I - Um arguido inimputável, porque não é susceptível de um juízo de culpa, não pode cometer o tipo do crime de homicídio qualificado, porque este requer a prática do facto em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, exigindo, portanto, uma culpa qualificada.
II - Já a circunstância agravante prevista no nº 3 do art. 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, se refere à especial ilicitude do facto em razão do meio empregue para a sua prática, tendo por fundamento razões de prevenção geral, e opera pelo simples cometimento do crime com arma.
III - Correspondendo os factos praticados pelo arguido inimputável a uma pluralidade de crimes, e sendo o de moldura penal abstracta mais elevada o crime de homicídio na forma tentada, agravado, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 73º, 131º do C. Penal e 86º, nº 3 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, é o limite máximo de tal moldura que fixa, nos termos do disposto no nº 2 do art. 92.º do CP, a duração máxima da medida de segurança de internamento a aplicar.
Recorrente: AA.
Recorrido: Ministério Público.
I. RELATÓRIO
No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Central Criminal de ... – ... 2, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, do arguido AA, com os demais sinais nos autos, imputando-lhe a prática, em concurso efectivo, de três crimes de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, nºs 1 e 2, b), 23º, nº 1, 131º e 132º, nº 2, l), todos do C. Penal, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 2º, nº 1, av), 3º, nº 2, e), 4º, nº 1 e 86º, nº 1, d), todos da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, de três crimes de ameaça agravada, p. e p. arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, a) e c), com referência ao art. 132º, nº 2, l), todos do C. Penal, e de três crimes de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181º, nº 1 e 184º, com referência ao art. 132º, nº 2, l), todos do C. Penal.
A Digna Magistrada do Ministério Público, em representação do Estado Português, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido [Lei nº 9/2011, de 12 de Abril e arts. 71º, 74º , 76º, nº 3 e 77º, todos do C. Processo Penal], com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 4878,53, acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal e até integral pagamento, correspondente aos pagamentos que teve que efectuar ao ofendido BB em vencimentos e abonos, despesas médicas e substituição de equipamento de vestuário.
Os assistentes CC e DD requereram arbitramento de montante compensatório nos termos do disposto no art. 16º do Estatuto da Vítima [Lei nº 130/2015, de 4 de Setembro] e nos arts. 67º-A e 82º-A, ambos do C. Processo Penal.
O assistente BB deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 2782,84, para reparação de danos patrimoniais sofridos , e a quantia de € 10000, para compensação de danos não patrimoniais sofridos.
O Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, EPE, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, com vista à sua condenação no pagamento da quantia de € 196,89, acrescida de juros à taxa legal, desde a data da notificação do pedido e até integral pagamento, correspondente às despesas de assistência hospitalar prestadas ao ofendido BB.
Na audiência de julgamento foi comunicada uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, passando um dos crimes de homicídio qualificado tentado a ser punível como crime de ofensa à integridade física agravado, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1 do C. Penal e 2º, nº 1, m), 3º, nº 2, g) e ab) e 86º, nºs 1, d), 3 e 4, todos da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, passando os restantes crimes de homicídio tentado a crimes de homicídio agravado, p. e p. pelos arts. 22º, nºs 1 e 2, b), 23º, nº 1 e 131º do C. Penal e 2º, nº 1, m), 3º, nº 2, g) e ab) e 86º, nºs 1, d), 3 e 4, todos da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, e passando o crime de detenção de arma proibida a ser punível pelos arts. 2º, nº 1, m), 3º, nº 2, g) e ab), 4º, nº 1 e 86º, n.º 1, d), todos da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Por acórdão de 29 de Janeiro de 2024, foi decidido, além do mais:
- Absolver o arguido da prática de todos os crimes que lhe eram imputados na acusação;
- Julgar provada a prática pelo arguido, de actos objectivamente integradores de, dois crimes de homicídio agravado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, nºs 1 e 2, b), 23º, nº 1 e 131º, todos do C. Penal e 2º, nº 1, m), 3º, nº 2, g) e ab) e 86º, nºs 1, d), 3 e 4 da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, de um crime de ofensa à integridade física agravado, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1 do C. Penal e 2º, nº 1, m), 3º, nº 2, g) e ab) e 86º, nºs 1, d), 3 e 4 da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, de um de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 2º, nº 1, m), 3º, nº 2, g) e ab), 4º, nº 1 e artigo 86º, n.º 1, d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, de três crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, a) e c), com referência ao art. 132º, nº 2, l), todos do C. Penal, e de três crimes de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181º, nº 1 e artigo 184º, com referência ao art. 132º, nº 2, l), todos do C. Penal;
- Declarar o arguido AA inimputável perigoso, por força de anomalia psíquica, nos termos do art. 20º, nº 1, do C. Penal;
- Determinar, nos termos dos arts. 91º, nºs 1 e 2 e 92º, nº 2, ambos do C. Penal, o internamento e tratamento do arguido em estabelecimento adequado, com a duração mínima de três anos e a duração máxima de vinte e um anos e quatro meses;
- Declarar improcedentes os pedidos de indemnização civil deduzidos pelo Estado Português e pelos Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, EPE;
- Condenar o arguido no pagamento da quantia de € 7500 ao assistente BB, acrescida de juros de mora a contar da data da decisão, à taxa de 4% até integral pagamento, para compensação dos danos não patrimoniais sofridos.
I. O presente recurso tem como objecto a matéria de direito do acórdão proferido nos presentes autos, que julgou provado a prática de atos objetivamente integradores de: dois crimes de homicídio agravado, na forma tentada, previstos e puníveis pelos artigos 22º, nº 1 e nº 2 alínea b), 23º, nº 1 e 131º, todos do Código Penal e artigos 2º, nº 1 m), 3º, nº 2 g) e ab) e 86º, nºs 1 d), 3 e 4 da Lei n.º 5/2006 de 23/02; um crime de ofensa à integridade física agravado, previsto e punível pelos artigos 143º, nº 1 do Código Penal e artigos 2º, nº1 m), 3º, nº 2 g) e b) e 86º, nºs 1 d), 3 e 4 da Lei n.º 5/2006 de 23/02; de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelos artigos 2º, nº 1 m), 3º, nº 2 g) e ab),4º, nº 1 e artigo 86º, n.º 1, alínea d), todos da Lei das Armas e suas Munições, aprovada pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro; de três crimes de ameaça agravada, previstos e puníveis pelos artigos 153º, nº 1 e artigo 155º, nº 1, alínea a) e c) (ex vi artigo 132º, nº 2, alínea l) do Código Penal; e de três crimes de injúria agravada, previstos e puníveis pelos artigos 181º, nº 1 e artigo 184º (ex vi artigo 132º, nº 2, alínea l) do Código Penal), declarando o arguido inimputável perigoso, por força de anomalia psíquica, nos termos do artigo 20.º, nº 1, do Código Penal, determinando o seu internamento e tratamento em estabelecimento adequado com duração mínima de 3 (três) anos e máxima de 21 (vinte e um) anos e 4 (quatro) meses, nos termos dos art.ºs 91.º, n º1 e 2 e 92.º, nº 2 do Código Penal, condenando-o, parcialmente, no pagamento da indemnização deduzida pelo demandante BB, na quantia de € 7500,00 (sete mil e quinhentos euros).
II. Salvo o devido respeito, que é muito, entende o Recorrente que o Douto Acórdão, nos seus fundamentos de direito, é excessivo e desproporcional na medida que determinou o seu internamento e tratamento em estabelecimento adequado com duração mínima de 3 (três) anos e máxima de 21 (vinte e um) anos e 4 (quatro) meses, nos termos dos art.ºs 91.º, n º1 e 2 e 92.º, nº 2 do Código Penal, assim como a Errónea qualificação jurídica dos factos, (1) no enquadramento dos factos como a prática de um crime de homicídio na forma tentada; (2) quer no enquadramento da conduta do arguido no crime de homicídio qualificado na forma tentada.
III. Quanto à alteração da Qualificação Jurídica, o objeto do processo afere-se a partir do disposto no artigo 1.º, alínea a), do Código de processo Penal, coincidindo, portanto, com a definição de “crime” ali vertida, ou seja, “o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais”.
IV. Não é por acaso que a definição de “alteração substancial dos factos” constante da alínea f) do mesmo artigo assenta na definição de “crime” previamente estabelecida na alínea a) acima citada.
V. Sendo o crime o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança, e sendo esse conjunto de pressupostos formado pelos factos e pelas normas incriminadoras, pode afirmar-se que um crime são factos normativamente considerados.
VI. Pode concluir-se, assim, pela inadmissibilidade dos elementos de facto e de direito que formam o conjunto de pressupostos que constitui o crime sem que isso altere a essência do conjunto, ou seja, o crime, ou seja, o objeto do processo.
VII. A rigidez do objeto do processo nos seus elementos essenciais encontra-se plasmada na proibição da alteração substancial dos factos (artigo 359.º do Código de Processo Penal).
VIII. É ocioso referir que tal rigidez é exigida pela própria estrutura acusatória do processo penal (artigo 32.º, n.º 5, da Constituição), decorrente de um processo penal democrático e respeitador o princípio da dignidade da pessoa humana (artigos 1.º e 2.º da Constituição), e que, por consequência, impõe a imparcialidade do tribunal relativamente ao Ministério Público e ao arguido, a igualdade de armas entre estes dois sujeitos processuais e a efetividade do princípio do contraditório, sem o que o direito de defesa consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, não passaria de uma fórmula vazia.
IX. Tais direitos fundamentais só podem ser restringidos pela lei ordinária nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição).
X. Voltando à questão da rigidez do objeto do processo nos seus elementos essenciais, ou seja, na sua identidade, importa aludir, conforme já supra aflorado, à definição de “alteração substancial dos factos” como “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis” (artigo 1.º, alínea f), do Código de Processo Penal).
XI. O “crime” constante de tal definição não pode deixar de ser o “crime” como “o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais”, tal como se encontra definido no artigo 1.º, alínea a), do Código de Processo Penal, e com o alcance supra explanado. Por consequência, a rigidez do objeto do processo somente não incide sobre os seus elementos não essenciais, o que se encontra refletido no artigo 358.º do Código de Processo Penal, pelo que o respetivo campo de aplicação são exclusivamente os elementos acidentais do objeto do processo.
XII. Os elementos acidentais do objeto do processo são aquela cuja alteração, não importe em alteração substancial dos factos, ou seja, que não atinjam os pressupostos de facto e de direito de que depende a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança (artigo 1.º, alíneas a) e f), do Código de Processo Penal).
XIII. Tratando-se de factos integrantes de elementos típicos do crime, objetivos ou subjetivos, não pode deixar de se concluir tratar-se de uma alteração dos pressupostos de facto e de direito de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança, pois que por crime deve entender-se o conjunto formado por determinados factos, concretamente alegados, juridicamente qualificados de uma determinada forma.
XIV. Os factos que o Douto Tribunal a quo inseriu no objeto do processo – sem deliberação, já considerando, portanto, os mesmos como provados – são manifestamente suscetíveis de poder integrar elementos típicos objetivos dos crimes imputados ao Arguido, e isto no contexto de uma acusação extremamente frágil ao nível da factualidade concretamente alegada, que não pode ser salva agora através do adicionamento de factos novos idóneos a preencher, em termos parciais, o núcleo típico daqueles crimes.
XV. Pois segundo o Supremo Tribunal de Justiça, através do seu acórdão n.º 1/2015 (DR 18/2015, I, 27/01/2015), que fixou jurisprudência nos seguintes termos: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»
XVI. Por outro lado, também o Supremo Tribunal de Justiça, através do seu acórdão no Proc. 55/19.4SWLSB.L1.S1, da 5ª Secção, de 27.10.2021, Relator António Gama, refere o seguinte: “I – Afirmar que a morte foi produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade não é viável quando o agente é um inimputável, por natureza quem por força de uma anomalia psíquica é incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação. II – Sendo o inimputável incapaz de culpa só pode cometer o tipo de crime de homicídio simples, não o de homicídio qualificado, uma vez que a agravação pressupõe culpa agravada. III – imputabilidade e a perigosidade têm referentes normativos que só ao juiz cabe interpretar e decidir. É uma tarefa com duas faces e a tarefa do perito constitui apenas uma das faces da mesma realidade. IV – O último momento em que é processualmente possível questionar o juízo de prognose relativo à perigosidade é o da decisão do último tribunal que tenha ainda poderes de cognição da questão de facto, dado essa questão não conforma em si mesma, isto é, quanto à subsistência ou insubsistência da perigosidade, uma questão de direito.”
XVII. Por consequência, uma vez que tal alteração foi efetivamente operada pelo Douto Tribunal a quo, vindo ainda a determinar a medida de internamento a aplicar ao Arguido ora recorrente pelos factos adicionados, não há dúvida de que incorre o acórdão recorrido na nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal.
XVIII. Verifica-se ainda a inconstitucionalidade material dos artigos 1.º, alíneas a) e f), 358.º, n.º 1, 359.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea b),todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a alteração de factos através do adicionamento de factos novos suscetíveis de preencher elementos típicos dos crimes imputados ao Arguido constitui alteração não substancial de factos, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, todos da Constituição.
XIX. Se “alteração substancial dos factos” é aquela que tem por efeito a imputação de um conjunto diferente de pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, “alteração não substancial dos factos” é, por exclusão, aquela que recai sobre elementos acidentais do crime, não recaindo, portanto, nos elementos de facto e de direito de que depende a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança.
XX. Assim, tal como a alteração não substancial dos factos nunca pode incidir em elementos de facto, objetivos ou subjetivos, constitutivos do tipo, de igual forma não pode incidir no tipo legal propriamente dito, a não ser, conforme supra explanado, em benefício do arguido.
XXI. Dai que o n.º 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, ao remeter para o respetivo n.º 1, está a estabelecer a regra de que a alteração da qualificação jurídica não pode ter como efeito a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, sob pena de vir a decisão final a incorrer na nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal.
XXII. Verifica-se ainda a inconstitucionalidade material dos artigos 1.º, alíneas a) e f), 358.º, n.ºs 1 e 3, 359.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual o Tribunal pode alterar a qualificação jurídica constante da pronúncia para crime diverso mais grave ou para modalidade agravada do mesmo crime, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, todos da Constituição.
XXIII. Para além do supra alegado, decorre do nosso ordenamento jurídico o princípio nulla poena sine culpa, conforme o Artigo 40º, n.º 2 do Código Penal.
XXIV. Se por um lado, consideram que o Recorrente era inimputável, por outro, consideram que ser o crime – na forma tentada – enquadrado como qualificado, pelo que estamos perante uma errónea qualificação jurídica dos factos, pois resulta dos factos provados que não houve intenção de matar ou tirar a vida aos Ofendidos, o que comprovadamente não fez, pelo entende o Recorrente, que estaríamos perante a prática de dois crimes de Ofensas à Integridade Física qualificada, e não perante dois crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 22º, 23º, 73º, 131º,132º, n.º 1 e 2, alínea e), todos do Código Penal.
XXV. Assim, ao considerar que o Recorrente havia praticado os referidos crimes o Tribunal a quo violou os artigos 143º, 22º, 23º, 73º, 131º, 132º, n.º 1 e 2, alínea e) todos do Código Penal.
