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ACÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA
IMPUGNAÇÃO DE ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO
LEGITIMIDADE
Sumário
Sumário (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC): I – A legitimidade ativa para a propositura de ação de impugnação de escritura de justificação notarial é definida pelo disposto no nº 1, do artigo 101º do Código do Notariado, decorrendo da sua literalidade não ser exigível a intervenção de todos os interessados, mas apenas de algum deles. II – A ratio subjacente ao disposto no artigo 2091º do Código Civil, ao exigir a intervenção de todos os interessados na herança aberta e indivisa para o exercício de direitos à mesma relativos, radica no escopo de proteção do respetivo património premente apenas relativamente a atos de disposição. III – O pedido de impugnação de escritura de justificação notarial deduzido no âmbito de ação de petição de herança, tendo por efeito o incremento do património hereditário, pode ser deduzido apenas por algum dos herdeiros, por tal legitimidade ativa lhes ser conferida pelo disposto no artigo 101º, nº 1, do Código do Notariado e por a exigência de intervenção de todos os interessados no exercício de direitos relativos à herança indivisa consagrada no artigo 2091º, do Código Civil apenas se justificar quando estiverem em causa atos de disposição.
Texto Integral
Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:
I - RELATÓRIO
1.1– os autores A e B, identificados nos autos, instauraram em 19-09-2023, ação declarativa sob a forma de processo comum contra os réus C e D, também identificados nos autos, alegando, no essencial, que:
- Os Réus adquiriram, por compra efetuada a E, no dia 25 de março de 2009, o prédio misto, localizado ao sítio do …, freguesia do Faial, concelho de Santana, com área total de 1880m2, inscrito na matriz respetiva, a parte rústica sob o artigo …º, secção …, e a parte urbana, destinada a habitação, sob o artigo …º e procederam ao registo dessa aquisição junto da Conservatória de Registo Predial, onde o prédio se encontra registado sob o número …/…04 a seu favor pela Ap. …22 de 2009/0…/…;
- Por sua vez, o vendedor E havia outorgado, em 8 de janeiro de 2009, escritura de justificação, na qual, além do mais, declarou que por partilha verbal, na sequência do óbito dos anteriores proprietários, F e G, exercia desde há mais de 20 anos, atos de posse sobre o referido prédio, de forma pública, pacífica e de boa fé, pelo que adquiriu a referida propriedade por usucapião;
- Porém, tais declarações são falsas, integrando o referido prédio a herança aberta por óbito de F e G (avós dos autores e da ré D), o que determina quer a nulidade da escritura de justificação, quer da escritura de compra e venda outorgada pelos réus;
Assim, concluíram os autores pedindo: - O reconhecimento da sua qualidade de herdeiros nas heranças abertas por óbito dos seus avós paternos F e G.
- A consideração como impugnados dos factos justificados na escritura de Justificação Notarial, outorgada a 8 de janeiro de 2009, exarada a folhas 46 a 47v, do livro de Notas para Escrituras Diversas nº. 4-A, do Cartório Notarial de Santana, referentes à invocada aquisição pelo falecido (em 11-10-2022) E, por usucapião, do prédio supra identificado;
- A declaração de ineficácia de tal escritura de justificação notarial;
- A declaração de ineficácia da escritura de compra e venda outorgada a 25 de março de 2009, exarada a folhas 94 a 95v, do livro de Notas para Escrituras Diversas nº. 5-A, do Cartório Notarial de Santana;
- A declaração de que que o referido prédio ainda se encontra indiviso nas heranças abertas por óbito de F e G, e a sua consequente restituição àquelas heranças;
- A declaração de nulidade e o cancelamento dos registos de aquisição do referido prédio, efetuados pelas Ap. números …36 de 2009/…/… e …22, de 2009/…/….
1.2 – Pessoal e regularmente citados, os réus apresentaram contestação, na qual, além do mais, arguiram a exceção de ilegitimidade ativa dos autores, considerando que a ação, dado os termos em que foi configurada, exige a intervenção de todos os herdeiros de F e G, por forma a que possa produzir o seu efeito prático. Efetivamente, não se encontrando realizada a partilha das respetivas heranças, e pretendendo os autores que às mesmas seja restituído o prédio em causa, os autos configuram uma situação de litisconsórcio necessário ativo, nos termos do disposto no artigo 2091º, nº 1, do Código Civil.
1.3 – Exercendo contraditório relativamente a tal exceção, pronunciaram-se os autores, pugnando pela sua improcedência, dado estar em causa uma ação de petição da herança, e resultar do disposto no artigo 2078º, nº 1, do CC, que qualquer herdeiro possui legitimidade para peticionar separadamente os bens que a integram, sem que o demandado possa opor que os bens não lhe pertencem por inteiro.
1.4 – Em 30-01-2023 foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Admito o articulado de resposta, ao abrigo do artigo 3.º/3, do Código de Processo Civil. Pronunciem-se as partes, no prazo máximo de 10 dias, sobre se vislumbram utilidade na realização de audiência prévia. Caso não vislumbrem efetiva utilidade, o Tribunal proferirá, desde já, despacho saneador.”
