I - Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito.
II - Se o regime de permanência na habitação tem por finalidade limitar o mais possível os efeitos criminógenos do cumprimento de pena em estabelecimento prisional, evitando ou, pelo menos, atenuando os efeitos perniciosos de uma curta detenção de cumprimento continuado, relevando, essencialmente, as necessidades de prevenção especial positiva, que constituem, tradicionalmente, critério orientador da execução da pena de prisão, certo é que a prestação de trabalho a favor da comunidade promove a assimilação da censura do ato ilícito mediante a prestação de um trabalho socialmente positivo a favor da comunidade, assente na adesão do próprio arguido, apelando, simultaneamente, a um forte sentido de responsabilização social.
III – A prestação de trabalho a favor da comunidade, como pena de substituição, não tem caráter estritamente pessoal/negativo, sendo de cariz social positivo, em que o condenado assume um papel ativo e participativo e a sociedade participa no cumprimento da pena. No trabalho a favor da comunidade há uma obrigação de facere e o arguido, ao efetuá-lo, não deixa de sentir que o faz em estrito cumprimento de uma pena e por isso se entende que pode realizar as finalidades da punição.
IV - O facto de o tribunal recorrido afastar a suspensão da execução da pena não obsta a que se considere ser caso de aplicar a pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade: a pena de trabalho a favor da comunidade não tem a mesma natureza (salvo a de ser também ela uma pena de substituição), nem as mesmas exigências, nem obedece às mesmas práticas de reinserção social que a suspensão da execução da pena. Por isso, nada garante que não podendo as exigências de punição serem satisfeitas com a suspensão da execução da pena, não o possam ser com a prestação de trabalho a favor da comunidade.
1. No âmbito do processo sumário n.º 243/23.9GEALM, do Juízo Local Criminal de ... – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi proferida sentença, a 02.06.2023, que absolveu AA, com os sinais dos autos, da prática, em autoria material e na forma consumada, do crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01, de que fora acusado.
O Ministério Público interpôs recurso da sentença absolutória, que foi provido por acórdão da Relação de Lisboa, de 7.03.2024, que, revogando a sentença recorrida, condenou o arguido, “pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.ºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 03.01, na pena de 7 (sete) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, autorizando-se a sua ausência da habitação no âmbito das atividades formativas respeitantes à licença de aprendizagem para obtenção de carta de condução (art.º 43.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 3, do Código Penal, e Lei n.º 33/2010, de 02.09)”.
2. O arguido AA interpôs recurso do referido acórdão para este Supremo Tribunal, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
A) O recorrente AA, foi absolvido, em primeira instância, da prática do crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo artigo n.º 3 n.º 1 e 2.º do Decreto-Lei n.º2/98, de 03/01.
B) No seguimento do recurso interposto pelo Digno Magistrado do Ministério Público, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, revogou a sentença recorrida e condenou o arguido, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º n.º 1 e 2 do DL n.º 2/98, de 03/01, na pena de sete meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, autorizando-se a sua ausência da habitação no âmbito das actividades formativas respeitantes à licença de aprendizagem para obtenção de carta de condução.
C) O ora recorrente já foi detentor de carta de condução, tendo a mesma caducado a 14/06/2016, durante o regime probatório, pela prática de uma contraordenação.
D) Na data de prática dos factos era detentor de uma licença de aprendizagem válida.
E) Conforme resulta da matéria dada como provada, o arguido trabalha na área ..., vive com a sua companheira na ..., de quem tem uma filha de 3 anos de idade, sendo o recorrente o sustento da sua família.
F) Os Venerandos Juízes Desembargadores, solicitaram à DGRSP a elaboração de relatório com vista à aplicação de pena de prisão em regime de permanência na habitação, tendo sido junto aos autos com a referência ....14.
G)Tendo o referido relatório sido notificado ao arguido e no seguimento dessa notificação, o recorrente respondeu por requerimento com a refª ....54 e datado de 19 de fevereiro 2024, informando que realizou, com aprovação, a prova teórica a 01 de fevereiro de 2024, juntando comprovativo da licença de aprendizagem, tendo o exame prático marcado para o dia 14 de Março de 2024.
H) Nesta data, o recorrente já é detentor de carta de condução.
I) Encontra-se inserido familiar, económica e socialmente.
J) Pois vive com a sua companheira, a filha de ambos de 3 anos de idade e a avó materna da companheira, trabalhando na área piscatória, sendo o recorrente o sustento da sua família.
K) Assim, ponderando as circunstâncias agravantes e atenuantes que devem militar na determinação da medida da pena conforme o disposto no artigo 71.º do Código Penal, continuamos a defender, não obstante a culpa do recorrente e as exigências de prevenção geral e especial, que a pena considerada justa e adequada, é a substituição da pena de prisão de sete meses por trabalho a favor da comunidade, nos termos do disposto no artigo 58.º do Código Penal.