XXVI. Por um lado, considerou que o Recorrente estava numa situação de inimputabilidade, isto é, não era capaz de avaliar a ilicitude da sua conduta, por outro lado, entendeu que o mesmo agiu com perigosidade, havendo nesta parte, notória contradição, a nosso ver insanável.
XXVII. Conforme decidiu o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do processo n.º 382/14.7JALRA.C1, de 15-05-2019, disponível em www.dgsi.pt: “A declaração de inimputabilidade, implicando a exclusão de culpa do agente, obsta à verificação da especial censurabilidade ou perversidade exigida para a qualificação do crime de homicídio.”
XXVIII. Pressupondo o homicídio qualificado, ainda que na forma tentada, um tipo especial de culpa, sendo a culpa a medida da censurabilidade do facto, um inimputável é incapaz de culpa, assim como, incapaz de revelar a especial censurabilidade ou perversidade, a que se reporta o crime de homicídio qualificado, porquanto a punibilidade, nestas circunstâncias, exige um completo domínio do agente para se determinar de acordo com a norma e para avaliar, cabalmente, a ilicitude do facto, sempre teria que se concluir que o Recorrente não cometeu o crime de homicídio qualificado na forma tentada, mas sim o homicídio tentado na forma simples.
XXIX. O Recorrente, tendo sido declarado inimputável, não pode ser agente de factos ilícitos típicos correspondentes ao homicídio qualificado, ou seja, a declaração de inimputabilidade, pressupondo a exclusão de culpa do agente, obsta à verificação da especial censurabilidade ou perversidade exigida para a qualificação do crime de homicídio. – Ac. STJ, de 18-2-2009, no proc. n.º 08P3775, e Ac. RC, de 12-11-2014, no proc. n.º 412/09.4PATNV.C1 in www.dgsi.pt.
XXX. Mas mais, tendo sido o Recorrente dominado por um estado de surto psicótico, perseguição e paranoia, por falta de acompanhamento psicoterapêutico e tratamento farmacológico, na convicção de que os Ofendidos o queriam atacar, não se pode considerar que tenha actuado com especial perversidade ou censurabilidade.
XXXI. Sendo certo que o arguido, por força da inimputabilidade declarada, não agiu em todas estas situações, de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, resultando da prova pericial produzida a configuração de anomalia psíquica sofrida à data da prática dos factos, que o tornou incapaz, nesse momento, de avaliar a ilicitude dos mesmos, termos em que concluiu que o arguido é inimputável relativamente à prática dos factos em referência.
XXXII. Assim, o acórdão proferido violou os artigos 20º, 31º, 40º, n.º 2, 131º e 132º todos do Código Penal, termos em que deve o presente Recurso obter provimento, com o que farão V. Exas. a esperada justiça.
XXXIII. Relativamente ao excesso da duração máxima da medida aplicada de 21 anos e 4 meses, sempre se dirá que no quadro factual e de Direito do acórdão recorrido é evidente que a medida que determinou o internamento e tratamento do Recorrente em estabelecimento adequado com duração mínima de 3 (três) anos e máxima de 21 (vinte e um) anos e 4 (quatro) meses aplicada ao Recorrente é manifestamente excessiva, sobretudo na aplicação da sua duração máxima de 21 (vinte e um) anos e 4 (quatro) meses, contrariando assim o artigo 40º nº 1 do CP, que dispõe que a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
XXXIV. É importante salientar que dos factos praticados pelo Recorrente nenhum resultou em homicídio, mas apenas tentativa, nem existiu qualquer intenção nesse sentido conforme demonstrado pela ausência de dolo, pois se a actuação dos órgãos policiais para proceder ao internamento compulsivo tivesse sido mais precoce certamente não teria havido este desfecho.
XXXV. Por outro lado, o art.º 23.º CP, a tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado, especialmente atenuada, o que no caso não se verifica essa especial atenuação legalmente prevista, considerando a fixação da máxima de 21 (vinte e um) anos e 4 (quatro) meses aplicada ao Recorrente.
XXXVI. Saliente-se que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. n.º 2 do artigo 40.º do Código Penal). A pena deve ser concretizada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo ainda, numa segunda fase, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento.
XXXVII. No presente recurso não se discute a declaração de inimputabilidade do arguido, porquanto ficou demonstrado que o arguido incorreu na prática de dois ilícitos típicos graves, resultando da prova pericial produzida a configuração de anomalia psíquica sofrida pelo ora arguido à data da prática dos factos, que o tornou incapaz, nesse momento, de avaliar a ilicitude dos mesmos, termos em que concluiu que o arguido é inimputável relativamente à prática dos factos em referência.
XXXVIII. Mas, é quanto à perigosidade criminal e necessidade de internamento pelo período máximo de 21 anos e 4 meses que se centra a discussão no presente recurso.
XXXIX. O art. 91° do C. Penal reflete uma conceção da perigosidade criminal fundamentalmente devedora do pensamento probabilístico que, conforme refere Cristina Líbano Monteiro (Perigosidade de Inimputáveis e in dúbio pro reo, Universidade de Coimbra-Coimbra Editora-1997 pp 89 a 92), aproxima-se do conceito de perigo com que opera a dogmática penal e que o perspetiva como dano provável, na mais abrangente das definições.
XL. Tendo como conteúdo normativo a probabilidade de o agente de um facto-crime repetir a sua conduta típica e ilícita, o conceito legal de perigosidade corporizado no art.91° reporta-se à perigosidade subjetiva, ou seja, à perigosidade referida à personalidade do agente (contraposta à perigosidade objetiva, de uma dada ação), o que implica que o juízo adequado a aferir daquela probabilidade não pode deixar de ser um juízo de previsão ou de prognose em que o julgador, projetando-se no horizonte do que ainda não ocorreu, procurará ajuizar sobre a eventualidade de aquela personalidade vir a estar na origem de novos factos ilícitos-típicos no futuro.
XLI. Não está em causa, pois, a prova da probabilidade no sentido da demonstração de uma qualquer certeza matemática assente em métodos estatísticos ou mesmo a consagração de presunções legais, mas antes a formulação de um juízo de prognose simples sobre a probabilidade de repetição do facto típico e ilícito, ou seja, na terminologia legal, sobre o fundado receio de que o arguido venha a cometer outros factos da mesma espécie.
XLII. Embora seja inegável a relevância da perspetiva normativa na determinação do sentido e alcance do conceito no caso concreto, o apontado juízo de prognose, assente na análise do caso individual e apoiado em regras da experiência e em factos comprováveis, apresenta, assim, uma vertente eminentemente factual.
XLIII. Entendemos a decisão do tribunal no sentido do risco de repetição de factos da mesma espécie em casos, como o presente, com a possibilidade de voltar a ter outro surto psicótico, revelando uma predisposição para comportamentos hétero-agressivos, no entanto haverá sempre a possibilidade do recurso ao reexame da medida de internamento, na qual se pode apurar se a perigosidade do Recorrente se mantém, reavaliando-o para perceber o grau de perigosidade criminal do Recorrente.
XLIV. A medida é necessária, como até o Recorrente chega a aceitar e concorda, a questão é se o limite de duração máxima é proporcional e necessário, pois de acordo com o art. 18.º/2 da Constituição: “se uma medida menos gravosa serve de finalidade de proteção comunitária, a mais gravosa deve considerar-se desnecessária” (Cristina Líbano Monteiro, ob. cit. p. 132.).
XLV. Na data da prática dos factos, o Recorrente encontrava-se dominado por um estado de surto psicótico, sentia-se num estado de perseguição e paranoia, isto por falta de acompanhamento psicoterapêutico e tratamento farmacológico, e agiu na convicção de que os Ofendidos o queriam atacar, pelo que não se pode considerar que tenha actuado com especial perversidade ou censurabilidade.
XLVII. Assim, salvo melhor entendimento, pelo exposto, a medida de segurança a aplicar, tendo em vista o disposto nos arts. 91.º/2 e 92.º/2, CP, deverá manter a duração mínima de três anos, não devendo exceder 10 (dez) anos.
XLVII. Deve assim, existir uma concordância prática entre tais direitos humanos, que observe o princípio da proporcionalidade, mediante as exigências de adequação ou idoneidade (a); necessidade ou indispensabilidade (b) e de ponderação (c).
XLVIII. Que nada mais é o que o Recorrente vem pedir.
FAZENDO-SE ASSIM, A COSTUMADA Justiça.
I – Por acórdão proferido no dia 29 de janeiro de 2024, data em que se procedeu à respetiva leitura foi julgada provada a prática, pelo arguido AA, de atos objetivamente integradores de:
- dois crimes de homicídio agravado, na forma tentada, previstos e puníveis pelos artigos 22º, nº 1 e nº 2 alínea b), 23º, nº 1 e 131º, todos do Código Penal e artigos 2º, nº 1 m), 3º, nº 2 g) e ab) e 86º, nºs 1 d), 3 e 4 da Lei n.º 5/2006 de 23/02;
- um crime de ofensa à integridade física agravado, previsto e punível pelos artigos 143º, nº 1 do Código Penal e artigos 2º, nº 1 m), 3º, nº 2 g) e ab) e 86º, nºs 1 d), 3 e 4 da Lei n.º 5/2006 de 23/02 (que aprova o Regime Jurídico das Armas e suas Munições);
- de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelos artigos 2º, nº 1 m), 3º, nº 2 g) e ab), 4º, nº 1 e artigo 86º, n.º 1, alínea d), todos da Lei das Armas e suas Munições, aprovada pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro;
- de três crimes de ameaça agravada, previstos e puníveis pelos artigos 153º, nº 1 e artigo 155º, nº 1, alínea a) e c) (ex vi artigo 132º, nº 2, alínea l) do Código Penal;
- e de três crimes de injúria agravada, previstos e puníveis pelos artigos 181º, nº 1 e artigo 184º (ex vi artigo 132º, nº 2, alínea l) do Código Penal).
II – O arguido AA foi declarado inimputável perigoso, por força de anomalia psíquica, nos termos do artigo 20.º, nº 1, do Código Penal e, nos termos do artigo 91º, nº 1 e 2 do Código Penal, e por haver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie, foi determinado o internamento e tratamento do arguido em estabelecimento adequado com duração mínima de 3 (três) anos e máxima de 21 (vinte e um) anos e 4 (quatro) meses, nos termos dos art.ºs 91.º, n º1 e 2 e 92.º, nº 2 do Código Penal;
III – Inconformado com esta condenação, dela veio o arguido interpor o presente recurso, formulando 43 conclusões, nas quais, limitando-se a questões de direito, invoca a nulidade do acórdão prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, por ter ocorrido alteração substancial dos factos fora das condições do artigo 359.º do mesmo diploma, alega ainda (2) uma errónea qualificação jurídica dos factos e (3) considera que ocorreu excesso da duração máxima da medida de internamento aplicada de 21 anos e 4 meses.
IV – Em momento algum, foi comunicada qualquer alteração substancial de factos constantes da acusação, nem, por outro lado, foi o arguido condenado por factos que não tivessem sido do conhecimento da defesa e que possam consubstanciar uma alteração substancial daqueles por que vinha acusado.
V – A factualidade dada como provada preenche os elementos típicos objetivos e subjetivos do crime em causa.
VI – A intenção do arguido, ainda que viciada pela anomalia psíquica de que padecia, era efetivamente a de causar a morte dos agentes policiais em causa, conforme resulta claramente da factualidade provada sob o ponto 20.
VII – Por outro lado, a conduta do agente, consubstanciada nos atos melhores descritos nos pontos 11 a 15 da matéria de facto provada são claramente idóneas a causar o resultado por aquele pretendido, sendo atos de execução daquele tipo criminal.
VIII – Pelo exposto, bem andou o Tribunal recorrido ao considerar que, no que respeita às condutas do arguido sobre os agentes policiais CC, as mesmas são suscetíveis de configurar a prática do crime de homicídio agravado.
IX – Contudo, como não poderá ignorar o recorrente o mesmo não foi condenado numa pena, mas numa medida de segurança que não se encontra, na sua determinação, vinculada ao disposto no principio consagrado no artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal. Se assim fosse, não havendo culpa, nunca poderia haver medida de segurança.
X – O crime mais grave cometido pelo recorrente, foi o de homicídio agravado na forma tentada punível com pena de 2 anos, 1 mês e oito dias até 14 anos, 2 meses e 20 dias.
XI – Nos termos do disposto no artigo 92.º, n.º 2 do Código Penal, atenta a moldura penal dos crimes mais graves cometidos pelo inimputável, a medida de segurança de internamento deveria ter como limite máximo não os 21 anos e 4 meses constantes do acórdão recorrido, mas os 14 anos, 2 meses e 20 dias que correspondem ao limite máximo da pena do crime de homicídio agravado, na forma tentada, previstos e puníveis pelos artigos 22º, nº 1 e nº 2 alínea b), 23º, nº 1 e 131º, todos do Código Penal e artigos 2º, nº 1 m), 3º, nº 2 g) e ab) e 86º, nºs 1 d), 3 e 4 da Lei n.º 5/2006 de 23/02;
XII – Deverá, pois, quanto a esta questão o acórdão recorrido ser substituído por outro que determine como limite máximo da medida de segurança de internamento os 14 anos, 2 meses e 20 dias.
V. Ex.as, porém, e como sempre, farão JUSTIÇA !
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- Deverá o recorrente ser notificado para formular conclusões, sob pena de rejeição do recurso (I);
- Se assim não se entender, deverá o presente recurso ser julgado parcialmente procedente, com revogação da decisão recorrida na parte em que fixou o limite máximo da medida de internamento, a ser substituída por outra que o fixe em 14 anos, 02 meses e 20 dias.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2 do C. Processo Penal.
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Cumpre decidir.
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A) Factos provados
A matéria de facto provada que provém da 1ª instância é a seguinte:
“(…).
1. No dia ... de ... de 2022, cerca das 13h30m, patrulha da PSP, constituída pelos Agentes CC, BB e DD, devidamente uniformizados e no exercício de funções, deslocou-se à residência do arguido, sita na Rua ..., ... ..., a fim de proceder ao cumprimento de mandados de condução para internamento compulsivo daquele.
2. Chegados ao local, os Agentes da PSP, todos aqui assistentes, bateram à porta e disseram “AA, tens de vir connosco, tens que tomar a tua medicação”.
3. Nessa ocasião, no interior da residência, o arguido muniu-se de uma faca, um martelo e uma chave de fendas em cima da mesa do hall de entrada e disse aos agentes da PSP, em tom alto e sério: “se tentarem abrir a porta, eu corto-vos o pescoço, deixo-vos as tripas de fora, vocês são brancos, quando sair vou-vos cortar o pescoço. Se sair daqui é para vos cortar o pescoço, brancos de merda. Seus filhos da puta, vão-se embora que eu mato-vos, tenho aqui facas, tenho tudo, quem entrar aqui vou matá-los, vou cortar o pescoço, quem entrar que não for da família vou matá-los”.
4. O arguido detinha na sua posse uma faca, da marca BOSIDUN, com comprimento total de 15 cm e lâmina de 6,5cm, com semelhança com garra de tigre (vulgarmente designada como KARAMBIT) que, pela forma única da empunhadura aliada à disposição da curva da lâmina em relação a essa empunhadura, lhe conferem uma capacidade única de potencializar os danos provocados pela sua utilização.
