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CRIME DE MAUS TRATOS
Sumário
I – O crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, do Código Penal, supõe uma conduta dolosa do agente, por ação ou omissão. II – No caso em apreço, não se provou que os danos sofridos pela assistente fossem devidos a uma conduta dolosa ou negligente dos arguidos, presidente da direção e diretora de serviços de um lar de idosos.
Texto Integral
Pr. 4493/20.1T9MTS.P1
Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
I – O Ministério Público veio interpor recurso da douta sentença do Juiz 1 do Juízo Local Criminal de Matosinhos do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, que absolveu AA, BB e “Lar ...” da prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, do Código Penal, sendo essa pessoa coletiva responsabilizada nos termos do artigo 11.º, n.º 2, a), e n.º 4, do mesmo Código, e os absolveu também do pedido contra eles formulado pela assistente e demandante CC, de pagamento a esta, a título de indemnização de danos não patrimoniais, da quantia de cinquenta e nove mil euros, acrescida de juros moratórios
São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«1) - Impugna-se a decisão proferida sobre a matéria-de-facto no que respeita a todos os arguidos (cfr, o art. e 412º/3 e 4 do Código do Processo Penal);
Erro na apreciação da prova.
2)-Vista a versão dos factos que se pretende provada Factos impugnados (alíneas a) a y) - todos) – ponto (I. A);
3)-Vista nos tópicos de discussão da questão-fáctica, razões da discordância, nem com a convicção formada; nem com a douta motivação. Cremos, na verdade, que se o processo de formação da livre convicção do julgador se tivesse pautado:
- Pelas regras da experiência comum e da normalidade do acontecer;
- Pelos ditames da lógica, numa apreciação minuciosa (mas globalizante), crítica e dialéctica; E pelo recurso a correctos juízos de inferição e ilação; e pelas provas produzidas ou analisadas na audiência teriam sido avalizadas como claras e consistentes premissas da culpabilidade dos arguidos.
4)- Cremos, com todo o respeito, que o Tribunal julgou a questão-de facto não sopesando devidamente os diversos factos indiciários e instrumentais e não valorando com a acuidade e a percepção necessárias as várias provas produzidas, de natureza declaratória ou documental.
5)-O Tribunal, invocando, no entanto, na motivação o não dever de policiar o que ia sendo feito por empregadas de limpeza, auxiliares, enfermeiros, médicos (…), competindo aos arguidos funções de natureza diversa e, claro está, a resolução de questões (…) mesmo que o quadro de ratio estivesse cumprido; invocamos as razões de discordâncias do dever de garante da responsabilização dos arguidos.
6)-Vista ponto (I.E) Alterações propostas à matéria-de-facto; Versão dos factos que se pretende provada (E1 alíneas a) a y ) e provas que impõem a decisão de facto no sentido por que pugnamos (E2 e 3) – Vistas, pois, para o efeito, as provas documentais, declaratórias e testemunhais – estas transcritas e ali descritas.
7)-Vista para o elemento normativo do tipo.
8)-Vista para o ponto III. Questão-de-direito; Tipicidade; Causalidade e Elemento objectivos e subjectivos A1 e A2.
9)-No caso dos autos está em causa uma ligação institucional: o art. 152ºA, do C.Penal, a ofendida estava ao cuidado, à guarda ou sob a responsabilidade da direção dos arguidos.
10)-O crime consuma-se tanto com as condutas integradoras de ofensas à integridade física simples - no caso úlceras, como com os maus tratos psíquicos, incluindo humilhações, englobando quaisquer comportamentos que ofendam a integridade moral ou dignidade da ofendida, como entendemos no caso: colocação de fralda sem necessidade por razões de saúde mas por falta de funcionários; não uso do colchão; não movimentação de 2 em duas horas do corpo; as privações injustificadas de comida/horários de refeições; as restrições às actividades, que se reconduzem ao bem estar, falta de contacto e informação aos familiares.
11)-A imputação subjectiva do tipo, desde logo temos a existência do vínculo de protecção-subordinação.
12)-Vista para a responsabilidade da sociedade arguida Lar ... (art.º 3º. dos factos tidos por provados).
13) Na sequência dos factos provados 26 a 34 que aqui damos por reproduzidos que os arguidos DD e BB tinham perfeito conhecimento que a arguida “Lar ...” é uma instituição particular de solidariedade social e que, por isso, é uma instituição particular sem fins lucrativos, cujo objetivo primordial é cumprir o dever moral de solidariedade entre os indivíduos e, no caso concreto, a proteção na velhice e era o seu dever de garante.
14) o Tribunal a quo, ao não dar como provado, nomeadamente, os factos-não provados a) a y), absolvendo os arguidos errou na apreciação da prova:
15)-Pelo que se impõe:
-A reapreciação da matéria-de-facto, pela consideração de factos julgados não-provados, com recurso outros factos-provados, às provas e aos argumentos lógicos acima referidos, tudo conforme na motivação apresentada e aqui em conclusão.
16)-Convicção que – nomeadamente face ao aqui exposto – é ilógica, descriteriosa, acrítica, lacunosa e ligeira, sendo formada sobre erro na apreciação da prova e até contraditória com os factos dados como provados.
17)-Tais factos, conjugados com outros elementos dados como
assentes pelo Tribunal “a quo”, constituem os arguidos DD e BB, na sua qualidade, respetivamente, de presidente da direção da arguida “Lar ...” e de diretora de serviços da instituição arguida conheciam, e não podiam deixar de conhecer, que nos termos do Regulamento para Residentes, a arguida “Lar ...” e como tal o que o legislador quis incorreram os arguidos na prática do imputado crime, e consequentemente unicamente imputável aos aqui arguidos, tratando-se de dolo eventual tal como previsto no art.º 14.º, n.º 3 C.Penal, decorrendo a responsabilização da instituição Lar ... no previsto no art.º 11.º, mormente n.ºs 2, al a) e 4 C.Penal dada a prestação de serviços contratada com a instituição para acolher e dar assistência à ofendida.
18)-Vista para a medida da pena (Ponto III A3)
- Entendemos adequado a substituição da pena de 1 ano de prisão por 300 dias de multa a cada um dos arguidos, e fixar o quantitativo diário no valor de €50,00 ao arguido e à arguida de €7,00.
- em relação a arguida/pessoa colectiva a pena de multa de 400 dias, no quantitativo diário no valor de €150,00.»
A assistente CC também interpôs recurso desse sentença
São as seguintes as conclusões da motivação desse recurso:
«A. Impugna-se a decisão proferida sobre toda a matéria-de-facto dada por não provada na sentença recorrida e que aqui damos por totalmente reproduzida, tal como fizemos constar da motivação deste recurso, no que respeita a todos os arguidos e com os fundamentos legais ali constantes.
B. Erro na apreciação da prova.
C. Pretende a recorrente que sejam dados por provados os factos constantes da matéria de facto não provada na sentença recorrida das suas alíneas a) a y), os quais impugnámos, tal como resulta da motivação do presente recurso e que aqui damos por integralmente reproduzidos.
D. Discordamos da matéria de facto não provada na sentença recorrida, das suas alíneas a) a Y) e da absolvição dos arguidos quer quanto ao crime, quer quanto ao pedido de indemnização civil deduzido, com base nos tópicos de discussão da questão-fáctica, razões da discordância, nem concordamos com a convicção formada; nem com a douta motivação, tal como consta da nossa motivação supra e que aqui damos por integralmente reproduzida.
E. Parece-nos, na verdade, que se o processo de formação da livre convicção do julgador se tivesse pautado:
- Pelas regras da experiência comum e da normalidade do acontecer;
- Pelos ditames da lógica, numa apreciação minuciosa (mas globalizante), crítica e dialéctica; E pelo recurso a correctos juízos de inferição e ilação; e pelas provas produzidas ou analisadas na audiência teriam sido avalizadas como claras e consistentes premissas da culpabilidade dos arguidos, conjugando toda a prova e se tivesse sido efectuada uma análise critica da mesma.
F.- Parece-nos, com todo o respeito, que o Tribunal a quo julgou a questão-de facto não sopesando devidamente os todos os factos essenciais e instrumentais, não valorando com a acuidade e a percepção necessárias as várias provas produzidas, de natureza declaratória ou documental e toda a testemunhal realizada.
F. O Tribunal, invocando, no entanto, na motivação o não dever de policiar o que ia sendo feito por empregadas de limpeza, auxiliares, enfermeiros, médicos (…), competindo aos arguidos funções de natureza diversa e, claro está, a resolução de questões (…) mesmo que o quadro de ratio estivesse cumprido; invocamos as razões de discordâncias do dever de garante da responsabilização dos arguidos, sendo estes os superiores hierárquicos de todos aqueles funcionários, com os inerentes poderes de ordem e direção que sobre todos os arguidos impendiam fruto da necessária relação de trabalho subordinado.
G. A recorrente dá aqui por integralmente reproduzidas todas as alterações propostas à matéria-de-facto; Versão dos factos que se pretende provada e que aqui reproduzidos integralmente tal como consta na nossa motivação supra e provas que impõem a decisão de facto no sentido por que pugnamos, nomeadamente todas as provas documentais, declaratórias e testemunhais – supra descritas e transcritas, com a indicação das respetivas passagens das gravações, também, constantes da nossa motivação supra e que aqui reproduzimos integralmente.
H. O Tribunal a quo devia ter dado por provado, em resumo, o seguinte:
I. “O arguido DD iniciou o exercício das funções de presidente da direcção da arguida “Lar ...” em 1991, representando a arguida “Lar ...” em todos os seus actos, de gestão, direcção e decisão.
