste em saber quando é que os danos verificados no acidente não devem juridicamente ser considerados como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como consequência do facto praticado pela vítima. Portanto, quando se diz – à luz da jurisprudência acima referida – que a responsabilidade pelo risco apenas é excluída quando o acidente for devido unicamente ao lesado o que aí se pressupõe é que o risco próprio do veículo não contribuiu, em termos de causalidade, para a verificação do acidente; o acidente deveu-se – única e exclusivamente – a facto do lesado, considerando-se que o citado art.º 505.º apenas se reporta a essa situação, não abrangendo os casos em que o facto do lesado coexiste com o risco próprio do veículo enquanto causas concorrentes para a verificação do acidente e do consequente dano.
Considera-se, portanto, que a exclusão da responsabilidade pelo risco – consignada na referida disposição legal – não se basta com a existência de qualquer facto do lesado ao qual o acidente seja imputável; para que a responsabilidade pelo risco se considere excluída é necessário que o acidente seja exclusivamente imputável a esse facto do lesado, em termos de se poder afirmar que o risco inerente à circulação do veículo foi alheio à verificação do acidente.
Daí que, com fundamento naquela interpretação, o STJ considere excluída a responsabilidade pelo risco sempre que o acidente é imputável a culpa exclusiva do lesado (Acórdãos do STJ de 17/05/2012, 09/03/2022, 05/05/2022, 12/10/2023, 27/02/2024 e 28/05/2024)[5].
Apela também alguma doutrina e jurisprudência ao grau de culpa do lesado para concluir que a culpa leve do lesado ou as faltas por ele cometidas de escassa relevância causal para o acidente não bastam para afastar a responsabilidade pelo risco; só a culpa grave teria idoneidade para afastar a responsabilidade pelo risco.
Sobre essa matéria e reportando-se à circulação de veículos e ao risco que lhe anda associado, diz Sinde Monteiro[6] que “...o facto de as pessoas serem obrigadas a conviver de perto com as máquinas em movimento, no seu dia a dia ao longo da vida, obriga a tão grande número de precauções acrescidas “que se tornam desculpáveis negligências ou culpas leves dos lesados e se compreende que apenas a culpa grave (ou até muito grave ou extremamente grave) deste seja considerada bastante para afastar a responsabilidade (pelo risco, entenda-se)”(sublinhado e negrito nossos).
Nesse sentido, escreve-se no Acórdão do STJ de 01/06/2017[7]:
“...o regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura – o que nos afasta do resultado que decorreria de uma estrita aplicação da denominada tese tradicional : ou seja, não pode, neste entendimento, excluir-se à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente do utente das vias públicas mais vulnerável) no despoletar do acidente, independentemente da gravidade do facto culposo e do grau da sua efectiva contribuição para o sinistro, deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente, no plano objectivo, dos riscos próprios da circulação do veículo, independentemente da intensidade destes e do grau em que contribuíram causalmente, na peculiaridade do caso concreto, para o resultado danoso.
Esta conclusão é, em última análise, imposta pelo princípio fundamental da adequação e da proporcionalidade – que naturalmente tenderá a inviabilizar a total e sistemática desresponsabilização do detentor do veículo causador do acidente, nos casos em que foi muito intensa a contribuição para o resultado danoso de riscos agravados da circulação do veículo e diminuta a relevância da falta imputável ao lesado, cometida com culpa leve ou com escassa relevância causal para a produção ou agravamento das lesões por ele próprio sofridas” (sublinhado nosso)[8].
Na mesma lógica, insere-se o Acórdão do STJ de 31/05/2023[9], onde se escreve que:
“O art. 505º do CCiv. admite, nomeadamente em face da salvaguarda do prescrito no art. 570º do CCiv., o concurso da imputação do acidente ao lesado com o risco próprio do veículo, desde que: (i) o risco especial de circulação seja um risco agravado de funcionamento deficiente e/ou imprevidente da máquina ou das especificidades de perigo da circulação em concreto, que justifique e torne plausível, numa lógica equilibrada e racional do regime legal para tutela do lesado, especialmente quanto este apenas evidencia uma negligência de reduzida censurabilidade (culpa leve ou levíssima) e de diminuta relevância causal para a produção ou agravamento dos danos sofridos pelo próprio, uma comparticipação da parte lesante que responde independentemente de culpa; (ii) haja uma contribuição desse risco do veículo para a ocorrência do sinistro gerador dos danos, mobilizando-se um juízo de adequação e proporcionalidade atendendo à intensidade desses riscos próprios da circulação do veículo e à sua concreta relevância causal para o acidente”.
