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ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
DESCRIÇÃO DO DOLO
CRIME DE BURLA
Sumário
I - Constando da acusação que o arguido publicitou a venda de um Iphone, o que sabia não corresponder à verdade, e acordou com o ofendido a venda do mesmo pelo valor de € 800,00, tendo este acordado efectuar-lhe um primeiro pagamento de € 100,00, que concretizou, não é possível afirmar que a acusação, de modo claro e evidente, é completamente desprovida de factos, até porque nela se acrescenta que o ofendido, por meio do artifício fraudulento criado pelo arguido, convenceu-se de que este era possuidor do Iphone por si publicitado, e, com base em tal convencimento, dispôs-se a abrir mão de € 100,00, transferindo-os para uma conta bancária de que o arguido é o único titular, deles se tendo apropriado em proveito próprio, integrando tal quantia no seu património, bem sabendo que o fazia de forma ilegítima, pois o negócio em causa nunca seria concretizável, já que não era detentor de qualquer Iphone, tendo agido de forma livre e deliberada e com conhecimento do carácter proibido do seu comportamento. II - Não existe uma “fórmula” para a descrição factual do dolo, nem o acusador e o julgador se encontram amarrados à utilização de “fórmulas” (únicas e “sacramentais”) nessa descrição, sendo ainda que as exigências de concretização factual do dolo dependerão do concreto crime em apreciação. III - A acusação pode ser rejeitada, por ser manifestamente infundada, apenas quando for evidente que os factos que dela constam não constituem crime.
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
1. RELATÓRIO
A – Decisão Recorrida
Pelo MP da Comarca de Faro foi deduzida acusação contra H, para julgamento em tribunal singular, pela prática de um crime de burla simples, p.p., pelo Artº 217 nº1 do C. Penal.
Em sede de Instância Local de Silves, Juiz 1, esta acusação foi rejeitada por manifestamente infundada, nos termos do Artº 311 nsº2 al. a) e 3 al. d) do CPP.
B – Recurso
Inconformado com o assim decidido, recorreu o M.P., com as seguintes conclusões (transcrição):
1º Vem o presente recurso interposto do, aliás, douto despacho pelo qual foi decidido rejeitar a acusação deduzida pelo Ministério Público por esta se mostrar manifestamente infundada, ao abrigo do disposto pelo art. 311º, nº2, al. a) e nº 3, al. d), do C.P.P.;
2º Ora, "manifestamente infundada é a acusação que, por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, por a insuficiência de indícios ser manifesta e ostensiva, no sentido de inequívoca, indiscutível, fora de toda a dúvida séria, seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, constituindo a designação de julgamento flagrante violência e injustiça para o arguido, em clara violação dos princípios constitucionais”. (Ac. da Relação de Lisboa de 16.05.2006, disponível in www.dgsi. pt);
3º A M.ma Juiz recorrida considerou a acusação manifestamente infundada, por dela não constarem factos que preencham o elemento subjectivo do crime;
4º Discorda-se desse douto despacho em face dos factos aduzidos nos pontos 3,5, 6, 8, 9, 12,13, 15 e 16 que:
a) o arguido quis, criando um erro, de forma astuciosa, levar o ofendido a adquirir o Iphone por ele propalado, que o ofendido acreditava existir, ser real, e que lhe seria enviado, por forma a obter um enriquecimento, como obteve;
b) o arguido agiu sempre de forma 1ivre, deliberada e consciente;
c) Bem sabendo que tal conduta não lhe era permitida e que a mesma era punida por lei;
5º Não extrair estes factos da acusação é uma conclusão absurda, abusiva, não correspondente com a realidade dos factos, fazendo-se, por essa via, tábua rasa do que ali vem descrito;
6º A acusação não só não é completamente desprovida de factos, de forma clara e evidente, como também se verifica que da mesma constam factos que preenchem, de forma suficiente e bastante, o elemento subjectivo do crime que ao arguido vem imputado;
7º Termos em que, decidindo como decidiu, a M.ma Juiz recorrida violou o disposto pelo art. 311º, nº2, al. a) e nº 3, al. d), do C.P.P.;
8º Para o caso de assim não se entender, sempre deverão os autos ser remetidos ao Ministério Publico para sanação do alegado vicio, o que não lhe está vedado, sendo certo que a M.ma Juiz nada determinou nesse sentido.
Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se, consequentemente, o douto despacho ora recorrido, devendo o mesmo ser substituído por outro que determine a remessa dos autos para julgamento, com a designação de data para realização da audiência de julgamento.
Para o caso de assim não se entender, sempre deverão os autos ser remetidos ao Ministério Público para que seja sanado o alegado vicio,
Com o que se fará inteira JUSTIÇA!
C – Resposta ao Recurso
O arguido não respondeu ao recurso.
D – Tramitação subsequente
Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que militou pela procedência do recurso.
Observado o disposto no Artº 417 nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. FUNDAMENTAÇÃO
A – Objecto do recurso
De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 ( neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria ) o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, que aqui e pela própria natureza do recurso, não têm aplicação.
Assim sendo, importa tão só apreciar se existe razão ao recorrente, quando solicita a revogação do despacho supra transcrito e a sua substituição por outro que receba a acusação deduzida pelo MP e designe data para julgamento.
B – Apreciação
Exposta a questão em discussão, eminentemente jurídica, importa atentar, primeiro, na acusação formulada, e depois, no despacho recorrido.
A primeira, reza assim (transcrição):
1 - No dia 30 de Dezembro de 2021 o ofendido S, melhor id. nos autos, encontrava-se na sua residência sita na (….), nesta cidade de Silves;
2- Nesse momento, e quando navegava na internet, mais concretamente na rede social do “facebook”, apercebeu-se que o ora arguido, através do perfil “H” publicitava a venda de um iphone “13 PRO MAX”;
3 - Encetou, então, uma conversação com o arguido, através da aplicação do “Messenger”, tendo este declarado ter para venda o referido iphone, o que não correspondia à verdade;
4 - E que estaria disponível para vender o referido iphone pelo valor de 800,00 €, o que sabia ser impossível dado não ser detentor de qualquer iphone;
5 - Depois de trocarem algumas mensagens, o ofendido acabou por se mostrar interessado na aquisição do referido iphone, pelo valor total de 800,00 € (oitocentos euros);
6 - O arguido solicitou, então, ao ofendido que teria de efectuar primeiro o pagamento da quantia de 100,00 € (cem euros), para a sua conta bancária com o NIB (…..), para poder receber o referido iphone, o qual lhe seria enviado posteriormente pelo correio;
7 - Sendo o pagamento do valor remanescente – 700,00 € -, efectuado à cobrança;
8 - De tal modo ficou o ofendido convencido de que o arguido teria em seu poder o referido iphone, e de que este lho iria enviar pelo correio, que logo decidiu efectuar o depósito daquela quantia;
9 - Assim, no dia 30 de Dezembro de 2021, pelas 22 horas e 3 minutos, através da conta bancária nº (…..), da Caixa Geral de Depósitos, o ofendido S procedeu à transferência da quantia de 100,00 € (cem euros), para a conta bancária com o NIB indicado em 6º, da CCAM, de que é único titular o ora arguido H;
10 - Esperou o ofendido pelo envio do referido iphone, mas o que é certo é que o mesmo não mais chegou, nem podia chegar, já que não existia;
11 - O ofendido ainda tentou entrar em contacto telefónico com o arguido, mas não mais o conseguiu, porque este acabou por o bloquear;
12 - O Ofendido ficou prejudicado no montante de 100,00 € (cem euros);
13 - Integrou, assim, o arguido aquela quantia de 100,00 € (cem euros) no seu património, gastando-a em proveito próprio, não obstante saber que a mesma não lhe pertencia;
14 - O que só conseguiu em virtude do artifício fraudulento por si criado;
15 - O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente;
16 - Bem sabendo que a sua conduta não lhe era permitida, e que a mesma era punida por lei.
O despacho judicial que a rejeitou e que gera o presente recurso, proferido pelo Juízo de Competência Genérica de Silves, Juiz 1, é do seguinte teor (transcrição):
“O Digno Magistrado do Ministério Público acusou H pela prática de factos que em seu entender integram a prática de um crime de burla simples, p. e p. pelo art. 217º, nº 1, do Código Penal, na redacção dada pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro.