1.5 – Autores e réus pronunciaram-se declarando não encontrar utilidade na realização de audiência prévia, após o que foi proferido, em 08-01-2024, despacho com o seguinte teor que se transcreve:
“Não olvidando a divergência doutrinária existente relativamente ao tema em apreço, os Autores pretendem que o imóvel em causa seja reconhecido como indiviso nas heranças abertas por óbito de F e G, e a sua consequente restituição aquelas heranças. Assim, é entendimento do Tribunal que é exigida a presença de todos os herdeiros na parte ativa, para impugnação da escritura em causa nos presentes autos. Nesse sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 30 de Maio de 2023, processo nº 112/22.0T8ALD.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Vítor Amaral (disponível em www.dgsi.pt): “Intentada ação de impugnação de escritura de justificação notarial quanto a um imóvel alegadamente pertencente a uma herança aberta e indivisa, a relação controvertida respeita a tal herança, por ser esta a alegada proprietária do bem, assistindo-lhe o interesse direto em demandar, atenta a utilidade derivada da procedência da ação/impugnação. Num tal caso, estando em causa a defesa do direito de propriedade da herança aberta e indivisa, esta teria de ser representada em juízo por todos os respetivos herdeiros (nessa qualidade), conjuntamente (em bloco, nos termos do disposto no art.º 2091.º, n.º 1, do CCiv.), só assim se assegurando a legitimidade processual ativa (litisconsórcio necessário), sendo que a ação só produziria o seu efeito útil normal se fosse instaurada por todos os herdeiros” (negrito nosso). À luz do referido, e ao abrigo do artigo 590.º do Código de Processo Civil, convido o Autor a sanar a ilegitimidade plural ativa. Prazo: 10 dias. Decorrido o prazo, conclua.”
1.6 – Pronunciaram-se os autores considerando que, nos termos do disposto nos artigos 2078º, nº 1, 2075º CC, dispõem de legitimidade ativa para a interposição da presente ação, que reiteraram configurar uma petição de herança e não uma ação de reivindicação. Mais consideraram nada obstar à cumulação aos pedidos típicos da ação de petição da herança dos referentes ao cancelamento de declaração de invalidade ou ineficácia de atos jurídicos de aquisição de bens da herança a favor dos réus, e do cancelamento do registo de tais atos.
1.7 – Em 30-01-2024 foi proferida decisão, que se transcreve parcialmente, nos segmentos relevantes para a apreciação do recurso interposto: “Os Autores A e B vieram intentar a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra os Réus: - C, NIF 143 345 001 e mulher D (…). Efetuando os seguintes pedidos: (…) Devidamente notificados, os Autores optaram por não sanar a ilegitimidade plural ativa, pese embora tenham sido informados do entendimento do Tribunal, tendo manifestado a sua discordância quanto ao entendimento jurídico adotado (cfr. requerimento datado de 18 de janeiro de 2024). Cumpre decidir. Da ilegitimidade ativa. Conforme já adiantado no despacho datado de 08 de janeiro de 2024, é entendimento do Tribunal que é exigida a presença de todos os herdeiros na parte ativa, para impugnação da escritura em causa nos presentes autos. Consagra o artigo 2075.º do Código Civil: “1. O herdeiro pode pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória, e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título. 2. A ação pode ser intentada a todo o tempo, sem prejuízo da aplicação das regras da usucapião relativamente a cada uma das coisas possuídas, e do disposto no artigo 2059.º” (negrito nosso). Por seu turno, dispõe o artigo 2091.º, do mesmo diploma legal: “1. Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. 2. O disposto no número anterior não prejudica os direitos que tenham sido atribuídos pelo testador ao testamenteiro nos termos dos artigos 2327.º e 2328.º, sendo o testamenteiro cabeça-de-casal” (negrito nosso). Entende o Tribunal que um caso de impugnação de escritura de justificação não se integra no âmbito do artigo 2075.º do Código Civil. É nosso entendimento que o artigo 2075.º está previsto para casos em que o motivo subjacente à posse de outro herdeiro é o não reconhecimento da existência de outros herdeiros. Não é esse o caso dos presentes autos. Nos presentes autos o que se pretende é a impugnação de escritura de justificação, nulidade de venda e consequente restituição do bem à herança, atendendo à nulidade dos negócios supra elencados. Não se partilha o entendimento dos Autores de que a impugnação da escritura de justificação e a nulidade da venda configura um “menos” em relação ao pedido de restituição do bem à herança. Pese embora não se desconheça jurisprudência no sentido elencado, salvo melhor entendimento consideramos que a causa de pedir essencial é a impugnação da escritura de justificação e a nulidade da venda e que a consequência dessa eventual impugnação e nulidade será a restituição do bem à herança. Assim se explica que a análise do caso passará, essencialmente, por aferir da nulidade da escritura justificação e de se retirarem as necessárias e legais consequências dessa mesma eventual nulidade. Assim sendo, é entendimento do presente Tribunal que, estando em causa um direito da herança, seria necessária a intervenção de todos os restantes herdeiros, na parte ativa, para assegurar a legitimidade ativa. Em sentido convergente, veja-se o Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 21 de Fevereiro de 2018, processo nº 1235/16.0T8LMG.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Alberto Ruço (disponível em www.dgsi.pt): “O herdeiro não pode, desacompanhado dos restantes herdeiros, deduzir pedido de impugnação de justificação notarial, nos termos do n.º 1 do artigo 101.º, do Código do Notariado, relativamente a um dos prédios cuja restituição (à herança) é pedida no âmbito de uma ação de petição de herança prevista no artigo 2075.