5. O arguido detinha, também na sua posse, uma faca de cozinha, da marca KOCH MESSER, com comprimento total de 28 cm e lâmina de 16,5cm.
6. O arguido detinha ainda, consigo, um espigão artesanal com conta perfurante e pega de cor cinzenta, com 19 cm de comprimento, sem utilização definida.
7. Após nova tentativa dos Agentes da PSP o arguido disse, em tom alto e sério, “seus filhos da puta, entram aqui e mato-vos, eu estou armado, daqui ninguém sai mais”.
8. Seguidamente, os agentes da PSP arrombaram a porta da residência.
9. DD usava capacete e escudo de proteção, para além de colete balístico.
10. Os demais agentes usavam, também eles, coletes balísticos.
11. Em ato imediato, o arguido, munido de duas facas – a karambite na mão direita e a faca de cozinha na mão esquerda – saltou para a frente do agente DD.
12. Então, desferiu um golpe com a faca “karambite” no escudo e, pegando na mesma pelo cabo, com a lâmina virada para baixo, desferiu, de cima para baixo, dois golpes, com força, na zona da cabeça do agente DD, apenas não perfurando a mesma por este agente usar capacete de proteção.
13. Seguidamente, o arguido empurrou o agente DD, o qual caiu para trás, contribuindo para a queda, no chão, do assistente CC.
14. Aproveitando-se dessa situação, o arguido, com a referida faca, desferiu um golpe na direção da cabeça do agente CC, o que apenas não conseguiu porque o referido agente o afastou com os pés.
15. Não satisfeito com tal facto, o arguido tentou novamente desferir um golpe com a faca na direção da cabeça do agente CC, quando este se encontrava a levantar.
16. Nessa altura, o Chefe BB colocou o braço à altura da cabeça do agente CC para evitar que este fosse atingido e para agarrar o arguido por detrás.
17. Nessa altura, o arguido desferiu um golpe com a faca no braço esquerdo do chefe BB.
18. Em virtude de tal golpe com faca, o assistente BB veio a desfalecer devido a sangramento abundante, tendo de ser assistido, nesse dia, nas urgências do Hospital Fernando Fonseca.
19. Como consequência da conduta do arguido, o assistente BB sofreu ferida incisa na face externa do braço esquerdo com 13 cms de comprimento e 2 cms de profundidade, da qual resultou cicatriz rosada com sinais de pontos de sutura interessando a face lateral do braço, cotovelo e antebraço, medindo 13 cms de comprimento por 0,5 cms de maior largura, limitação nos últimos graus de supinação com os restantes movimentos articulares do cotovelo preservadas, hiposensibilidade referida à face posterior do antebraço.
20. O arguido, ao desferir facadas na direção da cabeça do agente CC, bem como ao desferir facadas na cabeça do agente DD, quis agir com o propósito de tirar a vida a estes agentes da PSP.
21. E agiu sabendo que a faca utilizada (Karambite, com lâmina curva) era especialmente apta a perfurar e rasgar, nomeadamente quando utilizada em zonas vitais, sendo meio adequado a causar a morte dos mesmos, e apenas não logrou atingir tal resultado por motivos alheios à sua vontade.
22. Pelo que, ao desferir uma facada no corpo do Chefe BB visou produzir o ferimento causado.
23. O arguido proferiu as expressões acima descritas em tom e de forma séria.
24. Ao proferir as expressões e ao exibir as facas quis causar medo e inquietação aos agentes, como efetivamente conseguiu, fazendo-os recear pela sua integridade física.
25. Com a conduta descrita, o arguido agiu, querendo e conseguindo proferir as expressões narradas em 7., sabendo que as mesmas atingiam os agentes da autoridade na sua honorabilidade, e que os mesmos se encontravam no exercício das suas funções.
26. O arguido conhecia a qualidade de agentes da P.S.P. dos assistentes, representando que os mesmos se encontravam uniformizados e no exercício das suas funções.
27. As lesões descritas em 19. determinaram para BB um período de doença de 58 dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho.
28. Traduzindo-se numa diminuição da sua capacidade de trabalho e, assim, numa incapacidade temporária absoluta, que o impediram de voltar imediatamente ao trabalho.
29. O assistente, nas funções de chefe da PSP, realizava serviços gratificados mensalmente.
30. E auferia:
– salário base de € 1320,00;
- subsídio de comando de € 73,90;
- suplemento de turno no valor de € 165,80;
- fardamento, no valor de € 57,67;
- subsídio de refeição, no valor de € 119,60;
- suplemento de forças de segurança, no valor de € 274,00.
31. O assistente BB sofreu dores na zona atingida no braço.
32. O assistente passou a sofrer, depois do sucedido, de dores no braço esquerdo.
33. Que se fazem sentir muito especialmente quando há mudanças de temperatura.
34. Causando-lhe limitação na utilização que fazia do braço, causando-lhe frustração e angústia.
35. A cicatriz/marca no braço produz dano estético considerável, que o irá perseguir para o resto da vida.
36. O que o envergonha.
37. Sentindo desgosto quando se recorda do sucedido.
38. Passando a recear ser, novamente, agredido.
39. E deixou de praticar desporto (ginásio) como o fazia.
40. O Estado Português teve de suportar o montante de € 4878,53 (quatro mil, oitocentos e setenta e oito euros e cinquenta e três cêntimos) a título de vencimentos e abonos, despesas médicas e substituição do blusão policial.
41. O assistente BB esteve, no entanto, impedido de realizar esse trabalho correspondente aos vencimentos suportados pelo demandante Estado Português.
42. Pelos cuidados médicos prestados a 18. A BB, foi emitida a fatura n.º 2023/..77 de 23 de maio de 2023, no valor de € 196,89.
43. Este valor jamais foi satisfeito ao demandante.
44. O arguido sofre de anomalia psíquica – Esquizofrenia Paranóide (F... CID-10 OMS, ...) – e, à data dos factos supra descritos, encontrava-se com sintomas agudos tais como desorganização, ideação delirante persecutória e alterações sensório-preceptivas, com alucinações e pensamento delirante e persecutório.
45. O seu comportamento supra descrito foi condicionado por anomalia psíquica grave da perceção e do pensamento de que era, e é, detentor.
46. Decorrente da psicopatologia alucinatória e delirante e da anomalia psíquica de que padece, o arguido não era capaz, à data dos factos, de avaliar a ilicitude desses seus atos, ou de se determinar de acordo com essa avaliação.
47. E, em virtude daquela anomalia psíquica, o arguido poderá vir a praticar, no futuro, factos da mesma natureza destes, dada a manifesta imprevisibilidade dos surtos agudos e a elevada probabilidade de agressividade.
48. AA é natural de ..., sendo de nacionalidade cabo-verdiana.
49. O pai era ..., tendo falecido de AVC em 2013.
50. A mãe, atualmente com 76 anos de idade, era empregada doméstica em casas particulares e está reformada.
51. O arguido é o segundo elemento de uma fratria de cinco, cujo processo de socialização decorreu dentro da normalidade, numa dinâmica familiar normativa e estruturada, pautada por laços afetivos entre todos os elementos.
52. O agregado residia e reside em casa camarária, inserida num bairro social com problemáticas criminais, cedida pela edilidade da ..., por força do processo de realojamento após demolição da ....
53. Em termos económicos, o agregado tinha dificuldades económicas, apesar de conseguir suprir as suas necessidades básicas.
54. O arguido concluiu o 7º ano de escolaridade, com 16 anos de idade, registando duas retenções, motivadas pelo absentismo, já que o arguido preferia ir jogar à bola com os pares, dando início ao hábito tabágico e desistiu da prossecução dos estudos, sem que os progenitores se opusessem.
55. A falta de motivação e dificuldades na aprendizagem das matérias escolares terão contribuído para a não conclusão do ensino obrigatório.
56. Com fraca qualificação escolar, AA evidenciou, desde muito novo, comportamentos violentos e posteriormente criminais.
57. Assim, por volta dos 16/17 anos de idade, verificou-se uma escalada neste percurso.
58. A primeira prisão ocorreu em ... de agosto de 2007 .
59. Em meio prisional, nessa altura, foi assinalada problemática ao nível da saúde mental, que motivou intervenção por parte dos serviços de psiquiatria, que se viriam a manter em meio livre.
60. Após esta prisão, o arguido cumpriu duas outras penas de prisão, a segunda entre .... de janeiro de 2008 e ... de março de 2008 e a terceira entre ... de novembro de 2015 e ... de dezembro de 2020.
61. O arguido AA não tem hábitos de trabalho, sendo reformado por invalidez e aufere uma pensão no valor de € 230,00 mensais.
62. É o próprio arguido que gere este valor, fazendo-o de forma pouco ajustada.
63. O pai era o elemento familiar que assegurava a submissão do arguido ao plano terapêutico.
64. Com o falecimento do pai, em 2013, o arguido passou a contar com menos supervisão familiar, já que a mãe não tem sobre o filho a autoridade que o pai tinha.
65. As irmãs, devido às suas atividades laborais, não dispõem de tempo para o acompanhar.
66. Depois do falecimento do pai, o arguido passou a ter um quotidiano marcado pelo ócio e inserido em grupos de pares conotados com práticas criminais, com quem tem sentimentos de pertença e de identificação.
67. O arguido iniciou o consumo de haxixe a partir da adolescência em contexto de pares.
68. À data dos factos supra descritos, o arguido integrava o agregado materno, na mesma habitação onde sempre residiu, integrada no bairro social da ....
69. O agregado era, nessa data, constituído pelo arguido, pela mãe, por uma irmã e por duas sobrinhas.
70. A renda da habitação social rondava os € 245,00 mensais.
71. A mãe recebia € 326,00 mensais, acrescidos de € 150,00 respeitantes a trabalho na área das limpezas.
72. A irmã era pasteleira, auferindo o ordenado mínimo nacional.
73. O arguido dedicava-se, muito pontualmente, a trabalhos temporários na área das mudanças e nas hortas de pessoas conhecidas.
74. O arguido mantinha o consumo de haxixe em contexto de pares com comportamentos desviantes.
75. Era acompanhado no Centro de Saúde da ..., deixando de frequentar o Centro dois meses antes da sua reclusão e atual internamento.
76. No Hospital Prisão ..., onde está internado desde ... de ... de 2021, o arguido AA não averba qualquer registo disciplinar, interagindo com os pares e demais funcionários normativamente.
77. O arguido frequenta regularmente o pátio e participa em atividades ao nível da terapia ocupacional.
78. É acompanhado em consultas de psiquiatria e psicologia, fazendo a necessária medicação, encontrando-se, por via disso, estabilizado.
79. Enquanto internado, tem beneficiado de visitas regulares da sua mãe e irmã.
80. O arguido foi condenado no processo nº 3574/01.5..., da 1ª Secção, do ... Juízo Criminal de ..., por decisão de 15 de julho de 2004, transitada em julgado em 8/2/2007, na pena de 1 ano de prisão, suspensa por 14 meses, pela prática, em 26 de setembro de 2001, de um crime de roubo. Esta pena foi declarada extinta em 14 de novembro de 2008.
81. Foi condenado no processo nº 203/01.0..., da 2ª Secção, do 3º Juízo Criminal de ..., por sentença de 29 de novembro de 2001, transitada em 18 de setembro de 2006, na pena de 90 dias de multa, pela prática em 17 de março de 2001, de um crime de ofensa à integridade física simples. Esta pena foi declarada extinta, pelo cumprimento, em 15 de outubro de 2007, tendo o arguido cumprido a pena de prisão subsidiária em que se converteu aquela pena de multa.
82. O arguido foi condenado no processo nº 348/07.3..., do 1º Juízo de Pequena Instância Criminal de ..., por decisão de 2 de maio de 2007, transitada em 21 de junho de 2007, na pena de 90 dias de multa, pela prática, em 18 de abril de 2007, de um crime de detenção de arma proibida. Esta pena foi convertida em 60 dias de prisão subsidiária, por falta de pagamento voluntário da multa, tendo sido declarada extinta em 21 de maio de 2008.
83. O arguido foi condenado em 24 de maio de 2007, por acórdão transitado em 11 de junho do mesmo ano, proferido no processo comum coletivo nº 1167/01.6..., da 1ª Vara de Competência Mista de ..., na pena de 2 anos e 9 meses de prisão, suspensa por 3 anos, pela prática, em 4 de outubro de 2001, de um crime de roubo e de um crime de detenção de armas proibidas. Esta pena foi declarada extinta em 22 de outubro de 2013.
84. O arguido foi condenado no processo nº 314/04.0..., do 3º Juízo Criminal de Loures, por sentença de 19 de junho de 2008, transitada em 12 de setembro de 2008, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período, pela prática, em 30 de março de 2004, de um crime de roubo. Esta pena foi declarada extinta em 6 de julho de 2012.
85. E foi condenado no processo nº 37/07.9..., da 1ª Secção, do 5º Juízo Criminal de ..., por sentença de 29 de junho de 2011, transitada em 14 de setembro de 2011, na pena de 5 meses de prisão, suspensa por um ano, com imposição de regime de prova, pela prática, em 5 de julho de 2007 e em 5 de agosto de 2007, de um crime de ofensa à integridade física qualificada e de um crime de detenção de arma proibida.
86. Por sentença de 16 de novembro de 2012, transitada em 17 de dezembro de 2012, o arguido foi condenado no processo nº 84/06.8..., do 2º Juízo Criminal de ..., na pena de 9 meses de prisão, substituída por 250 horas de trabalho a favor da comunidade pela prática, em 16 de março de 2006, de um crime de resistência e coação sobre funcionário. Esta pena foi declarara extinta, pelo cumprimento, em 5 de janeiro de 2015.
87. O arguido foi condenado no processo nº 66/13.3..., do ... 1, do Juízo Local Criminal da ..., por sentença de 17 de abril de 2013, transitada em 17 de maio de 2013, na pena de 18 meses de prisão, suspensa por igual período, com regime de prova e sob a condição do arguido comprovar a frequência de consulta de psiquiatria no Centro de Saúde da ... e de atividades ocupacionais junto da A....., pela prática, em 4 de fevereiro de 2013, de um crime de resistência e de coação sobre funcionário e de um crime de injúria agravada. A pena foi declarada suspensa em 8 de novembro de 2018.
88. Foi condenado no processo nº 4700/08.9..., da 2ª Vara de Competência Mista de ..., por acórdão de 15 de novembro de 2013, transitada em 16 de dezembro de 2013, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa por igual período, pela prática em 26 de abril de 2005, 2 de setembro de 2005 e em junho de 2005, de 3 crimes de roubo simples.
89. Em 11 de maio de 2016, a suspensão da pena foi revogada. A pena foi declarada extinta, pelo cumprimento, por referência à data de 24 de dezembro de 2020.