Para tanto refere que:
(Segue-se a reprodução da acusação atrás transcrita)
Dispõe o artigo 311.º do Código de Processo Penal que:
«1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer. 2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente. 3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) Quando não contenha a identificação do arguido; b) Quando não contenha a narração dos factos; c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fudamentam ou d) Se os factos não constituírem crime.»
Resulta do disposto no artigo 283.º, n.º3, do Código de Processo Penal a acusação tem que narrar, ainda que sinteticamente, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para determinação da sanção que lhe deve aplicada, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis (alíneas b) e c) do citado preceito).
E tal exigência legal deriva da circunstância de ser a acusação que fixa o objecto do processo, delimitando o âmbito da ulterior actividade investigatória a desenvolver pelo juiz, nomeadamente na fase de julgamento. Deve, pois, conter a descrição fáctica com a indicação precisa e completa dos factos que o Ministério Público entende estarem indiciados, integradores, tanto dos elementos objectivos do crime, como dos seus elementos subjectivos e que justificam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança. Caso a acusação não obedeça a tais requisitos é nula como expressamente se contempla no mencionado artigo 283º, nº 3.
O que se pretende, pois, é que a acusação contenha o facto, normativamente entendido, isto é, em articulação com as normas violadas pela sua prática e que irão, constando da acusação, conformar o “objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado” [Cfr. o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 130/98].
Pratica o crime sob escrutínio de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 217.º do Código Penal, “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial.”
O tipo criminal da burla pode ser desdobrado nos seguintes elementos constitutivos, objectivos e subjectivos:
a) Uma falsa representação sobre factos no espírito do burlado;
b) A instalação dessa falsa representação pelo agente, por processo artificioso;
c) Um prejuízo no património do burlado ou de outrem;
d) O nexo de causalidade entre o prejuízo e a falsa representação;
e) O dolo do agente;
f) O elemento intencional, consistente no propósito de obter para si ou para terceiro um benefício patrimonial a que não tem direito.
Ora, compulsada a factualidade imputada ao Arguido na acusação pública deduzida nos autos, constata-se que não ressumbra da mesma que o Arguido tenha actuado com a intenção de obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo, aquando da sua conduta alegadamente astuciosa traduzida no negócio de compra e venda celebrado com o ofendido através da internet.
Com efeito, embora se alegue que o Arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta não lhe era permitida, e que a mesma era punida por lei, não decorre da acusação que o Arguido tenha agido perante o ofendido com intenção de enriquecimento ilegítimo para si ou terceiro, faltando em tal libelo tal elemento subjectivo especial (ou dolo específico) do crime de burla.
Com efeito, o tipo subjetivo de ilícito, necessário ao preenchimento do crime de burla exige, o dolo do tipo, conceitualizado, na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade referidos a todos os pressupostos do tipo objetivo, e o dolo da culpa, traduzido na consciência, por parte do arguido, de que com a sua conduta sabe que atua contra direito, com consciência da censurabilidade da conduta.
O dolo enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo é elemento constitutivo do tipo-de-ilícito. Mas é ainda expressão de uma atitude pessoal contrária ou indiferente perante o dever-ser jurídico-penal e, nesta parte, é ainda elemento constitutivo do tipo-de-culpa dolosa. O dolo é, assim, uma entidade complexa, cujos elementos constitutivos se distribuem pelas categorias da ilicitude e da culpa.
Tudo isso, costuma ser expresso na acusação por uma fórmula em que se imputa ao agente o ter atuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever-ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude) – factos 15 e 16 da acusação.
Porém, o crime de burla exige ainda um dolo adicional, traduzido na intenção do agente obter um acréscimo para o seu património ou de terceiro, sem que se torne necessária a verificação do enriquecimento.
O tipo subjetivo de ilícito, no crime de burla, consiste, assim, no conhecimento e vontade do agente determinar outrem, por erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, em contrariedade ou com indiferença perante o dever-ser jurídico-penal, ou seja, com consciência que a sua conduta é ilícita, proibida por lei [neste sentido ver Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 17.12.2020, relator Sérgio Corvacho, processo n.º 315/15.3GCSLV.E1, disponível em www.dgsi.pt].