º do Código Civil”. No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 15 de novembro de 2018, processo n º56/17.7T8BGC.G1, relatado pelo Exmo. Desembargador Heitor Gonçalves (disponível em www.dgsi.pt): “Uma ação de impugnação de justificação notarial, porque visa a defesa de interesses do acervo hereditário ainda por partilhar, terá de ser intentada por todos os herdeiros nos termos do nº1 do artigo 2091º do Código Civil; Sendo essa ação proposta apenas por alguns dos herdeiros, verifica-se a preterição do regime do litisconsórcio necessário ativo (artº 33º, nº1, do C. P. C.), pois o conceito de interessado à luz do artigo 101º, nº1, do Código do Notariado, é nesse caso a herança ilíquida e indivisa” (destacado nosso). Por fim, e no mesmo sentido, veja-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 30 de maio de 2023, processo nº 112/22.0T8ALD.C1, relatado pelo Exmo. Desembargador Vítor Amaral (disponível em www.dgsi.pt): “À luz do atual regime processual civil, a herança aberta e indivisa não é dotada de personalidade judiciária, não podendo, por isso, estar em juízo, seja pelo lado ativo, seja pelo lado passivo da instância. Intentada ação de impugnação de escritura de justificação notarial quanto a um imóvel alegadamente pertencente a uma herança aberta e indivisa, a relação controvertida respeita a tal herança, por ser esta a alegada proprietária do bem, assistindo-lhe o interesse direto em demandar, atenta a utilidade derivada da procedência da ação/impugnação. Num tal caso, estando em causa a defesa do direito de propriedade da herança aberta e indivisa, esta teria de ser representada em juízo por todos os respetivos herdeiros (nessa qualidade), conjuntamente (em bloco, nos termos do disposto no art.º 2091.º, n.º 1, do CCiv.), só assim se assegurando a legitimidade processual ativa (litisconsórcio necessário), sendo que a ação só produziria o seu efeito útil normal se fosse instaurada por todos os herdeiros” (…). Aqui chegados cumpre apenas referir que o Tribunal foi claro na sua posição e convidou os Autores a sanar a ilegitimidade, nos termos do artigo 590.º do Código de Processo Civil; porém, os mesmos optaram por não o fazer. Pelo exposto, alternativa não resta que não a de declarar a exceção dilatória de ilegitimidade ativa, nos termos do artigo 577.º, alínea e), do Código de Processo Civil, e, consequentemente, absolver os Réus da instância, nos termos do artigo 278.º do mesmo diploma legal. Decisão. Pelo exposto, julgo verificada a exceção dilatória de ilegitimidade ativa e, consequentemente, absolvo os Réus da instância. Custas pelos Autores – cfr artigo 527.º do Código de Processo Civil. Valor da causa: € 11 723, 68 (onze mil setecentos e vinte e três euros e sessenta e oito cêntimos) – cfr. artigos 302.º e 305.º do Código de Processo Civil. Registe e notifique.”
2 – Não se conformando com tal decisão, os autores da mesma interpuseram recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem: “1 – O tribunal a quo, ao declarar a exceção dilatória de ilegitimidade ativa, nos termos do artigo 577º, alínea e), do Código de Processo Civil, e consequentemente absolver os Réus da instância, incorreu em erro de julgamento de direito. 2 – Não atendeu o tribunal a quo à matéria alegada pelos Autores. 3 – Nos presentes Autos, os Autores alegam – em síntese – que, são herdeiros nas heranças abertas e indivisas de F e G, e que o prédio misto, localizado ao sítio do …, freguesia do Faial, concelho de Santana, com área total de 1880m2, inscrito na matriz, a parte rústica sob o artigo …, da seção … e a parte urbana sob o artigo …º, descrito na C.R.Predial sob o número 2081/2…04/freguesia do Faial, pertence aquelas heranças, mas está na posse dos Réus. 4 – Pedem, os Autores , a final e em sede principal, que se declare que sejam reconhecidas as suas qualidade de herdeiros ( por direito de representação nos termos do artigo …º do Código Civil) nas heranças abertas por óbito de F e G; que o prédio misto identificado na P.I. ainda se encontra indiviso nas heranças abertas por óbito de F e G e sua consequente restituição aquelas heranças. 5 - Entendem os Autores que estamos perante uma Ação de Petição da Herança, por ter sido pedido o reconhecimento da qualidade de herdeiros dos Autores, relativamente às heranças abertas por óbito dos de cuius; o reconhecimento de que o bem em causa integra o acervo hereditário das heranças de F e G e a sua restituição aquelas heranças: “ O herdeiro pode pedir judicialmente o reconhecimento da sua qualidade sucessória e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro titulo, ou mesmo sem título.” (artigo 2075º, nº 1, do Código Civil). 6- Os Autores agem, na presente ação por direito próprio, requerendo o reconhecimento da sua qualidade de herdeiro; e não em representação das respetivas heranças. 7 –Os Acórdãos invocados pelo tribunal a quo para fundamentar a sua douta sentença, não encontram paralelismo com a presente ação. 8 – Consequentemente, e entendendo os Autores a qualificação da ação como sendo de petição da herança, têm os mesmos legitimidade para, desacompanhados dos restantes herdeiros, demandar os Réus enquanto detentores do bem -artigo 2078º do Código Civil. 9 – À qualificação da ação como ação de petição da herança não obsta a cumulação dos pedidos de declaração de ineficácia da escritura de justificação e subsequente compra e venda a favor dos Réus, e do cancelamento do registo de tais atos. Na verdade, esses pedidos (declaração de ineficácia das escrituras de justificação e de compra e venda) funcionam apenas instrumentalmente em relação ao essencial efeito jurídico-prático visado, que consiste na restituição do prédio às heranças de F e G, e o pedido de cancelamento dos registos é acessório daquela pretensão de restituição 10 -O tribunal a quo, com o devido respeito que lhe é devido, errou na interpretação e na aplicação do direito aos factos, designadamente quanto à legitimidade dos Autores, 11 – O Tribunal a quo deveria ter considerado que os Autores são parte legitima ativa e os autos prosseguirem os seus termos. Nestes termos e nos demais de direito, deve o presente recurso ser aceite e vir a ser julgado procedente, e em consequência, ser a sentença ora recorrida substituída por douto Acórdão que declare os Autores parte legítima e determine o prosseguimento dos autos.”