J. A arguida BB iniciou o exercício das funções de directora de serviços, no ano de 2003, cabendo-lhe: organizar e dirigir as actividades da instituição “Lar ...”; supervisionar a articulação dos serviços do “Lar ...”, entre eles a ERPI (estrutura residencial para idosos), o apoio domiciliário e o centro de dia, bem como a articulação entre esses serviços e a Direcção do Lar; coordenar esses serviços, apurar os problemas existentes e formular propostas da sua solução, apresentando à Direcção as correspondentes propostas de melhoria e correcção de procedimentos; funcionar como elemento de transmissão das ordens e directivas junto dos diversos serviços, supervisionando o seu cumprimento e reportando-o à Direcção; planear a utilização dos recursos humanos, equipamentos, materiais, instalações e capitais e colaborar na fixação da política financeira e verificação dos custos.
K. A arguida “Lar ...” tem como principal actividade o alojamento e assistência a pessoas idosas de ambos os sexos, mediante a protecção dos cidadãos na velhice e contemplando situações particulares de invalidez e de falta ou diminuição de meios de subsistência.
L. Para, tanto, dispõe de Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI), sita na Rua ..., em ..., Matosinhos, com denominação idêntica à sua, ou seja, “Lar ...”.
M. 5. Sendo que as pessoas idosas que integram essa ERPI residem em quartos distribuídos por cinco pisos, estando as acamadas e sem autonomia para sozinhas assegurarem as actividades de vida diárias alojadas na designada “área de dependentes”, situada no primeiro piso, com a denominação – e letreiro afixado - de “Enfermaria”.
N. 6. Em 11 de Janeiro de 2021, tomaram posse os novos corpos gerentes, do “Lar ...”, para o triénio de 2021/2024.
O. 7. Cabia ao arguido DD e à arguida BB, na sua qualidade, respectivamente, de presidente da direcção da arguida “Lar ...” e de directora de serviços da instituição, e em nome e interesse desta, até a tomada de posse dos novos corpos gerentes, desenvolver as tarefas e praticar os actos de gestão necessários à protecção e segurança de todos os idosos residentes no “Lar ...”, em particular, pela sua vulnerabilidade, daqueles que não pudessem viver autonomamente, ou seja, dos dependentes para as suas actividades de vida diária.
P. 8. O arguido DD e a arguida BB, na sua qualidade, respectivamente, de presidente da direcção da arguida “Lar ...” e de directora de serviços da instituição conheciam, e não podiam deixar de conhecer, que nos termos do Regulamento para Residentes, o “Lar ...” estipulou, entre o mais, que:
Q. - «Em caso de doença do Residente, poderá este recorrer sem encargos aos serviços médicos e de enfermagem disponibilizados pela instituição, salvo aqueles que tenham tarifário específico» [ponto 3.1. da Norma IV do Capítulo I];
R. - «1. São direitos dos Residentes: a) Obter a satisfação das suas necessidades básicas, físicas, psíquicas e sociais; b) Ser respeitado na sua individualidade e privacidade» [Norma XXIV ponto Um];
S. 9. Assim, (pelo menos) entre 21 de Março de 2017 e início de Fevereiro de 2020:
T. - apenas um médico exerceu funções na ERPI da arguida “Lar ...”, cabendo-lhe efectuar consultas e demais actos médicos a todos os residentes da ERPI, incluindo os residentes da área de dependentes, no horário das 14h00 às 16h30/17h00, de segunda a sexta-feira, tendo o referido médico nascido em 24.07.1938.
U. - apenas prestaram assistência aos residentes da ERPI da arguida “Lar ...”, incluindo os da área de dependentes, dois enfermeiros de manhã na área de dependentes e um para os demais residentes da ERPI, dois enfermeiros durante a tarde e um enfermeiro durante a noite para toda a ERPI.
V. - E, como funcionários, auxiliares de acção médica e de limpeza, seis de manhã para a área de dependentes, dois da parte da tarde para toda a ERPI e dois de noite para toda a ERPI.
W. 10. Assim, a assistente CC, nascida em 07-05-1934, em 02 de Maio de 2017, representada pela sobrinha EE, a rogo da assistente, por não saber assinar e o “Lar ...”, representado pelo presidente da direcção, o aqui arguido, outorgaram contrato de prestação de serviços de residente, tendo ficado, a partir de então, alojada num quarto.
X. 11. Cerca de um ano, após a sua admissão, ou seja, em meados do ano de 2018, a assistente CC, sofreu uma queda, pelo que foi transportada aos serviços de urgência do hospital ... no Porto, tendo-lhe sido diagnosticado uma entorse, no membro inferior direito.
Y. 12. Após alta hospitalar, regressou ao “Lar ...” e uma vez que o número de auxiliares e enfermeiros era diminuto, por forma a permitir a sua vigilância e tratamento, no respectivo quarto, foi enviada para a enfermaria.
Z. 13. Pelo facto de a assistente ter sido transferida para a enfermaria, foi-lhe retirado o telemóvel, ficando, dessa forma impedida e impossibilitada de contactar com os seus familiares e amigas (os).
AA. 14. A partir de então, a assistente, ficou na situação de dependente acamada.
BB. 15. Perante o sucedido, FF, sobrinha neta da ofendida, em data não apurada, mas posterior a Junho de 2018, entrou em contacto com uma assistente social, daquela instituição, tendo-lhe sido referido que nada podia fazer, por serem aquelas as normas da enfermaria.
CC. 16. Perante tal informação, FF, dirigiu-se ao “Lar ...”, a fim de tirar satisfações do ocorrido e para tomar conhecimento das normas da enfermaria.
DD. 17. Ali chegada, apenas lhe foi permitido o contacto com a assistente, tendo então verificado que a mesma se encontrava vestida com a roupa do dia anterior e com a qual dormiu.
EE. 18. Por outro lado, devido a lesão de que padecia, a assistente, a partir de então e por um número indeterminado de vezes, ficou impedida de tomar banho e de ir a casa de banho, tendo apenas lhe sido proposta a colocação de uma fralda higiénica, ao que aquela se recusou.
FF. 19. Nesta decorrência, FF, após ter tido conhecimento do sucedido, abordou uma das enfermeiras que ali se encontrava, com a qual procurou tirar satisfações, tendo aquela lhe referido: “Que não podiam acompanhar todos os utentes a casa de banho e que a fralda era a única solução!”.
GG. 20. Na enfermaria, para além da assistente, encontravam-se um número não quantificado de utentes e devido a falta de higienização daquele espaço, o mesmo exalava um cheiro intenso e nauseabundo de urina.
HH. 21. Devido ao facto de a assistente se encontrar com a saúde bastante debilitada, a FF, no dia 05 de Fevereiro de 2020, levou a CC a uma consulta ao hospital de dia da Maia, ao seu médico particular, o Dr. GG, tendo então este verificado que no tornozelo direito estava a iniciar-se uma úlcera de compressão, com escaras, devido à circunstância de dormir sempre na mesma posição.
II. 22. Por tal facto, foi recomendado à assistente, para passar a dormir num colchão anti escaras.
JJ. 23. Após ter sido conduzida ao “Lar ...” foi entregue o relatório médico da assistente nos serviços administrativos.
KK. 24. Porém, em finais desse mesmo mês, Fevereiro de 2020, foi detectado um surto de COVID 19, no “Lar ...”.
LL. 25. E, após sujeição de teste de despistagem à assistente, esta acusou positivo, bem como outros 100 utentes, pelo que relativamente a estes factos decorre um processo de inquérito autónomo, sob o nº 1583/20.4T9MTS, na 3ª Seção deste DIAP, no qual se investiga a prática do crime de propagação de doença.
MM. 26. Devido ao ocorrido, na sequência de vistoria efectuada ao “Lar ...”, em 23-04-2020, a assistente, em 14-05-2020, foi transferida para o Hospital 3... e após exame efectuado, para além do teste positivo ao COVID 19, apresentava um quadro demencial.
NN. 27. Nessa unidade hospitalar, foi-lhe novamente diagnosticado úlceras nos calcâneos direito e esquerdo, de grau 1 e 2, pelo que foi algaliada, por forma a auxiliar no processo de cicatrização, o que nunca havia sido feito até então.
OO. 28. A assistente manteve-se internada nessa unidade hospitalar até 27-05-2020, tendo, a partir de então, sido encaminhada para uma unidade de convalescença e de reabilitação.
PP. 29. Apesar disso, em 14-07-2020, voltou a ser internada no Hospital 1... em Matosinhos, devido a infecção das referidas úlceras de pressão, onde permaneceu até 28-08-2020, tendo dai sido transferida para a unidade de cuidados continuados do hospital 2..., onde se encontra.
QQ. 30. Assim, a assistente CC, pelos factos descritos em 13, 14, 17, 18, 20, 21 e 23 e pelo diagnostico enunciado em 27, sofreu angústia, dor e as lesões físicas supra referidas, sofrimento psicológico, deterioração cognitiva, isolamento social, humilhação, despersonalização, perigo para a integridade física e para a vida.
RR. 31. O arguido DD e a arguida BB tinham perfeito conhecimento que a arguida “Lar ...” é uma instituição particular de solidariedade social e que, por isso, é uma instituição particular de solidariedade social sem fins lucrativos, cujo objectivo primordial é cumprir o dever moral de solidariedade entre os indivíduos e, no caso concreto, a protecção na velhice.
SS. Do pedido de indemnização civil
TT. 32. À entrada no Hospital 1..., em Matosinhos, a demandante apresentava:
UU. - quadro demencial;
VV. - Ulcera de pressão sacrococcígea de categoria grau quatro (20 x 10 cm) com áreas necróticas e desvitalizadas, cheiro fétido com duas locas;
WW. - duas locas para sagradas: à direita de diâmetro aproximado de 10 cm, com 3 – 4 cm de profundidade aproximada; à esquerda de diâmetro aproximado de 4 cm, com 1 – 2 cm de profundidade aproximada;
XX. - Úlcera calcanhar direito categoria quatro, com 1 – 2 cm de profundidade aproximada;
YY. - Úlcera anca esquerda categoria dois: Tecido granular e epitelial;
ZZ. - Úlcera calcanhar esquerdo categoria um: rubor.