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E POR VIA DELE, SER A PENA DE 7 MESES DE PRISÃO SUBSTITUIDA POR TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE.
3. O Ministério Público, junto da Relação respondeu ao recurso e concluiu (transcrição):
1. O acórdão recorrido concedeu provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público da sentença absolutória da 1ª instância, e, em consequência, decidiu:
“a) Revogam a sentença recorrida;
b) Condenam o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artº 3.º, nºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 03.01, na pena de 7 (sete) meses de prisão, a cumprir em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, autorizando-se a sua ausência da habitação no âmbito das atividades formativas respeitantes à licença de aprendizagem para obtenção de carta de condução (artº 43.º, n.ºs 1, al. a), 2 e 3, do Código Penal, e Lei n.º 33/2010, de 02.09)”.
2. Discorda o recorrente da pena de 7 meses de prisão em que foi condenado, a cumprir no regime de permanência da habitação;
3. Acompanhando-se os fundamentos do acórdão recorrido, razões de prevenção geral e especial impedem a aplicação ao recorrente da pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade, prevista no art. 58.º, n.º 1, do C. Penal;
4. Nenhuma censura, pois, merece o acórdão recorrido, por se entender que a pena imposta se mostra correta e adequada, não padece de excesso, perante toda a factualidade criminosa provada e as superiores exigências de prevenção geral e especial inerentes a este tipo de criminalidade;
5. Sendo que na data da prolação do acórdão recorrido ainda não tinha completado as suas atividades formativas respeitantes à obtenção da carta de condução.
4. Neste Supremo Tribunal de Justiça (doravante STJ), o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de CPP), emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, devendo, em consequência, ser confirmado o acórdão recorrido.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer. Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido, constituindo entendimento constante e pacífico que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, a única questão que se suscita consiste em saber se deve ser aplicada a pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade.
2. Do acórdão recorrido
2.1. O tribunal considerou provados os seguintes factos (transcrição):
1. No dia ........2023, pelas 19h40, o arguido AA encontrava-se a conduzir o automóvel ligeiro de passageiros da marca “Citroen”, modelo “Berlingo”, com a matrícula ..-GN-.., na Rua ..., na localidade de ..., concelho de ....
2. Na data supra referida, o arguido não era titular de carta de condução válida.
3. O arguido sabia que não lhe era permitido conduzir o mencionado veículo numa rua onde a circulação de veículos é livre, sem para tanto estar habilitado com carta de condução válida, mas, não obstante, não se absteve de adoptar a referida conduta.
4. O arguido agiu de forma voluntária, deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida.
E ainda:
5. O arguido foi titular da carta de condução n.º FA-....29, emitida a 26.07.2013, para as categorias B e B1, com início a 17.06.2013.
6. Em consequência do cometimento, durante o regime probatório, de contraordenação, sancionada no âmbito do processo de contraordenação n.º .......02, a carta de condução n.º FA-....29 do arguido caducou na data de 14.06.2016.
7. O arguido não foi notificado para proceder a exame especial de condução.
8. O arguido é titular da licença de aprendizagem para a obtenção de carta de condução, emitida em 03.12.2021, válida até 22.10.2023, sendo o motivo da emissão “caducidade regime probatório”.
9. O arguido é marinheiro de longo curso de profissão.
10. Atualmente, está desempregado.
11. Presta, ocasionalmente, trabalhos na apanha do marisco, auferindo rendimentos, em média, à volta de € 800,00 a € 1.000,00.
12. Vive em casa de familiares.
13. A sua companheira está grávida.
14. Tem o 9.º ano de escolaridade.
15. Tem os seguintes antecedentes criminais averbados no seu certificado do registo criminal:
a. Por decisão transitada em julgado em 22.11.2012, no âmbito do processo n.º 523/11.6..., foi condenado pela prática, em 06.06.2011, de crime de condução sem habilitação legal, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, extinta por pagamento em 22.08.2016;
b. Por decisão transitada em julgado em 01.11.2016, no âmbito do processo n.º 2/16.5..., foi condenado pela prática, em 08.01.2016, de crime de consumo de estupefacientes, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, extinta por pagamento em 25.10.2016;
c. Por decisão transitada em julgado em 16.10.2019, no âmbito do processo n.º 810/15.4..., foi condenado pela prática, em 28.06.2015, de crime de burla simples e um crime de passagem de moeda falsa, na pena de 10 meses de prisão, substituída por 150 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, extinta por pagamento em 02.12.2019;
d. Por decisão transitada em julgado em 13.11.2020, no âmbito do processo n.º 110/20.8..., foi condenado pela prática, em 13.06.2020, de crime de condução sem habilitação legal, na pena de 6 meses de prisão, suspensa por um ano, extinta por cumprimento em 13.11.2011.