3. Os réus não apresentaram resposta às alegações dos autores/recorrentes.
4 - Em 27-05-2024, foi admitido o recurso, como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
5. Remetidos os autos a este tribunal, e autuados em 06-09-2024, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
II – QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Consequentemente, nos presentes autos, a questão a decidir consiste em apurar se o herdeiro de herança indivisa, desacompanhado dos demais, possui legitimidade para, em ação de petição de herança que instaurou, deduzir pedido de impugnação de escritura de justificação notarial ou, ao invés, se tal pretensão exige a intervenção, no lado ativo da lide, de todos os herdeiros.
III – FUNDAMENTAÇÃO
Sintetizando as pretensões deduzidas nos autos pelos autores, verifica-se que se reconduzem, no essencial:
- Ao reconhecimento da sua qualidade de herdeiros nas heranças abertas por óbito dos seus avós paternos F e G;
- À impugnação de escritura de Justificação Notarial, outorgada a 8 de janeiro de 2009, que teve por objeto prédio que os autores consideram integrar a herança dos seus avós paternos;
- À declaração de ineficácia da escritura de compra e venda outorgada pelo justificante, na qualidade de vendedor, a 25 de março de 2009;
- À declaração de que que o referido prédio ainda se encontra indiviso nas heranças abertas por óbito de F e G, e sua consequente restituição àquelas heranças.
O tribunal recorrido, no despacho saneador, conheceu da exceção de ilegitimidade ativa dos autores, considerando, para tanto, que a pretensão de impugnação de justificação notarial que deduziram demandava a presença, no lado ativo da lide, dos restantes herdeiros de F e de G.
Interessa, pois, definir se a ação de impugnação da escritura de justificação notarial demanda a presença, no lado ativo, de todos os herdeiros das heranças indivisas, abertas por óbito dos avós dos autores e da ré, como defenderam os réus e foi consignado na decisão recorrida, ou se pode ser intentada por algum dos seus herdeiros.
É sabido que com vista à resolução definitiva do litígio, e à produção do seu efeito útil normal, a ação deve reunir, quer no seu lado ativo, quer no seu lado passivo, os titulares da relação material em causa. Como resulta do artigo 30º, nº 1, do Código de Processo Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar, sendo o réu parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. A legitimidade constitui assim um pressuposto processual, sendo aferida em função do critério do interesse em demandar/contradizer.
De acordo com esse critério legal, a legitimidade deve ser aferida de acordo com o interesse direto que as partes têm no objeto do processo.
Por outro lado, havendo dúvidas quanto à legitimidade das partes, haverá que lançar mão do critério consagrado no artigo 26º, nº 3, do Código de Processo Civil, segundo o qual “ (...) são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
As situações de litisconsórcio, seja voluntário ou necessário, reportam-se a hipóteses em que são vários os titulares da relação material controvertida em debate (cfr. artigos 32º e 33º do Código de Processo Civil).
Nas situações em que a lei ou o negócio exijam a intervenção dos vários interessados na relação material controvertida, ou em que tal intervenção é necessária para que a decisão possa produzir o seu efeito útil normal, a falta de qualquer deles gera a ilegitimidade, determinando a absolvição do réu da instância – cfr. artigos 33º, nºs 1 e 2, 577º, e), 576º, nº 2 e 278º, nº 1, alínea d), CPC.
Por fim, dir-se-á que a ilegitimidade plural é sanável mediante incidente de intervenção principal, previsto nos artigos 311º e ss, CPC, que constitui uma exceção ao princípio da estabilidade da instância, consagrado no artigo 260º CPC no que se reporta à configuração subjetiva inicial da lide. A intervenção principal, podendo ocorrer quer no lado ativo, quer no lado passivo da lide, permite a associação do terceiro a uma das partes primitivas “(…) com vista à apreciação de uma relação jurídica da sua titularidade, conexa com a formulada com as primitivas partes na ação, assumindo por essa via o estatuto de parte principal” – Salvador da Costa[1].
Ora, assente que a legitimidade das partes terá que ser definida em função dos pedidos deduzidos, in casu forçosa é a conclusão de que as pretensões deduzidas se identificam com o reconhecimento da qualidade de herdeiros dos autores nas heranças abertas por F e G, com a impugnação de escritura de justificação que os autores consideram que incidiu sobre bem que integra as heranças, a declaração de ineficácia da escritura de compra e venda subsequente e a restituição de tal imóvel ao acervo dos bens a partilhar.
Afigura-se, pois que, as pretensões deduzidas, no essencial, reconduzem-se às típicas de uma ação de petição de herança e de uma ação de impugnação de escritura de justificação notarial.
A ação de petição da herança, mediante a qual o herdeiro pede judicialmente “o reconhecimento da sua qualidade sucessória, e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título” – artigo 2075º, nº 1, do Código Civil – reconduz-se a faculdade que pode exercer isoladamente (sem os restantes co-herdeiros) e a todo o tempo – artigos 2075º, n.º 2, e 2078º, n.º 1, do Código Civil.