90. O arguido foi condenado, em 21 de janeiro de 2015, por sentença transitada em 20 de fevereiro de 2015, no processo nº 266/14.9..., do ... 1, do Juízo Local de Pequena Criminalidade de ..., na pena de 18 meses de prisão, suspensa por 18 meses, pela prática, em 30 de agosto de 2014, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
91. E foi condenado em 1 de junho de 2015, por sentença transitada em 1 de julho de 2015, no processo sumário nº 106/15.1..., do ... 1, do Juízo Local Criminal da ..., na pena de 7 meses de prisão pela prática, em 13 de maio de 2015, de um crime de detenção de arma proibida. Em 23 de fevereiro de 2018, esta pena foi declarada extinta, pelo cumprimento.
92. O arguido foi condenado no processo nº 163/15.0..., do ... 1, do Juízo Local Criminal da ..., por sentença de 22 de julho de 2015, transitada em 13 de outubro de 2015, na pena de prisão de 9 meses pela prática, em 4 de julho de 2015, de um crime de detenção de arma proibida. Por despacho de 9 de dezembro de 2016, esta pena foi declarada extinta, pelo cumprimento.
93. O arguido foi condenado no processo nº 97/15.9..., do ... 2, do Juízo Local Criminal da ..., por sentença de 5 de janeiro de 2021, transitada em 8 de julho de 2021, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa por igual período, com sujeição a regime de prova e com acompanhamento médico psiquiátrico, pela prática, em 30 de novembro de 2015, de um crime de resistência e coação sobre funcionário.
(…)”.
B) Factos não provados
A matéria de facto não provada que provém da 1ª instância é a seguinte:
“(…).
a. Que os agentes da PSP tivessem, todos, capacetes e escudos de proteção;
b. Que o arguido, ao desferir uma facada no corpo do Chefe BB visasse tirar-lhe a vida;
c. Que o arguido soubesse que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, tendo capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento;
d. Que agisse sempre voluntária e conscientemente, sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei;
e. E que concretamente tivesse capacidade para avaliar da ilicitude da detenção ou transporte da faca “karambite”;
f. Que o assistente BB recebesse, em média, por mês, € 700,00 de serviços remunerados;
g. Que o assistente BB sofresse dores na mão esquerda, apresentando ferida, com pequena hemorragia incontrolável, escoriação no membro superior direito;
h. E que necessitasse de ser suturado com 3 pontos no segundo dedo da mão esquerda e ficasse, aí, com cicatriz;
i. Que este assistente deixasse, durante dias, de sair sozinho;
j. E que evitasse frequentar espaços públicos.
(…)”.
C) Qualificação jurídico-penal dos factos
“(…).
Dos crimes de homicídio qualificado.
Ao arguido é imputada, como se viu, a prática em autoria material de três crimes de Homicídio Qualificado, na forma tentada, previstos e puníveis pelas disposições conjugadas do artigo 131º, 132º, nº 2 alínea l), artigo 22º, nº 1 e nº 2 alínea b), e artigo 23º, nº 1, todos do Código Penal.
Dispõe o artigo 131.º do Código Penal que “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.
O artigo 132º, nº 2 dispõe que “É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
(…)
l) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das regiões autónomas, Provedor de Justiça, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ministro de culto religioso, jornalista, ou juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas.
O artigo 23º, nº 1 coloca no elenco dos crimes puníveis a título de tentativa, o homicídio, atenta a moldura penal, com uma pena de prisão superior a 3 anos.
O nº 2 do artigo 23º, prevê que a tentativa é punível com a pena aplicável ao crime consumado em apreço, que é especialmente atenuada.
Assim, é o artigo 73º do Código Penal que empresta o critério para o cômputo da pena abstratamente aplicável.
Os elementos objetivos essenciais são de fácil apreensão: é punido a título de homicídio quem matar outra pessoa.
Deste modo, estamos perante um crime de resultado.
Este tipo de crime é punível a título doloso, em qualquer uma das suas formas previstas no artigo 14º do Código Penal, sendo que o homicídio praticado a título de negligência merece autonomização do tipo.
Resultou provado que o arguido, nas circunstâncias de tempo e de lugar descritas nos factos assentes, empunhou duas facas, uma karambite com a descrição que aqui se dá por reproduzida, enquanto os assistentes BB, CC e DD procuravam que ele abrisse a porta para poderem executar mandado de condução.
Estes três assistentes são agentes da PSP e estavam ali devidamente identificados e fardados, o que o arguido bem representou.
DD usava capacete e escudo de proteção, para além de colete balístico, enquanto os demais agentes usavam, também eles, coletes balísticos.
Os agentes arrombaram a porta e o arguido, munido das duas facas - uma karambite na mão direita e uma faca de cozinha na mão esquerda - saltou para a frente do agente DD. Então, desferiu um golpe com a faca “karambite” no escudo deste e, pegando na mesma pelo cabo, com a lâmina virada para baixo, desferiu, de cima para baixo, dois golpes, com força, na zona da cabeça do agente DD, apenas não perfurando a mesma por este agente usar capacete de proteção.
Seguidamente, o arguido empurrou o agente DD, o qual caiu para trás, contribuindo para a queda, no chão, do assistente CC.
Aproveitando-se dessa situação, o arguido, com a referida faca karambite, desferiu um golpe na direção da cabeça do agente CC, o que apenas não conseguiu porque o referido agente o afastou com os pés.
Não satisfeito com tal facto, o arguido tentou novamente desferir um golpe com a faca na direção da cabeça do agente CC, quando este se encontrava a levantar.
Nessa altura, o Chefe BB colocou o braço à altura da cabeça do agente CC para evitar que este fosse atingido e para agarrar o arguido por detrás e este desferiu-lhe um golpe com a faca no braço esquerdo.
Em virtude de tal golpe com faca, o assistente BB veio a desfalecer devido a sangramento abundante, tendo de ser assistido nas urgências do Hospital Fernando Fonseca.
Como consequência da conduta do arguido, o assistente BB sofreu ferida incisa na face externa do braço esquerdo com 13 cms de comprimento e 2 cms de profundidade, da qual resultou cicatriz rosada com sinais de pontos de sutura interessando a face lateral do braço, cotovelo e antebraço, medindo 13 cms de comprimento por 0,5 cms de maior largura, limitação nos últimos graus de supinação com os restantes movimentos articulares do cotovelo preservadas, hiposensibilidade referida à face posterior do antebraço.
Mais se provou que o arguido, ao desferir facadas na direção da cabeça do agente CC, bem como ao desferir facadas na cabeça do agente DD, quis agir com o propósito de tirar a vida a estes agentes da PSP. E agiu sabendo que a faca utilizada (Krarambi, com lâmina curva) era especialmente apta a perfurar e rasgar, nomeadamente quando utilizada em zonas vitais, sendo meio adequado a causar a morte dos mesmos, e apenas não logrou atingir tal resultado por motivos alheios à sua vontade. Pelo que, ao desferir uma facada no corpo do Chefe BB visou causar lesão com estas caraterísticas do ferimento causado.
Realizando a subsunção dos factos provados à norma incriminadora, resulta evidente que o arguido praticou atos de execução idóneos a causar o resultado punido pelo tipo criminal em apreço, que apenas não foi atingido por motivos alheios à sua vontade.
Efetivamente, o arguido lança mão de dois instrumentos com caraterísticas corto – contundentes, um deles concebido para agredir e outro com lâmina superior a 10 cm, comprimento definido no Regime Jurídico das Armas e suas Munições para integrar alguns instrumentos dotados de lâmina como arma, para com eles atingir os agentes CC e DD na zona da cabeça.
Assim, o arguido enceta atos idóneos a produzir o resultado típico definido no tipo, pois que inicia, com a sua conduta voluntária, orientada para a produção da morte dos ofendidos CC e DD, um processo causal que não se completa com a produção daquele evento por motivos alheios à sua vontade.
Como se observou, a força com que a lâmina foi projetada à cara/cabeça destes dois assistentes é de molde a concluir que, não fora a circunstância de ter sido rechaçada pelo capacete de DD e pela resistência de CC, os golpes teriam morto os assistentes. Na verdade, na cabeça está alojado o órgão mais complexo e vital, o cérebro, para além de artérias que garantem o afluxo de sangue a este órgão que, caso fossem perfuradas, iniciar-se-ia um processo causal inevitavelmente conducente à morte daqueles.
Ou seja, não se coloca qualquer problema de imputação objetiva e também inexistem dúvidas de que, face à teoria da causalidade adequada, aquele resultado morte poderia ser causado, dentro de um critério de normalidade, pela atuação do arguido, caso não se interpusesse a resistência das vítimas e o equipamento de proteção.
Pelo que se apurou que o arguido praticou atos de execução do tipo criminal em apreço (cfr. artigo 22º b) do Código Penal)
Quanto ao elemento subjetivo do tipo de crime em análise, o mesmo exige o dolo em qualquer das suas modalidades, previstas no artº 14º do Código Penal.
O dolo consiste no conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade.
O elemento intelectual do dolo – o conhecimento do facto – traduz-se na representação pelo agente, no momento em que pratica a ação, de todos os elementos do tipo de ilícito objetivo.
Sendo suficiente o conhecimento tido por indispensável para que a sua consciência ético-jurídica possa solucionar, corretamente, a questão da ilicitude da conduta.
E exige-se, quanto aos elementos normativos do tipo, o conhecimento correspondente ao cidadão comum, a valoração ético-jurídica operada na consciência a de um leigo.
O elemento volitivo do dolo – a vontade de praticar o facto – situa-se, para além deste conhecimento, na direção da vontade do agente para a realização do tipo-de-ilícito-objetivo ou, pelo menos, que a sua vontade se conforme com tal realização.
Não se pode concluir estarem preenchidos, aqui, todos os elementos subjetivos do tipo de crime.
Efetivamente, o arguido encontrava-se incapacitado de avaliar a ilicitude dos factos e de se guiar por essa avaliação à data dos factos– sendo inimputável à luz do artigo 20º do CP. É que, em virtude do quadro psicótico apresentado - ideação paranoide no quadro da esquizofrenia – a capacidade do arguido para avaliar o alcance dos seus atos estava alheada. A capacidade do arguido compreender que determinado facto viola as normas penais estava prejudicada ou mesmo abolida por força deste funcionamento enfermo, resultante dos sintomas da esquizofrenia de que padece.
Pelo que não se mostra preenchido o elemento cognoscitivo do dolo.
E apesar da vontade de praticar os factos, esta determinação não é livre, mas é condicionada, de forma decisiva, por este quadro de anomalia psíquica.
Assim, conclui-se que o arguido está comprometido com os elementos objetivos do tipo de crime de homicídio simples, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 22.º, 23.º e 131º do Código Penal, mas já não poderá estar comprometido com os elementos subjetivos.
Pelo que o arguido, apesar de comprometido, por duas vezes, com o tipo criminal ora em apreço, não é merecedor de uma pena, pela prática deste crime, não podendo ser condenado pelos dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada, podendo apenas discutir-se a necessidade de aplicação de medida de segurança.
No artigo 132.º, o legislador utilizou a técnica dos exemplos padrão, estando em causa, pelo menos para parte muito significativa da doutrina, no seu n.º 2, circunstâncias atinentes à culpa do agente e não à ilicitude, as quais podem traduzir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente – cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 27, e Teresa Quintela de Brito, Direito Penal, Parte Especial: Lições, Estudo e Casos, pág. 191.
A circunstância agravante compreendida na alínea l) é de fácil compreensão, sendo que os assistentes DD e CC eram agentes da PSP no exercício das duas funções.
O arguido atua sobre eles por causa destas funções.
Assim, sendo estes dois assistentes membros de força de segurança, não se pode deixar de se considerar preenchida a situação da alínea l) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal.
No entanto, quanto a este tipo qualificado, previsto pelo artigo 132º do Código Penal, valendo as mesmas considerações quanto à falta dos elementos subjetivos já feitas a propósito do crime de homicídio simples, não se pode deixar de considerado não demonstrado o comprometimento da atuação do arguido com os seus elementos objetivos (previstos nas alínea l)) . E isto porque, conforme se assinalou, estas circunstâncias especiais agravantes previstas no artigo 132º, nº 2 do Código Penal são atinentes à culpa do agente e não à ilicitude.
Assim, não podendo recair sobre este inimputável um juízo de culpa, por a sua conduta não ser produto do seu livre arbítrio, mas antes do seu quadro clínico psicótico, não será possível subsumir a sua conduta ao tipo qualificado.
Quanto à agravação do artigo 86º, nº 3 e da Lei n.º 5/2006 de 23/02 (que aprova o Regime Jurídico das Armas e suas Munições), esta agravação é atinente ao nível da ilicitude.
A atuação do arguido tem lugar com uso de arma, faca “karambite”, prevista no artigo 3º nº 2 g) deste diploma.
Efetivamente, este engenho é composto por uma lâmina curva, cortante e perfurante, em aço, de um gume, com cabo metálico dividido em duas partes articuladas. Uma com uma lâmina, com uma fenda longitudinal a resguardar o gume e a empunhadura com um anel no início que permite ao utilizador agarrá-la de forma mais perfeita.
Este anel de segurança permite ao utilizador colocar o dedo para melhor segurança no manuseamento. A curvatura da lâmina, em forma de garra (de tigre) e o direcionamento da lâmina não levantam dúvidas sobre a sua elevada perigosidade e potencialidade letal.
Trata-se, para mais, de um objeto cortante que pode facilmente ser ocultado na mão e manuseado pelo utilizador para desferir golpes no corpo de terceiros através de movimentos semelhantes ao de murros.
No artigo 3º, da Lei n.º 5/2006 de 23/02 (que aprova o Regime Jurídico das Armas e suas Munições), o legislador previu que as armas integrariam as seguintes classes: “A, B, C, D, E, F e G”.
Ora, o artigo 3º, nº 2 do Regime Jurídico das Armas e suas Munições prevê que “São armas, munições e acessórios da classe A:
(…) g) Quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão;
O artigo 86º, nº 1 prevê que “Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo:
(…) d) Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática ou ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, artigos de pirotecnia, exceto os fogos-de-artifício das categorias F1, F2, F3, T1 ou P1 previstas nos artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 135/2015, de 28 de julho, e bem assim as munições de armas de fogo constantes nas alíneas q) e r) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias”.
Este objeto, atentas as suas caraterísticas, integra a modalidade prevista no artigo 86º, nº 1, al. d) do diploma ora em apreciação, já que se trata de instrumento construído exclusivamente com o fim de ser utilizado como arma de agressão.
Ora, o artigo 86º nº 3 da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, dispõe que “As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.”.
E o nº 4 esclarece que “Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente.”.
O artigo 4º, nº 1 prevê que “São proibidos a venda, a aquisição, a cedência, a detenção, o uso e o porte de armas, acessórios e munições da classe A”.
Ou seja, a agravação está dependente da prática do crime ser perpetrada com utilização, por qualquer comparticipante, de arma prevista nas alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 86º, nº 1, quer esta apareça ou se mantenha oculta e quer a sua posse esteja autorizada, quer não.
Como se viu, o arguido utiliza, nas circunstâncias do crime, arma proibida prevista no artigo 86º, nº 1 d), o que o compromete com os elementos objetivos do tipo criminal.
Acresce que o arguido tinha, ainda, naquelas circunstâncias, ao atacar os assistentes, uma faca de cozinha com mais de 10 cm de comprimento.