2.2. Na fundamentação de direito do acórdão recorrido, consta, na parte relativa à determinação da pena:
«Tendo presente a jurisprudência uniformizada do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2016 (publicado no DR, Série I-A, nº 36, de 22.02.2016), no sentido de que «em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, nº 3, alínea b), 368º, 369º, 371º, 379º, nº 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424º, nº 2, e 425º, nº 4, todos do Código de Processo Penal», efetuado o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido nos moldes em que acima vimos, caberá agora, neste acórdão, escolher e determinar a medida concreta da pena a aplicar, de acordo com o disposto nos artigos 70º e 71º do Código Penal, tendo presente que «as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Assim, a medida da pena há-de ser dada pela medida da tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, que se traduz na tutela das expectactivas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada» (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, p. 227) – cfr. ainda o disposto no artº 40º, nºs 1 e 2, do Código Penal.
Dispõe então o artº 71º, do Código Penal, sob a epígrafe «Determinação da medida da pena» o seguinte:
«1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.»
Toda a pena deve ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, como, desde logo, se depreende do art.º 13º Código Penal ao dispor que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
A culpa não constitui, assim, apenas o pressuposto e fundamento da validade da pena, mas traduz-se no seu limite máximo, o que significa não só que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide da medida da pena como seu limite máximo.
De facto, aqui ao referirmo-nos a culpa fazemo-lo atendendo à personalidade do agente revelada no facto (neste sentido vide Figueiredo Dias, ob cit., pág. 219). É, pois, correto afirmar que a culpa em sede de determinação da medida da pena se traduz numa atitude interna sempre atualizada no facto.
De acordo com a teoria da margem de liberdade, a pena concreta é fixada entre um limite mínimo já adequado à culpa e um limite máximo ainda adequado à culpa, devendo intervir os outros fins das penas, atualmente referidos de forma expressa no art.º 40º Código Penal (cfr. Claus Roxin Culpabilidade y Prevencion en Derecho Penal, tradução F. Munõz Conde, Bosch, 1981, pág. 94).
Por seu turno, a escolha do tipo de pena depende apenas de considerações de prevenção geral e especial, nada tendo a ver com a determinação da sua medida, a qual depende fundamentalmente da culpa do agente.
Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração podem e devem atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve evitar a quebra da inserção social do agente e servir para a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia de proteção dos bens jurídicos.
O ilícito deve ser assim valorado em função da gravidade do ataque ao objeto em particular, nomeadamente os danos ocasionados, a extensão e gravidade dos efeitos produzidos - o efeito externo -, sem esquecer o próprio desvalor do comportamento delituoso.
Em síntese, para a determinação concreta da pena, balizada pela moldura penal abstrata, importa apreciar três fatores: a culpa manifestada pelo arguido na prática do crime em causa, como limite máximo da pena concreta; as necessidades de prevenção geral, como limite mínimo necessário para tutelar o ordenamento jurídico, de modo a repor a confiança no efeito tutelar das normas violadas em relação aos valores e bens jurídicos que lhes subjazem; e as necessidades de prevenção especial manifestadas pelo arguido, que vão determinar, dentro daqueles limites, qual o quantum da pena necessário para o reintegrar socialmente, se for caso disso, e/ou ter sobre ele um efeito preventivo no cometimento de novos crimes.
Nessa conformidade, nos termos do nº 2, do artº 71º, do Código Penal, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (na medida em que já foram valoradas pelo legislador ao fixar os limites abstratos da moldura legal), funcionem como atenuantes ou agravantes, circunstâncias essas que estão elencadas exemplificativamente no nº 2 do referido preceito legal.
No caso dos autos, tendo o arguido agido com dolo direto e dado o elevado grau de perigosidade abstrato patenteado pelo facto de exercer a condução no concreto local descrito na factualidade dada como provada (zona urbana), entendemos que o grau de censurabilidade da sua conduta é relevante.
No que tange às necessidades de prevenção geral, é elevada a necessidade de reafirmação da norma violada – antecipatória da proteção de bens jurídicos relevantes, nomeadamente dos demais utentes das vias públicas e equiparadas -, atentos os seguintes fatores:
i) Os elevados índices de sinistralidade automóvel que se registam no nosso país ano após ano, com consequências pessoais e materiais devastadoras (segundo o relatório de Junho de 2022 da ANSR, entre janeiro e junho de 2022 registaram-se 15.457 acidentes com vítimas, das quais 210 vítimas mortais, 1.120 feridos graves e 18.006 feridos leves, havendo um aumento da sinistralidade em todos os indicadores em comparação com o período homólogo de 2021, mas numa altura em que a circulação rodoviária observou uma quebra significativa devido às restrições impostas pela pandemia do COVID-19, podendo-se concluir que o aumento da sinistralidade acompanhou de perto o aumento da circulação rodoviária. Para além disso, o número de detenções por crime rodoviário aumentou 37,1% no período considerado – cfr. o respetivo relatório no sítio www.ansr.pt);
ii) Esta tipologia de crime é de prática frequente no meio.
Por conseguinte, são elevadas as necessidades de prevenção geral positiva e negativa, isto é, as necessidades de defesa do ordenamento jurídico.