Segundo Inocêncio Galvão Telles[2], a petição da herança (não partilhada) traduz-se na “pretensão ao reconhecimento da qualidade de herdeiro e à entrega de bens da herança possuídos por terceiro”. Trata-se inequivocamente de uma ação real, que embora não se confunda com a ação de reivindicação, com ela apresenta flagrante similitude - neste sentido, Lopes Cardoso[3].
Todavia, na ação de petição da herança, o pedido de restituição tem como destinatário final o património da própria herança (não partilhada), e não o património dos seus herdeiros, assim se distinguindo da simples reivindicação – cfr., a propósito, o Ac. do STJ de 2/3/2004[4].
Nesta ação, a causa de pedir consiste, por um lado, na sucessão mortis causa e, por outro lado, na subsequente apropriação por outrem de bens da massa hereditária (neste sentido, cfr. Pires de Lima e Antunes Varela[5], e Capelo de Sousa[6]).
A definição da legitimidade ativa para a ação da petição de herança não oferece dúvidas, dado encontrar-se legalmente prevista a possibilidade de tal ação ser instaurada por um só herdeiro, como resulta do estabelecido no nº 1 do artigo 2078º, CC, com a seguinte redação: “Sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro”.
Porém, nos presentes autos, pretendem ainda os autores impugnar a escritura de justificação notarial outorgada em …-…-2009 que teve como efeito a aquisição por usucapião do prédio em discussão nos autos pelo falecido E. A tal pretensão cumularam os autores a de declaração de ineficácia da escritura de compra e venda celebrada em momento subsequente – …-…-2009 - pelo justificante.
Ora, em face da configuração conferida à ação, desde já se adianta que o fim visado com tal impugnação consiste na declaração de que tal prédio integra as heranças indivisas abertas por óbito de F e de G. Ou seja, os autores lograrão obter o efeito visado (restituição às heranças do prédio misto em causa) se tiverem êxito na impugnação da escritura de justificação já que, em caso contrário, forçoso será o reconhecimento de que os réus dispõem de título que justifica a manutenção na sua esfera jurídica do direito de propriedade sobre o referido prédio misto.
A escritura de justificação notarial confere ao adquirente a possibilidade de obter a primeira inscrição do seu direito, mostrando-se estabelecido no artigo 116º, nº 1 do Código de Registo Predial (aprovado pelo Dl 224/84, de 6 de julho, com as suas sucessivas alterações): “O adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo”.
Sob a epígrafe “Justificação para estabelecimento do trato sucessivo no registo predial”, dispõe o artigo 89º do Código do Notariado (aprovado pelo Dl 207/95, de 14 de agosto e com as sucessivas atualizações), que:
“1 - A justificação, para os efeitos do n.º 1 do artigo 116.º do Código do Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais. 2 - Quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.”
Certo é que o facto justificado por meio de escritura de justificação notarial pode ser objeto de impugnação, como resulta do disposto no artigo 101º do Código do Notariado, mediante a instauração de ação de impugnação.
Ora, nos presentes autos, tal pedido, a par com as pretensões próprias da petição da herança, foi também formulado pelos autores por considerarem que a escritura impugnada colocou em causa o direito de propriedade das heranças sobre o prédio misto em discussão nos autos. Consequentemente, no que a tal pretensão se reporta, a demanda foi configurada como uma ação de simples apreciação negativa, destinada a afirmar que o justificante E não adquiriu o prédio em questão.
Em tal ação, incumbe aos réus a alegação e prova de que o justificante adquiriu o prédio por usucapião, nos termos afirmados na escritura de justificação em análise, mostrando-se onerados com a prova desse facto, nos termos do disposto no artigo 343º, nº 1, CC, sem que beneficie da presunção registral consagrada no artigo 7º do Código do Registo Predial – a este propósito, cfr. o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2008, de 04-12-2007[7], nos termos do qual: “Na ação de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116º, nº 1 do Cód. de Registo Predial e 89ºº e 101º do Cód. do Notariado, tendo sido os réus que nela firmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7º do Cód. de Registo Predial”. Assim, “passa a estar incerta” a aquisição por usucapião afirmada na escritura de justificação impugnada, pelo que o justificante não beneficia da referida presunção – Acórdão da Relação de Coimbra de 03-03-2015[8].
Relativamente à legitimidade para a instauração da ação de impugnação de escritura de justificação notarial haverá que considerar parte legítima “(…) quem, relativamente ao prédio justificado, invoque ser titular do direito ou interesse incompatível com o declarado na escritura de justificação” – Acórdão da Relação de Coimbra de 23-09-2008[9].