Ora, o libelo acusatório, no plano sujectivo, não contém a alegação do facto constitutivo do elemento intencional, que, no caso concreto, seria ter o Arguido actuado movido pelo propósito de obter um benefício económico a que não tinha direito, concretizado no recebimento da quantia de €100, sem abrir mão de contrapartida
Pelo que, em suma, se conclui que a factualidade imputada ao Arguido na acusação pública deduzida nos autos não preenche a totalidade dos elementos subjectivos do tipo de ilícito do crime de burla simples de que o mesmo está acusado nos autos.
E se, na verdade, a sua comprovação se pode inferir dos demais factos provados, com recurso a presunções naturais (não jurídicas) ligadas ao princípio da normalidade ou às regras da experiência comum, tal não implica que seja admissível prescindir da narração dos factos que consubstanciam o dolo.
Sem essa narração, salvo o devido respeito por entendimento contrário, não se mostra perfectibilizada a imputação criminosa em causa, já que não é admissível, como vem sido entendimento da jurisprudência, a ideia de um “dolus in re ipsa”, ou seja, a presunção do dolo resultante da simples materialidade de uma infracção, pelo que, em face da referida omissão, não há fundamento para aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, nos termos do artigo 283.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
Quanto à consequência a extrair de tal omissão, a mesma não poderá deixar de a rejeição da acusação, já que tal omissão acarreta a nulidade da acusação, nos termos do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, nulidade que não se mostra possível de sanação/correcção à luz do nosso ordenamento jurídico. Também neste sentido, vide, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2015 que – se e enquanto não vier a ser alterado – fixou jurisprudência no sentido de «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.».
Por conseguinte, e em face do exposto, decide-se rejeitar a acusação deduzida pelo Digno Magistrado do Ministério, por manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.º 2, al. a) e n.º3 al. d) do Código de Processo Penal.
Sem custas.
Notifique”.
*
Nos termos do Artº 217 nº1 do C. Penal, comete o crime de burla quem, com intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo através de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais.
São, assim, elementos objectivos deste tipo de ilícito, o emprego de astúcia por parte do agente, o erro ou o engano a que a vítima foi induzida por força da dita astúcia, e a prática de determinados actos, pela vítima, em consequência do erro ou do engano em que foi induzida.
Por sua vez, em sede subjectiva, mister é um específico elemento, a intenção de enriquecimento ilegítimo cristalizada na actuação do agente a título de dolo.
Em relação à astúcia, consiste a mesma no emprego, por parte do agente, de manha ou ardil, susceptíveis de imprimir à sua conduta um carácter engenhoso, ou seja, um estratagema orientado no sentido de ludibriar terceiro e que tenha, por isso, a virtualidade de induzir a vítima em erro ou engano (Neste sentido, José António Barreiros, in Crimes contra o património, pág. 165).
Por seu turno, o erro ou o engano da vítima consistem na sua falta de conhecimento ou na representação inexacta da realidade, a ponto de se poder concluir ter sido esse estado de espírito de erro ou de engano que a levou à prática de actos lesivos do seu património ou do de terceira pessoa, sendo certo que se não tivesse incorrido nesse estado de erro em consequência do que lhe disse ou fez o agente, não teria cometido tais actos danosos para o seu património ou de terceiro.
O prejuízo patrimonial relevante para efeitos do crime de burla deve ser entendido à luz de um conceito de prejuízo em sentido jurídico-económico, que parte da consideração do património como a soma dos valores económicos juridicamente protegidos, o que faz com que qualquer bem, interesse, ou direito patrimonial - pessoal ou real -, possa ser alvo de lesão pela prática de um crime de burla, desde que se revistam de valor económico e sejam juridicamente tutelados.
Por fim, o crime de burla é um crime complexo, que comporta um triplo nexo de causalidade, já que para que se verifique o seu preenchimento é necessário que a astúcia induza a vítima em erro ou engano, que, por sua vez, a levem à prática de determinados actos, os quais têm de causar um prejuízo no património da vítima ou de terceiro.
Postos estes considerandos, de ordem genérica em relação ao crime imputado nos autos ao arguido, importa ainda não olvidar que a acusação fixa, como se sabe, o objecto do julgamento e, sob pena de nulidade, contêm, como exige o nº3 do Artº 283 do CPP, além do mais, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o que se impõe por força do princípio do acusatório e como forma de assegurar ao arguido todas as garantias de defesa, nos termos do Artº 32 nº1 da Constituição da República Portuguesa.
O nosso modelo processual penal, vigente desde 1987, estrutura-se, no princípio do acusatório, embora mitigado com uma vertente investigatória, estabelecendo-se uma distinção clara entre a entidade que tem a seu cargo uma fase investigatória e, nesse âmbito, produz uma acusação, e uma outra, que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objecto dessa acusação. In casu, o tribunal da 1ª instância, ao abrigo do plasmado no Artº 311 nsº2 al. a) e 3 al. d) do CPP, rejeitou a acusação por a considerar manifestamente infundada, por dela não constarem os elementos fácticos do dolo específico de burla que é assacado ao arguido, sendo seguro que nunca os poderia aditar, sob pena de cometer uma nulidade por alteração substancial dos factos constantes nessa acusação.
Ora, como é amplamente ensinado pela doutrina e jurisprudência, a aplicação da norma citada implica que a acusação, nessas situações, padeça de deficiências estruturais de tal modo graves que, em face dos seus próprios termos, não tenha condições de viabilidade, por os factos nela descritos não constituírem crime, mas tal conclusão, a da irrelevância penal dos factos imputados ao arguido, tem de ser manifesta, indiscutível, evidente, inequívoca, não bastando que seja meramente discutível por uma das várias correntes seguidas pela jurisprudência.
Nessa medida, só e apenas quando de forma incontroversa os factos que constam na acusação não constituírem crime, é que o tribunal a pode rejeitar por manifestamente infundada, ao abrigo do aludido comando legal.
Ora, com o devido respeito por opinião contrária - e com uma assumida mudança de opinião do aqui relator, em relação à posição assumida no Proc 481/22.0GDLLE.E1., então como adjunto, e perante uma situação similar, mudança esta, resultante de uma melhor e mais aprofundada ponderação sobre a matéria em causa - entende-se que a situação dos autos não é, de uma forma manifesta, ostensiva, evidente, incontroversa, um caso de acusação manifestamente infundada, no sentido de se poder concluir, sem margem para dúvidas, que, ainda que se provassem todos os factos nela plasmados, o arguido sempre seria absolvido, por ausência do elemento subjectivo do crime de burla, designadamente, do denominado dolo específico, traduzido no facto de agir movido pelo propósito de obter um benefício económico a que sabia não tinha direito, concretizado no recebimento da quantia de € 100,00, sem abrir mão da respectiva contrapartida.
Ora, ainda que legitimamente se possa afirmar que a acusação poderia e deveria, com maior rigor, descrever esse específico dolo exigido pelo tipo do Artº 217 do C. Penal, não se acredita que este, de forma evidente, esteja ausente do conjunto de factos em que se alicerça, o mesmo é dizer, da história de vida que nela se relata e que atrás se transcreveu.
Na verdade, tem razão o recorrente quando afirma que resulta dos factos elencados na acusação que “…o arguido dialogou com o ofendido, por forma a incutir neste a sua confiança no negócio, a dar credibilidade à sua intenção, a transmitir transparência e boa fé no negócio, no que o ofendido acreditou piamente, que o Iphone adquirido não chegou nas circunstâncias temporais combinadas, que o arguido H desligou o seu telemóvel ou tratou de arranjar outro cartão, impedindo dessa forma o ofendido de o contactar, não se pode afirmar, sem mais, que desses factos não resulta uma conduta do arguido tendente a criar um erro ou engano no ofendido, causado de forma astuciosa, ocultando a verdade, com vista a obter deste, como obteve, um benefício ilegítimo.”