O arguido é de modesta condição socioeconómica (tem o 9º ano de escolaridade e regista instabilidade laboral), estando social e familiarmente inserido.
A sua carta de condução havia caducado a 14.06.2016 pela prática, durante o regime probatório, de contraordenação, tendo sido emitida entretanto uma licença de aprendizagem que estava válida à data dos factos.
A seu desfavor milita claramente o seu passado criminal:
- Por decisão transitada em julgado em 22.11.2012, no âmbito do processo n.º 523/11.6..., foi condenado pela prática, em 06.06.2011, de crime de condução sem habilitação legal, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, extinta por pagamento em 22.08.2016;
- Por decisão transitada em julgado em 01.11.2016, no âmbito do processo n.º 2/16.5..., foi condenado pela prática, em 08.01.2016, de crime de consumo de estupefacientes, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, extinta por pagamento em 25.10.2016;
- Por decisão transitada em julgado em 16.10.2019, no âmbito do processo n.º 810/15.4..., foi condenado pela prática, em 28.06.2015, de crime de burla simples e um crime de passagem de moeda falsa, na pena de 10 meses de prisão, substituída por 150 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, extinta por pagamento em 02.12.2019;
- Por decisão transitada em julgado em 13.11.2020, no âmbito do processo n.º 110/20.8..., foi condenado pela prática, em 13.06.2020, de crime de condução sem habilitação legal, na pena de 6 meses de prisão, suspensa por um ano, extinta por cumprimento em 13.11.2021.
Isto é, o arguido, não obstante já ter sido condenado duas vezes pela prática do mesmo crime, por decisões transitadas em julgado a 22.11.2012 e 13.11.2020, sendo que na última das quais foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução, voltou a praticar o mesmo crime, sinal de que as anteriores condenações não surtiram o desejado efeito dissuasor.
São assim muito elevadas as necessidades de prevenção especial.
Ademais, dispõe o artº 70º, do Código Penal, que «se ao crime foram aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição», as quais estão enunciadas no artº 40º, nº 1, do mesmo código.
Tendo presente sobretudo o que já se referiu a propósito das necessidades de prevenção especial – mas sem olvidar as relevantes necessidades de prevenção geral -, parece-nos claro que a opção pela pena de multa não se mostra de todo suficiente e adequada em ordem a salvaguardar as finalidades da punição tal como enunciadas no artº 40º, nº 1, do Código Penal.
Opta-se assim pela imposição da pena de prisão.
Nessa conformidade, variando a moldura penal abstrata entre 1 mês e 2 anos de prisão, entendemos que é adequada a condenação do arguido na pena de 7 (sete) meses de prisão.
*
Segundo M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, in Código Penal, Parte Geral e Especial, Almedina, 2014, págs. 298 a 300:
«1. A pena de prisão é aceite, como aliás decorre do Projecto, como pena principal para os casos mais graves, a que se recorrerá quando não se mostrarem adequadas as reacções penais não detentivas, devendo reduzir-se ao mínimo necessário, e havendo que harmonizar o mais possível a sua estrutura e regime com a recuperação dos delinquentes a que venha a ser aplicada.
Alude-se com frequência à necessidade da não dessocialização (“Vermeidung einer Entsozialisierung”), tendo em vista a vida futura dos condenados que não necessitam ou mesmo recusam as medidas de socialização (GERHARD SCHÄFER, 2001, p. 188). Quando a privação da liberdade for evitável, terá de se configurar a sua execução de tal forma que evite os possíveis efeitos dessocializadores (…).
2. As chamadas penas de substituição, isto é, as que o tribunal aplica em vez de uma pena principal – de prisão ou de multa – são tidas como mais favoráveis no capítulo da prevenção especial desde que não ponham em causa considerações preventivas gerais (de defesa do ordenamento jurídico).
3. As penas de substituição da pena de prisão de curta duração são uma consequência do princípio da humanidade das penas, no seio de uma politica criminal orientada para os princípios do Estado de Direito. “Optando nítida e preferencialmente por censuras criminais que não impliquem a privação da liberdade, o legislador foi ao ponto de impor a regra de que a pena de prisão aplicada deve, em certas circunstâncias, ser substituída por outra reação criminal menos gravosa”, SIMAS SANTOS/LEAL-HENRIQUES, 2011, p. 182.
Existe, aliás, “algum consenso quanto à inconveniência das penas curtas de prisão, inúteis para fins de reeducação (podendo, no entanto, em certas circunstâncias, ter interesse para os delinquentes que reajam bem a um efeito de choque, v.g., na delinquência económica e ecológica e nos estádios preliminares de consumo de droga), bem como das penas muito longas, que conduzem a estados de degenerescência psíquica e comportamental irreversível, JOSÉ ANTÓNIO VELOSO, 1999, P. 529; considerando-se um passo importante reagir contra elas, com a ressalva de razões imperiosas de prevenção geral, as ACTAS, 1995, P. 37 s.
(…)
4. No preâmbulo do DL 48/95, de 15-03, que aprovou o CP revisto, destaca-se, entre os propósitos da revisão, o de reorganizar o sistema global de penas para a pequena e média criminalidade com vista a permitir, por um lado, um adequado recurso às medidas alternativas às penas curtas de prisão, cujos efeitos criminógenos são pacificamente reconhecidos e, por outro, centrar esforços no combate à grande criminalidade. Afirma-se ainda que a pena de prisão, reação criminal por excelência, apenas deve lograr aplicação quando todas as restantes medidas se revelem inadequadas, face às necessidades de reprovação e prevenção. (…) O tribunal não é livre de aplicar ou deixar de aplicar a pena de substituição, pois não detém uma faculdade de substituir; antes, o que está consagrado na lei é um poder/dever ou um poder vinculado, tal como sucede com a suspensão da execução da pena, pelo que, uma vez verificados os respectivos pressupostos, o tribunal não pode deixar de aplicar a pena de substituição. (…)
Mais exatamente: o tribunal só poderá, fundadamente, ordenar a execução da prisão ou por razões preventivas, nomeadamente de socialização (estritamente ligadas à prevenção da reincidência: FIGUEIREDO DIAS, 1993, p. 363); ou na base em que a execução é imposta por exigências irrenunciáveis de tutela do ordenamento jurídico».
É o caso dos autos, razão pela qual se entende não ser adequada a imposição de pena de substituição não privativa da liberdade.
Senão vejamos.
i) Dispõe o artº 45º, nº 1, do Código Penal, que «A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, exceto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47º.»
Na imposição da pena de substituição a que alude o artº 45º do Código Penal, evitando-se a execução de uma pena curta de prisão, não superior a 1 ano (pressuposto formal), exige-se um juízo de prognose favorável à sua aplicação, isto é, à reinserção do agente na sociedade de molde a que não cometa mais crimes (pressuposto material).
Note-se que a imposição desta pena de substituição não é contraditória com a opção ab initio pela pena de prisão, ao abrigo do disposto no artº 70º do Código Penal, pois como muito nem assinalam M. Miguez Garcia e J. M. Castela Rio, ob cit, pág. 300, «o juiz, que em termos gerais deve dar preferência à pena não privativa da liberdade (art. 70º), pode ter, por considerações de adequação e suficiência das finalidades preventivas, que optar, em primeira linha, pela pena de prisão. Se esta não for, em concreto, fixada judicialmente em medida superior a um ano, pode, no momento seguinte, substituí-la por multa por multa nos termos do artº 43/1 (FIGUEREDO DIAS, 1993, p. 364). Parece paradoxal; deve no entanto entender-se que o art. 70º reage contra as penas de prisão independentemente da sua duração, enquanto o art. 43º visa reagir contra as penas de prisão não superiores a um ano, JORGE GONÇALVES, 2008, P. 5. Esta pena de multa passa a ser tratada como uma pena substitutiva de uma pena principal.»
Ora, no caso dos autos, cremos que não estão reunidos os pressupostos materiais conducentes à aplicação da pena de substituição em causa na medida que o arguido tem um relevante passado criminal pela mesma tipologia de crime, conforme acima enfatizamos, num contexto de relevantes necessidades de prevenção rodoviária, pelo que a reafirmação da norma violada e dos valores que lhe subjazem é premente.
Neste caso, verifica-se a necessidade da execução da pena de prisão, na medida que a sua execução é exigida pena necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes por banda do arguido.
ii) Por sua vez, dispõe o artº 58º, nº 1, do Código Penal, que «Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição», ou seja, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Centra-se o conteúdo punitivo na perda, para o condenado, de parte substancial dos seus tempos livres, sem por isso o privar da liberdade e permitindo-lhe a manutenção do contacto com o seu ambiente e integração social.
Evita-se desse modo o cumprimento de penas curtas de prisão e promove a assimilação a censura do ato ilícito mediante a construção de um trabalho socialmente positivo, a favor da comunidade, assente na adesão do próprio arguido.
Assim, tem como pressuposto formal a imposição de pena de prisão não superior a 2 anos e a aceitação pelo condenado, tendo como pressuposto material um juízo de prognose que terá de ser favorável (acautelando-se as exigências mínimas de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico).
Não é de todo o caso dos autos, em face das necessidades de prevenção geral e especial que se fazem sentir, por tudo quanto acima já se referiu e para o qual remetemos.
iii) Dispõe ainda o artigo 50º, n.º 1, do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro, que «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição», ou seja, conforme já referimos, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (cfr. artº 40º, nº 1, do Código Penal).
Este preceito consagra um poder-dever, ou seja, um poder vinculado do julgador, que terá de decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos, configurando a mesma uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico.
Para este efeito, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao momento da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a censura do facto e a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição.