Ora, o artigo 2º, nº 1 m) da Lei nº 5/2006 define “Arma branca” como “todo o objeto ou instrumento portátil dotado de uma lâmina ou outra superfície cortante, perfurante ou corto-contundente, de comprimento superior a 10 cm, as facas borboleta, as facas de abertura automática ou de ponta e mola, as facas de arremesso, as estrelas de lançar ou equiparadas, os cardsharp ou cartões com lâmina dissimulada, os estiletes e todos os objetos destinados a lançar lâminas, flechas ou virotões;”.
Pertencem à classe A, além do mais, as seguintes armas:
“d) As armas brancas ou de fogo dissimuladas sob a forma de outro objeto” (cfr. artigo 3º, nº2).
O artigo 3º, nº 2 integra na categoria de “armas, munições e acessórios da classe A”: (…) ab) “As armas brancas com afetação ao exercício de quaisquer práticas venatórias, comerciais, agrícolas, industriais, florestais, domésticas ou desportivas, ou objeto de coleção, quando encontradas fora dos locais do seu normal emprego e os seus portadores não justifiquem a sua posse”.
Ainda que detivesse a faca no ambiente doméstico, usa-a fora da cozinha e até no espaço do patamar, pelo que dúvidas inexistem de que o arguido usa este instrumento fora dos locais do seu normal emprego. O arguido não justifica, igualmente, a sua posse.
Desta forma, o arguido não pode deixar de estar, também pela posse desta faca de cozinha (para além da utilização da karambite), comprometido com os elementos objetivos do crime de homicídio, na sua forma agravada, valendo aqui, mutatis mutandis, o que se vem assinalando a propósito da falta de preenchimento dos elementos subjetivos.
Já no que tange à vítima BB e realizando a subsunção dos factos provados à norma incriminadora, resulta evidente que não está demonstrado que o arguido praticou atos de execução idóneos a causar o resultado punido pelo tipo criminal em apreço.
Não está provado que o arguido visasse, com a sua atuação, a morte deste assistente, nem se comprovou que tenha escolhido meio idóneo a obter tal resultado.
Efetivamente, ainda que visasse os ferimentos deste assistente, o arguido atinge-o no braço, não visando, ao contrário do que acontece com os demais colegas desta vítima, uma zona nobre do corpo onde se alojem órgãos vitais.
Dispõe o artº 143º, nº 1, que “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
E estabelece o artigo 145º do Código Penal, no seu nº 1 que “Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º”.
Já se reproduziu o disposto no artigo 132º, nº 2 l) do Código Penal.
O tipo criminal imputado trata-se de um crime material e de dano, em que o bem jurídico protegido é a integridade física da pessoa humana. “O tipo legal (...) abrange, com efeito, um determinado resultado que é a lesão do corpo ou saúde de outrem, fazendo-se a imputação objectiva deste resultado à conduta ou à omissão do agente de acordo com as regras gerais” (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 204). Por outro lado, está-se perante um tipo legal de realização instantânea, bastando-se o seu preenchimento com a verificação do resultado nele descrito.
São elementos objetivos do crime de ofensas à integridade física simples:
- Ofensas no corpo ou na saúde de outra pessoa.
Assim, o objeto da ação é o corpo humano de outra pessoa, não sendo puníveis como ofensas à integridade física as chamadas autolesões.
“O tipo legal do artº 143º fica preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde , independentemente da dor ou sofrimento causados” (idem).
Por ofensa ao corpo, entende-se “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante” (Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Volume I, págs. 205 e 207), incluindo-se na noção, as atuações que causem uma diminuição ou lesões da substância corporal, alterações físicas e perturbações de funções físicas.
Por ofensa à saúde, entende-se “toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a; pertence a este âmbito toda a produção ou aprofundamento de uma constituição patológica” (idem).
Relativamente ao tipo subjetivo de ilícito, trata-se de um tipo legal doloso (artº 14º C.P.), exigindo-se o dolo em qualquer das suas modalidades.
O dolo neste tipo de crime, reporta-se às ofensas no corpo ou saúde do ofendido, relevando a motivação do agente, tão só para efeitos de determinação da medida concreta da pena.
O tipo qualificado, previsto no artigo 145º, equivale a um tipo autonomizado e qualificado, que se exige pela especial censurabilidade dos meios empregues ou da qualidade da vítima, em termos simétricos aos analisados a propósito do crime de homicídio.
Dos factos dados por assentes, verifica-se que poderia estar, em abstrato, preenchida esta circunstância modificativa agravante, atenta a qualidade em que o chefe da PSP atuou.
No entanto, considerando, aqui, mutatis mutandis, os argumentos já expendidos a propósito do crime de homicídio, não há lugar ao comprometimento com este tipo de crime.
O arguido esfaqueia o braço do assistente, produzindo o ferimento já descrito e, para além das dores, doença que exigiu 58 dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho.
Estamos, pois, perante moléstia significativa.
Não se colocam dificuldades, no caso, ao nível da imputação objetiva, sendo que o resultado é causa adequada da ação adotada pelo arguido – cfr . artigo 10º do CP.
Pelo exposto, visto que a conduta dos arguidos é orientada para lesionar o corpo de pessoa não poderá deixar de se considerar comprometido com os elementos objetivos do crime previsto e punível do artigo 143º, nº 1 do Código Penal.
O arguido atua, concomitantemente, com esta faca karambite, fazendo-se munir, ainda, da faca de cozinha.
Assim, a atuação do arguido é agravada pela circunstância especial modificativa prevista nos artigos 2º, nº 1 m), 3º, nº 2 g) e ab) e 86º, nºs 1 d), 3 e 4 da Lei n.º 5/2006 de 23/02, considerando-se reproduzida a subsunção efetuada a propósito do crime de homicídio, na forma tentada.
E reproduz-se, igualmente, o que foi assinalando a propósito da falta de preenchimento dos elementos subjetivos, considerando-se o arguido, também aqui, inimputável.
Ao arguido foi imputada a prática de crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 2º, nº 1 alínea av), artigo 3º, nº 2 alínea e), artigo 4º, nº 1 e artigo 86º, n.º 1, alínea d), todos da Lei das Armas e suas Munições, aprovada pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro. Por força do aperfeiçoamento da qualificação jurídica considerou-se que a factualidade imputada poderia integrar, em abstrato, um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 2º, nº 1 m), 3º, nº 2 g) e ab), 4º, nº 1 e artigo 86º, n.º 1, alínea d), todos da Lei das Armas e suas Munições, aprovada pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Em suma, é imputada, no que aqui interessa, a posse, de uma faca, da marca BOSIDUN, com comprimento total de 15 cm e lâmina de 6,5cm, com semelhança com garra de tigre, que pela forma única da empunhadura aliada à disposição da curva da lâmina em relação à empunhadura, lhe conferem uma capacidade única de potencializar os danos provocados pela sua utilização (vulgarmente designada como KARAMBIT), de uma faca de cozinha, da marca KOCH MESSER, com comprimento total de 28 cm e lâmina de 16,5cm e de um espigão artesanal com conta perfurante e pega de cor cinzenta, com 19 cm de comprimento, sem utilização definida.
Importa aferir se a detenção destes instrumentos, mesmo nas condições descritas nos autos, integra um crime de detenção de arma proibida, p. p. pelo artigo 86º, nº 1 al. d), da Lei nº 5/2006 de 23/02.
O artigo 4º, nº 1 prevê, como se viu, que “São proibidos a venda, a aquisição, a cedência, a detenção, o uso e o porte de armas, acessórios e munições da classe A”.
Já se discorreu sobre as demais disposições ora em apreciação, concluindo-se que a karambite era arma da classe A, à semelhança da faca de cozinha detida naquelas circunstâncias.
A perigosidade da faca está assim condicionada por esta utilização não justificada, fora dos locais reservados às normais lides domésticas, sendo que a detenção da faca precede a sua utilização no contexto de agressão.
O arguido faz-se munir destas armas, que coloca no hall.
Também o espigão não apresenta qualquer aplicação definida, concluindo-se, pelas suas caraterísticas e empunhadura servir como arma de agressão, pelo que não se pode deixar de se fazer integração jurídica semelhante à efetuada quanto à faca karambite.
Assim, não se pode deixar de considerar que o arguido está comprometido com os elementos objetivos do tipo de crime imputado.
Já quanto aos elementos subjetivos do dolo, exigido pelo tipo, estes não se encontram preenchidos pelas mesmas razões que se expôs a propósito dos crimes de homicídio.
O arguido estava, igualmente, acusado da prática de três crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º, nº 1 e artigo 155º, nº 1, alínea a) e c) (ex vi artigo 132º, nº 2, alínea l) do Código Penal.
Dispõe o nº 1 do artigo 153º que “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.
Pela análise deste normativo, pode verificar-se que o legislador procedeu a uma elencagem expressa dos bens jurídicos ameaçados, não podendo agora ser um qualquer bem protegido penalmente, e alargou o âmbito da incriminação através da sua consagração como crime de perigo, quando antes era de dano (cfr. este sentido C. Andrade RPCC, “Sobre a reforma do direito penal português” ANO 3, P.451).
O tipo de crime em causa exige a adequação da conduta para causar medo, inquietação ou limitação da liberdade de determinação. Assim, a lei concede uma maior tutela da pessoa (neste sentido C. Andrade obra e local citado), retirando dos seus elementos objetivos a necessidade da produção de um resultado. Exige-se apenas que a conduta seja adequada a produzi-lo. Esta adequação é um afloramento da teoria da causalidade adequada consagrado na nossa lei pelo art.10º, nº1 do Código Penal.
Ameaçar é prometer um mal futuro que constitui crime.
Para a consumação deste tipo de crime é necessário que o anúncio de que o agente pretende infligir a outrem um mal que constitui crime, produza ou seja suscetível de produzir, neste, medo ou inquietação ou prejuízo na liberdade de determinação.
O artigo 155º do Código Penal prevê a qualificação do crime de ameaça.
Dispõe o nº 1 deste artigo, sob a epígrafe de “Agravação” que “Quando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º-C forem realizados:
(…)a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; (…) o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153º (…)
c) contra uma das pessoas referidas na alínea l) do n.º 2 do artigo 132.º, no exercício das suas funções ou por causa delas; ”.
O artigo 131º do Código Penal prevê que “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos”.
O legislador procedeu, assim, nesta alínea a) do artigo 155º, em função da elencagem expressa dos bens jurídicos descritos no artigo 153º, à previsão de um tipo agravado pela especial gravidade da ameaça.
Ora, considerou-se provado que o arguido dirigiu ameaças de morte aos três agentes da PSP que aqui se constituíram assistentes, dizendo-lhes, além do mais: “se tentarem abrir a porta, eu corto-vos o pescoço, deixo-vos as tripas de fora, vocês são brancos, quando sair vou-vos cortar o pescoço. Se sair daqui é para vos cortar o pescoço, brancos de merda. Seus filhos da puta, vão-se embora que eu mato-vos, tenho aqui facas, tenho tudo, quem entrar aqui vou matá-los, vou cortar o pescoço, quem entrar que não for da família vou matá-los”.
Estes agentes, que como se viu, integram o conceito de membros de força de segurança, encontravam-se ali no exercício das suas funções e por causa delas.
Ao contrário do que acontece com a construção matricial do crime de homicídio e do crime de ofensa à integridade física simples, a agravação, no caso da alínea c) do artigo 155º do Código Penal, ocorre pela simples verificação da condição profissional em que atua a vítima, já não se exigindo a especial censurabilidade do agente.
O arguido agiu com a intenção de perturbar os agentes, na sua liberdade pessoal e profissional, o que foi conseguido.
Na verdade, estas expressões, assim proferidas, não se trataram de meros desabafos, pois que foram produzidas em circunstâncias que fizeram os destinatários temer pela sua concretização que o arguido veio a procurar.
Assim, tais expressões foram objetivamente adequadas a causar temor.
Tais ameaças equivaleriam à promessa da prática de um crime de homicídio, previsto e punível pelo artigo 131º do Código Penal, com pena de prisão superior, como se viu, a 3 anos.
Estão, pois, preenchidos os elementos objetivos do tipo agravado.
Já quanto aos elementos subjetivos do tipo (art. 14º Código Penal) – culpa manifestada dolosamente pela consciência da ilicitude e representação da idoneidade da ameaça de morte para causar medo em outra pessoa – estes não se mostram preenchidos por força da inimputabilidade do arguido.
Assim, conclui-se também aqui, que o arguido praticou factos integradores do tipo de três crimes de ameaça agravada, tantos quantas a vítimas, apesar de deles dever ser absolvido pela sua inimputabilidade.
O arguido era, também, acusado da prática, em autoria material de três crimes de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181º, nº 1 e artigo 184º (ex vi artigo 132º, nº 2, alínea l) do Código Penal.
Dispõe o artigo 181º, nº 1 que “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias”.
E o artigo 184º prevê que “As penas previstas nos artigos 180º, 181º e 183º são elevadas de metade nos seus limites mínimo e máximo se a vítima for uma das pessoas referidas na alínea l) do nº 2 do artigo 132º, no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade”.
Considera-se reproduzido, também aqui, o disposto no artigo 132º, nº 2 l) do Código Penal.
Como se viu, o arguido dirigiu-se a três agentes da PSP, que estavam no exercício das suas funções e devidamente fardados.
E a todos epitetou-os de “brancos de merda” e “Seus filhos da puta”.
O arguido agiu com o propósito concretizado de ofender a honra e consideração pessoal e profissional dos dois agentes, o que conseguiu.
O arguido ofende os interesses penalmente protegidos da honra e consideração, entendida a primeira como a dignidade pessoal de cada indivíduo e a segunda como a sua reputação, o merecimento no meio social.
Ao proferir aquelas frases e expressões, mesmo num contexto de tensão motivado pela ação dos agentes que procuravam conduzir o arguido a Instituição Hospitalar contra a autorização deste, o arguido agiu apenas com o propósito de achincalhar os agentes da PSP, empregando expressões que, para além de racistas, são objetivamente injuriosas.
E está provado que o arguido, ao proferir estas expressões, sabia que ofendia a honra e consideração pessoal e profissional dos dois agentes da PSP.
Pelo que o arguido está comprometido, por três vezes, com os elementos objetivos do crime de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181º, nº 1 e artigo 184º (ex vi artigo 132º, nº 2, alínea l) do Código Penal.
Sendo o crime em apreço punível apenas a título doloso (artigo 14º, nº1 do Código Penal), valem aqui as considerações já tecidas a propósito da inimputabilidade do arguido.
(…)”.
D) Fundamentação da aplicação da medida de segurança
“(…).
Nos termos do artigo 91º, nº 1 do Código Penal, “Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie”.
Prevê o nº 2 que “Quando o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, o internamento tem a duração mínima de 3 anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social”.
A aplicação de uma medida segurança de internamento depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
- prática de um facto ilícito típico (crime);
- inimputabilidade por anomalia psíquica do agente; e
- formulação de um juízo de perigosidade, assente no fundado receio de que a anomalia psíquica do agente, na sua correlação com a gravidade do facto cometido, faça supor o cometimento de outros factos da mesma espécie.
Como escreve Cristina Líbano Monteiro, em Perigosidade de inimputáveis e in dubio pro reo, Coimbra Editora, abril de 1997, pág. 125 e 81, “o juízo de inimputabilidade implica uma prova tríplice ou um triângulo probatório cujos lados são: o facto, a anomalia psíquica e o nexo que os junta numa mesma unidade de sentido. A aplicação de uma medida de segurança passa inevitavelmente por um juízo de prognose, que se reputa aliás decisivo e fundamental – o juízo sobre a perigosidade criminal do arguido”.
Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, em Noções de Direito Penal , 5.ª ed., Rei dos Livros, 2016, pág. 319, a propósito do último requisito, consideram que este juízo de perigosidade corresponde a uma prognose desfavorável em que ocorre “uma acentuada possibilidade de que o agente volte a praticar factos típicos, derivada da consideração conjunta da anomalia psíquica, da natureza e da gravidade do facto típico praticado”.
Assim, a simples perigosidade do inimputável não constitui, per si, fundamento para a aplicação de uma medida de internamento. Exige-se, adicionalmente, que essa perigosidade se revele através dos factos típicos penalmente relevantes e se mostre que eles se podem repetir.
Conclui-se, dos factos provados, que o arguido praticou factos que o comprometem com os elementos objetivos de dois crimes de homicídio agravado, forma tentada, previstos e puníveis pelos artigos 22º, nº 1 e nº 2 alínea b), 23º, nº 1 e 131º, todos do Código Penal e artigos 2º, nº 1 m), 3º, nº 2 g) e ab) e 86º, nºs 1 d), 3 e 4 da Lei n.º 5/2006 de 23/02, de um crime de ofensa à integridade física agravado, previsto e punível pelos artigos 143º, nº 1 do Código Penal e artigos 2º, nº 1 m), 3º, nº 2 g) e ab) e 86º, nºs 1 d), 3 e 4 da Lei n.º 5/2006 de 23/02 (que aprova o Regime Jurídico das Armas e suas Munições), de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 2º, nº 1 m), 3º, nº 2 g) e ab), 4º, nº 1 e artigo 86º, n.º 1, alínea d), todos da Lei das Armas e suas Munições, aprovada pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, de três crimes de ameaça agravada, previstos e puníveis pelos artigos 153º, nº 1 e artigo 155º, nº 1, alínea a) e c) (ex vi artigo 132º, nº 2, alínea l) do Código Penal e de três crimes de injúria agravada, previstos e puníveis pelos artigos 181º, nº 1 e artigo 184º (ex vi artigo 132º, nº 2, alínea l) do Código Penal.
Mais se comprovou que o arguido padecia de anomalia psíquica grave à data da prática dos factos, quadro clínico em que ainda se mantém, já que se encontrava incapaz de avaliar a ilicitude dos factos e de se determinar de acordo com essa avaliação.
E está demonstrado, assim, o nexo entre a prática de tais factos ilícitos graves – crimes contra as pessoas e um crime de perigo comum – e esta anomalia psíquica grave (esquizofrenia) que o impediu de adotar uma conduta conforme com o direito.
O arguido não pode, pois, deixar de se considerar como inimputável, o que se declara, à luz do artigo 20º do CP.
É necessário, agora, aferir da necessidade da aplicação de uma medida de segurança, em concreto o internamento previsto no artigo 91º, nº 1 do Código Penal. Efetivamente, perante esta situação de inimputabilidade do arguido, o seu internamento em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança depende da conclusão de que, em virtude da anomalia psíquica, ainda há fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie.
A Prof. Maria João Antunes, em “Medida de Segurança de Internamento e Facto de Inimputável em Razão de Anomalia Psíquica”, Coimbra Editora, pág. 473 considera que estamos perante uma perigosidade específica, já que se exige o cometimento de factos da mesma espécie e o estabelecimento de uma ligação de causa e efeito entre a anomalia psíquica e o receio da prática de factos da mesma espécie do facto praticado anteriormente. Assim se confirmando, ao exigir-se que os factos receados sejam da mesma espécie do facto praticado pelo agente inimputável por motivo de anomalia psíquica, do facto pressuposto é esperada a função de facto comprovativo de perigosidade criminal emergente da anomalia psíquica.
No caso concreto, é inevitável concluir pela perigosidade, independentemente do juízo pericial feito a esse propósito.
Sendo que a perigosidade até é incluída e prevista no relatório pericial (que aponta para uma potencialidade média de repetição de atos violentos).
O arguido não tem “insight” ou juízo crítico para as alterações psíquicas mórbidas que apresenta no estado mental, não tendo consentido, em meio exterior e livre, na intervenção médica que seria essencial à eliminação do perigo que a sua doença arrasta.
Os factos ocorrem até na sequência dessa recusa em tratar-se.
Estamos perante um juízo de perigosidade subjetiva, orientando-se a prognose para o futuro (ainda que revistos os factos ocorridos no passado, nomeadamente o percurso criminoso do arguido).
E esta prognose é, inevitavelmente, uma tarefa do juiz, que tem de perscrutar o futuro através da projeção da personalidade do arguido num cenário que ainda não ocorreu, procurando ajuizar sobre a eventualidade deste vir a estar na origem de novos factos ilícitos-típicos Cfr. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e «in dubio pro reo», pág. 91.
Inexistem dúvidas, com base na perícia, que o arguido é portador de anomalia psíquica que foi determinante da prática do ilícito típico muito grave.
O arguido, mercê desta situação paranoide, atentou contra a vida de dois agentes da PSP e ofendeu, de forma séria, a integridade física de outro.
O arguido já praticou e foi condenado por diversos crimes contra as autoridades.
Pelo que existe certeza da sua perigosidade.
A perigosidade do inimputável não constitui, apenas por si, fundamento para a aplicação de uma medida de internamento.
A suspensão da execução da medida de internamento, depende de ser expectável, razoavelmente, que com essa suspensão se alcance a finalidade da medida.
Como ensina Figueiredo Dias (cfr. Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 446), “a matéria relativa à aplicação de medidas de segurança deve subordinar-se estritamente ao princípio da subsidiariedade: uma medida de segurança não deve ser aplicada quando outras medidas menos onerosas constituam uma protecção adequada e suficiente dos bens jurídicos face à perigosidade do agente”.
Ora, a perigosidade do arguido não está debelada e é muito elevada.
Por tudo o que ficou assente, permite-se concluir que o arguido, fora de um contexto de internamento, tenderá a abandonar a terapêutica e repetir factos como os assentes contra as pessoas que com ele interajam.
Deste modo, entendemos que a aplicação de medida de segurança, de internamento, é indispensável a prevenir tal perigosidade criminal e patológica, sendo de afastar a sua suspensão.
Sendo que inexistem dúvidas de que os factos, integrados à luz dos tipos de crime que integram, de homicídio e de ofensa à integridade física grave, assumem gravidade e seriedade suficientes para exigir tal internamento.
O nº. 2 do artigo 91º do Código Penal fixa um limite mínimo do internamento para crimes com esta moldura penal, superior a 5 anos – estamos perante um crime de homicídio agravado na forma tentada punível com pena de 2 anos, 1 mês e oito dias até 21 anos e 4 meses.
A duração mínima deste internamento corresponde, assim, a três anos.
O internamento aplicável por força do artigo 91º do CP tem como limite máximo de duração os 21 anos e 4 meses, correspondentes ao limite máximo da pena – cfr. artigo 92º, do CP (nos termos deste nº 2 “O internamento não pode exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo do crime cometido pelo inimputável”). Na verdade, em consonância com esta disposição, o limite máximo da medida de internamento, em caso de concurso de ilícitos típicos, como é o caso, corresponde ao limite máximo da pena correspondente ao tipo do crime mais grave praticado pelo inimputável.
O nº 1 desta disposição prevê que: “Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo anterior, o internamento finda quando o tribunal verificar que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem”.
Assim, atenta a gravidade dos factos, o forte impacto vitimológico e a moldura penal, entende-se ser de aplicar a medida de segurança de internamento, com limite mínimo do internamento em 3 anos e máximo de 21 anos e 4 meses.
Um ano após o trânsito desta decisão, será revista esta medida, por força do disposto no artigo 93º, nº 2 do CP.
(…)”.
*
Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso.
Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência.
Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso.
Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes).
Assim, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir no presente recurso, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, por ordem de precedência lógica, são:
- A de saber se o acórdão recorrido enferma da nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do art. 379º do C. Processo Penal;
- A de saber se o acórdão recorrido fez uma incorrecta qualificação jurídica dos factos, relativamente aos crimes de homicídio na forma tentada, daqui decorrendo uma contradição insanável;
- A de saber se a interpretação feita, no acórdão recorrido, das disposições conjugadas dos arts. 1º, a) e f), 358º, nºs 1 e 3, 359º, nº 1 e 379º, nº 1, b), todos do C. Processo Penal, viola o disposto nos arts. 1º, 2º, 18º, nº 2, 20º, nº 4 e 32º, nºs 1, 2 e 5, todos da Constituição da República Portuguesa;
- A de saber se no acórdão recorrido foi incorrectamente fixada a duração máxima da medida de segurança decretada.
*
1. Alega o recorrente – conclusões III a XVII e XX e XXI – que coincidindo o objecto do processo com a noção de crime, tal como definido no art. 1º, a) do C. Processo Penal, e assentando a alteração substancial dos factos, prevista na alínea f) do mesmo artigo, naquela definição de crime, no sentido de ser este, factos normativamente considerados, pode dizer-se que a imutabilidade do objecto do processo só incide sobre os elementos essenciais do crime, portanto, os que integram os pressupostos de facto e de direito de que depende a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, e não, sobre os elementos acidentais daquele, pelo que, sendo os factos que o tribunal a quo inseriu no objecto do processo susceptíveis de integrarem elementos típicos objectivos dos crimes imputados na acusação, e não podendo esta ser salva por essa inserção, por a tanto se opor o Acórdão nº 1/2015, pois a alteração operada veio a determinar a medida de internamento aplicada, ocorre a nulidade prevista no art. 379º, nº 1, b), do C. Processo Penal.
Vejamos.
A estrutura acusatória do processo penal, constitucionalmente garantida no nº 5 do art. 32º da Lei Fundamental, determina a afirmação do princípio acusatório ou princípio da acusação no processo penal português.
Numa formulação simplista, podemos dizer que o princípio da acusação significa que a entidade que investiga e acusa tem de ser distinta da entidade que julga, deste modo se assegurando as condições essências da decisão judicial, a imparcialidade e objectividade.
A afirmação do princípio tem como consequência que o objecto do processo, o thema decidendum, seja definido na acusação [pública ou particular], ou na pronúncia, quando exista.
Assim, os poderes de cognição e decisão do tribunal estão limitados pela acusação enquanto objecto do processo, nisto se traduzindo o princípio da vinculação temática, consubstanciado nos sub-princípios da identidade, da indivisibilidade e da consumpção (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1ª Edição 1974, Reimpressão, 2004, Coimbra Editora, págs. 144 e seguintes, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 1, 2017, Universidade Católica Editora, pág. 367 e seguintes, Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2016, Almedina, pág. 72 e seguintes e Pedro Soares de Albergaria, ob. colectiva, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV, 2022, Almedina, pág. 630 e seguintes).
Entendido desta forma, o princípio da acusação garante o efectivo exercício do direito de defesa, impedindo que o arguido possa ser surpreendido por arbitrárias ampliações do poder de cognição e de decisão do tribunal.
Sendo o objecto do processo fixado na acusação – através dos factos nela descritos, normativamente entendidos, isto é, conjugados com as normas tidas por infringidas com a sua prática –, por imposição do princípio acusatório e na decorrência da vinculação temática, o tribunal não poderia, em regra, considerar factos ou circunstâncias que nela, acusação, se não encontrassem, susceptíveis de prejudicarem a defesa apresentada pelo arguido.
Acontece que, seja por razões de economia processual, seja pelo interesse na definição da situação do arguido, a lei permite que o tribunal considere factos e circunstâncias não integradas na acusação, desde que daí não resulte uma alteração do núcleo essencial da acusação, com a consequente diminuição, a limites intoleráveis, da efectividade da defesa (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 3ª Reimpressão, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 255 e seguintes), situações que a lei trata, no que à fase do julgamento respeita, nos arts. 358º, nº 1 e 359º do C. Processo Penal, e cuja inobservância dá causa à nulidade da sentença prevista na alínea b) do nº 1 do art. 379º do mesmo código.
Nestes artigos a lei distingue entre alteração substancial e alteração não substancial dos factos descritos na acusação [ou na pronúncia, se a houver], o que convoca, para a primeira categoria indicada, a definição prevista no art. 1º, f) do C. Processo Penal, que considera «Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis. Na ausência de definição de alteração não substancial, a mesma é alcançada por exclusão de partes, sendo a que não tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, portanto, a que não importar uma alteração do objecto do processo.
O regime da alteração substancial encontra-se regulado no art. 359º do C. Processo Penal. Neste caso, a regra é a de que os factos [novos] alterados não podem ser tomados em conta para efeitos de condenação no processo, nem implicam a extinção da instância (nº 1). Sendo os factos alterados autonomizáveis em relação ao objecto do processo, a sua comunicação ao Ministério Público vale como denúncia, para efeitos do respectivo procedimento (nº2). Fica, no entanto, ressalvada a possibilidade de, estando o Ministério Público, o arguido e o assistente de acordo com a continuação do julgamento pelos factos alterados, e se estes não determinarem a incompetência do tribunal, tais factos poderem ser tomados em conta no processo em curso (nº 3), tudo sem prejuízo da preparação da defesa (nº 4).
O regime da alteração não substancial encontra-se regulado no art. 358º do C. Processo Penal. Aqui, o tribunal pode considerar os factos alterados no processo, desde que relevantes, impondo apenas a lei a comunicação da alteração ao arguido e a concessão de tempo necessário para a preparação da defesa (nº 1), salvo quando a alteração tenha derivado de factos por ela, defesa, alegados (nº 2).
Retomando a definição prevista na alínea f) do art. 1º do C. Processo Penal, tendo presente que a alínea a) do mesmo artigo define «Crime» como o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais, considerando como facto o acontecimento da vida, delimitado no espaço e no tempo, imputado a certo sujeito (Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua Relevância Jurídica no Processo Penal Português, 2ª Edição, 1995, Almedina, pág. 100), ou a modificação da realidade preexistente (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 3ª Reimpressão, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 257), em qualquer caso, visto no plano do acontecimento histórico e no plano da relevância jurídico-penal (Pedro Soares de Albergaria, op., loc., cit., pág. 632), e tendo presente que a alteração significa a variação de factos ou circunstâncias ainda dentro do mesmo quadro histórico que constitui o objecto do processo, só por referência ao tipo legal de crime podemos determinar se a alteração de qualquer elemento ou circunstância do facto implica ou não alteração relevante, crime diverso ou agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 3ª Reimpressão, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 258).
Em todo o caso, para este efeito, crime diverso não significa tipo de crime diverso, mas antes, crime com uma estrutura diferente da do crime objecto do processo, diferença esta introduzida pela alteração factual verificada.
Refira-se, por último, que a Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, introduziu o nº 3 do art. 358º do C. Processo Penal que estabelece, [o] disposto no nº 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, o que, conjugado com o nº 4 do art. 339º do mesmo código [acrescentado pela mesma lei] que, reafirmando a ideia que o objecto do processo é o objecto da acusação, dispõe que, [s]em prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultantes da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368º e 369º, o que torna inquestionável ter sido opção do legislador admitir a livre qualificação jurídica dos factos por parte do tribunal.
Note-se, para concluir, que uma alteração da qualificação jurídica não implica uma alteração, substancial ou não, dos factos.
Dito isto.
2. Na acusação pública foi imputada ao arguido, além do mais, a prática, em concurso efectivo, de três crimes de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, nºs 1 e 2, b), 23º, nº 1, 131º e 132º, nº 2, l), todos do C. Penal, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 2º, nº 1, av), 3º, nº 2, e), 4º, nº 1 e 86º, nº 1, d), todos da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Na audiência de julgamento de 25 de Janeiro de 2024 [referência .......14], foi proferido pelo Mmo. Juiz presidente o seguinte despacho:
A factualidade tal como imputada na douta acusação e, concluída a fase de produção de prova, poderá integrar em abstrato, em alternativa a um dos crimes de homicídio na forma tentada, um crime de ofensa à integridade física agravado, previsto e punível pelos artigos 143º, nº 1 do Código Penal e artigos 2º, nº 1 m), 3º, nº 2 g) e ab) e 86º, nºs 1 d), 3 e 4 da Lei n.º 5/2006 de 23/02 (que aprova o Regime Jurídico das Armas e suas Munições).
Poder-se-á considerar que o arguido poderá ter praticado, ainda, factos subsumíveis de integrar dois crimes de homicídio agravado na forma tentada previsto e puníveis pelos art.º 22.º, n. º1 e n.º 2.º al b), n.º23 n.º1 e 131.º do C.P e art.º 143 n.º do C.P e art.º nº1 al m), 3º nº2 al. g) e a), b) e art.º 86.º nº 1 al d) e n.º 3 e n.º 4 da Lei 5/2006 que aprova o Regime Jurídico das Armas e Munições.
Ainda a título de aperfeiçoamento da qualificação jurídica, considera-se a possibilidade de, em abstrato, o arguido estar comprometido com um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelos artigos 2º, nº 1 m), 3º, nº 2 g) e ab), 4º, nº 1 e artigo 86º, n.º 1, alínea d), todos da Lei das Armas e suas Munições, aprovada pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro..
Comunica-se a alteração da qualificação ora proposta à defesa do arguido, para os efeitos previstos no artigo 358º, nº 1 e 3 do CPP.
Consta da acta da audiência de julgamento em referência que a Ilustre Defensora nada opôs ao comunicado e declarou prescindir de prazo para apresentação de defesa.
Note-se, desde já, a existência de um lapso de escrita no despacho transcrito pois, no seu § 2º, referente aos dois sobrantes crimes de homicídio agravado na forma tentada, repete, indevidamente, a referência ao art. 143º do C. Penal [aparentemente, por cópia do § 1º, onde foi avançada a possibilidade de um dos três crimes de homicídio tentado vir a ser degradado para um crime de ofensa à integridade física agravado, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do C. Penal, conjugado com o art. 86º, nºs 1, d), 3 e 4, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro].
Note-se, por último, que em nenhuma das restantes audiências de julgamento [ocorridas a 11, 18 e 29 de Janeiro de 2024, referências .......75, .......68 e .......70, respectivamente] se mostra documentada qualquer outra comunicação de alteração, seja de factos descritos na acusação, seja de qualificação jurídica, feita pelo tribunal ao arguido.
No acórdão recorrido foi decidido, além do mais, absolver o arguido da prática de todos os crimes que lhe eram imputados na acusação, julgar provada a prática pelo arguido, de actos objectivamente integradores de, dois crimes de homicídio agravado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, nºs 1 e 2, b), 23º, nº 1 e 131º, todos do C. Penal e 2º, nº 1, m), 3º, nº 2, g) e ab) e 86º, nºs 1, d), 3 e 4 da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, de um crime de ofensa à integridade física agravado, p. e p. pelos arts. 143º, nº 1 do C. Penal e 2º, nº 1, m), 3º, nº 2, g) e ab) e 86º, nºs 1, d), 3 e 4 da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, de um de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos arts. 2º, nº 1, m), 3º, nº 2, g) e ab), 4º, nº 1 e artigo 86º, n.º 1, d), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, de três crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, a) e c), com referência ao art. 132º, nº 2, l), todos do C. Penal, e de três crimes de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181º, nº 1 e artigo 184º, com referência ao art. 132º, nº 2, l), todos do C. Penal, declarar o arguido AA inimputável perigoso, por força de anomalia psíquica, nos termos do art. 20º, nº 1, do C. Penal e determinar o seu internamento e tratamento em estabelecimento adequado, com a duração mínima de três anos e a duração máxima de vinte e um anos e quatro meses.
Na acusação foi imputada ao arguido a prática dos seguintes factos:
1. No dia ...-...-2022, cerca das 13:30, a patrulha da PSP, constituída pelos Agentes da PSP CC, BB e DD, devidamente uniformizados e no exercício de funções, deslocaram-se à residência do arguido, sita na Rua ..., ... ..., a fim de proceder ao cumprimento de mandados de condução para internamento compulsivo.
2. Chegados ao local os Agentes da PSP bateram à porta e disseram “AA, tens de vir connosco, tens que tomar a tua medicação”.
3. Nessa ocasião, no interior da residência, o arguido muniu-se de uma faca, um martelo e uma chave de fendas em cima da mesa do hall de entrada e disse aos agentes da PSP, em tom alto e sério: “se tentarem abrir a porta, eu corto-vos o pescoço, deixo-vos as tripas de fora, vocês são brancos, quando sair vou-vos cortar o pescoço. Se sair daqui é para vos cortar o pescoço, brancos de merda. Seus filhos da puta, vão-se embora que eu mato-vos, tenho aqui facas, tenho tudo, quem entrar aqui vou matá-los, vou cortar o pescoço, quem entrar que não for da família vou matá-los”.
4. O arguido detinha na sua posse uma faca, da marca BOSIDUN, com comprimento total de 15 cm e lâmina de 6,5cm, com semelhança com garra de tigre, que pela forma única da empunhadura aliada à disposição da curva da lâmina em relação à empunhadura, lhe conferem uma capacidade única de potencializar os danos provocados pela agressão (vulgarmente designada como KARAMBIT).
5. O arguido detinha também na sua posse uma faca de cozinha, da marca KOCH MESSER, com comprimento total de 28 cm e lâmina de 16,5cm.
6. O arguido detinha ainda na sua posse um espigão artesanal com conta perfurante e pega de cor cinzenta, com 19 cm de comprimento, sem utilização definida.
7. Após nova tentativa dos Agentes da PSP o arguido trancou a porta e disse em tom alto e sério “seus filhos da puta, entram aqui e mato-vos, eu estou armado, daqui ninguém sai mais”.
8. Seguidamente os agentes da PSP arrombaram a porta da residência, com capacetes e escudos de protecção.
9. Em acto imediato, o arguido munido de duas facas, uma karambite na mão direita e uma faca de cozinha na mão esquerda saltou para cima do agente DD e desferiu um golpe com a faca “karambite” no escudo e pegou na mesma pelo cabo, com a lâmina virada para baixo, e desferiu novamente dois golpes com força, na zona da cabeça do agente DD, apenas não perfurando a mesma em virtude de o agente usar capacete de protecção.
10. Seguidamente o arguido, com a mesma faca, empurrou o agente DD, o qual caiu para trás, o que fez com que o agente CC também caísse no chão.
11. Aproveitando-se dessa situação, o arguido, com a referida faca, desferiu um golpe na direcção da cabeça do agente CC, o que apenas não conseguiu porque o referido agente afastou o arguido com os pés.
12. Não satisfeito com tal facto, o arguido tentou novamente desferir um golpe com a faca na direcção da cabeça do agente CC, quando este se encontrava a levantar, sendo nessa altura que o Chefe Castro colocou o braço à altura da cabeça do referido agente para evitar que este fosse atingido.
13. Nessa altura, o arguido desferiu um golpe com a faca no braço esquerdo do agente BB.
14. Em virtude de tal golpe com faca o agente BB veio a desfalecer devido a sangramento abundante, tendo de ser assistido nas urgências do Hospital Fernando Fonseca.
15. Como consequência da conduta do arguido, o assistente BB sofreu ferida incisa na face externa do braço esquerdo com 13 cms de comprimento e 2 cms de profundidade, da qual resultou cicatriz rosada com sinais de pontos de sutura interessando a face lateral do braço, cotovelo e antebraço, medindo 13 cms de comprimento por 0,5 cms de maior largura, limitação nos últimos graus de supinação com os restantes movimentos articulares do cotovelo preservadas, hiposensibilidade referida à face posterior do antebraço.
16. O arguido, ao desferir facadas na direcção da cabeça do agente CC, bem como ao desferir uma facada no corpo do Chefe BB e na cabeça do agente DD, representou e quis agir com o propósito de tirar a vida aos agentes da PSP, bem sabendo que a faca utilizada (Krarambi, com lâmina curva) era especialmente apta a perfurar e rasgar, nomeadamente quando utilizada em zonas vitais, de modo adequado a causar a morte dos mesmos, e apenas não logrou atingir tal resultado por motivos alheios à sua vontade.
17. O arguido agiu sabendo que não poderia deter ou transportar a referida faca, com tais características.
18. O arguido sabia ainda que ao proferir as expressões acima descritas no ponto 3, pelo seu teor e forma séria como as proferiu, acompanhada da faca que tinha na mão, as mesmas eram susceptíveis de causar medo e inquietação a estes, como efectivamente causaram, fazendo-os recear pela sua integridade física.
19. Com a conduta descrita, o arguido agiu, querendo e conseguindo proferir as expressões narradas no ponto 7, ciente que as mesmas atingiam os agentes da autoridade na sua honorabilidade, e que os mesmos se encontravam no exercício das suas funções, estando ciente da censura penal da sua conduta.
20. O arguido conhecia a qualidade de agentes da P.S.P. de BB, DD e CC e que se encontravam uniformizados e no exercício das suas funções.
21. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que tais condutas eram proibidas e punidas criminalmente.
Comparando esta narrativa com o teor dos factos provados constantes do acórdão em crise, obtemos as seguintes correspondências:
- art. 1º da acusação – ponto 1 dos factos provados (com irrelevantes modificações de estilo);
- art. 2º da acusação – ponto 2 dos factos provados (ipsis verbis);
- art. 3º da acusação – ponto 3 dos factos provados (ipsis verbis);
- art. 4º da acusação – ponto 4 dos factos provados (com irrelevantes modificações de estilo);
- art. 5º da acusação – ponto 5 dos factos provados (ipsis verbis);
- art. 6º da acusação – ponto 6 dos factos provados (com irrelevantes modificações de estilo);
- art. 7º da acusação – ponto 7 dos factos provados (com excepção do segmento «o arguido trancou a porta e»);
- art. 8º da acusação – pontos 8, 9 e 10 dos factos provados (com irrelevantes modificações de estilo);
- art. 9º da acusação – pontos 11 e 12 dos factos provados (com irrelevantes modificações de estilo);
- art. 10º da acusação – ponto 13 dos factos provados (com excepção do segmento «com a mesma faca»);
- art. 11º da acusação – ponto 14 dos factos provados (ipsis verbis);
- art. 12º da acusação – pontos 15 e 16 dos factos provados (com irrelevantes modificações de estilo e aditamento do segmento «e para agarrar o arguido por detrás»);
- art. 13 da acusação – ponto 17 dos factos provados (ipsis verbis);
- art. 14º da acusação – ponto 18 dos factos provados (com irrelevantes modificações de estilo);
- art. 15º da acusação – ponto 19 dos factos provados (ipsis verbis);
- art. 16º da acusação – pontos 20 e 21 dos factos provados (com exclusão do segmento «ao desferir uma facada no corpo do Chefe BB»);
- art. 17º da acusação – sem correspondência nos factos provados;
- art. 18º da acusação – pontos 23 e 24 dos factos provados (com irrelevantes modificações de estilo);
- art. 19º da acusação – ponto 25 dos factos provados (com irrelevantes modificações de estilo);
- art. 20º da acusação – ponto 26 dos factos provados (com irrelevantes modificações de estilo);
- art. 21º da acusação – sem correspondência nos factos provados.
Cumpre ainda esclarecer que:
- Não tendo os arts. 17º e 21º da acusação, como se deixou dito, correspondência nos factos provados, têm, no entanto, o seu reflexo nos pontos e [E que concretamente tivesse capacidade para avaliar da ilicitude da detenção ou transporte da faca “karambite”] e d [Que agisse sempre voluntária e conscientemente, sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei] dos factos não provados;
- Não tendo o ponto 22 dos factos provados correspondência com qualquer artigo da acusação, está o mesmo relacionado com o segmento «ao desferir a facada no corpo do Chefe BB» constante do art. 16º da referida peça processual, que não passou para os correspondentes arts. 20 e 21 dos factos provados, e com o ponto b [Que o arguido, ao desferir uma facada no corpo do Chefe BB visasse tirar-lhe a vida ] dos factos não provados; e,
- Os pontos 44 [O arguido sofre de anomalia psíquica – Esquizofrenia Paranóide (F... CID-10 OMS, ...) – e, à data dos factos supra descritos, encontrava-se com sintomas agudos tais como desorganização, ideação delirante persecutória e alterações sensório-preceptivas, com alucinações e pensamento delirante e persecutório], 45 [O seu comportamento supra descrito foi condicionado por anomalia psíquica grave da perceção e do pensamento de que era, e é, detentor] e 46 [Decorrente da psicopatologia alucinatória e delirante e da anomalia psíquica de que padece, o arguido não era capaz, à data dos factos, de avaliar a ilicitude desses seus atos, ou de se determinar de acordo com essa avaliação], todos referentes à condição do arguido de inimputável em razão de anomalia psíquica, no momento da prática do facto, não têm correspondência com qualquer artigo da acusação.
Aqui chegados.
No despacho de 25 de Janeiro de 2024, proferido na audiência de julgamento de 25 de Janeiro de 2024, supra transcrito, nos termos em que consta da respectiva acta, não foi comunicada ao arguido qualquer alteração dos factos descritos na acusação, pois o mesmo visou apenas comunicar ao arguido a possível alteração da qualificação jurídica de tais factos.
Os segmentos que constavam dos arts. 7º, 10º e 16º da acusação, acima assinalados, e que não passaram para os correspondentes pontos de facto provados, não constituem, obviamente, alteração dos factos descritos na acusação, desde logo, porque dela constavam e por isso, quanto a eles, pôde o arguido deduzir efectiva defesa.
O mesmo se diga quanto aos arts. 17º e 21º da acusação, precisamente porque não passaram para os factos provados do acórdão recorrido.
Diferente é já a situação decorrente de se ter feito constar do ponto 16 dos factos provados o segmento final «e para agarrar o arguido por detrás», quando esta circunstância não contava do art. 12º da acusação.
Trata-se, no entanto, de uma mera precisão na descrição de uma acção, em todo o caso, sem qualquer relevo para a decisão da causa, pelo que, sempre se furtará à qualificação de alteração (não substancial) dos factos descritos na acusação.