Há que reter que no crime de burla, para além do que se disse em relação ao bem jurídico protegido como sendo o do património do ofendido globalmente considerado, também se alinham valores como os da lealdade, transparência e boa fé das transacções e a capacidade de cada pessoa se determinar de forma livre e correcta nas suas disposições de carácter patrimonial (Neste sentido, Ac. da Relação do Porto de 11/01/17, disponível in www.dgsi.pt).
Nesta medida, lida a acusação que atrás se transcreveu e dela constando que o arguido publicitou a venda de um Iphone, o que sabia não corresponder à verdade, e acordou com o ofendido a venda do mesmo pelo valor de € 800,00, tendo este acordado efectuar-lhe um primeiro pagamento de € 100,00 que concretizou, não é possível afirmar que a acusação, de modo claro e evidente, é completamente desprovida de factos, até porque nela se acrescenta que o ofendido, por meio do artifício fraudulento criado pelo arguido, convenceu-se de que este era possuidor do Iphone por si publicitado e, com base em tal convencimento, dispôs-se a abrir mão de € 100,00, transferindo-os para uma conta bancária de que o arguido é o único titular, deles se tendo apropriado em proveito próprio, integrando tal quantia no seu património, bem sabendo que o fazia de forma ilegítima, pois o negócio em causa nunca seria concretizável, já que não era detentor de qualquer Iphone, tendo agido de forma livre e deliberada e com conhecimento do carácter proibido do seu comportamento.
Como se disse no Ac. desta Relação de 27/06/17, disponível in www.dgsi.pt:
“I - Os factos (da acusação e da sentença) são sempre enunciados linguísticos descritivos de acções: da acção executada – factos externos, e da acção projectada – factos internos.
II – O Ministério Publico é livre de escolher os «enunciados linguísticos descritivos de acções» de que faz utilização na acusação, bastando-lhe que descreva plenamente o objecto do processo, que esgote factualmente a descrição dos tipos objectivo e subjectivo do crime que imputa ao arguido.
III – Inexiste uma fórmula de descrição factual do dolo; nem o acusador, nem o julgador, se encontram amarrados à utilização de fórmulas únicas e “sacramentais” nessa descrição; a redacção é livre e as exigências de concretização factual do dolo dependerão do concreto crime em apreciação.”
Dos factos descritos na acusação, julga-se possível o desenho dos elementos objectivos e subjectivos do crime de burla imputado ao arguido e não, de uma mera fraude civil, já que o incumprimento contratual foi por aquele preconcebido, desde logo, ao publicitar para venda um artigo que sabia não ter na sua posse, com o objectivo de alcançar um prejuízo necessariamente ilegítimo, que concretizou, sendo que através da criação desse cenário astucioso levou o ofendido a praticar actos lesivos do seu património, traduzidos na transferência da quantia acordada para a conta bancária por si titulada.
Neste sentido, Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 14/12/17, igualmente disponível in www.dgsi.pt, quando refere que “Comete um crime de burla quem coloca um anúncio de venda de um anel na rede social do «facebook», acorda e recebe o pagamento antecipado de preço respectivo, e não entrega tal anel ao comprador, sem nunca ter tido a intenção de o entregar”.
Em suma, os factos levados à acusação mostram-se integradores, também do elemento subjectivo do crime de burla, mas ainda que assim não se entenda, como já se mencionou, só quando o contrário se desenha de forma inequívoca e indiscutível, é que se justifica rejeitar uma acusação por ser manifestamente infundada, por ser evidente que os factos que dela constam não constituem crime.
E, como se disse no Ac. da Relação de Coimbra de 23/03/10, disponível em www.dgsi.pt “…este juízo tem que assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. Não se trata, nem se pode tratar de um juízo sustentado numa opinião divergente por muito válida que seja.”
Ora, esta não é, como já se referiu, a situação dos autos, pelo que o recurso não pode deixar de proceder, tendo o tribunal a quo, no seu despacho, violado o disposto no Artº 311 nº2 al. a) e 3 al. d) do CPP.
3. DECISÃO
Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e em consequência, revoga-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que receba a acusação.
Sem custas.
xxx Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.
Évora, 24 de setembro de 2024
Renato Barroso
Maria José Cortes
Fernando Pina