Significa isso, portanto, que, mesmo à luz da interpretação do art.º 505.º do CC que é invocada pela Apelante e defendida pela doutrina e jurisprudência acima referidas, a concorrência da culpa (facto imputável ao lesado) com o risco pressupõe sempre que o risco próprio e inerente à circulação do veículo não seja eliminado enquanto causa concorrente para a produção do dano, seja porque, em termos objectivos, é isso que resulta das concretas circunstâncias do caso, seja porque o facto imputável ao lesado que deu causa ao acidente não tem relevância bastante para eliminar o risco próprio do veículo enquanto causa concorrente para a produção do acidente e do dano, por estar em causa um facto praticado com culpa leve (mero descuido ou distracção) com escassa relevância causal para o acidente que torna plausível a efectiva comparticipação do risco próprio do veículo no processo causal que deu origem ao acidente.
À luz do exposto, é evidente que, mesmo com essa interpretação da citada disposição legal, a responsabilidade pelo risco sempre se consideraria excluída no caso que estamos a analisar.
Em primeiro lugar porque, como resulta da exposição acima efectuada, o acidente ocorreu por culpa exclusiva da Autora, sem que se possa considerar que está em causa uma culpa leve, uma vez que violou, de modo expresso e frontal, os comandos legais que lhe impunham o uso das passadeiras (que efectivamente existiam no local) para fazer a travessia da via, optando por fazer a travessia fora desses locais, sem que tivesse adoptado os cuidados necessários no sentido de se certificar e de garantir que o podia fazer em segurança (não está em causa, portanto, um mero descuido ou desatenção desculpável, mas sim uma conduta – deliberada – que envolvia um risco relevante e que, de algum modo, foi assumido pela Autora quando atravessou a via naquelas circunstâncias). E, segundo a doutrina e jurisprudência acima referidas, a existência de culpa grave e exclusiva do lesado importa a exclusão da responsabilidade pelo risco nos termos do citado art.º 505.º, ainda que interpretado nos termos referidos.
Além do mais, pensamos ser de concluir que, no caso em análise e tendo as conta as concretas circunstâncias do caso, não existiu efectivamente qualquer contribuição relevante do risco próprio do veículo no processo causal que deu origem ao dano.
Com efeito, ainda que se aceite que a mera circulação dos veículos representa, só por si e por força sua energia cinética, um risco que potencia a verificação de acidentes e consequentes danos, a verdade é que, no caso, esse risco não foi relevante para a produção do dano. Veja-se que, dadas as circunstâncias em que ocorreu o acidente, o embate do veículo na Autora ter-se-ia dado do seu lado direito; apesar disso, não há notícia de que a Autora tenha sofrido qualquer lesão nesse lado do corpo, tudo indicando, portanto, que o veículo parou de imediato e que o seu embate na Autora foi muito ligeiro. Na verdade, as lesões sofridas pela Autora localizaram-se do lado contrário (no pé esquerdo), tudo indicando, portanto, que elas resultaram da queda e não propriamente de qualquer força ou energia cinética exercida pelo veículo no seu corpo. A energia exercida pelo veículo terá sido, portanto, de escassa relevância ou mesmo nula; a Autora caiu na sequência do embate (que, conforme referimos, terá sido muito ligeiro), nos mesmos termos em que poderia ter caído por eventual desequilíbrio e sem intervenção de qualquer veículo, sem que aí se detecte qualquer intervenção relevante do risco inerente à circulação do veículo.
Entendemos, portanto, em face do exposto, que não há razões para concluir pela existência de qualquer responsabilidade pelo risco. O acidente ocorreu por culpa exclusiva da Autora, sem intervenção relevante do risco inerente à circulação do veículo, o que, no caso e nos termos do art.º 505.º do CC – ainda que à luz da interpretação que dele vem sendo feita pela doutrina e jurisprudência (nos termos acima referidos) –, exclui a responsabilidade pelo risco.
Assim, em face de tudo o exposto, improcede o recurso e confirma-se a sentença recorrida.
V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
Notifique.
Coimbra,
(Maria Catarina Gonçalves)
(Paulo Correia)
(Maria João Areias)
[1] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 3.ª edição revista e actualizada, págs. 489 e 490 e Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3.ª edição, págs. 561 a 566.
[2] Cfr. designadamente, Sinde Monteiro, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 142.º, n.º 3977, págs. 82-131; Calvão da Silva, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 134, pags. 114 a 118 e Maria da Graça Trigo, «Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade por acidente de viação», in Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, Volume II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, págs. 485 e segs., bem como os Acórdãos a que, de seguida, faremos referência.
[3] Proferido no processo n.º 07B1710, disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Ob. cit., pág. 565.
[5] Proferidos nos processos n.ºs 1272/04.7TBGDM.P1.S1; 974/19.8T8AVR.P1.S1; 5080/18.0T8MTS.P1.S1; 697/20.5T8PTM.E1.S1; 313/18.5T8GMR.G1.S1 e 2839/20.1T8AVR.P1.S2, respectivamente, disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[6] Ob. cit., pág. 125.
[7] Proferido no processo n.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[8] Posição também adoptada nos Acórdãos do STJ de 05/05/2022 e 12/10/2023, proferidos nos processos n.ºs 5080/18.0T8MTS.P1.S1 e 697/20.5T8PTM.E1.S1, respectivamente, disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[9] Proferido no processo n.º 521/16.3T8VFR.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.