AAA. 33. A assistente sofreu dores dilacerantes e insuportáveis e as lesões físicas supra identificadas.
BBB. 34. O que lhe causou sofrimentos psicológicos, por força do isolamento social que lhe foi infligido, bem como das lesões, que conduziram a demandante à condição de acamada que não detinha quando deu entrada no lar demandado.”
CCC. Sucede que, o tribunal a quo julgou incorretamente na parte final do ponto 28 da matéria de facto provado onde refere “tendo a partir de então sido encaminhada para uma unidade de convalescença e de reabilitação”
DDD. Dos depoimentos das testemunhas ….. e …. E dos relatórios médicos do hospital das Forças Armadas, a assistente quando saiu daquele hospital regressou ao Lar ... e não a qualquer outra unidade de convalescença e reabilitação.
EEE. Nesta decorrência devia o tribunal a quo ter dado por provado que “A assistente manteve-se internada nessa unidade de saúde hospitalar até 27-05-2020” tendo a partir de então sido encaminhada para a arguida Lar ..., o que tem relevância para a alteração da matéria de facto dada por não provada na sentença recorrida.
FFF. Questão-de-direito; Tipicidade;
GGG. Causalidade e Elemento objectivos e subjectivos A1 e A2.
HHH. No caso dos autos está em causa uma ligação institucional e de dependência, subserviência: o art. 152ºA, do C.Penal, a ofendida estava ao cuidado, à guarda ou sob a responsabilidade da direção dos arguidos.
III. O crime consuma-se tanto com as condutas integradoras de ofensas à integridade física simples - no caso úlceras, como com os maus tratos psíquicos, incluindo humilhações, englobando quaisquer comportamentos que ofendam a integridade moral ou dignidade da ofendida, como entendemos no caso: colocação de fralda sem necessidade por razões de saúde mas por falta de funcionários; não uso do colchão anti escaras; não movimentação de 2 em duas horas do corpo; as privações injustificadas de comida/horários de refeições; as restrições às actividades, que se reconduzem ao bem estar, falta de contacto e informação aos familiares.
JJJ. A imputação subjectiva do tipo, desde logo temos a existência do vínculo de protecção-subordinação.
KKK. A responsabilidade da sociedade arguida Lar ... consta do artigo 3º. dos factos tidos por provados.
LLL. Na sequência dos factos provados 26 a 34 que aqui damos por reproduzidos que os arguidos DD e BB tinham perfeito conhecimento que a arguida “Lar ...” é uma instituição particular de solidariedade social e que, por isso, é uma instituição particular sem fins lucrativos, cujo objetivo primordial é cumprir o dever moral de solidariedade entre os indivíduos e, no caso concreto, a proteção na velhice e era o seu dever de garante.
MMM. O Tribunal a quo, ao não dar como provado, nomeadamente, os factos-não provados a) a y), absolvendo os arguidos errou na apreciação da prova:
NNN. Pelo que se impõe:
-A reapreciação da matéria-de-facto, pela consideração de factos julgados não-provados, com recurso outros factos-provados, às provas e aos argumentos lógicos acima referidos, tudo conforme na motivação apresentada e aqui em conclusão.
OOO. Convicção que – nomeadamente face ao aqui exposto – é ilógica, descriteriosa, acrítica, lacunosa e ligeira e estanque sem qualquer correlação com os demais factos provados e prova, sendo formada sobre erro na apreciação da prova e até contraditória com os factos dados como provados.
PPP. Tais factos, conjugados com outros elementos dados como assentes pelo Tribunal “a quo”, constituem os arguidos DD e BB, na sua qualidade, respetivamente, de presidente da direção da arguida “Lar ...” e de diretora de serviços da instituição arguida conheciam, e não podiam deixar de conhecer, que nos termos do Regulamento para Residentes, a arguida “Lar ...” e como tal o que o legislador quis, incorreram os arguidos na prática do imputado crime de Maus Tratos, e consequentemente unicamente imputável aos aqui arguidos, tratando-se de dolo eventual tal como previsto no art.º 14.º, n.º 3 C.Penal, decorrendo a responsabilização da instituição Lar ... no previsto no art.º 11.º, mormente n.ºs 2, al a) e 4 C.Penal dada a prestação de serviços contratada com a instituição para acolher e dar assistência à aqui Recorrente.
QQQ. Motivo por que deve o presente recurso ser julgado provido e procedente e, em consequência:
RRR. Ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que, alterando a matéria-de-facto dada por não provada nas alíneas a) a Y) da sentença recorrida, julgando-a por integralmente provada em conformidade com o já alegado, em sede de motivação, deverá ser julgado cometido o crime de maus-tratos por todos os arguidos;
SSS. sendo estes condenados pela sua prática, bem como no pagamento à recorrente da respectiva indemnização e não inferior ao valor ali peticionado, na quantia de 59.000,00€, e em juros vencidos desde a sua citação até integral pagamento, face ao demonstrado risco de vida que correu a recorrente e a gravidade das omissões e das lesões por ela sofridas, causada pela omissão e violação dos deveres de cuidado e vigilância que sobre os arguidos recaia.
TTT. Assim, condenando-se os arguidos conforme o alegado, Far-se-á por esse Venerando Tribunal da Relação a costumada Justiça.»
Os arguidos AA e BB apresentaram resposta a tais motivações, pugnando pelo não provimento dos recursos e aderindo à fundamentação da sentença recorrida.
A arguida “Lar ...” apresentou também resposta a tais motivações, pugnando também pelo não provimento dos recursos e aderindo à fundamentação da sentença recorrida.
O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo provimento dos recursos, aderindo à motivação apresentada pelo Ministério Público junto da primeira instância.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.
II –
As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões das motivações dos recursos, a de saber se a sentença recorrida enferma de erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, c), do Código de Processo Penal, ou se prova produzida impõe decisão diferente da que nessa sentença foi tomada, devendo os arguidos AA. BB e “Lar ...” ser condenados pela prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, do Código Penal (sendo essa pessoa coletiva responsabilizada nos termos do artigo 11.º, n.º 2, a), e n.º 4, do mesmo Código, por que vinham acusados e se, consequentemente, deverão eles ser condenados no pedido de indemnização civil contra eles formulado pela assistente e recorrente.
Alegam os arguidos, nas suas respostas às motivações do recurso, que os recorrentes não cumprem o ónus de impugnação especificada que decorre do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, pois não indicam as concretas provas que impõem decisão diferente da que foi tomada na sentença recorrida, não relacionam os extratos de depoimentos de testemunhas que transcrevem com a matéria concretamente impugnada e não esclarecem em que medida esses depoimentos impõem essa decisão diferente, com o que são preteridos os seus direitos de defesa. No entanto, embora algumas dessas indicações não sejam dadas de forma explícita e ordenada (o que não pode dizer-se do que consta das conclusões da motivação do recurso interposto pelo Ministério Público), elas não deixam de constar implicitamente das motivações dos recursos e de ser facilmente percetíveis, pelo que em nada são preteridos os direitos de defesa dos arguidos. De qualquer modo, para além dessa impugnação nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, os recorrentes alegam que a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, c), do mesmo Código, por contrariar regras da experiência comum.
Há que salientar, por outro lado, que, ao contrário do que alegam os arguidos AA e BB na sua resposta, o recurso interposto pela assistente foi apresentado tempestivamente, considerando o pagamento da multa a que se reporta o artigo 107.º-A do Código de Processo Penal; foi apresentado no dia 17 de abril de 2024 (último dia do prazo, considerando o pagamento dessa multa), e não no dia 18 de abril de 2024, como alegam esses arguidos.
III –
Da fundamentação da douta sentença recorrida consta o seguinte:
«(…) II. Fundamentação Factos provados
Discutida e instruída a causa resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido DD iniciou o exercício das funções de presidente da direcção da arguida “Lar ...” em 1991, representando a arguida “Lar ...” em todos os seus actos, de gestão, direcção e decisão.
2. A arguida BB iniciou o exercício das funções de directora de serviços, no ano de 2003, cabendo-lhe: organizar e dirigir as actividades da instituição “Lar ...”; supervisionar a articulação dos serviços do “Lar ...”, entre eles a ERPI (estrutura residencial para idosos), o apoio domiciliário e o centro de dia, bem como a articulação entre esses serviços e a Direcção do Lar; coordenar esses serviços, apurar os problemas existentes e formular propostas da sua solução, apresentando à Direcção as correspondentes propostas de melhoria e correcção de procedimentos; funcionar como elemento de transmissão das ordens e directivas junto dos diversos serviços, supervisionando o seu cumprimento e reportando-o à Direcção; planear a utilização dos recursos humanos, equipamentos, materiais, instalações e capitais e colaborar na fixação da política financeira e verificação dos custos.
3. A arguida “Lar ...” tem como principal actividade o alojamento e assistência a pessoas idosas de ambos os sexos, mediante a protecção dos cidadãos na velhice e contemplando situações particulares de invalidez e de falta ou diminuição de meios de subsistência.
4. Para, tanto, dispõe de Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI), sita na Rua ..., em ..., Matosinhos, com denominação idêntica à sua, ou seja, “Lar ...”.
5. Sendo que as pessoas idosas que integram essa ERPI residem em quartos distribuídos por cinco pisos, estando as acamadas e sem autonomia para sozinhas assegurarem as actividades de vida diárias alojadas na designada “área de dependentes”, situada no primeiro piso, com a denominação – e letreiro afixado - de “Enfermaria”.