Como se afirma no sumário acórdão da Relação de Guimarães de 18-12-2017[10]:
“I - Numa ação de impugnação de justificação notarial, o autor vem reagir contra a afirmação de titularidade do direito de propriedade por parte do justificante; trata-se, pois, de uma “ação de simples apreciação negativa” (art. 10º, n.º 3, al. a), do C. P. Civil). II- A impugnação da justificação notarial não está limitada apenas aos que afirmam ser os proprietários do imóvel ou que invocam direito real em colisão com o direito daqueles que justificaram notarialmente; reconhecendo-se também interesse em agir àqueles que invocam direito, diverso do direito de propriedade ou outro direito real, cujo exercício pode ser afetado se a ação não for proposta. III- Poderemos assim concluir que “interessados” para efeitos de impugnação da justificação, são os titulares de uma relação jurídica ou direito que pode ser afetado, posto em crise pelo facto justificado de modo que a declaração da inexistência do direito do justificante seja apta a pôr termo à situação de dúvida objetiva e grave em que se encontra o direito invocado pelo autor. IV- Neste tipo de ação, o interesse em demandar exprime-se, desde logo, pela utilidade derivada da procedência da ação (art. 30º, n.º 2, do C. P. Civil), sendo que, porém, deverão ser fundadas e ponderadas criteriosamente as razões que são indicadas pelo impugnante, designadamente quando este não invoca direito que esteja em colisão direta com o direito de propriedade que o justificante conseguiu ver reconhecido. (…)”
Em face do exposto, afigura-se forçosa a conclusão de que os autores, atenta a respetiva qualidade de herdeiros nas heranças em causa nos autos, não poderão deixar de ser havidos como interessados relativamente à pretensão de impugnação da escritura de justificação, dado que ali se afirmou a aquisição de um direito de propriedade pelo justificante, que consideram conflituante com o direito das próprias heranças.
Porém, interessa ainda definir se os autores, encontrando-se desacompanhados dos demais herdeiros, podem deduzir tal pedido de impugnação de escritura de justificação, nos presentes autos, relativamente ao único bem que pretendem ver restituído à herança dos seus avós. Está, pois, em causa a legitimidade dos autores para a cumulação das pretensões inerentes à ação de petição de herança com as da impugnação de escritura de justificação notarial.
Nuclear no âmbito desta controvérsia, é o regime consagrado no artigo 2091º, nº 1, CPC, que, sob a epígrafe “Exercício de outros direitos”, dispõe:
“1. Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. 2. O disposto no número anterior não prejudica os direitos que tenham sido atribuídos pelo testador ao testamenteiro nos termos dos artigos 2327.º e 2328.º, sendo o testamenteiro cabeça-de-casal.”
Tal norma estabelece a regra do exercício conjunto dos direitos relativos à herança por todos os herdeiros, excecionando, expressamente, a legitimidade singular do herdeiro (desacompanhado dos demais) em caso de ação de petição da herança.
A propósito desta norma refere Capelo de Sousa[11]:
“A lei exige a intervenção conjunta de todos os herdeiros para conferir legitimidade ativa e passiva a esses atos de disposição, uma vez que tratando-se de atos de disposição que põem em causa o valor e a composição da herança em si mesma, apesar de se poderem referir apenas a alguns dos bens hereditários, justo é que intervenham todos os titulares desse património autónomo”. Ou seja, a exigência de intervenção conjunta de todos os herdeiros justifica-se quando estejam em causa atos de disposição dos bens da herança.
Porém, pretendendo o herdeiro fazer operar o retorno à herança de bem que considera de que esta foi desapossada, em rigor não está a praticar qualquer ato de disposição, visando, ao invés, aumentar o acervo dos bens que a integram.
O certo é que, relativamente à legitimidade do herdeiro desacompanhado dos restantes para deduzir pedido de impugnação de justificação notarial nos termos do disposto no artigo 101º, nº 1 do Código do Notariado, relativamente a prédio cuja restituição é pedida em ação de petição de herança, constata-se que a questão não tem merecido um tratamento unívoco por parte da jurisprudência.
Assim, no sentido de que tal hipótese configura um caso de litisconsórcio necessário, nos termos do disposto no artigo 33º, CPC, exigindo a intervenção conjunta de todos os herdeiros, e cuja preterição gera a ilegitimidade ativa e a consequente absolvição da instância dos réus, pronunciaram-se os seguintes acórdãos:
- Acórdão da Relação de Coimbra de 21-02-2018[12], aí se defendendo a tese do litisconsórcio necessário ativo, por decorrência do disposto nos artigo 2091º, nº 1 CC e 33º, nº 3, CPC, e por forma a que a decisão possa produzir o seu efeito útil normal: “(…) sob pena da decisão, sendo-lhe favorável, não produzir o seu efeito útil normal, pois, não tendo sido obtida no confronto com todos, mais tarde, qualquer um dos restantes herdeiros poderia instaurar nova ação de impugnação, sem que o réu lhe pudesse opor o caso julgado formado a seu favor na primeira das ações”;
- Acórdão da Relação de Coimbra de 30-05-2023[13], aí se referindo:“(…) estando em causa a defesa do direito de propriedade da herança aberta e indivisa, esta teria de ser representada em juízo por todos os respetivos herdeiros (nessa qualidade), conjuntamente (em bloco, nos termos do disposto no art.º 2091.º, n.º 1, do CCiv.), só assim se assegurando a legitimidade processual ativa (litisconsórcio necessário), sendo que a ação só produziria o seu efeito útil normal se fosse instaurada por todos os herdeiros.” - Acórdão da Relação de Guimarães de 07-12-2016[14], tendo por base similar interpretação do disposto no artigo 2091º nº CC;
- Acórdão da Relação de Guimarães de 15-11-2018[15], com voto de vencido. Salienta-se que neste caso não foi deduzida qualquer pretensão relativa à petição de herança, ali se afirmando: “(…) fora os casos previstos nos artigos 2075.º, 2078.º e 2087.º a 2089.º do Código Civil, as ações que visem a defesa de interesses do acervo hereditário ainda por partilhar terão de ser intentadas por todos os herdeiros, e é o que sucede com a ação de impugnação de justificação notarial, tratando-se por isso de uma situação de litisconsórcio necessário ativo (artigo 33º, nº1, do CPC)”. Já no voto de vencido, refere-se, além do mais que “(…) qualquer herdeiro de uma herança revela interesse direto em agir, ainda que não peticione o bem para a herança, pelo que para os efeitos do que vai no art. 101.º do Código do Notariado, tem legitimidade ativa (…) pretendem é salvaguardar bens que alegadamente pertencem à herança ilíquida e indivisa deixada por S. N., sendo que os Autores apenas se limitam a exercer um direito que lhes é conferido pelo nº1 do artº 2078º do Código Civil, assistindo-lhes legitimidade para a presente ação”.