No caso em apreço, verifica-se que o pressuposto formal estabelecido por aquela disposição se encontra preenchido, dado que a pena imposta não é superior a 5 anos de prisão (é de 7 meses).
Todavia, salvo melhor opinião, não nos parece que estejam preenchidos os inerentes pressupostos materiais.
Com efeito, não temos qualquer razão para fundadamente acreditar que, desta vez, o arguido interiorizou solenemente o desvalor da conduta criminal pelo qual é condenado e que, no futuro, irá pautar o seu comportamento de modo diverso, não exercendo, designadamente, a condução de veículo rodoviário sem estar legalmente habilitado para o efeito (no presente, o arguido ainda não está habilitado para o exercício da condução).
Na verdade, nada de especial milita a favor do arguido, pois o contexto de vida à data dos factos é aquele que grosso modo se mantém na atualidade e o seu passado criminal, sobretudo pela mesma tipologia de crime, não milita a seu favor.
Acresce que, conforme já vimos, são relevantes as necessidades de prevenção geral, na vertente de reafirmação da norma jurídica violada e da reafirmação dos valores que lhe subjazem.
Destarte, entendemos que a pena de prisão deverá ser efetiva.
iv) Aqui chegados, cabe saber se essa pena imposta deverá ser cumprida pelo arguido em regime de permanência na habitação.
Dispõe o artº 43º do Código Penal o seguinte:
«1. Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:
a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos;
b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80º a 82º;
c) A pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade ou de não pagamento da multa previsto no nº 2 do artigo 45º.
2. O regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas.
3. O tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para atividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado.
4. O tribunal pode subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, suscetíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social e destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, desde que representem obrigações cujo cumprimento seja razoavelmente de exigir, nomeadamente:
a) Frequentar certos programas ou atividades;
b) Cumprir determinadas obrigações;
c) Sujeitar-se a tratamento médico ou a cura em instituição adequada, obtido consentimento prévio do condenado;
d) Não exercer determinadas profissões;
e) Não contactar, receber ou alojar determinadas pessoas;
f) Não ter em seu poder objetos especialmente aptos à prática de crimes.
5. Não se aplica a liberdade condicional quando a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação.»
O regime de permanência na habitação é simultaneamente uma pena de substituição [porquanto pode ser imposta na sentença condenatória] e uma forma de execução da pena de prisão efetiva [porquanto pode ser aplicada na fase de execução da pena em consequência da revogação de pena não privativa da liberdade, nos termos da al. c), do nº 1 do artº 43º do Código Penal] , introduzida no Código Penal pela Lei nº 59/2007, de 04.09, tendo tido como fonte a Lei de Reforma do Código Italiano de 05.12.2005.
Tem como pressupostos formais, no que para o caso interessa, a imposição de pena não superior a 2 anos de prisão, o consentimento do condenado e o consentimento das pessoas maiores de 16 anos que coabitem com aquele (cfr. o artº 4º da Lei nº 33/2010, de 02.09).
Tem como pressuposto material a sua adequação às finalidades da execução da pena de prisão, cuja escolha é determinada exclusivamente por considerações de natureza preventiva especial, de forma a favorecer a reintegração social do condenado.
No caso dos autos todos os pressupostos formais suprarreferidos mostram-se preenchidos.
Por outro lado, salvo melhor opinião, parece-nos que os inerentes pressupostos materiais se mostram preenchidos na medida em que tal regime é adequado ao caso dos autos porquanto, se por um lado permite a reafirmação da norma violada e dos valores que lhe subjazem, por outro, o não cumprimento da pena no EP desta pena de curta duração não teria o efeito pernicioso e dessocializador que muitas vezes lhe está associado, permitindo-se assim ao arguido manter a sua inserção familiar e também continuar a frequência das aulas no âmbito da licença de aprendizagem que possui.
Nesta conformidade, ao abrigo do disposto no artº 43º, nºs 1, al. a), 2 e 3, do Código Penal, determina-se que o arguido cumpra a pena de prisão imposta em regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, a executar de acordo com o estatuído na Lei nº 33/2010, de 02.09., concedendo-se autorização para se ausentar da habitação em ordem a, se for caso disso, continuar a frequentar a formação no âmbito da licença de aprendizagem que possui. »
*
3. Apreciando
3.1. Dispõe o artigo 432.º, sob a epígrafe “Recurso para o Supremo Tribunal de Justiça”:
«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;
b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º;
d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.
2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º»
Por sua vez, estabelece o artigo 400.º, n.º1, al. e), não ser admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância.
In casu, o acórdão recorrido foi proferido, em recurso, pela Relação de Lisboa, determinando a condenação do arguido num caso em que a decisão da 1.ª instância tinha sido absolutória, inexistindo dúvidas, por conseguinte, quanto à recorribilidade para o STJ.
3.2. Não se questiona o enquadramento jurídico-penal dos factos pelos quais o arguido/recorrente foi condenado, visando o recurso, tão somente, a questão da pena, pugnando o recorrente pela aplicação da pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade – para a qual tinha prestado consentimento.
3.2.1. A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas se reconduzem à proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cf., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).
Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exato de pena.
Estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a medida concreta da pena, pela via da culpa e/ou pela da prevenção, dispondo o n.º3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjetiva no artigo 375.º, n.º1, do CPP, ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção atuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 227 e ss.).
Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º2, Abril-Junho de 2002, pp. 181 e 182), apresenta três proposições, em jeito de conclusões, da seguinte forma sintética:
«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»
De acordo com o referido artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, há que considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) –, e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes por via da prevenção geral, traduzida na necessidade de proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança da comunidade na norma violada, e de prevenção especial, que permitam fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro e assim avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e)], em que se inclui o passado criminal, e bem assim a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente, a que se referem as circunstâncias das alíneas e) e f), adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista das exigências de prevenção especial.
No caso concreto, a moldura abstrata aplicável à condução sem habilitação legal é de pena de 1 mês a 2 anos de prisão ou multa de 10 a 240 dias, não se verificando quaisquer circunstâncias modificativas que alterem tal moldura legal.
Nos termos do disposto no artigo 70.º do Código Penal, o tribunal, perante a previsão abstrata de uma pena compósita alternativa, deve dar preferência à multa sempre que formule um juízo positivo sobre a sua adequação e suficiência face às finalidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial de socialização, preterindo-a a favor da prisão na hipótese inversa. Neste momento do procedimento de determinação da pena, o único critério a atender é o da prevenção.
A Relação optou pela pena de prisão em detrimento da multa e fixou-a em 7 (sete) meses, opção que não é questionada no recurso, como também não é questionada a prisão concretamente determinada.
A escolha da pena principal de prisão em detrimento da multa (no quadro do artigo 70.º) não significa que desde logo se opte pela execução ou cumprimento da pena privativa da liberdade, pois entretanto haverá que ponderar a aplicação das penas de substituição depois de escolhida a pena de prisão e de concretamente determinado, nos termos do artigo 71.º, o seu quantum.
Quer isto dizer que nos crimes puníveis com penas compósitas alternativas de prisão ou multa, a opção, ao abrigo do disposto no artigo 70.º do Código Penal, pela fixação da pena concreta dentro da moldura da pena de prisão, não impõe a aplicação, a final, da pena de prisão efetiva, pois sempre incumbe ao tribunal ponderar a aplicação das penas de substituição que a lei consagra e que, face à medida da pena concretamente determinada, sejam suscetíveis de virem a ser aplicadas.
O acórdão recorrido afastou a aplicação de “pena de substituição não privativa da liberdade”, referindo, expressamente, a multa de substituição, a prestação de trabalho a favor da comunidade e a suspensão da execução da pena.
No que concerne ao regime de permanência na habitação, pelo qual optou o acórdão recorrido, há quem entenda que, com as alterações introduzidas pela Lei nº 94/2017, tal regime, agora previsto artigo 43.º do Código Penal, constitui não só uma pena de substituição em sentido impróprio, mas também, face à alínea c), do n.º1, do artigo 43.º, um incidente de execução da pena principal de prisão, admitindo-se agora expressamente que, revogada a pena não privativa da liberdade, a pena de prisão não superior a dois anos possa ser executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, se o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir [artigo 43.º, n.º 1, al. c), do Código Penal]. Para este entendimento, o regime de permanência na habitação tem natureza mista do ponto de vista dogmático: de pena de substituição em sentido amplo ou impróprio, por um lado: de incidente/modo de execução da pena de prisão, por outro.
Em contraponto, há quem afaste a natureza mista ou híbrida e sustente que o regime de permanência na habitação constitui medida (incidente) da execução da prisão efectiva, a decidir (e programar) pelo juiz da condenação.
Qualquer que seja a posição assumida sobre a natureza jurídica do regime de permanência na habitação, não há dúvida quanto à vinculação do juiz da condenação a tomar posição fundamentada sobre a sua aplicação, quando verificados os respetivos pressupostos, como fez o tribunal recorrido.
Questiona-se, porém, se a pena de 7 (sete) meses de prisão deveria ter sido substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, em lugar de ser determinado o seu cumprimento em regime de permanência na habitação.
O acórdão recorrido assinala as necessidades de prevenção geral e especial que se fazem sentir como razão para o afastamento da referida pena de substituição, referindo os elevados índices de sinistralidade automóvel que se registam no nosso país, a prática frequente no meio desta tipologia criminal e o passado criminal do arguido.
No que concerne a antecedentes, o arguido conta com duas condenações pela prática do mesmo crime, por decisões transitadas em julgado a 22.11.2012 e 13.11.2020, verificando-se que na última foi condenado em pena de prisão suspensa na sua execução.
Porém, importa reter que o arguido foi titular da carta de condução n.º FA-....29, emitida a 26.07.2013, para as categorias B e B1, com início a 17.06.2013, ou seja, entre a 1.ª e a 2.ª condenação, o arguido esteve legalmente habilitado a conduzir.
Reconhecendo-se, embora, as identificadas necessidades preventivas, e não tendo surtido efeito a suspensão da execução da anterior pena de prisão, entendemos que a prestação de trabalho a favor da comunidade será a forma mais adequada para o arguido interiorizar a condenação, pena que se apresenta como mais propícia para a sua ressocialização, tendo em vista que o arguido, que é marinheiro de longo curso, está atualmente, desempregado, prestando, ocasionalmente, trabalhos na apanha do marisco, auferindo rendimentos, em média, à volta de 800,00€ a € 1.000,00€.
Se o regime de permanência na habitação tem por finalidade limitar o mais possível os efeitos criminógenos do cumprimento de pena em estabelecimento prisional, evitando ou, pelo menos, atenuando os efeitos perniciosos de uma curta detenção de cumprimento continuado, relevando, essencialmente, as necessidades de prevenção especial positiva, que constituem, tradicionalmente, critério orientador da execução da pena de prisão, certo é que a prestação de trabalho a favor da comunidade promove a assimilação da censura do ato ilícito mediante a prestação de um trabalho socialmente positivo a favor da comunidade, assente na adesão do próprio arguido, apelando, simultaneamente, a um forte sentido de responsabilização social.
Razões por que é considerada a mais importante descoberta político-criminal dos últimos decénios no domínio sancionatório – cf. Maia Gonçalves, CPP Anotado, 18.ª ed. p. 237. Não tem caráter estritamente pessoal/negativo, é de cariz social positivo, em que o condenado assume um papel ativo e participativo e a sociedade participa no cumprimento da pena. No trabalho a favor da comunidade há uma obrigação de facere e o arguido, ao efetuá-lo, não deixa de sentir que o faz em estrito cumprimento de uma pena e por isso se entende que pode realizar as finalidades da punição.
O facto de o tribunal recorrido afastar a suspensão da execução da pena não obsta a que se considere ser caso de aplicar a pena de substituição de prestação de trabalho a favor da comunidade.
Assim entendeu o STJ, no acórdão de 21.06.2007, proferido no processo 07P2059 (2059/07 - 5.ª) - não se pode dizer que, se não estão reunidos os pressupostos para a suspensão da execução da pena, também não estão reunidos os pressupostos para a sua substituição nos termos do artigo 58.º do Código Penal. A pena de trabalho a favor da comunidade não tem a mesma natureza (salvo a de ser também ela uma pena de substituição), nem as mesmas exigências, nem obedece às mesmas práticas de reinserção social que a suspensão da execução da pena. Por isso, nada garante que não podendo as exigências de punição serem satisfeitas com a suspensão da execução da pena, não o possam ser com a prestação de trabalho a favor da comunidade.
No caso concreto, a permanência na habitação, ainda que afastando o arguido do meio prisional, não facilita a sua integração no mercado de trabalho, nem sequer a realização de trabalhos ocasionais que lhe permitam angariar rendimentos, para si e para os seus, sendo que, à data do acórdão recorrido, o arguido já havia realizado a prova teórica e tinha agendado o exame prático (que já terá realizado, obtendo a pretendida carta de condução, o que constitui matéria, porém, de que aqui não temos de cuidar).
Neste quadro, entendemos que a substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade, em lugar da execução daquela em regime de permanência na habitação, favorece a apreensão de valores sociais, sendo ajustada do ponto de vista das exigências de socialização do arguido, obrigando-o a interiorizar a relevância dos bens jurídicos violados pelo esforço positivo que o cumprimento da pena vai dele exigir.
Conclui-se, pois, que a prestação de trabalho a favor da comunidade ainda pode realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição e que não coloca em causa a proteção dos bens jurídicos referentes ao crime cometido.
Face ao exposto, e nos termos do artigo 58.º, n.º 3, do Código Penal, entendemos ser de substituir a pena de prisão aplicada ao arguido / recorrente por 210 horas de trabalho (cada dia de prisão por uma hora de trabalho).
Os serviços serão prestados à entidade que for designada pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais DGRS da área da residência do arguido, tendo em conta os locais referidos no artigo 58.º, n.º 2, do Código Penal.
O DGRS acordará, com a entidade selecionada e com o arguido, o período temporal em que o trabalho será prestado, tendo em conta o disposto no artigo 58.º, n.º 4 do Código Penal.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso interposto por AA, substituindo a pena de 7 (sete) meses de prisão que lhe foi imposta, por trabalho a favor da comunidade, por um período de 210 (duzentas e dez) horas, para o que deve o tribunal de 1.ª instância solicitar, oportunamente, o respetivo plano de execução.
Sem custas.
Supremo Tribunal de Justiça, 4 de julho de 2024
(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)
Jorge Gonçalves (Relator)
Albertina Pereira (1.ª Adjunta)
Leonor Furtado (2.ª Adjunta)