Relativamente aos pontos 44 a 46 dos factos provados que constituem, efectivamente, uma variação factual ainda cabível no objecto do processo definido na acusação, não tendo sido comunicados no despacho de 25 de Janeiro de 2024, não deixaram, no entanto, de ter sido convocados pela defesa do arguido.
Com efeito, sem prejuízo de existir nos autos um relatório de perícia médico-legal psiquiátrica datado de 27 de Junho de 2023 (referência ...73), por requerimento de 15 de Dezembro de 2023 (referência ...64), veio o arguido, invocando o seu histórico de perturbações psiquiátricas e internamentos compulsivos, bem como a circunstância de o relatório social e aquele relatório pericial referirem a existência de sintomatologia compatível com o diagnóstico de esquizofrenia paranoide e a sua qualidade de inimputável perigoso, requerer a realização de nova perícia psiquiátrica.
Ainda que o requerimento tenha sido indeferido por despacho de 5 de Janeiro de 2024, com fundamento em que, não só nenhumas reservas se colocavam quanto à idoneidade e objectividade das conclusões formuladas no juízo pericial constante do relatório de 27 de Junho de 2023, como também não estavam verificados os pressupostos previstos no art. 158º, nº 1, b), do C. Processo Penal, certo é que a conduta do processual do arguido é subsumível á previsão do nº 2, do art. 358º do mesmo código, pelo que, não haveria lugar à comunicação dos questionados factos.
Atentemos agora na problemática relacionada com a degradação do crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, nºs 1 e 2, b), 23º, nº 1, 131º e 132º, nº 2, l), todos do C. Penal, que tem por ofendido, o assistente BB, em crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 do C. Penal, agravado pelas disposições conjugadas dos arts. 2º, nº 1 m), 3º, nº 2 g) e ab) e 86º, nºs 1 d), 3 e 4 da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro.
O tribunal colectivo afastou a qualificação dos factos em causa constante da acusação, na sequência de não ter dado como provados os referentes ao tipo subjectivo do crime de homicídio, relativamente ao identificado ofendido [ponto b dos factos não provados]. Por outro lado, considerou como provados factos novos [ponto 22 dos factos provados] preenchedores do tipo subjectivo do crime de ofensa à integridade física simples, que não foram comunicados no despacho de 25 de Janeiro de 2024.
Sendo um dado adquirido que o regime legal da alteração dos factos visa assegurar as garantias de defesa do arguido, impedindo que possa ser surpreendido, na respectiva estruturação, pela variabilidade da situação de facto, in casu, perante a inicial imputação de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, parece aceitável considerar, diante a ausência de prova do ‘dolo de homicídio’, e a prova, ex novo, do ‘dolo de ofensa à integridade física’, que o arguido pôde orientar convenientemente a sua defesa, pois que, como é sabido, no iter do homicídio tentado, muito frequentemente se atravessa a ofensa à integridade física. E tanto assim é, que o próprio arguido, como veremos infra, vem defender no recurso, a mesma ‘solução’, para os sobrantes dois crimes de homicídio tentado, pretendendo a sua convolação em crimes de ofensa à integridade física simples.
Em todo o caso, cumpre dizer que a situação em análise é completamente irrelevante para a decisão pois que, tendo o arguido sido considerado inimputável perigoso e, em consequência, sujeito a medida de segurança de internamento e tratamento em estabelecimento adequado, a medida desta, dada a pluralidade de ilícitos típicos praticados e atento o disposto no art. 92º, nº 2 do C. Penal, é determinada em função do limite máximo da pena correspondente ao tipo do crime mais grave praticado, portanto, pela pena do homicídio tentado e não, pela da ofensa à integridade física simples, com a agravação pelo uso de arma (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 2017, processo nº 408/15.7JABRG.G1.S1, in www.dgsi.pt).
Deste modo, também aqui não haveria lugar à aplicação do regime previsto no nº 1 do art. 358º do C. Processo Penal.
Finalmente, temos que o despacho de 25 de Janeiro de 2024 procedeu à comunicação ao arguido de uma alteração da qualificação jurídica dos factos, nos termos do disposto no nº 3 do art. 358º do C. Processo Penal, alteração esta que veio a ser contemplada no Dispositivo do acórdão recorrido.
Note-se, aliás, que, com ressalva do respeito devido, se mostra incompreensível o teor da conclusão XXI, pois, vindo o arguido acusado, além do mais, pela prática de dois crimes de homicídio qualificado tentado, p. e p. pelos arts. 22º, nºs 1 e 2, b), 23º, nº 1, 131º e 132º, nº 2, l), todos do C. Penal, na comunicação da alteração da qualificação jurídica operada, veio a ser eliminada a qualificação dos homicídios, e a ser considerada a sua agravação, agora pelos arts. arts. 22º, nºs 1 e 2, b), 23º, nº 1 e 131º, todos do C. Penal e 2º, nº 1, m), 3º, nº 2, g) e ab) e 86º, nºs 1, d), 3 e 4 da Lei n.º 5/2006 de 23 de Fevereiro, mantendo-se, portanto, a natureza dos crimes – homicídio doloso – mas ocorrendo uma diminuição da moldura penal abstracta aplicável.
Em conclusão, pelas sobreditas razões, mostrando-se observado o disposto no art. 358º do C. Processo Penal, não enferma o acórdão recorrido da nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do art. 379º do mesmo código.
3. Alega o arguido – conclusões XXIII a XXXII – que foi feita uma errónea qualificação jurídica dos factos provados pois resulta destes que não teve intenção de causar a morte aos ofendidos, como não causou, devendo antes considerar-se a prática de dois crimes de ofensa à integridade física qualificada e não, a de dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 73º, 131º, 132º, n.º 1 e 2,alínea e), todos do C. Penal e que, por outro lado, tendo sido considerado inimputável, portanto, incapaz de avaliar a ilicitude da conduta, foi igualmente entendido ter agido com perigosidade, ocorrendo, nesta parte, notória contradição insanável, pois a sua inimputabilidade exclui a culpa, obstando à verificação da especial censurabilidade ou perversidade requerida pela qualificação do crime de homicídio, assim tendo o acórdão recorrido violado as disposições legais supra referidas.
No corpo da motivação, nenhuns outros argumentos apresentou ou desenvolveu o arguido.
Vejamos.
a. Dispõe o art. 434º do C. Processo Penal, disciplinando os poderes de cognição deste mais Alto Tribunal que, [o] recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do nº 1 do artigo 432º.
O presente recurso subiu da 1ª instância ao Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do disposto no art. 432º, nº 1, c) do C. Processo Penal, onde se estabelece que se recorre para este tribunal, de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos nºs 2 e 3 do art. 410º do mesmo código.
Nas três alíneas do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal estão previstos, os assim designados, vícios da decisão, a saber, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e o erro notório na apreciação da prova.
Resulta, de forma clara e objectiva, dos pontos 11, 12, 14, 15 e 20 dos factos provados, ter sido propósito do arguido, ao tentar atingir com as facas que empunhava, as cabeças dos ofendidos DD e CC, causar-lhes a morte. Na verdade, sabido que no crânio se encontra alojado o encéfalo, parte essencial do sistema nervoso central, a objectiva actuação do arguido, visando, repetidamente, atingir o crânio dos dois ofendidos com a faca Karambit – arma branca, sem aplicação definida, com características que lhe atribuem uma elevada letalidade – de acordo com as regras da experiência, revela o seu propósito homicida, aliás, previamente anunciado pelo mesmo, conforme pontos 3 e 7 dos factos provados.
É assim carecida de fundamento a afirmação do arguido no sentido de que não resulta dos factos provados o seu dolo de homicídio.
Por outro lado, neste segmento, o arguido não invoca a existência de vício decisório, v.g., de erro notório na apreciação da prova, relativamente ao ponto 20 dos factos provados, referente ao dolo de homicídio. E pelos motivos acabados de expor, não vemos que tal vício ocorra, in casu.
b. O arguido afirma a existência de contradição insanável, invocando, aparentemente, o vício previsto na alínea b) do nº 2 do art. 410º do C. Processo Penal, por ter sido considerado inimputável e, por isso, insusceptível de culpa, o que é contraditório com a verificação da especial censurabilidade ou perversidade requerida pelo crime de homicídio qualificado.
Para além de, neste segmento, existir um manifesto lapso na invocação da alínea e) do nº 2 do art. 132º do C. Penal, como exemplo-padrão da qualificação dos dois homicídios tentados (na acusação, a qualificação foi feita pela alínea l) daquele nº 2), mais uma vez, com ressalva do respeito devido, resulta incompreensível a contradição insanável invocada.
Como é sabido, o tipo de culpa do homicídio qualificado é identificado pela verificação da especial censurabilidade ou perversidade que envolve o facto, referindo-se a especial censurabilidade às condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de forma de realização do facto especialmente desvaliosas, enquanto a especial perversidade se refere às condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, pág. 54 e seguintes).
Concordamos, pois, com o recorrente, em que um arguido inimputável, porque não é susceptível de um juízo de culpa, não pode cometer o tipo do crime de homicídio qualificado, precisamente por este requer a prática do facto em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, requerendo, portanto, uma culpa qualificada (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Outubro de 2021, processo nº 55/19.4SWLSB.L1.S1 e de 18 de Fevereiro de 2009, processo nº 08P3775, in www.dgsi.pt).
Sucede que isto mesmo foi defendido no acórdão recorrido, na argumentação expendida, ao absolver o arguido da prática de todos os crimes que lhe eram imputados na acusação e ao, prevenindo a subsequente declaração de inimputável perigoso do arguido e a necessidade de fixação da duração da necessária aplicação de medida de segurança de internamento, declarar provada a prática pelo mesmo, de actos objectivamente integradores de dois crimes de homicídio agravado, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, nºs 1 e 2, b), 23º, nº 1 e 131º, todos do C. Penal e 2º, nº 1, m), 3º, nº 2, g) e ab) e 86º, nºs 1, d), 3 e 4 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Note-se que o tribunal abandonou a imputação de dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 73º, 131º, 132º, n.º 1 e 2, l), todos do C. Penal, passando a acolher, em conformidade com a alteração da qualificação jurídica oportunamente comunicada, a imputação de dois crimes de homicídio, agravados pelo cometimento do crime com arma, nos termos do disposto no nº 3 do art. 86º da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Esta circunstância agravante refere-se à especial ilicitude do facto em razão do meio empregue para a sua prática, tem por fundamento razões de prevenção geral e opera pelo simples cometimento do crime com arma (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Outubro de 2017, processo nº 1504/15.PBCSC.L1.S2 e de 30 de Novembro de 2016, processo nº 103/14.4JAPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt), nada tendo a ver com a especial censurabilidade ou perversidade do agente e, portanto, com uma culpa qualificada.
Inexiste, pois, a apontada contradição insanável.
c. Em conclusão, pelas razões expostas, mostra-se correctamente feita a qualificação jurídico-penal dos factos.
4. Alega o arguido – conclusões XVIII e XXXII – que se verifica ainda a inconstitucionalidade material dos artigos 1.º, alíneas a) e f), 358.º, n.º 1, 359.º, n.º 1,e 3 79.º, n.º 1,alínea b), todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a alteração de factos através do adicionamento de factos novos suscetíveis de preencher elementos típicos dos crimes imputados ao Arguido constitui alteração não substancial de factos, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, todos da Constituição, e que, se verifica ainda a inconstitucionalidade material dos artigos 1.º, alíneas a) e f), 358.º, n.ºs 1 e 3, 359.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea b), todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual o Tribunal pode alterar a qualificação jurídica constante da pronúncia para crime diverso mais grave ou para modalidade agravada do mesmo crime, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, todos da Constituição.
Com ressalva do respeito devido o tribunal a quo não interpretou as normas do C. Processo Penal em referência, em qualquer das interpretações apontadas.
Com efeito, e pelas sobreditas razões, não adicionou factos novos susceptíveis de preencherem elementos típicos dos crimes imputados ao arguido, e também não alterou a qualificação jurídica constante da acusação, para crime diverso mais grave, ou para modalidade agravada do mesmo crime.
Em suma, não se verificam as apontadas inconstitucionalidades.
5. Alega o arguido – conclusões XXXIII, XXXV a XXXVII e XLIV a XLVI – que a medida de segurança imposta é manifestamente excessiva, sobretudo no que respeita à sua duração máxima, contrariando o art. 40º, nº 1 do C. Penal, sendo certo que, estando em causa crime tentado, haveria que considerar-se a atenuação especial aplicável à pena respectiva, o que não sucedeu, que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, que não discute a declaração de inimputabilidade nem a necessidade da medida que aceita, que na data dos factos estava sob um surto psicótico, num estado de perseguição e paranoia, não tendo actuado com especial perversidade ou censurabilidade pelo que, a medida de segurança, atento o disposto nos arts. 91º, nº 2 e 92º, nº 2 do C. Penal, deverá manter a duração mínima de 3 anos, não devendo exceder 10 anos.
Vejamos.
Começamos por dizer que a questão suscitada nada tem a ver com a medida da culpa do arguido, posto que este foi declarado inimputável e, muito menos, com uma actuação sem especial censurabilidade ou perversidade.
Não vem questionado no recurso a aplicação da medida de segurança de internamento, nem a sua efectividade, mas antes, a fixação do seu limite máximo. E neste aspecto, adiantamos que assiste razão ao arguido.
Dispõe o nº 2 do art. 91º do C. Penal que, [q]uando o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, o internamento tem a duração mínima de 3 anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
Por seu turno, dispõe o nº 2 do art. 92º do C. Penal que, [o] internamento não pode exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo do crime cometido pelo inimputável.
Já sabemos que os factos praticados pelo arguido correspondem a uma pluralidade de crimes, havendo para este efeito, que considerar o crime com moldura penal abstracta mais elevada, no caso, o crime de homicídio na forma tentada, agravado, p. e p. pelos arts. 22º, 23º, 73º, 131º do C. Penal e 86º, nº 3 da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Assim, o limite máximo da pena correspondente ao crime em referência é o de 14 anos, 2 meses e 20 dias [limite máximo da pena do crime de homicídio – 16 anos –, agravado de um terço pelo uso de arma – 21 anos e 4 meses –, atenuação especial pela tentativa – 14 anos, 2 meses e 20 dias].
Temos, pois, nos termos do disposto nas transcritas disposições legais, que a medida de internamento imposta ao arguido no acórdão recorrido, tem a duração mínima de 3 anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social, e a duração máxima de 14 anos, 2 meses e 20 dias [e não, os 21 anos e 4 meses fixados no acórdão recorrido, nem os 10 anos pretendidos pelo arguido].
Em suma, procede parcialmente a pretensão do arguido.
*
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência decidem:
A) Julgar improcedente a invocada nulidade do acórdão recorrido (alínea b) do nº 1 do art. 379º do C. Processo Penal);
C) Declarar que a duração máxima da medida de segurança de internamento e tratamento imposta ao arguido AA em estabelecimento adequado, não pode exceder 14 (catorze) anos, 2 (dois) meses e 20 (vinte) dias.
Vasques Osório (Relator)
Agostinho Torres (1º Adjunto)
Celso Manata (2º Adjunto)