No sentido da legitimidade do herdeiro, desacompanhado dos demais, para em ação de petição de herança, impugnar escritura de justificação notarial, relativamente a bem que, na sua perspetiva, integra a herança, se pronunciaram:
- O Acórdão da Relação do Porto de 13-10-2005[16], no qual se consignou: “o herdeiro, como decorre do disposto no art. 2030, nº 2 do C.C. é a pessoa chamada à sucessão da totalidade ou de uma quota da herança ... daí resultando e se impondo concluir que tem interesse em que a totalidade desse património seja preservada, também por isso tendo ... interesse na procedência desta ação, que tem por objetivo essencial o reconhecimento da inexistência do direito do R. que decorreria da justificação impugnada e, desde modo, a salvaguarda da integridade do ativo hereditário ( cfr. art. 26, nº 112 do C.P.C.) (…)No fundo, essa pretensão fica aquém e representa um menos em relação à que é prosseguida com a ação de petição de herança (art. 2075º do C.C.) que envolve a restituição dos bens que o demandado possui e a sua integração no acervo da herança. Ora, em relação a esta ação, reconhece-se ao herdeiro legitimidade para, separadamente dos demais herdeiros, pedir a totalidade dos bens em poder do demandado - art. 2078º do C.C. (numa situação paradela ao que se dispõe no art. 1405º para a compropriedade, aplicável à comunhão de quaisquer outros direitos - art. 1404º) (…). Por isso, seria incongruente que o mesmo herdeiro não tivesse legitimidade para impugnar a escritura de justificação notarial visando, no fundo, um objetivo, no essencial idêntico que é, como se disse, o de salvaguardar a integridade do património hereditário.. Conclui-se assim que, no caso, não é exigível o litisconsórcio necessário ativo que decorreria do disposto no art. 2091º do C.C (…)”;.
- Acórdão da Relação de Coimbra de 18-02-2014[17], aí se salientando que nos termos do artigo 101º Código do Notariado qualquer interessado pode impugnar o facto justificado e ainda que “em todo o caso sempre não estaria presente o pressuposto e cautela de cariz substancial perspetivados pelo artº 2091º, pois que, ganhando a ação, o autor poderá beneficiar a herança; porém, mesmo que a perca, não a prejudica, já que ela não ficará mais diminuída do que já neste momento está. Até porque, neste caso, não fica vedado aos demais herdeiros de através das admissíveis ações – porventura outra de igual jaez da presente – diligenciarem no sentido de o bem em causa reverter para a herança.”
- Acórdão da Relação de Coimbra de 12-10-2021[18], referente a processo no qual foram formulados os pedidos inerentes a ação de petição de herança e de impugnação de escritura de justificação notarial, referindo-se, além do mais: “(…) quanto a esta ação, a legitimidade substantiva está fixada no artigo 101.º, n.º 1, do Código do Notariado, que a confere a qualquer “interessado em impugnar em juízo o facto justificado”;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-10-2021[19], proferido num caso similar ao presente, confirmando a decisão do Tribunal da Relação ao não admitir o recurso de revista, na parte em que o mesmo se reportava à legitimidade dos autores, por existência de dupla conforme. Ainda assim, ali se refere: “(..) E já agora, acrescenta-se que a legitimidade dos AA sempre estaria assegurada. É que, por um lado, reconduzindo-se a demanda a uma ação de petição de herança, tal legitimidade resulta do estatuído nos comandos ínsitos nos artsº 2075º e 2078º do CC. E quanto ao mais peticionado (impugnação das escrituras de justificação notarial), a legitimidade processual dos AA igualmente estaria assegurada. Com efeito, pedem ainda os AA seja decretada a nulidade das escrituras de justificação notarial em que interveio a Ré (justificante), com o cancelamento dos registos com base nelas efetuados e consequente restituição de tais imóveis à herança do pai dos autores para aí serem partilhados. O que igualmente lhes confere legitimidade para tal pedido, pois, sendo herdeiros do falecido seu pai FF, é claro que têm um interesse legítimo na pretensão que fazem, de impugnação de tais registos. Veja-se que provado está que os prédios a que tais justificações respeitam foram adquiridos pelos pais dos AA na constância do matrimónio com a mãe deles, GG (…). Daí, obviamente, que aquele seu interesse esteja mais que patente nos autos, dada a sua qualidade de herdeiros”. Nesta decisão é expressamente reproduzido o que “com toda a justeza” se consignou no Acórdão da Relação do Porto de 13-10-2005 (já citado nesta decisão), e ainda que: “A pretensão deduzida em ação de impugnação de escritura de justificação notarial fica aquém e representa um menos em relação à que é prosseguida com a ação de petição de herança, pois esta – diferentemente daquela – envolve a restituição dos bens que o demandado possui e a sua integração no acervo da herança. (…) Como tal, à semelhança do que ocorre no artº 2075º do CC (petição de herança), qualquer herdeiro tem legitimidade para impugnar aquela escritura, pois no fundo visa um objetivo, no essencial idêntico ao visado com a petição de herança (a salvaguarda da integridade do património hereditário), não sendo, como tal, exigível o litisconsórcio necessário ativo que decorreria do disposto no art. 2091º do C.C.” .