6. Em 11 de Janeiro de 2021, tomaram posse os novos corpos gerentes, do “Lar ...”, para o triénio de 2021/2024.
7. Cabia ao arguido DD e à arguida BB, na sua qualidade, respectivamente, de presidente da direcção da arguida “Lar ...” e de directora de serviços da instituição, e em nome e interesse desta, até a tomada de posse dos novos corpos gerentes, desenvolver as tarefas e praticar os actos de gestão necessários à protecção e segurança de todos os idosos residentes no “Lar ...”, em particular, pela sua vulnerabilidade, daqueles que não pudessem viver autonomamente, ou seja, dos dependentes para as suas actividades de vida diária.
8. O arguido DD e a arguida BB, na sua qualidade, respectivamente, de presidente da direcção da arguida “Lar ...” e de directora de serviços da instituição conheciam, e não podiam deixar de conhecer, que nos termos do Regulamento para Residentes, o “Lar ...” estipulou, entre o mais, que:
- «Em caso de doença do Residente, poderá este recorrer sem encargos aos serviços médicos e de enfermagem disponibilizados pela instituição, salvo aqueles que tenham tarifário específico» [ponto 3.1. da Norma IV do Capítulo I];
- «1. São direitos dos Residentes: a) Obter a satisfação das suas necessidades básicas, físicas, psíquicas e sociais; b) Ser respeitado na sua individualidade e privacidade» [Norma XXIV ponto Um];
9. Assim, (pelo menos) entre 21 de Março de 2017 e início de Fevereiro de 2020:
- apenas um médico exerceu funções na ERPI da arguida “Lar ...”, cabendo-lhe efectuar consultas e demais actos médicos a todos os residentes da ERPI, incluindo os residentes da área de dependentes, no horário das 14h00 às 16h30/17h00, de segunda a sexta-feira, tendo o referido médico nascido em 24.07.1938:
- apenas prestaram assistência aos residentes da ERPI da arguida “Lar ...”, incluindo os da área de dependentes, dois enfermeiros de manhã na área de dependentes e um para os demais residentes da ERPI, dois enfermeiros durante a tarde e um enfermeiro durante a noite para toda a ERPI.:
- E, como funcionários, auxiliares de acção médica e de limpeza, seis de manhã para a área de dependentes, dois da parte da tarde para toda a ERPI e dois de noite para toda a ERPI.
10. Assim, a assistente CC, nascida em 07-05-1934, em 02 de Maio de 2017, representada pela sobrinha EE, a rogo da assistente, por não saber assinar e o “Lar ...”, representado pelo presidente da direcção, o aqui arguido, outorgaram contrato de prestação de serviços de residente, tendo ficado, a partir de então, alojada num quarto.
11. Cerca de um ano, após a sua admissão, ou seja, em meados do ano de 2018, a assistente CC, sofreu uma queda, pelo que foi transportada aos serviços de urgência do hospital ... no Porto, tendo-lhe sido diagnosticado uma entorse, no membro inferior direito.
12. Após alta hospitalar, regressou ao “Lar ...” e uma vez que o número de auxiliares e enfermeiros era diminuto, por forma a permitir a sua vigilância e tratamento, no respectivo quarto, foi enviada para a enfermaria.
13. Pelo facto de a assistente ter sido transferida para a enfermaria, foi-lhe retirado o telemóvel, ficando, dessa forma impedida e impossibilitada de contactar com os seus familiares e amigas (os).
14. A partir de então, a assistente, ficou na situação de dependente acamada.
15. Perante o sucedido, FF, sobrinha neta da ofendida, em data não apurada, mas posterior a Junho de 2018, entrou em contacto com uma assistente social, daquela instituição, tendo-lhe sido referido que nada podia fazer, por serem aquelas as normas da enfermaria.
16. Perante tal informação, FF, dirigiu-se ao “Lar ...”, a fim de tirar satisfações do ocorrido e para tomar conhecimento das normas da enfermaria.
17. Ali chegada, apenas lhe foi permitido o contacto com a assistente, tendo então verificado que a mesma se encontrava vestida com a roupa do dia anterior e com a qual dormiu.
18. Por outro lado, devido a lesão de que padecia, a assistente, a partir de então e por um número indeterminado de vezes, ficou impedida de tomar banho e de ir a casa de banho, tendo apenas lhe sido proposta a colocação de uma fralda higiénica, ao que aquela se recusou.
19.Nesta decorrência, FF, após ter tido conhecimento do sucedido, abordou uma das enfermeiras que ali se encontrava, com a qual procurou tirar satisfações, tendo aquela lhe referido: “Que não podiam acompanhar todos os utentes a casa de banho e que a fralda era a única solução!”.
20. Na enfermaria, para além da assistente, encontravam-se um número não quantificado de utentes e devido a falta de higienização daquele espaço, o mesmo exalava um cheiro intenso e nauseabundo de urina.
21.Devido ao facto de a assistente se encontrar com a saúde bastante debilitada, a FF, no dia 05 de Fevereiro de 2020, levou a CC a uma consulta ao hospital de dia da Maia, ao seu médico particular, o Dr. GG, tendo então este verificado que no tornozelo direito estava a iniciar-se uma úlcera de compressão, com escaras, devido à circunstância de dormir sempre na mesma posição.
22.Por tal facto, foi recomendado à assistente, para passar a dormir num colchão anti escaras.
23. Após ter sido conduzida ao “Lar ...” foi entregue o relatório médico da assistente nos serviços administrativos.
24. Porém, em finais desse mesmo mês, Fevereiro de 2020, foi detectado um surto de COVID 19, no “Lar ...”.
25. E, após sujeição de teste de despistagem à assistente, esta acusou positivo, bem como outros 100 utentes, pelo que relativamente a estes factos decorre um processo de inquérito autónomo, sob o nº 1583/20.4T9MTS, na 3ª Seção deste DIAP, no qual se investiga a prática do crime de propagação de doença.
26. Devido ao ocorrido, na sequência de vistoria efectuada ao “Lar ...”, em 23-04-2020, a assistente, em 14-05-2020, foi transferida para o Hospital 3... e após exame efectuado, para além do teste positivo ao COVID 19, apresentava um quadro demencial.
27. Nessa unidade hospitalar, foi-lhe novamente diagnosticado úlceras nos calcâneos direito e esquerdo, de grau 1 e 2, pelo que foi algaliada, por forma a auxiliar no processo de cicatrização, o que nunca havia sido feito até então.
28. A assistente manteve-se internada nessa unidade hospitalar até 27-05-2020, tendo, a partir de então, sido encaminhada para uma unidade de convalescença e de reabilitação.
29. Apesar disso, em 14-07-2020, voltou a ser internada no Hospital 1... em Matosinhos, devido a infecção das referidas úlceras de pressão, onde permaneceu até 28-08-2020, tendo dai sido transferida para a unidade de cuidados continuados do hospital 2..., onde se encontra.
30. Assim, a assistente CC, pelos factos descritos em 13, 14, 17, 18, 20, 21 e 23 e pelo diagnostico enunciado em 27, sofreu angústia, dor e as lesões físicas supra referidas, sofrimento psicológico, deterioração cognitiva, isolamento social, humilhação, despersonalização, perigo para a integridade física e para a vida.
31. O arguido DD e a arguida BB tinham perfeito conhecimento que a arguida “Lar ...” é uma instituição particular de solidariedade social e que, por isso, é uma instituição particular sem fins lucrativos, cujo objectivo primordial é cumprir o dever moral de solidariedade entre os indivíduos e, no caso concreto, a protecção na velhice.
Do pedido de indemnização civil
32. À entrada no Hospital 1..., em Matosinhos, a demandante apresentava:
- quadro demencial;
- Ulcera de pressão sacrococcígea de categoria grau quatro (20 x 10 cm) com áreas necróticas e desvitalizadas, cheiro fétido com duas locas;
- duas locas para sagradas: à direita de diâmetro aproximado de 10 cm, com 3 – 4 cm de profundidade aproximada; à esquerda de diâmetro aproximado de 4 cm, com 1 – 2 cm de profundidade aproximada;
- Úlcera calcanhar direito categoria quatro, com 1 – 2 cm de profundidade aproximada;
- Úlcera anca esquerda categoria dois: Tecido granular e epitelial;
- Úlcera calcanhar esquerdo categoria um: rubor.
33. A assistente sofreu dores dilacerantes e insuportáveis e as lesões físicas supra identificadas.
34. O que lhe causou sofrimentos psicológicos, por força do isolamento social que lhe foi infligido, bem como das lesões, que conduziram a demandante à condição de acamada que não detinha quando deu entrada no lar demandado.
Mais se provou que:
35. O Arguido é aposentado e recebe 2300€ de pensão mensal;
36. Reside sozinho, em casa própria.
37. Tem como habilitações literárias o 2º ciclo.
38. A arguida é técnica de serviços jurídicos e aufere o ordenado mínimo nacional.
39. Reside com a filha, que estuda em Vila Real, em casa própria.
40. Tem como habilitações literárias licenciatura em psicologia.
41. Do CRC dos arguidos não consta que os mesmos tenham antecedentes criminais.
*
Factos não provados
Todos os que se mostrem em contradição com os que acima se deram como provados, designadamente e ainda que:
a) Cabia ao arguido DD e BB vigiar e controlar os actos de todos os funcionários e prestadores de serviços do “Lar ...”, com vista à efectiva protecção daquelas pessoas, colocadas aos seus cuidados e guarda.
b) Assim, entre Janeiro de 2015 e Fevereiro de 2020, o arguido DD e a arguida BB, por si e em representação e interesse da arguida “Lar ...”, descurando os deveres inerentes, e decorrentes, das suas funções, não providenciaram, como se lhes impunha, a contratação dos profissionais de saúde necessários à satisfação, ainda que mínima, do bem estar, físico e psíquico, e da saúde dos residentes na área de dependentes, em média, cerca de 70 pessoas, acamados e/ou sem autonomia nas suas actividades de vida diária.
c) Tal como, igualmente, não providenciaram, como deviam e podiam, pela contratação dos funcionários necessários á prestação dos cuidados básicos aos referidos residentes dependentes, nem, em concomitância, cuidaram de proceder a recrutamento/contratação de prestadores/funcionários com habilitações e/ou formação em geriatria.
d) O número de médico, enfermeiros e de funcionários foi sempre desadequado para prestar os devidos e necessários cuidados aos utentes acamados na área de dependentes do lar, como a arguida BB e o arguido DD, actuando por si e em representação do “Lar ...”, bem sabiam e queriam, desde logo porque apenas o fizeram para evitarem gastos com os residentes dependentes do lar, com um único objectivo de contenção de custos.
e) Nesse contexto, sabiam que com referido quadro de pessoal:
- Não era possível providenciar e proceder ao reposicionamento sistemático dos utentes acamados, sabido, como sabiam, que as pessoas acamadas, em especial as idosas, devem ter o seu posicionamento trocado de três em três horas, para evitar feridas de pressão; e, que, por isso, por falta desse cuidado básico, os acamados iriam necessariamente desenvolver escaras e
- Era impossível proceder à devida higienização dos utentes da área dos dependentes e, bem assim, à necessária limpeza dos quartos e das casas de banho da área dos residentes dependentes.
f) A partir daquela data, devido a falta de auxiliares, a assistente, por um número indeterminado de vezes, a hora das refeições, por motivos não apurados, ficou no quarto, sem que tivesse sido detectada a sua falta, pelo que ficou, dessa forma, impedida de tomar as suas refeições, tendo, inclusivamente, uma das auxiliares referido: “Quem fosse comia, se não fosse ficava sem comer!”.
g) Pelo motivo mencionado em 20, sentia-se cheiro a fezes.
h) O arguido DD e a arguida BB, na sua qualidade, respectivamente, de presidente da direcção da arguida “Lar ...” e de directora técnica da instituição arguida, apesar de saberem das condições deficitárias dos recursos humanos e dos equipamentos, não cuidaram de equipar as camas da área de dependentes com colchões próprios para acamados e com colchões especiais anti escaras, para aqueles que deles necessitassem, como foi o caso da assistente.
i) Ao invés, mantiveram as camas equipadas com colchões de pequena espessura e comuns, não tratando sequer de renovar tais colchões, quando se apresentavam sujos e danificados/rasgados, sabendo, e não podendo deixar de saber por força das suas funções, que estes colchões eram impróprios para acamados - tanto mais que, conforme sabiam, alguns dos residentes dependentes, como a assistente CC, estavam no leito com carácter permanente, a quem nunca foi providenciado o colchão anti escaras e os demais estavam deitados entre as 15h00/16h00 e as 10h00 do dia seguinte, o que potenciou lesões físicas graves, nomeadamente escaras (úlceras de pressão).
j) O arguido DD e a arguida BB, na sua qualidade, respectivamente, de presidente da direcção da arguida “Lar ...” e de directora técnica da instituição, tinham também perfeita consciência e conhecimento de que a falta de limpeza dos espaços, a falta de higiene pessoal dos residentes dependentes e a degradação dos equipamentos e mobiliário, em especial das camas e dos colchões, são potenciadores da propagação de micro- organismos multirresistentes.
k) Por outro lado, ao não se certificarem, devido à carência de recursos humanos, que a assistente ficava no quarto sozinha, sem tomar as respectivas refeições, o que ocorreu, em número não quantificável de vezes, provocou-lhe carência nutricional, com o consequente sofrimento e, também, riscos para a sua saúde.
l) Acresce que os arguidos em representação da arguida, também não adoptaram qualquer medida para com as pessoas residentes na área de dependentes, para que estes usufruíssem de actividades para ocupação dos tempos livres, como foi o caso da assistente.
m) Pelo que, a assistente e os demais utentes, para além de verem apenas televisão, não tinham acesso a outros meios de informação, como jornais, e não gozavam de deslocações sequer para actividades religiosas, incluindo idas à capela da instituição, nomeadamente para a eucaristia semanal, pelo que permaneciam durante todo o dia ou sentados na mesma cadeira ou deitados na cama e, quando sentados, eram colocados em fileiras, lado a lado, num amontoado.
n) Por outro lado, nunca foi proporcionada à assistente e aos demais utentes dependentes, qualquer actividade física, ainda que processada por exercícios de mobilização passiva, nem promovida a sua colaboração nas actividades de vida diárias.
o) No entanto, por razões económicas, por forma a conter gastos em recursos humanos, não contrataram os funcionários e enfermeiros necessários para assegurarem o conforto e cuidados mínimos a pessoas incapazes para as actividades diárias de vida, nas quais se inclui a assistente e não providenciaram, assim, pelas condições para o tratamento e cuidado devidos a pessoas dependentes, colocadas à guarda e cuidados da arguida “Lar ...”.
p) Apesar de terem perfeito conhecimento de que a arguida “Lar ...” dispunha de meios económicos para adquirir equipamentos, mobiliário, materiais e alimentos necessários ao bem-estar e saúde dos residentes dependentes e para contratar os funcionários, médico e enfermeiros necessários a assegurarem a prestação dos cuidados básicos e de saúde a esses residentes dependentes.
q) Ao assim actuarem, os arguidos estavam conscientes de que isso iria necessariamente traduzir-se numa falta de cuidados na saúde, na higiene, na alimentação, na atenção, nos afectos, no entretenimento e socialização dos residentes acamados, como foi o caso da assistente.
r) E, consequentemente, iria agravar o estado de saúde desses residentes acamados, provocando-lhes mazelas físicas causadoras de sofrimento, isolamento e ausência de afectos causadores de intenso sofrimento psíquico, tal, como sucedeu com a assistente CC.
s) Os arguidos estiveram também sempre cientes que a prática de tais actos atentavam contra a individualidade e contra a dignidade da pessoa humana, que eram desumanos e cruéis e, como tal, causadores de humilhação e sofrimento aos residentes dependentes tal, como sucedeu com a assistente CC.
t) Assim, ao actuarem da forma descrita, os arguidos fizeram-no de forma voluntária, livre, consciente e em conjugação de esforços, bem sabendo que estavam a violar o especial dever de cuidado que sobre eles impendia, de vigiar a assistente CC, como residente dependente, e como tal especialmente vulnerável em razão da idade e da incapacidade física de que padecia, após a referida queda, por forma a garantir a sua segurança, de zelar pelo seu bem-estar físico e psíquico, e de lhe prestar todos os cuidados básicos.
u) Mais, sabiam que as referidas condutas eram proibidas e punidas e, ainda assim, quiseram actuar da forma como o fizeram.
Do pedido de indemnização civil
v) A deterioração cognitiva da demandante, levou a que passasse a padecer de síndrome demencial que se agravou e passou a demência ocorreu por força do mencionado em 34.
w) Os demandados agiram sabendo que iriam provocar danos físicos e psicológicos à demandante, como consequência necessária das suas condutas.
x) Ao recusarem a prestar cuidados de saúde, sabiam que punha em perigo a saúde, a integridade física e mesmo a vida da demandante, bem sabiam que causavam nesta desespero, intranquilidade e receio pela sua segurança e bem estar.
y) A arguida agiu com desrespeito pela condição e dignidade humana da ofendida, não lhe aliviando a dor, recusando-se a prestar-lhe a assistência para a qual estava perfeitamente apta a realizar.
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Motivação
Para formar a sua convicção, o tribunal serviu-se do conjunto da prova produzida, mais concretamente, da extensão prova documental existente nos autos e a prova testemunhal.
Relevou a seguinte prova documental:
- Denúncia/queixa de fls. 2 a 16;
- Certidão dos Estatutos Sociais; Acordo de Cooperação com a Segurança Social; Registo de Acompanhamento da Ordem dos Enfermeiros; Auto de Vistoria de Saúde Pública de Matosinhos e Relatório Final da Segurança Social, de fls. 442 a 535;
- Regulamento Interno para residentes, de fls. 521 a 535;
- Contrato de prestação se serviços, de fls. 17 a 18;
- Assento de Nascimento, de fls. 430;
- Fotografias, de fls. 41 a 42;
- Ordem de Serviço, de fls. 200 a 201;
- Acta da tomada de posse dos novos corpos gerentes de fls. 387 a 388 e
- CRC.
Assim, os pontos 1 a 4 e 7 advém dos documentos de fls. 198 e ss, 443 e ss, fls. 505 e ss e 521 e ss.
O mencionado em 5 resulta da vistoria realizada e documentada a fls. 285 e ss.
O facto 6 resulta de fls. 387 e ss.
Já quanto ao enunciado em 8 e 31, a convicção do Tribunal advém da conjugação da natureza das funções exercidas pelos arguidos que, atentas as mesmas lhes impunham a obrigação de conhecerem a natureza e conteúdo das suas funções bem como o regulamento.
O mencionado em 9 advém do depoimento da testemunha HH, médico na arguida Lar ..., que referiu ter ficado sozinho quando faleceu o outro médico, que só existiam 1 ou 2 enfermeiros na enfermaria, tendo confirmado o seu horário; da testemunha II, enfermeiro no Lar de 2013 até Outubro de 2018, que referiu que existiam 2 enfermeiros à tarde, 2 de manhã e 1 à noite e da testemunha JJ, enfermeira no lar desde Agosto de 2017 a Julho de 2019, que confirmou o numero de enfermeiros, isto em conjugação com o auto de vistoria.
O referido em 10 resulta do contrato de fls. 17.
O mencionado em 11 a 23, 29 e 34 (quanto à situação de acamada), resulta do depoimento da testemunha FF, sobrinha neta da assistente, que referiu que esta integrou o lar em Setembro de 2018, por estar sozinha, e, nessa ocasião, era totalmente independente, sendo que, apenas no dia 05/02/2020, quando a acompanhou a consulta médica, é que a mesma se encontrava dependente, confirmando que o telemóvel lhe foi retirado, tendo ficado sem noticias. Referiu ainda que por ocasião de uma visita que fez à assistente, esta queixou-se de estar ainda com a roupa do dia anterior, porque lhe queriam vestir a roupa de outra pessoa e no dia seguinte, a contactou a chorar porque lhe queriam pôr uma fralda, o que fizeram, contra a sua vontade, dando como justificação não terem pessoal para ajudar a ir à casa de banho. Descreveu ainda o estado em que a assistente se encontrava aquando da entrada no Hospital 1..., com sonda, desidratada, com anemia e com ulceras documentadas nas fotografias, que refere ter visto. Este depoimento foi corroborado pelo prestado pela testemunha KK, amiga da sobrinha neta da assistente, que referiu ter ido em duas ocasiões ao Lar visitar a assistente, sendo que da primeira vez, a senhora apresentava-se totalmente autónoma, e da segunda vez, já na enfermaria, tendo confirmado o mau cheiro e que a assistente não era a mesma pessoa no sentido anímico.
A convicção quanto ao facto 12 e 20 adveio também do depoimento das testemunhas LL, auxiliar limpeza, no lar de 2007 a 2022 e MM, auxiliar de geriatria no lar de 2017 a 07/2019.
Ainda quanto a este segmento factual, o Tribunal relevou ainda o depoimento de EE, sobrinha da assistente, que referiu que a tia entrou no Lar bem, embora usasse uma canadiana, estava num quarto sozinha, e fazia tudo sozinha quanto a higiene, alimentação.
O mencionado em 24 constitui um facto notório (amplamente divulgado nos meios de comunicação social, à data da sua ocorrência) tendo também sido mencionado pelas testemunhas, em particular pelo Dr. NN, médico no Lar, desde 2020.
Quanto à pendencia do inquérito mencionado em 25, tal resulta da certidão junta aos autos.
No que respeita ao inserto em 26 a 29, tal resulta da vistoria realizada, dos relatórios atinentes à assistente e do relatório quanto à transferência para o Hospital 3....
O mencionado em 30, 33 e 34 (quanto às consequências), advém das regras da experiencia comum, visto que alguém, com as lesões descritas, tem, inevitavelmente, de sentir dor, sendo ainda que o recurso a fralda e sonda, quando inexiste qualquer necessidade para tanto, não pode deixar de causar sofrimento, humilhação, e, concomitantemente, sensação de isolamento e degradação cognitiva, tratando-se, no caso, de pessoa de idade avançada, por isso, com as inerentes fragilidades associadas à sua condição.
Relativamente ao facto 31, tal advém das funções exercidas pelos arguidos na sociedade arguida que, pela sua natureza, impunha que os mesmos conhecessem as suas características, princípios subjacentes e objectivos.
O mencionado em 32, advém do relatório médico respectivo.
As condições de vida dos arguidos constantes em 35 a 40, assim resultaram das declarações pelos mesmos prestadas, que não foram infirmadas por outros meios de prova.
O facto 41, advém do teor dos certificados de registo criminal dos arguidos.
Relativamente aos factos não provados, não foi produzida prova bastante que formasse a convicção do Tribunal quanto à sua ocorrência, sendo que o enunciado em a) não se afigura ao Tribunal sequer susceptível de ser colocado em prática, configurando uma obrigação inexequível (não equacionamos como possível que os arguidos tivessem obrigação de permanecer de forma continua em todas as áreas do ERPI a policiar o que ia sendo feito por empregadas de limpeza, auxiliares, enfermeiros, médico, cozinheiros, enfim, pois para a execução destes trabalhos é que estes profissionais eram contratados, competindo aos arguidos funções de natureza diversa e, claro está, a resolução de questões ligadas ao funcionamento da instituição, que chegassem ao seu conhecimento pelas vias adequadas)
Com efeito, a testemunha NN, medico no Lar ... desde Maio de 2020 até há cerca de 2 anos, referiu ter sido contratado para melhorar a organização dos serviços e, quando integrou o Lar ..., viu o expectável para a altura, confirmando que existia um numero reduzido de trabalhadores, mercê de contagio por Covid 19, tendo procedido a uma vistoria com vista à quantificação de recursos e referido que existiam colchoes anti escaras, tendo solicitado a aquisição de novos, e sido atribuído um à assistente (desconhecendo, contudo se a mesma já utilizava tal equipamento) esclarecendo que as ulceras de pressão apresentadas pela assistente, tanto podem surgir por maus cuidados ou por a fisiologia do utente ser tão debilitada que nada impede que isso aconteça, salientando que não era normal surgirem as úlceras em causa numa pessoa autónoma ou acamada há pouco tempo, não tendo sido possível atribuir a origem das escaras à falta de colchão adequado, sendo certo que sequer se demonstrou que a Assistente não beneficiou deste tipo de colchão.
A testemunha OO, assistente social no lar de 1993 a 30/09/2022 referiu, quanto ao quadro de pessoal, que os ratios eram cumpridos, embora se verificassem ausências por baixa, mas a zona de enfermaria, além do pessoal, tem ainda vigilância 24 horas por dia. Relativamente à condição de saúde da assistente, referiu que a mesma apresentava resistência em fazer as refeições, alegando que tinham veneno e evidenciava um quadro mental alterado, alegando ser vítima de perseguição, denotando que seria a assistente que se recusava a fazer as refeições.
Ora, perante este acervo de depoimentos, não houve alusão à circunstância dos arguidos terem conhecimento da deficiente higienização, da colocação de fralda ou sonda sem necessidade, e, ainda assim, nada terem feito para colmatar tais falhas. Note-se que, numa estrutura residencial com 5 pisos, e utentes na ordem das centenas, não é razoável impor aos arguidos que detivessem conhecimento integral das ocorrências enunciadas nos factos provados, que tivesse sido apresentada uma reclamação pela assistente ou alguém em sua representação e que, ainda assim, a situação deficitária se mantivesse. É certo que podemos configurar que o conhecimento se impunha aos arguidos pelas funções que exerciam, mas não podemos deixar de atentar na especificidade das lacunas, praticadas por enfermeiros, pessoal de limpeza e assistentes (considerando apenas as que se consideraram demonstradas), que não têm se ser conhecidas dos demais. Não se demonstrou também que, embora o número de funcionários fosse reduzido, não fosse o necessário para o número de utentes (sendo que a este propósito, a acusação encerra em si uma alegação genérica e de teor conclusivo).
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Enquadramento jurídico-penal dos factos
Os arguidos vêm acusados da prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.º-A, n.º 1, al. a) do CP.
O crime imputado encontra-se tipificado no artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal, do qual resulta que quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente, será punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
A citada incriminação, tendo como ratio a protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, visa a protecção da saúde – “bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental … que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal e saudável desenvolvimento da personalidade da criança ou do adolescente, agrave as deficiências destes …” (Américo Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 332).
Os elementos objectivos do respectivo tipo, com interesse in casu, traduzem-se em alguém que tenha ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação pessoa menor e lhe infligir maus tratos físicos (al.a)).
Por sua vez, as condutas previstas e punidas pelo mencionado preceito legal podem ser variadas, incluindo, entre outras, maus tratos físicos (ofensas corporais simples) e maus tratos psíquicos (castigos, descuido, etc.).
Sobre o crime em apreço o STJ em Acórdão de 5/04/2006 escreveu que “para caracterização do crime de maus tratos, previsto no art. 152.º, n.º 1 do CP, importa aferir a gravidade da conduta traduzida por crueldade, insensibilidade …” (www.dgsi.pt).
O tipo objectivo do ilícito inclui os maus tratos físicos (ou seja, que atingem a integridade física da vítima), os maus tratos psíquicos (que podem consistir em ameaças, injúrias ou outras condutas que, afectando a dignidade pessoal da vítima, se traduzem na violação do bem jurídico protegido, como sucede com as acções intimidatórias, as humilhações e as críticas destrutivas e/ou vexatórias), os castigos corporais, as privações de liberdade, as ofensas sexuais e os tratamentos cruéis (ou tratamentos desumanos, que podem causar lesão física ou intenso sofrimento psicológico ou mental, em proporções que ultrapassam os limites razoáveis exigíveis ao ser humano - Cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, 2.ª ed., Universidade Católica Editora, 2017, pág.419, anotação ao artigo 25.º da Constituição (Direito à integridade pessoal). Cf. ainda Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos Homem Anotada, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1999, págs.74-75, anotação ao artigo 3.º da Convenção (Proibição da tortura).
Tipo objectivo que, como acima foi dito, tutela um bem jurídico complexo que radica na dignidade da pessoa humana, pelo que, para constituir maus tratos, a conduta apurada deve consubstanciar uma ofensa que, pelas suas características (a analisar no caso concreto, à luz do específico contexto relacional existente entre o agente e a vítima, correspondente a um dos descritos no corpo do n.º 1 da norma incriminadora), se reflecte negativamente na saúde física, psíquica ou mental da vítima e conduz à degradação da sua dignidade pessoal.
Os actos praticados pelo agressor que, como acima ficou dito, podem ser de várias espécies, são considerados na sua integração num comportamento global dotado de uma unidade de sentido de ilicitude, cujo elemento característico corresponde, precisamente, ao tipo dos maus tratos, previsto no artigo 152.º-A do Código Penal.
Assim, dentro destes limites e com estas características, podem enumerar-se, no que a maus tratos a idosos respeita, várias formas, quais sejam, qualquer forma de agressão física (espancamentos, golpes, queimaduras, fracturas, administração abusiva de fármacos ou tóxicos, relações sexuais forçadas, que se reconduzem à modalidade maus tratos físicos); os maus-tratos psicológicos ou emocionais, materializados em condutas que causam dano psicológico como manipulação, ameaças, humilhações, chantagem afectiva, desprezo ou privação do poder de decisão, negação do afecto, isolamento e marginalização; a negligência traduzida em não satisfazer as necessidades básicas (negação de alimentos, cuidados higiénicos, habitação, segurança e cuidados médicos), que se reconduz a tratamento cruel, assim como condutas de abuso económico, como seja, impedir o uso e controlo do próprio dinheiro, exploração financeira e chantagem económica, ou permitir a exposição incontrolada a formas de autonegligência resultantes da incapacidade de um indivíduo desempenhar tarefas de cuidado consigo próprio indispensáveis à sua sobrevivência e à satisfação de necessidades essenciais do quotidiano, (cf. o acórdão do TRL de 23/2/2022, relatado por Cristina Almeida e Sousa, disponível em www.dgsi.pt)
Embora, a estrutura objectiva do tipo implique reiteração, uma vez que a lesão do bem jurídico complexo protegido (a saúde) integrará uma pluralidade de condutas da mesma ou de diferentes espécies repetidas por um período mais ou menos prolongado, a expressão “modo reiterado ou não” contempla que certas condutas, ainda que isoladas, desde que providas de gravidade bastante, podem fazer operar a consumação dos maus tratos.
Quanto à imputação subjectiva do tipo, não obstante as diferentes modalidades que pode revestir, o seu fundamento demanda exclusivamente o dolo em qualquer das suas modalidades que, justamente por causa das diferentes formas que a consumação do crime de maus tratos pode revestir, tem conteúdo variável.
Em primeira linha, implica, sempre, o conhecimento da existência dos deveres inerentes à assunção da relação laboral, ou do vínculo de protecção-subordinação, do estado de menoridade, deficiência, velhice, doença ou gravidez da vítima.
Na vertente de maus tratos físicos, o dolo abrange o resultado, traduzindo-se na consciência e a vontade de causar a lesão da integridade física da vítima e, nos restantes casos, implica a consciência e vontade de criar o risco de lesão da saúde da pessoa do ofendido ou do perigo de afectação do normal desenvolvimento da criança aos cuidados do agente ou de criação de prejuízos para a saúde da vítima.
Verifica-se, ainda, dolo (necessário ou eventual) quando o agente, embora não pretendendo directamente causar o resultado danoso, tem consciência de que este ocorrerá como consequência necessária ou possível da sua conduta e com isso se conforma (cf. o art.º 14.º, nºs 2 e 3 do CP).
O art.º 10º do CP equipara, em geral, a omissão à acção, nos crimes de resultado, estabelecendo que, quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como também a omissão adequada a evitá-lo. São os crimes comissivos por omissão imprópria, porque o evento antijurídico pertinente à consumação do crime, segundo a sua descrição típica, resulta do incumprimento do dever jurídico de evitar esse resultado, nisso se distinguindo dos crimes omissivos puros que se caracterizam pela simples abstenção de agir e são crimes de mera actividade.
A punibilidade do omitente depende da existência de um específico dever jurídico que o obrigue a agir, para evitar o resultado. Só há equivalência entre o desvalor da acção e o desvalor da omissão, porque o agente tem uma posição de garante da não produção do resultado, à luz de um dever jurídico de agir que constitui o fundamento da punição e sem o qual a punibilidade da omissão constituiria uma intromissão intolerável na esfera privada de cada um.
O facto típico materializa-se na “criação de um risco de verificação de um resultado típico” que existirá sempre que esse perigo se verifica ou é intensificado por efeito da omissão, traduzida na ausência da acção esperada e exigível por referência àquilo que, segundo a descrição típica, é necessário para obstar à verificação do resultado previsto no tipo legal e desde que o omitente esteja em condições de poder levar a cabo a acção devida ou necessária a evitar o resultado (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, I, Coimbra editora 2ª ed., págs. 927 e 928).
O dever jurídico de garante da não ocorrência do resultado antijurídico pode resultar directamente da lei (dever legal especial), de um contrato, de situações de criação de perigo e/ou relações familiares íntimas de solidariedade e confiança que importem a aceitação de facto de deveres cuja execução importe ingerência/apoio entre o omitente e o titular do bem jurídico que suporte o dever de agir, numa posição de protecção ou de uma posição de controlo.
Relativamente à arguida Lar ..., considerando a matéria de facto provada, resulta configurada a sua posição de garante da saúde física, mental e do bem-estar emocional dos utentes que tinha a seu cargo, particularmente da ofendida, derivada do especial contexto relacional de confiança e de apoio à satisfação das necessidades a que a instituição arguida estava contratualmente obrigada e, ainda, a situação de vulnerabilidade e dependência, fruto da doença e idade avançada da vítima, que integra o nº 1 do art.º 152º-A do CP, estendendo-se tal dever de garante aos arguidos, por força das funções ali exercidas.
Contudo, não se demonstrou que os arguidos estavam cientes das referidas deficiências nos serviços prestados, que para as mesmas tenham sido alertados e, ainda assim, nada fizessem para corrigir a situação, designadamente mediante a contratação de novos funcionários ou optimização dos recursos humanos existentes, apesar de terem consciência que não estavam a ser prestados os cuidados adequados aos utentes, concretamente, à ofendida.
Assim, não resta senão reconhecer que o acervo factual nos autos não suporta a conclusão, de que os arguidos estavam realmente cientes da deficiente prestação de cuidados à ofendida, nos moldes já enunciados e susceptíveis de configurar “maus tratos”, e, para além disso, estavam efectivamente capazes de adoptarem as medidas necessárias para corrigir tal situação.
Ou seja, não se mostra minimamente demonstrado um comportamento omissivo por parte dos arguidos, adequado a evitar a produção dos resultados lesivos da saúde física e do bem-estar emocional da ofendida, que lhes possa ser imputado, pelo menos, a título de dolo eventual.
Por conseguinte, impõe-se a absolvição dos arguidos da prática do ilícito pelo qual vêm acusado
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Pedido de indemnização civil
A demandante pede a condenação dos demandados no pagamento de uma determinada quantia, alegando para o efeito que a sua conduta lhe causou danos não patrimoniais.
Fundamenta, pois, o seu pedido na responsabilidade civil por factos ilícitos, consagrada genericamente nos arts.483.º e ss. do Cód. Civil, que tem os seguintes pressupostos, como resulta deste preceito legal: a existência de um facto, voluntário e ilícito; um nexo de imputação subjectiva do facto ao lesante; um dano e um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Ora, o fundamento do pedido formulado na acção civil enxertada na acção penal, é a prática de um crime, donde resulta que a sua “causa de pedir” advém dos eventos da vida real ou conjunto de factos que fazem parte do objecto do processo, ou seja, da acusação ou da pronúncia.
Tem sido amplamente discutido o problema de saber se a absolvição penal do arguido implica necessariamente a sua absolvição do pedido de indemnização civil.
A propósito, o acórdão do Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/99, de 17-6-1999 (DR. n.º 179, Série I-A de 1999-08-03), decidiu que se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.
Também o Ac. do Tribunal da Relação do Porto, (proferido em 1.07.2009, Proc. 520/03.5PTPRT.P1,disponível in www.dgsi.pt), defendeu que “um olhar aos fundamentos do assento numa curta incursão pelo seu texto é fundamental para afastar dúvidas a este propósito”: uma primeira das teses em confronto entendia que em caso de sentença absolutória proferida em processo penal, nos termos do n.º 1 do artigo 377º do Código de Processo Penal, deve ser apreciado o pedido civil aí formulado” e a segunda sustentava que “o pedido de indemnização civil deduzido em processo penal tem sempre de ser fundamentado na prática de um crime. Se o arguido for absolvido desse crime, o pedido cível formulado só poderá ser considerado se existir ilícito civil ou responsabilidade fundada no risco (responsabilidade extracontratual)”.
O mencionado Acórdão do STJ diz que “Este acórdão põe em relevo uma ideia muito importante em toda esta polémica. É que, aceitando-se, muito embora, que o nosso direito positivo impõe um regime de adesão obrigatória, o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal tem necessariamente por causa de pedir o facto ilícito criminal, ou seja, os mesmos factos que constituem também o pressuposto da responsabilidade criminal. E assim se compreende que é por força da autonomia entre as duas responsabilidades que o Tribunal absolva da responsabilidade criminal, mas possa conhecer da responsabilidade civil. Só que esta última é a responsabilidade emergente do facto ilícito criminal, ou seja, a responsabilidade a que se refere o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil. (…) Desta forma, o n.º 1 do artigo 377.º do Código de Processo Penal, quando manda condenar em indemnização civil, tem como pressuposto que esta indemnização resulte de um facto ilícito criminal e, no fundo, tendo como base o já citado artigo 483.º do Código Civil”. Por isso conclui que o pedido de indemnização civil a deduzir no processo penal tem necessariamente por causa de pedir o facto ilícito criminal, ou seja, os mesmos factos que constituem também o pressuposto da responsabilidade criminal.
Igualmente no acórdão do STJ, se decidiu no mesmo sentido: “como flui, claramente, do disposto nos arts. 71°, n° 1, e 74°, n° 1, do C.P.P., 128°, do C.P./82, e 129º, do C.P./95, a acção cível que adere ao processo penal é a que tem por objecto a indemnização de perdas e danos causados por um crime e só essa. Logo, se o pedido não é de indemnização por danos ocasionados pelo crime, se não se funda na responsabilidade civil do agente, pelos danos que, com a prática do crime, causou, então, o pedido é, legalmente, inadmissível no processo penal. Consequentemente, pelos danos causados por um facto que não é susceptível de integrar um tipo legal de crime e que viola, exclusivamente, um crédito ou uma obrigação em sentido técnico, não pode pedir-se a respectiva indemnização no processo penal. Portanto, agora na perspectiva da competência do tribunal criminal, este é incompetente, em razão da matéria, para conhecer da pura responsabilidade civil contratual” (Proc 599/99, de 12-01-2000 in www.dgsi.pt).
E posteriormente, o mesmo STJ, reiterou que “a causa de pedir na acção cível conexa com a criminal é sempre a responsabilidade civil extracontratual [pois que fundada na prática de um crime e não no incumprimento contratual] e não qualquer outra fonte de obrigações, como a responsabilidade civil contratual ou o enriquecimento sem causa” (Proc. 448/06, de 12-11-2009 in www.dgsi.pt ).
Assim sendo, não resultando demonstrada factualidade susceptível de ser integrada no âmbito dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, no que diz respeito à culpa e facto, outra solução não resta senão julgar improcedente o pedido de indemnização civil.
(…)»
IV -
Cumpre decidir.
Vêm os recorrentes (o Ministério Público e a assistente) alegar que a sentença recorrida enferma de erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, c), do Código de Processo Penal, e que a prova produzida impõe decisão diferente da que nessa sentença foi tomada, devendo os arguidos AA. BB e “Lar ...” ser condenados pela prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, do Código Penal, por que estes vinham acusados. Alegam os recorrentes que, de acordo com as regras da experiência comum e os depoimentos de testemunhas que transcrevem, os arguidos AA e BB, nas suas qualidade de presidente da direção e diretora de serviços da arguida “Lar ...”, tinham pleno conhecimento das carências de recursos humanos que originaram os maus tratos físicos e psicológicos de que a assistente foi vítima (colocação de fralda não por razões de saúde, mas por falta de empregados, falta de higienização da enfermaria, úlceras devidas à não movimentação do corpo acamado e não utilização de colchão anti-escaras, privação injustificada da alimentação, desrespeito dos horários de refeições, falta de contactos com familiares, restrição de atividades conducentes ao bem estar da assistente), pelo que lhes dever ser imputada a prática do crime em apreço. Alegam que esses arguidos, pelas funções que exerciam, eram responsáveis pelo cuidado e proteção da saúde e bem-estar dos utentes de “Lar ...”, não os isentado dessa responsabilidade o facto de delegarem essa função noutras pessoas que trabalham nessa instituição, desde os médicos e enfermeiros aos empregados auxiliares e responsáveis da limpeza.
Os arguidos AA e BB, na sua resposta às motivações dos recursos, alegam, na linha da fundamentação da sentença recorrida, que a prática dos referidos maus tratos não lhes pode ser imputada a título de dolo ou negligência, por não lhes ser possível controlar o desempenho de todos os empregados da referida instituição, que acolhe centenas de utentes num edifício de cinco pisos.
Vejamos.
Na sentença recorrida são descritos factos que, de acordo com o ponto 30 do elenco dos factos provados, levaram a que a assistente sofresse «angústia, dor e as lesões físicas supra referidas, sofrimento psicológico, deterioração cognitiva, isolamento social, humilhação, despersonalização, perigo para a integridade física e para a vida». Assim descritos os factos, parece não haver dúvidas de que foi vítima de maus tratos físicos e psicológicos que poderão integrar a prática do crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, do Código Penal. Nem todos os factos descritos se revestirão, encarados isoladamente, de uma gravidade que conduza a tal qualificação, mas parece não haver dúvidas de que tal sucede quando todos esses factos são encarados em conjunto
Não é, pois, essa qualificação dos factos provados na sua objetividade que está agora em discussão. Está em discussão a imputação desses factos aos arguidos AA e BB a título de dolo (direto, necessário ou eventual, como é definido no artigo 14.º do Código Penal), O crime em apreço pode ser praticado por omissão (nos termos do artigo 10.ºdo mesmo Código) e seria a esse título imputável a esses arguidos. De acordo com o princípio geral do artigo 13.º do mesmo Código, tal crime só é punível quando praticado com dolo. Haverá, então, que apurar se a prática dos factos em apreço a título de dolo poderá ser imputada a esses arguidos (e, reflexamente, à arguida “Lar ...”, nos termos do artigo 11.º, n.º 2, a), e n.º 4, do mesmo Código). A imputação da prática desses factos a esses arguidos a título de negligência também não deixa de ser relevante, pois ela poderá originar outro tipo de responsabilização, criminal (relativa á outro crime que não o de maus tratos), ou uma responsabilização de outro tipo.
A este respeito, há que considerar o seguinte.
Não pode considerar-se que as responsabilidades dos arguidos AA e BB, como presidente da direção e diretora de serviços de “O Lar ...” se cingiam a questões de ordem administrativa e que lhes era estranho tudo o que dizia respeito ao cuidado e proteção dos utentes dessa instituição, como se não fosse essa a sua missão primordial ou como se essas questões dissessem apenas respeito a outras pessoas em que tais funções foram delegadas. Nessa medida, sobre eles recaia um dever de garante que os poderia responsabilizar nos termos do artigo 10.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal. Por isso, as regras da experiência comum levam a concluir que eles tinham conhecimento das carências de recursos humanos que atingiam “Lar ...”. Neste plano genérico, poderia concluir-se que esses arguidos tinham conhecimento dessas carências. Se não tinham, deviam ter, pois não deixava de ser sua missão (e não só de outros) a atenção a essa questão (estaríamos, pois, de qualquer modo, perante um comportamento negligente a esse respeito).
Mas, para que a esses arguidos seja imputada a prática dolosa dos maus tratos em apreço, não basta o conhecimento dessas carências genéricas. É necessário que eles tivessem conhecimento da situação concreta da assistente. Ora, quanto a este aspeto, já deverá ser tido em conta o que se afirma na sentença recorrida. Pode dizer-se, numa primeira abordagem, que não será de esperar, face às regras da experiência comum, que esses arguidos tivessem conhecimento da situação de todos os utentes (na ordem das centenas) desse lar, incluindo os que padeciam de doenças como a que padecia a assistente. Nem seria exigível que tivessem esse conhecimento. Há que considerar, mesmo assim, o seguinte.
Se esses arguidos tivessem sido alertados para a situação de que foi vítima a assistente e, perante tal alerta, nada fizessem no sentido de pôr termo a essa situação, podendo fazê-lo, facilmente poderíamos concluir que atuaram com dolo. Mas tal não se provou, como bem se refere na sentença recorrida. O mesmo se diga se situações como essa já se tivessem verificado anteriormente ou eram comuns. Nesse caso, também poderia dizer-se que atuaram com dolo, ou, pelos menos, com negligência. Mas tal não se provou.
O mesmo se diga se pudesse concluir-se que as referidas carências de recursos humanos conduziam necessariamente a uma situação como aquela de que foi vítima a assistente. Se assim fosse e os referidos arguidos disso tinham consciência, poderia dizer-se que atuaram com dolo necessário (artigo 14.º, n.º 2, do Código Penal). E se assim fosse e esses arguidos disso não tinham consciência, poderia dizer-se que atuaram com negligência.
Mas afigura-se que não se provou esse nexo de causalidade entre as referidas carências de recursos humanos e a situação de que foi vítima a assistente, como também se refere na sentença recorrida. Segundo o depoimento da testemunha Dr. NN, médico que acompanhou a situação da assistente, não pode afirmar-se com certeza que as úlceras de que padecia a assistente fossem devidas ao tratamento que recebeu no lar. Não se provou que as referidas carências levassem necessariamente a que a assistente fosse privada de alimentação, ou não fossem respeitados os horários das refeições. O mesmo se diga quanto ao uso de fralda na sua situação (poderia esse uso ser mais conveniente, mas não necessário). O mesmo se diga da falta de higienização da enfermaria. Também não se vislumbra que relação possa haver entre essas carências e a privação do uso de telemóvel que impedia contactos com familiares.
É certo que também poderia dizer-se que as referidas carências de recursos humanos, se não conduziam necessariamente a uma situação como aquela de que foi vítima a assistente, a ela poderia conduzir com probabilidade. Se os referidos arguidos tivessem consciência dessa probabilidade e com ela se tivessem conformado, poderíamos dizer que atuaram com dolo eventual (artigo 14.º, n.º 3, do Código Penal). Mas nem isso se provou. Tal suporia, além do mais, da parte desses arguidos, uma personalidade marcada pela insensibilidade (e até crueldade) própria de quem pratica crimes de maus tratos. Tal não se provou, tal como não se provou que no exercício das funções que desempenhavam fossem movidos por interesses lucrativos ou interesses menos nobres. Também de acordo com o depoimento da testemunha Dr. NN, esses arguidos, e a direção do lar, diligenciaram no sentido da superação das referidas carências de recursos humanos, para que ele próprio havia alertado.
A absolvição dos arguidos AA e BB pela prática do crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, do Código Penal, por que vinham acusados, não é, pois, merecedora de reparo. Dessa absolvição decorre também a absolvição da arguida “Lar ...” (nos termos do artigo 11.º, n.º 2, a) e n.º 4, do mesmo Código). E também não é merecedora de reparo a absolvição dos arguidos do pedido de indemnização civil contra eles formulado pela assistente.
Deve, assim, ser negado provimento aos recursos em apreço
A assistente deverá ser condenada em taxa de justiça (artigo 515.º, n.º 1, b), do Código de Processo Penal), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
V –
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pela assistente, mantendo-se a douta sentença recorrida
Condenam a assistente em três (3) U.C.s de taxa de justiça, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia
Notifique.
Porto, 11 de setembro 2024
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Raúl Esteves
Paulo Costa