I. Não tendo o assistente suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade no seu recurso, questão que apesar disso o tribunal analisou e teve em consideração, afastando-a no caso em apreço, da mesma forma que identificou a suscitada questão do “erro na apreciação da prova”, abstendo-se do seu conhecimento e decisão por impedimento legal decorrente da aplicação conjugada dos artigos 432º, , n.º 1, al. a), e 434º do CPP e 608º, n.º 3, do CPC, nenhuma omissão de pronúncia se verifica no acórdão, que, em consequência, também não padece da arguida nulidade, conclusão que o percurso argumentativo agora seguido pelo assistente também não contraria, por ser manifesto não poder retrotrair-se ao momento da prolação daquele, o único que releva para aferição da sua correção ou viciação.
II. Interpretação aplicativa que também não enferma de qualquer vício gerador da respetiva inconstitucionalidade, nomeadamente por violação dos princípios e parâmetros constitucionais consagrados nos artigos 13º, 20ºe 32º da CRP, como, aliás, se reconhece e afirma expressamente no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 153ª/2012, de 22.03.2012, convocado pelo assistente em abono da sua posição.
III. Efetivamente, como nele se afirma, o artigo 20º da CRP não consagra um direito absoluto a um duplo grau de jurisdição e, portanto, o direito ao recurso, e o seu artigo 32º, n.ºs 1 e 7, apesar do crescente relevo conferido ao direito de participação da vítima/ofendido/assistente no processo penal, não equiparam os estatutos processuais destes ao do arguido, a quem primordialmente se destinam as amplas garantias de defesa nele consagradas, à semelhança, de resto, dos instrumentos de direito internacional a que Portugal se encontra vinculado, nenhuma igualdade, por conseguinte, ocorrendo entre tais estatutos , que são materialmente distintos e justificativos de um tratamento diferenciado, positivamente discriminatório do arguido, em conformidade com a melhor interpretação do princípio da igualdade estabelecido no artigo 13º.
I. 1. O assistente, AA, inconformado com o acórdão deste Tribunal, de 9.05.2024, que negou provimento ao recurso que havia interposto do Despacho de não pronúncia, de 14.11.2023, proferido pela Juíza Desembargadora do Tribunal da Relação de Lisboa, com funções de juíza de instrução neste processo, veio, por requerimento de 22.05.2024 (referência 207099), nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al, c), do Código de Processo Penal (CPP), arguir a respetiva nulidade, por omissão de pronúncia, com os seguintes fundamentos (transcrição sem notas de rodapé):
«(…) 1. Como vertido no acórdão acima mencionado, o recorrente suscitou a reapreciação da prova produzida, traduzindo efetivamente uma impugnação da matéria de facto indiciada e não indiciada, vertida no despacho de não pronúncia, tal-qual consagrada no artigo 412.º, n.ºs 1 a 4 e 6, do Código de Processo Penal.
2. Sustenta o Colendo Supremo Tribunal de Justiça que: “(…) sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios e nulidades previstos no artigo 410º, n.ºs 2 e 3, à luz da aplicação conjugada dos artigos 434º e 432º, n.º 1, al. a), do mesmo diploma legal (…) o STJ, enquanto tribunal de revista, apenas conhece de direito, sem prejuízo do conhecimento oficioso daqueles vícios e nulidades, nos recursos interpostos das decisões do tribunal da relação proferidos em 1ª instância, como é o caso em análise.”
3. Determinando este entendimento que: “(…) não cabendo nos poderes de cognição deste Tribunal a pretendida sindicância da decisão recorrida quanto aos factos indiciados e não indiciados, a sua atividade está limitada à apreciação da questão jurídica da suficiência ou insuficiência indiciária, nos termos e para os efeitos previstos nas disposições conjugadas dos artigos 308º, n.ºs 2 e 3, e 283º, n.º 2, do CPP.” e, consequentemente, não se pronunciou quanto a esta matéria.
4. É neste tocante que o assistente entende que o Acórdão proferido pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça se encontra eivado da nulidade por omissão de pronúncia quanto a tal matéria, nos termos do disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 379.º, do Código de Processo Penal.
Senão vejamos:
5. A decisão do Colendo Tribunal de Justiça sustenta-se na atual redação introduzida aos artigos 432.º, n.º 1, alínea a) e 434.º, ambos do Código de Processo Penal, sendo que o assistente, desde já, suscita expressamente a questão da inconstitucionalidade daquele, de modo que julga processualmente adequado perante Vossas Excelências, determinando que a apreciem, julguem e a declarem 1.
6. Dispõe o artigo 432.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro 2, que:
“1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;”
7. introduzindo a segunda parte à alínea a), antes inexistente, o que, na prática, subtrai funções recursivas ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça,
8. e introduz uma redação, por certo, materialmente inconstitucional,
1 Para efeitos do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b) e 72.º, n.º 2, ambos da Lei do Tribunal Constitucional.
2 Lei que (curiosamente) aprova medidas previstas na Estratégia Nacional Anticorrupção, alterando o Código Penal, o Código de Processo Penal e leis conexas – como se a (ir)recorribilidade das decisões judiciais por ela introduzida tivesse uma virtualidade anticorrupção.
9. que ainda não foi objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional (apesar da já extensa apreciação da constitucionalidade da redação do preceito legal, porém, a respeito de outras alíneas).
10. Na prática, o legislador, que quis aprovar medidas previstas na Estratégia Nacional Anticorrupção, “aproveitou” para alterar o Código Penal, o Código de Processo Penal e leis conexas, e, sem distinguir qualquer sujeito processual penal, limita o conhecimento da matéria de facto a um único grau jurisdicional,
11. subtraindo textualmente e de acordo com as mais sabedoras normas de interpretação legal – cfr. artigo 9ª, do Código Civil – a possibilidade de recorrer-se, em matéria de facto, das decisões dos Venerandos Tribunais da Relação proferidas em primeira instância.
12. Em suma, a norma em questão, numa interpretação que observe um mínimo de correspondência verbal com o texto da norma (omissa a respeito de quem seja o recorrente processual), é materialmente inconstitucional, desde logo, à luz do n.º 1, do artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa.
13. Exemplifiquemos: um juiz de direito – a quem a lei reconhece “foro próprio” (cfr. artigo 12.º, n.º 3, alínea a) e n.º 6, do Código de Processo Penal, artigos 67.º, n.ºs 1 e 3, 73.º, alíneas c), g) e h), todos da Lei da Organização do Sistema Judiciário e artigo 19.º, do Estatuto dos Magistrados Judiciais) – condenado em primeira instância nesse mesmo “foro próprio” – Venerando Tribunal da Relação – à luz da redação (texto) introduzida, não vê ser-lhe reconhecido o direito constitucional de recurso quanto à matéria de facto, consagrado no referido artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e noutras fontes de direito de natureza internacional,
14. porém, um qualquer outro cidadão, na aceção do artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, em igualdade de circunstâncias – as de arguido – teria o direito constitucional e legalmente consagrado ao recurso, em matéria de facto, em segunda instância.
15. O singelo facto de admitir que a interpretação do citado artigo 432.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal tem de ser realizada à luz de tais normas constitucionais é uma prova clara e redundante da “infelicidade” (anunciada e desconsiderada) e inconstitucionalidade do preceito legal na redação introduzida, num contexto de aprovação de medidas previstas na Estratégia Nacional Anticorrupção.
16. Não se sustente que o assistente atua apenas para acirrar os órgãos de soberania, teimando reiteradamente numa decisão que lhe é consecutivamente negada.
17. Outros já pensaram profundamente sobre o assunto, tais como:
- o Colendo Juiz Conselheiro, Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Dr. Nuno A. Gonçalves, em texto publicado na Revista do Supremo Tribunal de Justiça, sob o título: “Alterações ao regime do Recurso Ordinário” escreveu:
«2.2 Com o aditamento à alínea a) do n.º 1 do artigo 432.º, com a redação seguinte: “visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”, deu-se forma de lei a uma intolerável restrição do direito ao recurso em matéria de facto e da decisão de culpabilidade, consagrado no artigo 32.º n.º 1 da Constituição da República, também no artigo 14.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e, em certa medida, ao direito a um duplo grau de jurisdição em matéria de facto consagrado no artigo 2.º do Protocolo 7 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
É evidente que esta restrição legal ao recurso em matéria de facto não pode aplicar-se por ostensiva inconstitucionalidade material como alertava o parecer que o Conselho Superior da Magistratura emitiu – e que foi ignorado relativamente ao referido Projeto de Lei. Ao invés daquela restrição legal, tem de aplicar-se, pela sua maior hierarquia e aplicabilidade direta, a norma do artigo 32.º n.º 1 da Constituição da República e, ao nível do direito infraconstitucional, aplicar-se a norma do artigo 399.º.
As decisões da Relação proferidas em 1.ª instância têm de admitir recurso para o Supremo Tribunal de Justiça visando a impugnação do julgamento da matéria de facto e não, como foi aditado pela Lei n.º 94/2021, exclusivamente em matéria de direito e com fundamento na invocação dos erros-vícios ou de nulidades não sanadas da decisão recorrida. É esta a única interpretação conforme com o direito fundamental ao recurso conferido pela Lei Fundamental e reconhecido pelos referidos instrumentos convencionais, universal e europeu.
Aliás, aquele aditamento veio introduzir desconformidade da norma em apreço com o disposto nos artigos 53.º alínea b) da Lei de Organização do Setor Judiciário (LOSJ) e 11.º n.º 3 alínea b) do Código de Processo Penal, ambas com o mesmo texto, que atribuem competência ao pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça para julgar os recursos em matéria penal de decisões proferidas em primeira instância pelas suas próprias secções, sem que exista restrição idêntica à aditada agora à referida alínea a) do n.º 1 do art.º 432.º.
Não se compreenderia nem pode aceitar-se que somente não admitissem recurso em matéria de facto as decisões da Relação proferidas em 1.ª instância.” – cfr. pp. 13 e 14.
- e o Conselho Superior da Magistratura: “A redação que se visa introduzir na alínea a) do n.º 1, ao vedar a possibilidade de impugnação da matéria de facto para o STJ de decisões das relações proferidas em 1.ª instância, sem que tenha existido um segundo grau de jurisdição, comporta uma redução intolerável do direito ao recurso, sendo manifestamente inconstitucional.
(…)
O princípio do duplo grau de jurisdição é assegurado através da possibilidade de sujeitos processuais fazerem reapreciar, em via de recurso, pela 2.ª instância, a precedente decisão, proferida sobre a matéria do processo.
Ora, tal não é assegurado com a presente iniciativa legislativa no que se refere às decisões das relações proferidas em 1.ª instância.
Mal se compreende, aliás, que, ao mesmo tempo que se propõe o alargamento do recurso para o STJ para os casos previstos para as alíneas c) e e) do art.º 400.º, em que os acórdãos resultam da reapreciação do caso por um tribunal superior de grau distinto (o Tribunal da Relação), consubstanciando, como tem sido entendido por abundante jurisprudência, o acórdão proferido em 2.ª instância a garantia do duplo grau de jurisdição37, se pretenda excluir, no que tange à impugnação da matéria de facto, para situações previstas no art.º 12.º, n.º 3, alíneas a), c) e d), a possibilidade de recurso para esse Tribunal, suprimindo, assim, um segundo grau de jurisdição.
Vale por dizer que a norma que se visa introduzir, tal como está construída, ao impedir a possibilidade de reapreciação da matéria de facto por um tribunal hierarquicamente superior, não garante o duplo grau de jurisdição, violando claramente o direito ao recurso, ínsito no princípio das garantias de defesa, afrontando ainda o princípio constitucional da igualdade” ”cfr. https://www.csm.org.pt/wp-content/uploads/2023/02/Parecer-Projeto-de-Lei-n.o-876-XIV-2.a-PSD.pdf
18. Pugna o assistente que o Colendo Supremo Tribunal de Justiça tem, não apenas, o poder, mas também, o dever legal e constitucional de conhecer tal matéria de facto,
19. e que, ao fazê-lo, funciona, como lhe compete ao abrigo do disposto conjugadamente nos artigos 42.º, n.º 3, 46.º, 47.º, n.º 1, 54.º, n.º 1, 55.º, alínea a), todos da Lei da Organização do Sistema Judiciário, sem a distorção acima transcrita/enunciada ao artigo 53.º, alínea b), da mesma lei,
20. ou seja, funciona ao abrigo de competência “(…) definida na respetiva lei de processo”, também em matéria de facto e não apenas em matéria de direito, em secções criminais em “matéria penal”, julgando dos recursos “que não sejam da competência do pleno das secções especializadas”.
21. O recurso interposto pelo assistente é, aliás como reconhecido por todos, admissível por lei processual, ao abrigo do disposto nos artigos 399.º e 400.º a contrario, ambos do Código de Processo Penal, porquanto o despacho de não pronúncia, quando a instrução é requerida pelo assistente, é recorrível, nos termos do disposto no artigo 310.º, do Código de Processo Penal.
22. Tendo funcionado o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa como tribunal de 1ª instância, em virtude do “foro próprio” reconhecido à senhora arguida, nos termos conjugados dos preceitos citados em 13.
23. Feito este enquadramento, o Colendo Supremo Tribunal de Justiça, in casu, funciona(rá) como instância de recurso da uma decisão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, em primeira instância,
24. e, efetivamente, a impugnação ampla da matéria de facto indiciada e não indiciada no despacho de não pronúncia, tal qual prevista no artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, compete exclusivamente e nos termos legais acima enunciados e integra os poderes de cognição do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, enquanto segunda instância e não tribunal de revista,
25. tudo sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios e nulidades previstos no artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal,
26. apelando precisamente aos poderes que o legislador atribui aos Venerandos Tribunais da Relação, nos termos do disposto nos artigos 428.º e 431.º, ambos do Código de Processo Penal, ou seja, impondo que o Colendo Supremo Tribunal de Justiça, funcione plenamente em segunda instância, tal qual Relação se tratasse (“As relações conhecem de facto e de direito”), modificando a matéria de facto indiciada e não indiciada em primeira instância (pelo Venerando Tribunal da Relação).
27. Nenhum sentido faria, em sede de recurso em segunda instância, reconhecer mais poderes rescisórios e cognitivos aos Venerandos Tribunais da Relação (enquanto segunda instância) do que os reconhecidos ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça (igualmente enquanto segunda instância).
28. Equivaleria a afirmar e reconhecer que em igualdade de circunstâncias – recurso – os Venerandos Tribunais da Relação teriam poderes cognitivos superiores aos do Colendo Supremo Tribunal da Justiça e os Venerandos Juízes Desembargadores teriam poderes insindicáveis em primeira instância (em matéria de facto), que a Lei da Organização do Sistema Judiciário não reconhece às secções do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do seu artigo 53.º, alínea b).
29. A conformidade constitucional desta interpretação e consequente ação não poderá, contudo, limitar-se às situações em que funcionam as garantias de defesa dos arguidos consagradas no artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa, como sustentado no Acórdão proferido por Vossas Excelências,
30. sob pena de uma violação clara do Princípio da Paridade ou Igualdade de Armas, com consagração no artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa e adiantado no parecer emitido pelo Conselho Superior da Magistratura.
31. Tem sido julgado de forma pacífica a consagração no processo penal do referido Princípio da Paridade ou Igualdade de Armas, segundo o qual o Ministério Público, o assistente e o arguido “(…) se encontrem em paridade de condições, que tenham diretos processuais idênticos e estejam sujeitos também a deveres, ónus e cominações idênticas, sempre que a sua posição no processo seja equiparável. A igualdade estaria afectada apenas se o modelo de recursos oferecesse alguma vantagem processual a uma das «partes” em relação à outra, fosse sobre os pressupostos processuais de admissibilidade e de recorribilidade das decisões, as condições de apresentação ou na previsão de legitimidade ou interessem em agir” – cfr. Acórdão do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo n.º 251/15.3GDCTX.L2.S1, datado de 07 de março de 2018, disponível em www.dgsi.pt.
32. As normas acima referenciadas consagram iguais direitos de recorribilidade quer ao Ministério Público, quer ao assistente, quer à senhora arguida, nenhuma delas faz qualquer ressalva, nomeadamente ao facto de apenas ser recorrível a decisão em matéria de facto quando o recorrente seja o arguido, não competindo ao intérprete e julgador realizar uma interpretação sem que haja um mínimo de correspondência verbal com a letra da lei. Assuma-se, reconheça-se que a alteração legislativa tal qual expressa é contrária à Constituição da República Portuguesa – artigos 32.º, 20.º e 13.º.
33. A este propósito já se pronunciou o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 153/2012, não permitindo que, por violação do Princípio da Igualdade, consagrado no artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa, fosse admitido um recurso que ao outro sujeito processo estivesse vedado,
34. o que equivale afirmar que, mutatis mutandis, à luz do mesmo princípio, não pode ser vedado a um sujeito processual – assistente – o que ao outro sujeito processual – arguido – é admitido.
35. Admitindo-se que o acesso ao direito e a tutela jurisdicional efetiva, consagrada no artigo 20.º, da Constituição da República Portuguesa, não consagra automaticamente um segundo grau de jurisdição relativamente a todas as decisões judiciais e que o artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa está “vocacionado” para a tutela das garantias de defesa em processo penal,
36. a inadmissibilidade de conhecimento do recurso (em matéria de facto), num segundo grau de jurisdição, enquanto direito processual do assistente, quando a Lei da Organização do Sistema Judiciário e o Código de Processo Penal o reconhecem, e a admissibilidade de conhecimento do recurso (em matéria de facto), num segundo grau de jurisdição, apenas ao arguido, constitui uma interpretação inconstitucional do disposto nos termos conjugados dos artigos 399.º, 400.º a contrario, 412.º, n.ºs 1 a 4 e 6, 432.º, n.º 1, alínea a) e 434.º, do Código de Processo Penal, por violação do disposto no artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa,
37. e igual inconstitucionalidade interpretativa ocorreria em virtude da norma que reconhece “foro próprio” à senhora arguida, porquanto a mesma é magistrada judicial.
Senão vejamos:
38. O reconhecimento do “foro próprio” à arguida não pode constituir uma redução da segurança jurídica que um recurso sobre matéria de facto reconhece ao assistente. Correr-se-ia o risco de constituir uma “isenção antecipada” de responsabilização processual penal, que resultaria de um único grau de jurisdição em matéria de facto, e, portanto, violador do Princípio da Igualdade, consagrado no artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa,
39. já que ao assistente não restam dúvidas que acaso o arguido não tivesse o direito ao “foro próprio”, o direito de recurso a uma segunda instância lhe estava assegurado, uma vez que a segunda instância seria um Venerando Tribunal da Relação, que conheceria em matéria de facto e direito, nos termos consagrados no artigo 428.º, do Código de Processo Penal, que deverão aplicar-se mutatis mutandis ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça.
40. Por outras palavras: o Colendo Supremo Tribunal de Justiça intervém nestes autos como tribunal de segunda instância, ou seja, revestido dos poderes de cognição previstos no artigo 428.º, do Código de Processo Penal e não como um tribunal de “revista”.
41. Ninguém questiona que o “foro próprio” consagrado por via do disposto no artigo 19.º, do Estatuto dos Magistrados Judiciais não pode constituir uma derrogação ao Princípio da Igualdade, consagrado no artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa, resultando num privilégio, num benefício que o seu titular teria de ser sujeito apenas a um único grau de jurisdição penal em matéria de facto,
42. conquanto negado o direito de recurso em matéria de facto a quem fosse seu ofendido, após uma decisão de primeira instância final ou definitiva,
43. quando, em igualdade de circunstâncias, um arguido sem “foro próprio” seria sujeito à apreciação recursiva da matéria de facto, perante o Venerando Tribunal da Relação.
44. Bastaria pensar numa situação em que a ação penal decorre de uma comparticipação – coautoria – em que os arguidos são: um juiz de direito e um qualquer outro cidadão sem direito a “foro próprio” – o assistente apenas poderia recorrer em matéria de facto em relação ao segundo, em idênticas circunstâncias processuais, o que não se questiona redundar numa claríssima violação do Princípio da Igualdade.
45. In casu, o Colendo Supremo Tribunal de Justiça ao reduzir os poderes de cognição apenas e somente à matéria de direito (e sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal), recusando conhecer, em segunda instância, o recurso em matéria de facto, e aplicando o disposto no artigo 432.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma legal, porquanto o julgando constitucional, viola o Princípio da Igualdade, consagrado no artigo 13.º, da Constituição da República Portuguesa, limitando tal direito de recurso apenas ao assistente (porquanto o reconheceria à senhora arguida), omitindo o dever de pronunciar-se a tal respeito e, por isso, incorrendo em nulidade, a prevista na alínea c), do n.º 1, do artigo 379.º, do Código de Processo Penal,
46. sendo que a interpretação legal que faz, designadamente, nos termos conjugados dos artigos 399.º, 400.º a contrario, 412.º, n.º 1 a 4 e 6, 432.º, n.º 1, alínea a) e 434.º, do Código de Processo Penal, e que resulta também do disposto no artigo 19.º, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, padece igualmente de inconstitucionalidade, por violação do mesmo Princípio da Igualdade, privilegiando e beneficiando a senhora arguida na estrita medida em que lhe é reconhecido o direito a “foro próprio”, e facultando ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa o direito de decidir de forma final ou definitiva, em matéria de facto penal e em primeira instância.
47. Por todo o exposto, arguiu-se a nulidade consagrada no artigo 379, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, por omissão do dever de pronúncia quanto à questão intitulada “Erro na apreciação da prova [conclusões L a AH]”, por via da aplicação do disposto no artigo 432.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, na versão introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, norma esta que deve ser julgada materialmente inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 32.º, 20.º e 13.º, todos da Constituição da República Portuguesa.
48. Assim se conhecendo da questão e, consequentemente, julgando provido o recurso.(..)».
I. 2. Exercido o contraditório, apenas o Ministério Público emitiu fundamentada pronúncia no sentido da não verificação e consequente indeferimento da nulidade e inconstitucionalidades arguidas
***
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência da qual procede este acórdão.
II. Fundamentação
II. 1. Como resulta inequívoco do teor da reclamação acima transcrita, o assistente incorre numa manifesta inversão argumentativa, pois não questiona a identificação e pronúncia pelo acórdão recorrido sobre a questão do “erro na apreciação da prova” que suscitou no recurso por si interposto da decisão de não pronúncia proferido no Tribunal da Relação de Lisboa, que, desse modo, pretendia também impugnar amplamente em matéria de facto.
O que discute é a (des)conformidade constitucional da interpretação acolhida no acórdão das normas dos artigos 434ª e 432º, n.º 1, al. a), do CPP, de cuja aplicação conjugada nele se concluiu não caber nos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça a pretendida sindicância da decisão recorrida quanto aos factos indiciados e não indiciados, mas apenas apreciar a suficiência ou insuficiência dos considerados indiciados, nos termos e para os efeitos previstos nas disposições conjugadas dos artigos 308º, n.ºs 2 e 3, e 283º, n.º 2, do mesmo CPP.
Ou seja, discute a fundamentação do acórdão e a (des)conformidade constitucional do sentido interpretativo e aplicativo nele acolhido do referido complexo normativo, por violação dos artigos 13º, 20º e 32º da CRP, mas revela-se incapaz de demonstrar que o mesmo omitiu o conhecimento de qualquer questão que lhe tivesse sido colocada ou fosse do conhecimento oficioso do Tribunal.
Demonstração que, na verdade, no caso em apreço se afigura impossível, na medida em que o acórdão identificou a questão e se absteve do respetivo conhecimento por impedimento legal, na interpretação que sufragou daquele complexo normativo.
Ora, como se assinala na promoção/resposta do Ministério Público à arguição da nulidade pelo assistente, o vício de omissão de pronúncia da decisão previsto no artigo 379º. n.º 1, al. c), do CPP e a nulidade dela decorrente, só se verificam quando “o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar – artigo 608º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º do CPP,”1.
Como se referiu, o acórdão identificou a questão suscitada pelo assistente relativa ao “erro na apreciação da prova”, que se traduzia numa verdadeira impugnação ampla da matéria de facto, de cujo conhecimento se absteve, por, in casu, extravasar os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, que, assim, e nos termos da aplicação conjugada das normas dos artigos 432º, , n.º 1, al. a), e 434º do CPP e 608º, n.º 3, do CPC, estava impedido de conhecer.
Tais normas e interpretação que delas se fez no acórdão eram do conhecimento do assistente e haviam já sido analisadas também sob o prisma da respetiva (des)conformidade constitucional pela doutrina e pela jurisprudência, como nele se deu conta, mas considerando que essa eventual desconformidade não abrangia a situação nele em apreço.
Por sua vez, o assistente nada aludiu no seu recurso quanto à questão da eventual (des)conformidade constitucional daquelas normas, suscitando-a apenas agora em sede de arguição de nulidade, porventura desperto pelo próprio acórdão, mas com maior amplitude e diferente enquadramento, alegação que não pode considerar-se para aferir se o tribunal conheceu ou não das questões que lhe incumbia conhecer, aferição que só releva por referência ao momento da respetiva prolação.
Portanto, não tendo o assistente suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade no seu recurso, questão que apesar disso o tribunal analisou e teve em consideração, afastando-a no caso em apreço, da mesma forma que identificou a suscitada questão do “erro na apreciação da prova”, abstendo-se do seu conhecimento e decisão por impedimento legal decorrente do referido complexo normativo, nenhuma omissão de pronúncia se verifica no acórdão, que, em consequência, também não padece da arguida nulidade, conclusão que o percurso argumentativo agora seguido pelo assistente também não contraria, por ser manifesto não poder retrotrair-se ao momento da prolação daquele, o único que releva para aferição da sua correção ou viciação.
Ainda assim, diga-se, como no acórdão se afirmou, que ao contrário do que o assistente agora alega, a interpretação aplicativa nele acolhida dos artigos 432º, n.º 1, al. a), e 434º do CPP, não enferma de qualquer vício gerador da respetiva inconstitucionalidade, nomeadamente por violação dos princípios e parâmetros constitucionais consagrados nos artigos 13º, 20ºe 32º da CRP, como, aliás, se reconhece e afirma expressamente no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 153/2012, de 22.03.2012, proferido no processo n.º 18/11, relatado pela Conselheira Maria João Antunes, convocado pelo assistente em abono da sua posição2.
Efetivamente, como nele se afirma, o artigo 20º da CRP não consagra um direito absoluto a um duplo grau de jurisdição e, portanto, o direito ao recurso, e o seu artigo 32º, n.ºs 1 e 7, apesar do crescente relevo conferido ao direito de participação da vítima/ofendido/assistente no processo penal, não equiparam os estatutos processuais destes ao do arguido, a quem primordialmente se destinam as amplas garantias de defesa nele consagradas, à semelhança, de resto, dos instrumentos de direito internacional a que Portugal se encontra vinculado, nenhuma igualdade, por conseguinte, ocorrendo entre tais estatutos3, que são materialmente distintos e justificativos de um tratamento diferenciado, positivamente discriminatório do arguido, em conformidade com a melhor interpretação do princípio da igualdade estabelecido no artigo 13º, que igualmente legitima o potencial tratamento diferenciado em matéria de recursos entre arguidos e assistentes que intervenham em processo criminal que, por força do seu estatuto, decorra perante um tribunal superior, daqueles que, em circunstâncias normais, intervenham nos processos que decorram perante tribunais de primeira instância, que, tenha-se em mente, também se organiza, e intervêm sob estrutura singular e/ou coletiva em função da verificação ou não de determinadas circunstâncias, nomeadamente da complexidade e gravidade dos factos sob julgamento e das penas aplicáveis, segundo as regras que o legislador ordinário determinar dentro dos poderes mais ou menos discricionários de conformação que a Constituição lhe outorga neste domínio.
III. Decisão
Em face do exposto, acorda-se em:
a) indeferir a arguida nulidade, por omissão de pronúncia, e confirmar o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de maio de 2024;
b) condenar o requerente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (cfr. artigos 515º, n.º 1, al. b), e 524º do CPP e 1º, 2º, e 7º, do RCP, aprovado pelo DL n.º 34/2008, de 26.02, e Tabela II ao mesmo anexa).
Lisboa, d. s. certificada
(Processado pelo relator e revisto e assinado digitalmente pelos signatários)
João Rato (Relator)
Leonor Furtado (1ª Adjunta)
Jorge dos Reis Bravo (2º Adjunto)
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1. Conforme escreve Oliveira Mendes em anotação ao artigo 379º do CPP, no Código de Processo Penal Comentado, de António Henriques Gaspar [et al], 3ª Edição Revista, Almedina, 20212. Acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20120153.html.
3. O que também o CPP reflete, nomeadamente nos artigos 57º a 67º, 67º-A e 68º a 70º, respetivamente.