Propendemos para esta última posição, afigurando-se não poder concluir-se que para assegurar a legitimidade ativa na presente ação (na vertente da impugnação da escritura de justificação), seja necessário que os autores estejam acompanhados dos demais herdeiros das heranças indivisas que consideram titulares dos bem que constituiu o objeto de tal escritura.
E assim é, desde logo, porquanto a legitimidade substantiva para a propositura da ação é definida pelo citado artigo 101º, nº 1, do Código de Notariado, decorrendo da sua literalidade que não exige a intervenção de todos os interessados, mas apenas de um deles, ou de alguns, como se extrai da expressão “(…) algum interessado (…)” ali consignada. Ora, ao intérprete está vedada a atribuição à lei de um sentido que não encontre na sua letra um mínimo de correspondência verbal – cfr. artigo 9º, nº 2, do Código Civil.
Por outro lado, a ratio subjacente ao disposto no artigo 2091ºdo Código Civil, ao exigir a intervenção de todos os interessados de herança aberta e indivisa no exercício de direitos à mesma relativos, radica no escopo da proteção do respetivo património, premente apenas relativamente a atos de disposição, que não estão em causa nos autos. Ao invés, a procedência do pedido de impugnação da escritura de justificação notarial terá por efeito o incremento do património hereditário, que passará a abranger o prédio em discussão, do qual, na tese dos autores, as heranças se encontram desapossadas.
Assim, ainda que se admita a intervenção (voluntária) de todos os herdeiros no lado ativo da lide na ação de impugnação de escritura de justificação, afigura-se que tal intervenção não pode ser exigida para assegurar a legitimidade. Tal exigência mostra-se obstaculizada pela literalidade do artigo 101º, n.º 1, do Código do Notariado, que não impõe, para o efeito, a intervenção de todos os herdeiros, mas também pela ratio subjacente ao exercício de direitos relativo à herança, consagrado no artigo 2091º do Código Civil que, nos termos expostos, obriga a tal intervenção apenas quando se discutam atos de disposição do património hereditário.
Não pode ainda deixar de salientar-se que o efeito útil visado com a interposição da presente identifica-se essencialmente com o “re-ingresso” do prédio nas heranças em causa, desiderato apenas alcançável com a impugnação da escritura de justificação que constituiu a causa da sua retirada do acervo hereditário.
Em conclusão, não tem aplicação in casu o disposto no artigo 33.º do CPC, não se verificando a apontada ilegitimidade ativa, por preterição de litisconsórcio necessário, do que decorre serem os autores partes legítimas para a presente ação.
Consequentemente, procede o recurso, declarando-se os autores partes legítimas para a propositura da presente ação, que deverá prosseguir os seus termos.
Revelando-se procedente o recurso, as custas serão suportadas pelos réus/recorridos, dado que, apesar de não terem contra-alegado, invocaram a exceção de ilegitimidade ativa, cuja procedência originou o presente recurso – cfr. artigo 527º, nºs 1 e 2, CPC
*
– DECISÃO
Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso do despacho saneador/sentença que absolveu os réus da instância por ilegitimidade ativa dos autores, revogando-o e declarando que os autores são partes legítimas para a ação que, consequentemente, deverá prosseguir os seus termos.
Custas pelos réus/recorridos – cfr. artigo 527º, nºs 1 e 2, CPC.
D.N.
Lisboa, 26 de setembro de 2024
Rute Sobral
Vaz Gomes
Paulo Fernandes da Silva
_______________________________________________________ [1] Os Incidentes da Instância, 8ª edição, pág. 72. [2] “Prescrição da Petição de Herança”, in “O Direito”, 94, p. 165. [3] “Partilhas Judiciais”, I, pp. 20 e 21. [4] Proferido no processo nº 04A126, disponível em www.dgsi.pt. [5] “Código Civil Anotado”, VI, p. 131. [6] “Lições de Direito das Sucessões”, 2ª ed., II, p. 41, nota 598. [7] DR Iª série, de 31 de março de 2008. [8] Proferido no processo nº 5730/06.0TBLRA.C1, disponível em www.dgsi.pt [9] Proferido no processo nº 219/06.0TBVZL.C1, disponível em www.dgsi.pt [10] Proferido no processo nº 448/17.1T8CHV.G1, disponível em www.dgsi.pt [11] Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, Coimbra Editora, 1980, pág. 68 [12] Proferido no processo nº 1235/16.0T8LMG.C1, disponível em www.dgsi.pt [13] Proferido no processo nº 112/22.0T8ALD.C1, disponível em www.dgsi.pt [14] Proferido no processo 1718/15.9T8CHV.G1, disponível em www.dgsi.pt [15] Proferido no processo nº 56/17.7T8BGC.C1, disponível em www.dgsi.pt [16] Proferido no processo nº 0533037, disponível em www.dgsi.pt [17] Proferido no processo nº 1655/10.3TBCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt [18] Proferido no processo nº 559/18.6T8SCD.C1, disponível em www.dgsi.pt [19] Proferido no processo nº 557/16.4T8VIS.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt