I. A decisão de facto é da competência das Instâncias, conquanto não seja uma regra absoluta, o Supremo Tribunal de Justiça não pode, nem deve, interferir na decisão de facto, somente importando a respetiva intervenção, quando haja erro de direito, isto é, quando o aresto recorrido afronte disposição expressa de lei, nomeadamente, quanto às regras que fixam a força de determinado meio de prova, desconsiderando, por exemplo, a força probatória plena de documento autêntico.
II. A dupla conformidade existente entre decisões, sem fundamentação inovatória, deixa de operar quando haja erro de direito na aplicação da lei adjetiva civil no julgamento da decisão de facto.
III. Quando houver princípio de prova por escrito, que torne verosímil o facto a provar, contrário à declaração constante de documento autêntico, é admissível prova testemunhal para complementar a demonstração, de modo a fazer a prova do facto contrário ao constante dessa mesma declaração.
IV. A revista excecional está sujeita a formalidades próprias, em razão da respetiva particularidade, daí que, para além de ter de satisfazer um dos pressupostos previstos no art.º 672º n.º 1 do Código de Processo Civil, só é possível desde que a revista, em termos gerais, seja admissível, mas não permitida por efeito da conformidade de julgados.
V. As questões eminentemente processuais que se integram no n.º 2 do art.º 671º do Código de Processo Civil não podem ser, nunca, objeto de revista excecional, na medida em que esta só se admitirá nos precisos termos do n.º 1 do art.º 671º do Código de Processo Civil, quando se conhece de fundo ou quando a decisão ponha fim ao processo nos termos aí prevenidos, em conjugação com as regras adjetivas decorrentes do art.º 672º do mencionado Código de Processo Civil.
Recorrente/Réu/AA
Recorridos/Autores/BB e outra
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
I. BB e CC intentaram ação com a forma comum contra AA e DD pedindo a condenação destes a pagar-lhes, solidariamente, a quantia de €115.134,56, acrescida de juros vencidos às respetivas taxas legais, desde 28 de Março de 2017, o que nesta data totaliza o montante de €9.715,00, bem como, os juros vincendos até efetivo e integral pagamento, ou, caso assim não se entenda, à quantia devem acrescer juros vencidos e vincendos às respetivas taxas legais, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Articularam, com utilidade, serem casados entre si no regime de comunhão geral de bens, sendo a 2ª Ré, filha de ambos os Autores, tendo os Réus sido casados, entre si, desde 4 de maio de 1996, casamento que foi, todavia, dissolvido em 2011.
Em 19 de março de 2007 os Réus adquiriram um imóvel em ... [fração na qual o Réu tem instalado o seu escritório de ...], tendo para tanto contraído um empréstimo bancário, e, para garantia do referido mútuo constituíram uma hipoteca sobre uma fração (“B”) de um outro prédio sito também em ..., propriedade dos Autores.
Dado que a partir de 1 de agosto de 2016 o pagamento das prestações do referido mútuo deixou de ser efetuado, e para evitar a eminente execução da garantia prestada, fizeram então os Autores diversos depósitos em conta dos Réus, no valor de €3.486,47, acrescido de despesas no montante de €133,53, e no valor de €450,00.
Outrossim, não dispondo de outras quantias, iniciaram então os Autores diligências com vista à venda do seu imóvel hipotecado, venda que ocorreu no dia 28 de março de 2017, dia em que efetuaram uma transferência de €111.014,56 para liquidação do mútuo contraído pelos Réus, tendo ainda os Autores suportado o custo do registo de cancelamento da hipoteca no valor de €50.00.
Não obstante tudo o referido, certo é que até à data ambos os Réus não efetuaram qualquer pagamento aos Autores de todas as referidas quantias, razão porque são ambos credores dos Réus na quantia global peticionada decorrente dos pagamentos efetuados, acrescida de juros.
2. Regularmente citados, apenas o Réu, AA veio apresentar contestação, aduzindo, no essencial defesa por impugnação motivada, alegando que os AA declararam na escritura do imóvel pelos RR adquirido que se confessavam solidariamente devedores da quantia mutuada aos RR, e, que a fração foi adquirida com o intuito de passar a pertencer à 1ª Ré, filha de ambos, sendo que em 2006 a locatária procedeu à sua entrega aos AA..
Desde a dissolução do casamento dos RR que o Réu interpelou a Ré para esta o reembolsar dos encargos com o pagamento de prestações do mútuo, o que a Ré não fez, e por este motivo o Réu comunicou ao Banco em resposta a uma interpelação deste, que deveria entrar em contacto com a sua ex-mulher e com os pais desta para que regularizassem as prestações e assumissem as responsabilidades.
Foi a Ré quem provisionou em numerário a conta de que é co-titular com o Réu e no qual estava domiciliado o empréstimo, sendo que os AA “urdiram entre si uma conspiração contra o Réu” com o objetivo de venderem a fração “B”, o que não lograriam sem distratar a hipoteca.
O interesse no pagamento antecipado do mútuo dos autos era exclusivamente dos AA e da Ré com vista a alienarem a terceiro a fracção “B” numa altura em que o mercado imobiliário estava em alta.
Concluiu, assim, pela improcedência da ação.
3. Após aperfeiçoamento da petição inicial, e satisfeito o contraditório, foi dispensada a realização da audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador tabelar, e no qual se fixou-se o objeto do litígio e se procedeu à enunciação dos temas da prova, tendo-se ainda descrito a factualidade considerada provada.
4. Foi calendarizada e realizada audiência final, iniciada em 31 de março de 2022 e concluída em 30 de junho de 2023, sendo que no seu decurso teve lugar a realização de um exame médico/pericial a ambos os Autores.
5. Foi proferida sentença, em cujo dispositivo se consignou: “Pelo exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente em consequência decide-se:
a) Condenar os Réus a pagar aos AA, solidariamente, a quantia de €115.084,56 (cento e quinze mil e oitenta e quatro euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento;
b) Absolver os RR do demais peticionado.
Condenam-se as partes nas custas da acção na proporção do decaimento (cfr. art. 527º nºs 1 e 2 do C.P.C.).
6. Notificadas as partes da aludida sentença, apelou o Réu, AA, tendo o Tribunal a quo conhecido do interposto recurso, proferindo acórdão, em cujo dispositivo foi enunciado: “Em face de tudo o supra exposto, acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de LISBOA, em, não concedendo provimento à apelação interposta por AA, Confirmar a sentença recorrida.”
7. Novamente irresignado, o Réu, AA interpôs revista, aduzindo as seguintes conclusões:
“a. um sujeito processual ou tem capacidade judiciária, caso em deve prestar depoimento de parte, porque, por lei, pode ser-lhe exigida essa prestação, ou não está capaz de prestar depoimento de parte, caso em que não é susceptível de estar por si em juízo, o mesmo é dizer que, atento o direito do art. 15/1 do CPC não tem capacidade judiciária, eventualidade perante a qual a lei processual prescreve dever ser determinada a imediata suspensão da instância, para efeitos de adopção dos procedimentos previstos por lei para a regularização da mesma instância, o que decorre do correspondente dever oficioso imposto ao juiz pelo direito do art. 28/1 e 2 do CPC; tais procedimentos impõem, entre outros e antes de mais, que o Ministério Público seja ouvido sobre as incapacidades (judiciárias) constatadas pericialmente, designadamente para efeitos de nomeação de representante(s) dos incapazes, sem prejuízo de tal dever impender, também sobre a descendente dos A.A. e que, por sinal, até é co-R. na presente acção (cfr. art. 17 do CPC);
b. a morte de uma parte, para efeitos processuais, se comparada com a demência , não é uma “incapacidade” em sentido próprio, mas a extinção do sujeito-parte, enquanto tal, pois que o falecido não necessita de ser “representado”, já que é, ipso facto substituído pelos seus sucessores (o último dos quais é o próprio Estado), enquanto o incapaz necessita de ser representado, na medida em que e ainda que dependendo do grau, por força da incapacidade que o afecta, se abre um vazio de representação, quando se constata essa incapacidade;
c. ao assim não decidir, as instâncias a quo violaram, além do citado, o próprio direito neles invocado (art, 588/1 e 589/2 do CPC) como também o dos art. 15/1 e 2, 17, 28/1 e 2, 33, 34, 270, 288/1, 453/1 e 2 e 573/2, também do CPC, o que acarreta a revogação dos identificados despachos e a sua substituição por outro que ordene a suspensão da instância para efeitos da sua regularização, atenta a incapacidade judiciária activa dos A.A. supervenientemente demonstrada e reconhecida nos autos, anulando-se, em consequência todos os actos processuais subsequentes àquele(s) despacho(s);
d. de outro modo, deve o R. e revidente ser absolvido da instância, atenta a falta de capacidade judiciária activa dos A.A. e ora revididos;
e. o julgamento do facto 2.9 enferma de erro, por contrário, nos seus termos, ao teor do mesmo doc. 3, e de doc. 1 da p.i. e porque, sendo um documento autêntico, as declarações dos outorgantes nele exaradas não podem ser desditas pela produção de prova testemunhal, sob pretexto de estarem afectadas por vícios da vontade, como a reserva e a simulação, violando, por isso o direito invocado na conclusão antecedente, além de esse julgamento nem sequer ter credível sustento nos depoimentos testemunhais em que se fundou;
f. convenção não é senão o resultado de duas ou mais declarações negociais consensuais entre si, por modo a concluírem um negócio jurídico;
g. no caso dos autos, as declarações, consensuais entre si, são comuns a todos os outorgantes e por isso, nesses exactos termos exaradas no documento autêntico que é a escritura pública notarial de doc. 3 da p.i.,m pelo que se porventura não correspondem à real vontade desses mesmos declarantes, estaremos, necessariamente, perante uma convenção contrária ao conteúdo do documento, afectada pelo vício da simulação e sendo, a norma aplicável a contida no art. 394/2 do C. Civil, justamente a que estende a proibição da prova testemunhal sobre o acordo simulatório e o negócio dissimulado quando invocado pelos simuladores que, in casu outros não são senão os A.A. e os R.R. da presente acção, estando, por isso, proibida a prova testemunhal nessa matéria entre eles, pois que nenhum dos sujeitos na presente acção é terceiro relativamente à alegada simulação;
h. no que concerne o caso sub iudice não se está perante convenções adicionais ou acessórias, mas perante o conjunto de declarações consensuais entre si e com as quais se conclui o negócio constante da escritura de doc. 3 da p.i. e como tal nesta exaradas. pelo que [A] doutrina do n.º 2 não impede que os simuladores façam prova da simulação por qualquer outro meio de prova, desde que não seja a testemunhal ou a prova por presunções (cfr. art. 351.º do C. Civil) e é por isso que deve ser revogado o julgamento feito sobre o facto 2.9. e o mesmo eliminado do elenco dos factos provados;
i. no tocante à qualificação jurídica dos actos e declarações praticados e proferidas pelos A.A. na outorga da escritura pública de doc. 3 da p.i., sendo o teor desta inequívoco, pois que, além de autêntica, nela o notário dá fé pública que os ora A.A. “DECLARARAM” que entre os primeiros outorgantes e o Banco Espírito Santo, S.A…. foi acordado um empréstimo… e que se destina a … do qual se confessam solidariamente devedores;
j. contrariamente ao afirmado nas instâncias a quo, essa declaração é atribuída, pelo notário, exclusivamente aos “terceiros outorgantes, justamente os ora A.A.;
k. nada no direito impede que terceiros se confessem devedores solidários (cfr. art. 512 e 513 do C. Civil);
l. o banco tinha interesse em que o crédito concedido tivesse, além da garantia hipotecária prestada por terceiros, mais devedores solidários além dos mutuários, posto que segundo as normas regulatórias do Banco de Portugal aplicáveis, os empréstimos concedidos são activos do banco mutuante cujo valor é ponderado designadamente em função das garantias e obrigados, em termos que se os activos são ponderados em valor igual ou próximo do nominal, o banco tem maiores disponibilidades de alavancagem de operações creditícias;
m. a confissão assim feita nessa escritura pelos ora A.A. vincula o próprio tribunal (cfr. art. 358 do C. Civil);
n. também o destino do capital mutuado só pode ser o declarado pelos outorgantes na escritura, não podendo ser contrariado por prova testemunhal, por forças das correspondentes disposições legais acima citadas, maxime o art. 394/1 e 2 do CPC;
o. quanto ao regime de solidariedade passiva aplicável ao caso e respectivas consequências no concernente ao direito de regresso, contrariamente ao decidido a quo, rege o direito dos art. 512 e s.s. do mesmo C. Civil, sendo a solidariedade passiva ajustada no interesse ou a favor do credor, querendo isso significar que, nos termos do direito do art. 519/1 do C. Civil, o credor tem o direito de exigir de qualquer dos devedores toda a prestação, ou parte dela, proporcional ou não à quota do interpelado exigir a prestação;
p. nos termos do art. 518 do C. Civil, (A)o devedor solidário demandado não é lícito opor o benefício da divisão; e, ainda que chame os outros devedores à demanda, nem por isso se libera da obrigação de efectuar a prestação por inteiro (nisto se distinguindo da obrigação, também ela solidária, passiva, do fiador, nos casos em que este não renuncia ao benefício da excussão prévia) - (cfr. art. 638 e 639 do C. Civil);
q. esta distinta qualificação, em razão da fonte da obrigação, relativamente ao decidido a quo, acarreta um direito de regresso de distinto âmbito e alcance do fixado nos art. 592/1 e 593/1 do C. Civil e aos quais a sentença apelada empenhou os fundamentos exibidos, direito esse que é o fixado no art. 524 do C. Civil, ou seja, (O) devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete;
r. para a determinação da parte que compete a cada um dos quatro devedores solidários rege o direito do art. 516 do C. Civil e nos termos do qual: Nas relações entre si, presume-se que os devedores ou credores solidários comparticipam em partes iguais na dívida ou no crédito, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte diferentes as suas partes, ou que um só deles deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do crédito;
s. perante esta presunção legal de igualdade das partes, no caso sub iudicio, e nas relações de regresso entre eles, cada um dos quatro devedores solidários responde por um quarto da dívida perante o obrigado solidário passivo que satisfez a dívida ao credor, estando o apelante dispensado de provar o facto que a ela conduz (art. 350/1 do C. Civil) e cujo ónus dessa prova impendia sobre os A.A.. mas que estes não preencheram;
t. admitindo, embora por cautela de patrocínio, como hipótese, mas sem conceder, que os A.A. e ora revididos não se confessaram devedores solidários, na escritura de doc. 3 da p.i. intervindo apenas como outorgantes de garantia hipotecária, a perda do benefício do prazo do mútuo não se estendia a eles, enquanto terceiros que, a favor do crédito, constituíram aquela garantia (cfr. art. 782 do C. Civil);
u. o direito de resolver unilateralmente o contrato e considerar vencido o empréstimo, estipulado na cláusula Quarta, n.º 2 do documento complementar da escritura de mútuo, bem como, nos termos do n.º 5 da mesma cláusula, o direito de considerar o crédito automática e imediatamente vencido, e exigir o integral reembolso de tudo o que lhe for devido, se o(s) Mutuário(s) deixar(em) de cumprir qualquer obrigação contratutal e que assistem ao mutuante banco, exercitáveis, desde logo, em caso de mora dos mutuários, são, indiscutivelmente, direitos que o banco tinha ao seu alcance e que podia accionar conquanto verificadas três condições, a saber, (i) a existência de mora no cumprimento de uma prestação-condição indubitavelmente verificada - (ii) prévio accionamento do PERSI, imposto pelos art. 12 e s.s. do D.L. 272/2012, de 25 de Outubro-condição que se não verificou posto que o banco não implementou o referido PERSI-e (iii) frustrado esse procedimento, declarar aos mutuários a sua vontade resolutiva do contrato de mútuo com base em tal facto-condição que o banco também nunca preencheu, exercendo-a, posto se tratar de uma declaração necessariamente receptícia (cfr. cláusula 4, n.º 2 das “cláusulas particulares” do contrato de mútuo e art. 224/1 do C. Civil);
v. mas a verdade é que o banco mutuante nunca declarou o vencimento antecipado, nem a resolução do contrato de mútuo, fosse aos R.R., fosse aos A.A., daí que correspondente facto não haja sido sequer alegado por estes;
w. se era necessário (e era-o) o banco haver interpelado os garantes, para efeitos de operar, em relação a estes, a perda do benefício do prazo do mútuo e aquele não o fez, mas todavia esses garantes anteciparam a prestação da totalidade do remanescente vincendo do mútuo, para vender o imóvel hipotecado, o corolário, tanto lógico como legal, desses factos é apenas um: foram os A.A. quem, exclusivamente, quiseram prescindir do benefício do prazo do mútuo que lhes assistia, permitindo-lhes apenas pôr termo à mora, pagando as prestações entretanto vencidas, caso em que apenas poderiam exigir dos R.R. o que para tanto assim houvessem pagado;
x. considerando que o banco mutuante, podia (gozava da faculdade de) ter sub-rogado os A.A. nos seus direitos, embora o devesse fazer expressamente até ao momento do cumprimento da obrigação, a verdade é que, nem tácita, nem expressamente o fez, nem os A.A. lho propuseram ou solicitaram (cfr. art. 589 do C. Civil) e por isso, permanece erecta e operante, em favor do ora revidente (e da R. DD) a presunção estabelecida no art. 516 do C. Civil e nos termos da qual, os A.A. apenas dele podem exigir um quarto do que pagaram ao banco, pelo que (€: 115.084,56 ÷4 = €: 28.771,14) sempre seria o limite máximo de uma condenação do ora revidente (e outro tanto da R. DD), sem prejuízo porém de outros meios de defesa;
y. assim é porque a solidariedade passiva obriga apenas os confessos co-devedores e obriga-os em benefício do credor, mas não entre eles co-devedores, como resulta do citado art. 516 do C. Civil, não sendo solidários entre si a favor de quaisquer de entre eles;
z. no tocante à extensão do montante da condenação, em razão de um distinto julgamento dos factos, deveremos ter por assente que os montantes referidos nos factos 19 (€: 3.486,47 + 133,53) e 20 (€: 450,00), perfazendo o total de €: 4.070,00 (quatro mil e setenta euros) foram, confessadamente, pagos pela R. DD com o correspondente total de dinheiro que os A.A. lhe emprestaram pelo que os A.A. não têm legitimidade para exigir essa quantia do R. posto que a não prestaram ao mutuante, antes a mutuaram à R. DD, sua filha, em satisfação do interesse pessoal por ela manifestado (cfr. art. 1697 do C. Civil);
aa. essa quantia, em tese, mas sem prejuízo de outros meios de defesa, apenas pode ser exigida de sua filha e/ou, preenchidos certos requisitos, do ex-casal que formaram, mas em sede de partilha do património conjugal (cfr. art. 1697 do C. Civil), pelo que sempre deve ela deve ser excluída do montante em que o R. e ora revidente poderia, em tese, ser condenado a pagar aos A.A., o que implica que aquele limite máximo de condenação do revidente - admitido acima, sem conceder - afinal, não pode exceder um quarto da dívida, devendo deduzir-lhe o valor de €: 4.070,00 pelo que o limite seria €: 28.771,14 - €: 4.070,00 = €: 24.701,14;
bb. em consequência da alteração do julgamento de diversa matéria de facto, a que acima se faz apelo neste recurso e da nova valoração de tal factualidade, decorre a conclusão de que com a conduta que adoptaram, mormente, para satisfação do seu e de sua filha a R. DD interesse na venda do imóvel dado em garantia hipotecária, os A.A., tendo a faculdade de pôr termo à mora e de ajustar um plano de pagamentos reparadores dessa mora, prosseguindo o pagamento das prestações no ritmo e montantes resultantes dos termos acordados para o mútuo, os mesmos A.A. e a R. DD deram causa à perda do benefício do prazo que o direito do art. 1147 do C. Civil estabelece em favor de ambas as partes no mútuo oneroso, assim prescindindo, por vontade própria daqueles, do prazo remanescente de reembolso do mútuo e que, em 2017 ainda era de vinte anos;
cc. dispõe o direito do art. 525/1 do C. Civil: Os condevedores podem opor ao que satisfaz o direito do credor a falta de decurso do prazo que lhes tenha sido concedido para o cumprimento da obrigação, bem como qualquer outro meio de defesa, quer este seja comum, quer respeite pessoalmente ao demandado, desta disposição legal resultando que o facto de aquele que satisfez o direito do credor ter, voluntariamente ou por obrigação legal, cumprido antes, não prejudica os outros, pelo que o direito de regresso só se pode tornar efectivo quando haja obrigação de cumprir;
dd. em consequência, a condenação do ora R. e revidente, seja qual seja a sua medida, na satisfação do direito de regresso dos A.A., não pode ter por objecto a imediata exigência da sua totalidade, mas apenas daquela quantidade que seria devida, se persistisse vigente o benefício do prazo;
ee. está demonstrado nos autos que apenas após a venda do imóvel hipotecado e a liquidação antecipada do mútuo pelos A.A., de mão com e pela mão da R. DD, aqueles interpelaram o ora apelante (cfr. factos 28 a 30);
ff. apesar de lógico e, aliás, juridicamente eficaz, que os A.A. e a R. DD devessem haver contactado, interpelado, o revidente previamente às diligências que encetaram junto do banco mutuante, pelo menos, fazendo-o ciente das intenções que tinham e das diligências que pretendiam empreender a propósito da venda do imóvel dado em garantia, porém, nem o fizeram, nem sequer alegaram tê-lo feito ou tentado fazer, antes havendo-se conduzido modo a que o revidente nada soubesse antes de concretizado todo o seu plano;
gg. assim não tendo sido decidido a quo deve o decidido a quo ser revogado e substituída por acórdão que julgue a acção improcedente e absolva o R. e revidente, como se deixou alegado e concluído.
NESTES TERMOS e nos melhores do direito aplicável, deve a presente revista ser admitida e julgada procedente, como se deixou alegado e concluído, com as demais consequências da lei e com o que vai ser feita J U S T I Ç A!”
8. Foram apresentadas contra-alegações, tendo os Recorridos/Autores/BB e outra concluído:
“Nestes termos e nos mais de direito que V.Exas. certamente suprirão, requer-se que:
a) Não seja admitida a presente revista por falta absoluta dos requisitos previstos no n.º 1 do artigo 672.º do CPC, ou, quando assim não se entenda;
b) Seja o presente recurso julgado totalmente improcedente, confirmando-se o decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, como é de inteira JUSTIÇA!”
9. Foram cumpridos os vistos.
10. Cumpre decidir.
II. 1. Além do conhecimento da questão prévia invocada pelos Recorridos/Autores/BB e outra, atinente à admissibilidade do recurso de revista interposto, as questões a resolver, recortadas das alegações apresentadas pelo Recorrente/Réu/AA consistem em saber se:
I. O Tribunal a quo fez errónea interpretação e aplicação do direito:
(i) Ao conhecer da impugnação da decisão de facto, violando regras de direito probatório material, nomeadamente, ao reconhecer o item 9. dos factos julgados como provado;
(ii) Outrossim, ao admitir que os demandantes não têm capacidade para prestar o respetivo e requerido depoimento de parte, não poderia deixar de suspender a instância para efeitos de adoção dos procedimentos previstos por lei para a regularização da instância, uma vez que os demandantes que não são suscetíveis de estar por si em juízo, não tendo capacidade judiciária, importando, pois, a revogação do despacho atinente e a sua substituição por outro que ordene a suspensão da instância para os aludidos efeitos, anulando-se, em consequência todos os atos processuais subsequentes àqueloutro que reconheceu apenas que os demandantes não têm capacidade para prestar o respetivo e requerido depoimento de parte;
(iii) Em todo o caso, impõe-se um sentenciamento diverso daqueloutro consignado no arresto recorrido?
II. 2. Da Matéria de Facto
Factos provados:
“1. - Os AA são casados entre si, no regime da comunhão geral de bens (art. 1º da p.i.).
2. - A 2ª Ré é filha dos AA;
3. - O 1.º Réu e a 2ª Ré casaram entre si no dia ... de ... de 1996, sem convenção antenupcial;
4. - O 1º Réu é ... inscrito pelo Conselho Regional de Lisboa da Ordem ..., com a cédula profissional n.º ...05L;
5. - O 1.º Réu tem domicílio profissional na Avenida ..., edifício ..., ... ...;
6. - Tal imóvel corresponde à fracção autónoma designada pela letra “I” a que respeita o segundo andar destinado a escritório do prédio urbano sito na Avenida ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..93 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 37 da freguesia das ..., concelho de ... (anterior artigo .40 da extinta freguesia de ...), e foi adquirido pelos Réus por compra, em 19 de Março de 2007, através de escritura pública de compra e venda lavrada no Cartório Notarial do Dr. EE, junta à p.i com doc. nº 1 e que se dá por reproduzida;
7. - A compra foi efectuada pelo valor de €132.181,44, tal como foi declarado na escritura;
8. - No dia 12 de Março de 2007, através de escritura de empréstimo com hipoteca outorgada no Cartório Notarial do Dr. EE, os RR, que ali figuram como primeiros outorgantes, contraíram empréstimo bancário junto do Banco Espírito Santo (actual Novo Banco, S.A.) no montante de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), aí constando que o empréstimo era “destinado a fazer face a compromissos assumidos anteriormente pelos primeiros outorgantes [os RR] e à aquisição de equipamento para a sua residência, do qual se confessam solidariamente devedores”, conforme certidão da escritura junta à p.i. como doc. 3 e que se dá por reproduzida;
9. - O empréstimo destinou-se a custear a aquisição da fracção “I” (art. 8º, 1ª parte, da p.i.)
10. - Os AA intervieram nesta escritura de empréstimo com hipoteca como terceiros outorgantes e donos e legítimos possuidores da fracção designada pela letra “B”, correspondente ao rés do chão direito, destinado a habitação, do prédio urbano sito na Rua ..., descrito na conservatória do registo predial de ... sob o n.º .28 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo .36, à data propriedade dos AA, tendo constituído hipoteca sobre tal fracção “ para caução e garantia de todas as responsabilidades assumidas nos termos do presente contrato, nomeadamente juros que forem devidos e ainda das despesas judiciais e extrajudiciais que para efeitos de registo se fixam em seis mil euros” (art. 9º da p.i.).
11. - O pagamento das prestações devidas pelo mútuo bancário foi sendo efectuado por débito na conta domiciliada no Novo Banco, S.A., com o n.º ..........63, aberta em nome dos RR ( art. 11º da p.i. – confessado pelos RR em audiência);
12. - Os RR provisionavam a conta para pagamento do mútuo (art. 12º da p.i. – resposta restritiva).
13. - O casamento dos RR foi dissolvido por decisão proferida pela Conservatória do Registo Civil de ... em 4 de Outubro de 2011 (art. 3º da p.i., 2ª parte).
14. - No mesmo dia em que foi dissolvido o casamento dos RR, no dia .../.../2011, os Réus, de mútuo acordo, subscreveram o doc. nº 12 junto à contestação intitulado “Acordo Partilhas” que continha os termos em que se devia processar a partilhados bens comuns, activos e passivos, da comunhão patrimonial desse seu dissolvido matrimónio (art. 33º da contestação – confessado pela 2º Ré).
15. - Nos termos desse acordo, a Casa da ... é a fracção autónoma “N”, correspondente ao 5.º andar direito, destinado a habitação, do prédio urbano constituído no regime da propriedade horizontal, sito na ..., e na Rua ..., ... ..., inscrito na respectiva matriz predial da freguesia de ..., sob o art. ..44,descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..99, destina-se a ser adjudicada à co-R. DD (art. 34º da contestação – confessado pela 1ª Ré).
16. - Desde a dissolução do casamento dos RR, designadamente em 2/11/2011, que o 1º Réu AA interpelou a Ré DD para esta o reembolsar dos encargos com o pagamento de prestações do mútuo e o que esta aceitava (art. 38º da contestação – confessado pela 2ª Ré).
17. - Em Dezembro de 2015 os pagamentos referentes ao mútuo deixaram de ser efecutados (art. 13º da p.i. em parte).
18. - O Banco credor contactou os RR para que regularizassem as prestações, e após estabeleceu contacto com os AA (arts.14º da p.i. e 41º da contestação).
19. - A fim de evitar a iminente execução da garantia prestada – ou seja, a venda judicial do imóvel propriedade dos AA, após contacto com o gestor da conta, FF, em 22 de Fevereiro de 2017, a 1ª Ré, com dinheiro dos AA, efectuou depósitos na conta dos RR onde eram debitadas as prestações do mútuo, um no valor de €3.486,47 (três mil quatrocentos e oitenta e seis euros e quarenta e sete cêntimos), e outro no valor de €133,53, valores que foram aplicados no pagamento de prestações do mútuo (art. 16º da p.i. – resposta explicativa).
20. - Em 1 de Março de 2017, de novo por solicitação do Banco credor, a 1ª Ré, com dinheiro dos AA, efectuou um depósito no valor de €450,00 (quatrocentos e cinquenta euros) na conta dos RR, o qual foi aplicado para pagamento do mútuo (art. 17º da p.i. – resposta explicativa).
21. - A rúbrica que consta nas cópias dos talões de depósito dos docs. 4 e 5 junto à p.i. foi aposta pelo punho da Ré DD (art. 44º da contestação – confessado).
22. - O não pagamento das prestações do mútuo manteve-se, tendo o Banco credor interpelado os AA. para que fosse regularizado o respectivo pagamento (art. 18º da p.i.).
23. - Face à intenção do banco credor de executar a hipoteca, os AA iniciaram as diligências para que fosse vendido o bem dado de hipoteca identificado no ponto 2.9, a fim de satisfazer o pagamento da totalidade do valor em falta (art. 19º da p.i.).
24. - Os AA, após diversas diligências junto do banco credor, lograram obter o pedido de distrate que viabilizou a venda da fracção “B” (art. 21º da p.i.).
25. - A venda da fracção “B” foi concretizada no dia 28 de Março de 2017, pelo preço de €177.00,00, conforme título de compra e venda junto à p.i como doc. 6 e que se dá por reproduzido (art. 22º da p.i.).
26. - No mesmo dia, em 28 de Março de 2017, os AA efectuaram uma transferência de €111.014,56 (cento e onze mil e catorze euros e cinquenta e seis cêntimos) para a conta nº ..........63 para liquidação do empréstimo contraído pelos RR, o que sucedeu (art. 23º da p.i.).
27. - Os AA suportaram ainda o custo do registo de cancelamento da hipoteca sobre o imóvel vendido em 28 de Março de 2017, no valor de €50,00 (cinquenta euros) (art. 24º da p.i.).
28. - Os AA, pretendendo reaver o que haviam pago, enviaram ao 1º Réu, para a morada do seu escritório, a carta datada de 27/04/2018, junta à p.i como doc, 8 e que se dá por reproduzida (art. 25º da p.i.).
29. - A carta foi enviada por correio registado em 9 de Maio de 2018 (art. 26º da p.i.).
30. - Foi deixado aviso para que o Réu procedesse ao respectivo levantamento, o que não aconteceu e determinou a devolução da carta aos AA (art. 27º da p.i.).
31. - Os RR, até à presente data, não efectuaram qualquer pagamento aos AA, por via ou em consequência do pagamento que estes efectuaram em 28 de Março de 2017 ao Banco credor (art. 28º da p.i. – confessado pelos RR).”
Factos não provados:
1. - Só o 1º Réu provisionou a conta;
2. - Em Fevereiro de 2017, os AA. foram informados de que estaria em dívida a quantia de €113.822,96;
3. - Os AA não podiam dispor de outras quantias que viessem a satisfazer o pagamento das prestações em falta;
4. - O 1º Réu recusou facilitar a obtenção do pedido de distrate que viabilizaria a venda do imóvel, propriedade dos AA, com a intenção de que este imóvel fosse vendido em execução judicial da hipoteca;
5. - Os AA declararam na escritura de empréstimo com hipoteca que se confessavam solidariamente devedores da quantia mutuada aos RR;
6. - A fracção “B” foi adquirida pelos AA com o intuito originário de passar a pertencer à R. DD, sua filha, para dela fazer o que muito bem entendesse;
7. - A co-Ré DD propôs a fracção “B” para arrendamento habitacional a terceiros fazendo suas as correspondentes rendas, embora as não manifestasse nas suas declarações tributárias de rendimentos;
8. - Os AA assim procederam com o intuito de, em sua vida, igualarem a filha DD nas vantagens patrimoniais que, anteriormente, haviam atribuído ao irmão desta, GG e para quem adquiriram a fracção autónoma identificada pela letra “C”, que faz parte do prédio urbano constituído no regime da propriedade horizontal, sito na Rua ..., em ..., descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º 591;
9. - A fracção autónoma “N”, que os R.R. designam por Casa da ..., foi adquirida e nela feitas inúmeras benfeitorias, graças a mútuos contraídos pelos RR junto do Barclay’s Bank e junto do Banco 4;
10. - Em razão do referido em 2.40. os RR ajustaram entre si que esses bens do passivo, constituídos pelos saldos em dívida, à data do divórcio, tanto junto do Barclay’s Bank (hoje, Bankinter) como do Banco Espírito Santo, hoje Novo Banco, deviam ser adjudicados à co-R. DD);
11. - O 1º Réu foi suportando os débitos na conta de que era co-titular aberta junto do Banco Espírito Santo, hoje, Novo Banco, também porque prestava serviços como advogado a este banco e evitava que o seu nome fosse anotado pelo banco como incumpridor);
12. - Foi a 2ª Ré DD a provisionar, em numerário, a conta aberta junto do Novo Banco e de que é co-titular com o ora R. e na qual estava domiciliado o empréstimo;
13. - Não foram os AA quem efectuou os pagamentos a que respeitam os depósitos de Fevereiro e Março de 2017;
14. - Os AA “urdiram entre si uma conspiração contra o 1º R”, com o propósito de venderem a terceiros o imóvel constituído pela identificada fracção “B” do prédio sito na R. Alberto Oliveira, 17, r/c d.tº, o que não lograriam sem distratar a hipoteca e, consequentemente, sem anteciparem o pagamento da totalidade do remanescente vincendo da quantia mutuada;
15. - O interesse no pagamento antecipado do mútuo era exclusivamente dos AA e da Ré DD, com vista a poderem alienar a terceiro a fracção autónoma “B”, numa altura em que o mercado imobiliário estava em alta e com preços notoriamente especulativos, aproveitando-se dessa circunstância que, propositadamente provocaram, para, depois, exigir do Réu AA a totalidade do valor depositado na conta comum dos RR;
16. - Os AA esconderam do Réu AA as intenções e procedimentos que iam adoptar para o efeito, porque sabiam que o Réu não consentiria a antecipação total do vencimento do mútuo, sem, simultaneamente, assegurar declarações negociais exoneratórias da sua responsabilidade em qualquer direito de regresso;
17. - O preço de compra e venda da fracção “B” exarado no doc. 6 da p.i. era “notoriamente inferior” ao praticado no mercado do mesmo tipo e localização.”
II. 3. Do Direito
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recorrente/Réu/AA não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido no direito adjetivo civil, artºs. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código Processo Civil.
II. 3.1. O Tribunal a quo fez errónea interpretação e aplicação do direito: (i) Ao conhecer da impugnação da decisão de facto, violando regras de direito probatório material, nomeadamente, ao reconhecer o item 9. dos factos julgados como provado; (ii) Outrossim, ao admitir que os demandantes não têm capacidade para prestar o respetivo e requerido depoimento de parte, não poderia deixar de suspender a instância para efeitos de adoção dos procedimentos previstos por lei para a regularização da instância, uma vez que os demandantes que não são suscetíveis de estar por si em juízo, não tendo capacidade judiciária, importando, pois, a revogação do despacho atinente e a sua substituição por outro que ordene a suspensão da instância para os aludidos efeitos, anulando-se, em consequência todos os atos processuais subsequentes àqueloutro que reconheceu apenas que os demandantes não têm capacidade para prestar o respetivo e requerido depoimento de parte; (iii) Em todo o caso, impõe-se um sentenciamento diverso daqueloutro consignado no arresto recorrido?
Questão prévia.
1. Como já adiantamos, antes mesmo de conhecer do recurso interposto, impõe-se a apreciação da questão preliminar suscitada pelos Recorridos/Autores/BB e outra, atinente à admissibilidade do recurso de revista interposto.
2. Os litigantes tiveram oportunidade de se debruçar sobre a admissibilidade da interposta revista, mostrando-se cumprido o contraditório.
3. Cuidemos, assim, da admissibilidade do interposto recurso de revista excecional, em cujo requerimento recursivo se consignou:
“i. revista excepcional.
α. O presente recurso tem por objecto duas ordens de questões: uma relativa à violação e errada aplicação da lei de processo, em sede de matérias atinentes à incapacidade judiciária activa dos autores, em razão da sua incapacidade para prestarem os respectivos depoimentos de parte, mercê do julgamento nesse sentido feito na 1.ª instância e confirmado na apelação (ainda que, nesta, com fundamentação que se crê essencialmente diversa daquela); outra concernente ao erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais em ofensa a disposições expressas da lei fixando a força de determinados meios de prova, bem como à violação da lei substantiva.
Ambas essas ordens de questões a resolver encontram-se suscitadas no seio de relações jurídicas estabelecidas no quadro da conclusão, do cumprimento, do incumprimento e da resolução de mútuos bancários para fins imobiliários, atento o D.L. 272/2012, de 25 de Outubro, contraídos com intervenção de A.A. e R.R., com laços familiares entre si, envolvendo garantias reais e exercício de direitos de regresso de uns sobre outros, perda de benefícios do prazo, vencimento antecipado das prestações em razão de mora e sem interpelação para tanto pelo mutuante, ou por eleição dos garantes, interpretação e determinação do sentido e alcance de declarações negociais e seus vícios, proibições de prova (testemunhal), tudo com a particularidade de os A.A. serem os progenitores da 2.ª R. que, pelo seu lado é ex-mulher do 1.º R e ora revidente.
Quanto mais abstracta e genérica é a previsão de certa norma, mais significativa é a sua relevância jurídica - na medida em que é aplicável a uma grande diversidade de factos (jurídicos) - para uma melhor aplicação desse direito.
Verifica-se, assim, o primeiro dos pressupostos cuja ocorrência é condição de admissão de revista excepcional (art. 672/1-a) do CPC).
β. No tocante à particular relevância social dos interesses em causa, pode afirmar-se com segurança que o recurso ao financiamento bancário para aquisição e obras no imobiliário, pela sua extensa presença na vida das pessoas e para satisfação de necessidades destas, de par com o número dos litígios judiciais tendo por objecto aquelas questões jurídicas que se suscitam, designadamente no quadro de relações familiares desfeitas são claros indícios daquela relevância.
E vai, deste modo, relevada a presença do pressuposto seguinte e a que alude a al. b) do art. 672/1 do CPC.
γ. Por fim, mas restrito às questões atinentes à incapacidade de partes, suas consequências e regime legal aplicável, admite-se que o acórdão a quo esteja em contradição com o prolatado pelo Venerando Tribunal da Relação de Évora, de 27/10/2016, no proc. n.º: 803/14.9T8TMR.E1, (DOC. 1 1 ).”
4. A previsão expressa dos tribunais de recurso na Lei Fundamental, leva-nos a reconhecer que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática, porém, já não está impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões.
Como direito adjetivo, a lei processual estabelece regras quanto à admissibilidade e formalidades próprias de cada recurso, podendo dizer-se que a admissibilidade de um recurso depende do preenchimento cumulativo de três requisitos fundamentais, quais sejam, a legitimidade de quem recorre, ser a decisão proferida recorrível e ser o recurso interposto no prazo legalmente estabelecido para o efeito.
5. No caso que nos ocupa está reconhecida a tempestividade e legitimidade do Recorrente/Réu/AA, e, neste concreto pressuposto, uma vez que o requerimento de interposição de recurso obedeceu ao prazo legalmente estabelecido, sendo pacificamente aceite, outrossim, a decisão de que recorre lhe foi desfavorável (o acórdão proferido pelo Tribunal a quo confirmou o sentenciado em 1ª Instância, que, julgando a presente ação parcialmente procedente, condenou os Réus a pagar aos AA, solidariamente, a quantia de €115.084,56 (cento e quinze mil e oitenta e quatro euros e cinquenta e seis cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento, absolvendo os RR do demais peticionado), encontrando-se, pois, a dissensão quanto a ser a decisão proferida recorrível.
6. Confrontados os arestos proferidos nas Instâncias distinguimos que o acórdão proferido na Relação é, conforme já adiantamos, confirmatório do sentenciado em 1ª Instância, sem fundamentação essencialmente diversa, e sem voto de vencido.
7. Neste particular, há que convocar as regras recursivas adjetivas civis, concretamente o art.º 671º n.º 3 do Código de Processo Civil, atinente à irrecorribilidade das decisões do Tribunal da Relação em consequência da dupla conforme, nos precisos termos aí concretizados (…não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância …).
Do art.º 671º n.º 3 do Código do Processo Civil condizente ao n.º 3 do art.º 721º do anterior Código do Processo Civil, com a redação do DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto, decorre, importar, agora, que a decisão da segunda instância não tenha uma fundamentação essencialmente diferente da decisão de primeira instância para que produza a dupla conforme, ao contrário do que acontecia com a alteração adjetiva civil, imposta pelo DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto, em que se abstraía da fundamentação do acórdão da segunda instância para que se verificasse a dupla conforme.
Levado a cabo a exegese do consignado normativo adjetivo civil o Supremo Tribunal de Justiça tem perfilhado o entendimento de que somente deixa de atuar a dupla conforme a verificação de uma situação, conquanto o acórdão da Relação, conclua pela confirmação da decisão da 1ª Instância, em que o âmago fundamental do respetivo enquadramento jurídico seja diverso daqueloutro assumido e plasmado pela 1ª Instância, quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a decisão proferida na sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada.
Torna-se necessário, pois, para que a dupla conforme deixe de atuar, a aquiescência, pela Relação do enquadramento jurídico sufragado em 1ª Instância, suportada numa solução jurídica inovatória, que aporte preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros enunciados no aresto apelado, neste sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Fevereiro de 2014; de 18 de Setembro de 2014; de 8 de Janeiro de 2015; de 19 de Fevereiro de 2015, de 30 de Abril de 2015, de 28 de Maio de 2015, de 26 de Novembro de 2015, e de 16 de Junho de 2016, in, http://www.dgsi.pt/stj.
A este propósito, sustenta António Abrantes Geraldes, in, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, Almedina, página 349, “que com o CPC de 2013 foi introduzida uma nuance: deixa de existir dupla conforme, seguindo a revista as regras gerais, quando a Relação, para a confirmação da decisão da 1ª instância, empregue “fundamentação essencialmente diversa”.
A admissibilidade do recurso de revista, no caso do acórdão da Relação ter confirmado, por unanimidade, a decisão da 1ª instância, está, assim, dependente do facto de ser empregue “fundamentação substancialmente diferente”.
Aclarando o sentido e alcance da expressão “fundamentação essencialmente diferente”, elucida Abrantes Geraldes, apud, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, Almedina, página 352, que “a aferição de tal requisito delimitador da conformidade das decisões deve focar-se no eixo da fundamentação jurídica que, em concreto, se revelou crucial para sustentar o resultado declarado por cada uma das instâncias, verificando se existe ou não uma real diversidade nos aspectos essenciais”.
8. No caso sub iudice, confrontadas as decisões proferidas, em 1.ª e 2.ª Instâncias, divisamos e sublinhamos, com clareza, para além de o acórdão da Relação ter concluído pela confirmação da decisão da 1ª Instância, uma identidade dos respetivos enquadramentos jurídicos.
Todavia, a Doutrina e Jurisprudência, vem, pacificamente, defendendo que não obstante a dupla conformidade existente entre decisões, sem fundamentação inovatória, essa mesma conformidade deixa de operar quando haja erro de direito na aplicação da lei adjetiva civil, nomeadamente, “se a parte pretender reagir contra o não uso ou o uso deficiente dos poderes da Relação sobre a matéria de facto”, quando se invoca um erro de direito, nomeadamente, entre outras situações, quando ocorra violação regras de direito probatório material, desconsiderando-se, por exemplo o valor probatório dos documentos autênticos, neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, in, artigo subordinado à temática da Dupla Conforme e Vícios na Formação do Acórdão da Relação, Instituto Português de Processo Civil, blogippc.blogspot.pt., e Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Fevereiro de 2015 (Processo n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1), e de 28 de Janeiro de 2016 (Processo n.º 802/13.8TTVNF.P1.G1-A.S1), in www.dgsi.pt.
Como defende, António Abrantes Geraldes, in, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª Edição, páginas 319 e seguintes, “Em tais circunstâncias e noutras similares em que seja apontado à Relação erro de aplicação ou interpretação da lei processual e seja invocado no recurso de revista a violação de normas adjectivas relacionadas com a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, não existe dupla conforme” sendo que divisamos, sem dificuldade a razão pela qual a dupla conforme não pode atuar, na medida em que, revertendo ao aresto da Relação em escrutínio, conquanto seja condizente com a sentença da 1ª Instância, quanto à subsunção jurídica, e mesmo mantendo a decisão de facto, não deixa de ser confrontado com novas questões de natureza adjetiva com direta influência na apreciação da invocada impugnação da decisão de facto.
Neste sentido, veja-se a comunicação efetuada em 6 de julho de 2015, pelo Juiz Conselheiro Alves Velho, aquando do Colóquio sobre o Novo Código de Processo Civil, cujo texto está publicado in www.stj.pt., reforçado no Acórdão do Supremo tribunal de Justiça de 14 de maio de 2015.
9. No caso trazido a Juízo, o Recorrente/Réu/AA insurge-se contra o acórdão recorrido que apreciou a impugnação da matéria de facto fixada em 1ª Instância, confirmando-a.
O Recorrente/Réu/AA invoca erro de julgamento de facto quanto ao item 9. dos factos demonstrados, por contrário, nos seus termos, ao teor do documento autêntico, junto aos autos como doc. 1 da petição inicial, sustentando que, sendo um documento autêntico, as declarações dos outorgantes nele exaradas não podem ser desditas pela produção de prova testemunhal, sob pretexto de estarem afetadas por vícios da vontade, como a reserva e a simulação, violando, por isso o direito invocado na conclusão antecedente, além de esse julgamento nem sequer ter credível sustento nos depoimentos testemunhais em que se fundou.
10. Os poderes da Relação quanto à modificabilidade da decisão de facto estão enunciados no art.º 662º do Código de Processo Civil, sendo que não está dispensado do ónus de fundamentação da matéria de facto, mormente a aditada ou a modificada na medida em que, a fundamentação da decisão, para além de ser decorrência do art.º 205º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, consubstancia causa de legitimidade e legitimação das decisões dos Tribunais, porquanto permite ao destinatário da decisão compreender os fundamentos da decisão e os meios de prova em que eles de alicerçam.
11. Por seu turno, o Supremo Tribunal de Justiça, no que respeita às decisões da Relação sobre a matéria de facto, não pode alterar tais decisões, sendo estas decisões de facto, em regra, irrecorríveis.
A este propósito, estatui o art.º 662º n.º 4 do Código de Processo Civil que “das decisões da Relação previstas nos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça” estabelecendo, por seu turno, o art.º 674º n.º 3 do Código de Processo Civil “o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”, outrossim, prescreve o art.º 682º n.º 2 do Código de Processo Civil que a “decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 3 do artigo 674º”, donde se colhe, com meridiana clareza, que o Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar o modo como a Relação decide sobre a impugnação da decisão de facto, quando ancorada em meios de prova, sujeitos à livre apreciação, acentuando-se, que o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode intervir nos casos em que seja invocada a violação de lei adjetiva ou a ofensa a disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova.
A decisão de facto é da competência das instâncias, conquanto não seja uma regra absoluta (tenha-se em atenção a previsão do art.º 674º n.º 3 do Código de Processo Civil), pelo que, o Supremo Tribunal de Justiça não pode, nem deve, interferir na decisão de facto, somente importando a respetiva intervenção, quando haja erro de direito, isto é, quando o acórdão recorrido afronte disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto, nomeadamente, a prova documental ou por confissão, ou que fixe a força de determinado meio de prova, por exemplo, acordo das partes, documento com força probatória plena, e confissão.
12. Revertendo ao caso sub iudice, divisamos que o Recorrente/Réu/AA se insurge contra o aresto recorrido, sustentando que o Tribunal a quo violou regras de direito probatório material, ao permitir produção de prova testemunhal que põem em causa declarações dos outorgantes constantes do documento autêntico traduzida na escritura publica junta a os autos, daí que, invocado o erro de direito não está vedado a este Tribunal ad quem conhecer da decisão de facto, em termos de revista normal, porque descaraterizada a dupla conforme.
13. Nos termos do art.º 362º do Código Civil entende-se por prova documental toda aquela que resulta de documento, e diz-se documento qualquer objeto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto.
No que ao caso dos autos interessa, em razão do documento em questão, conforme prevenido no direito substantivo civil (Código Civil art.º 363º nºs. 1 e 2), os documentos escritos podem ser autênticos ou particulares, sendo que os autênticos são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública.
As reproduções fotográficas, e, de um modo geral, quaisquer outras reproduções mecânicas de factos ou de coisas fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exatidão - art.º 368º do Código Civil - sendo que o documento só é autêntico quando a autoridade ou oficial público que o exara for competente, em razão da matéria e do lugar, e não estiver legalmente impedido de o lavrar, considerando-se exarado por autoridade ou oficial público competente o documento lavrado por quem exerça publicamente as respetivas funções - art.º 369º do Código Civil - presumindo-se que o documento provém da autoridade ou oficial público a quem é atribuído, quando estiver subscrito pelo autor com assinatura reconhecida por notário ou com o selo do respetivo serviço - art.º 370º do Código Civil - .
Neste particular, impõe-se anotar que, atento o disposto no art.º 371º n.º 1 do Código Civil os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que nele são atestados com base na perceção da entidade documentadora.
Na verdade, a entidade documentadora perceciona as declarações que foram proferidas perante si, importando o documento, prova plena dessas mesmas declarações, porém, coisa diferente é o que respeita à exatidão das afirmações, não sendo estas suscetíveis de serem percecionadas podem ser impugnadas.
Como sustenta Fernando Pereira Rodrigues, in, A prova em direito civil, página 11 “a força probatória do documento autêntico não abarca tudo o que nele se mostra exarado porque a entidade pública documentadora só pode atestar os factos declarados na escritura objecto dos autos correspondentes que foram por si percepcionados.
Ou seja, “O documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que os factos relatados e que resultam das suas percepções correspondem à verdade.
Ou seja, no que se refere ao que foi afirmado perante ele, o documentador não garante a veracidade das declarações, a sua sinceridade, eficácia ou validade que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram”, Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 111º, página 302.
As declarações que os contraentes hajam produzido perante a entidade pública são objeto de perceção e a realidade dessas afirmações, cabendo nas perceções do notário e implicando o reconhecimento de um facto que é desfavorável a quem o declara, é qualificado pelo art.º 352º do Código Civil como confissão. Trata-se de uma confissão extrajudicial em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente, nos termos das disposições conjugadas dos artºs. 355° nºs 1 e 4 e 358° n° 2, ambos do Código Civil.
A força probatória plena da confissão pode, no entanto, ser contrariada por meio de prova do contrário, nos termos do disposto no art.º 347º do Código Civil que textua: “A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto (...)”.
Por outro lado, a força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida pela prova do contrário apesar da declaração constante da escritura, o que pode ser suscitado com a alegação de falsidade da escritura onde ficou exarada a confissão extrajudicial (art.º 372º n.º 1 do Código Civil) ou estar a sua vontade omissa ou viciada no momento da declaração (art.º 359º n.º 1 do Código Civil).
No âmbito da prova testemunhal, o art.º 393 n.º 2 do Código Civil adverte para a sua inadmissibilidade quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena, acrescentando o art.º 394 do Código Civil igual inadmissibilidade (da prova testemunhal) se tiver por objeto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico, ou dos documentos particulares mencionados nos artºs. 373º a 379º, ambos do Código Civil, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.
Também o n.º 1 do art.º 394º do Código Civil exceciona a admissibilidade da prova testemunhal quando se tenha “por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”.
Cabem assim no âmbito deste preceito as convenções que contrariam (ou se opõem) ao declarado no documento assim como todas as que acrescentam (ou adicionam) qualquer clausulado. E o legislador foi mais impressivo ao expressar no n.º 2 que a proibição é aplicável ao “acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocado pelos simuladores” pretendendo deixar claro que a proibição também abrange aquele vício de vontade, ou seja aquela divergência entre a vontade e a declaração.
Na abordagem ao art.º 393º n.º 2 do Código Civil, Pires de Lima e A. Varela, in, Código Civil Anotado, Vol. I, aconselham uma interpretação nos justos termos, referindo que “nada impede que se recorra à prova testemunhal para demonstrar a falta de vícios da vontade, com base nos quais se impugna a declaração documentada.
O documento prova, em dados termos, que o seu autor fez as declarações nele constantes; os factos compreendidos na declaração consideram-se provados, quando sejam desfavoráveis ao declarante. Mas o documento não prova nem garante, nem podia garantir, que as declarações não sejam viciadas por erro, dolo, ou coacção ou simuladas.
Por isso mesmo a prova testemunhal se não pode, neste aspecto considerar legalmente interdita”. Era a aceitação do que Vaz Serra comentava na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 103º, página 13, ao insistir que “os arts. 394º e 395º não formulam expressamente excepções às regras neles contempladas. Mas tal não quer dizer que tais regras não sejam aplicáveis, pois da razão de ser destas concluiu-se que não têm alcance absoluto, havendo que ressalvar algumas hipóteses em que a prova testemunhal será admissível apesar de ter por objecto uma convenção contrária ou adicional ao conteúdo do documento”.
No equilíbrio interpretativo das observações que se deixaram sinalizadas e no sentido de ultrapassar a questão da admissibilidade da prova testemunhal relativamente aos factos declarados na escritura perante o notário, tornou-se pacífico o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de “A proibição de prova prevista no artigo 394, nº 2, do C.C. respeita, apenas, ao recurso à prova testemunhal, ou por presunções judiciais, do artigo 351 daquele diploma substantivo, como meio de prova exclusivo, do acordo simulatório, ou de negócio dissimulado” Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de dezembro de 1098, Processo nº. 98A795, em www.dgsi.pt.
Ou, no mesmo sentido, e posteriormente, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de fevereiro de 2010, proferido no Processo n.º 566/06.1TVPRT.P1.S1 quando sublinha que “A prova testemunhal relacionada com convenção contrária ao conteúdo da escritura pública é de ter como admissível quando complementar (coadjuvante) de um elemento de prova escrito que constitua um suporte documental suficientemente forte para que, constituindo a base da convicção do julgador, se possa, a partir dele, avançar para a respectiva complementação.
Existindo um princípio de prova escrita suficientemente verosímil, fica aberta a possibilidade de complementar, mediante testemunhas, a prova do facto contrário ao constante da declaração confessória, ou seja, de demonstrar não ser verdadeira a afirmação consciente e voluntariamente produzida perante o documentador.”
E no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de fevereiro de 2017, proferido no âmbito do Processo n.º 3071/13.6TJVNF.G1.S1 deixou-se expresso que não obstante todas as objeções que se possam suscitar “ não repugna aderir à interpretação menos restritiva, desde que o “princípio de prova” seja um documento que não integre facto - base de presunção judicial pois sendo-o o n.º 2 do artigo 394.º poderia entrar em colisão com o citado artigo 351.º CC.”. Adicionando esse documento a existência de acordo simulatório ou um negócio dissimulado pode lançar-se mão da prova testemunhal para confirmar ou infirmar, tornando-se, então, o primeiro elemento de prova e sem que colida com o citado n.º 2 do artigo 394.
Também Mota Pinto, in Coletânea de Jurisprudência, ano 1985, III, página 9, escreve que “Constitui excepção à regra do art.º 394º e, por isso, deve ser permitida a prova por testemunhas no caso de o facto a provar estar já tornado verosímil por um começo de prova por escrito. Também deve ser admitida tal prova testemunhal existindo já prova documental susceptível de formar a convicção da verificação do facto alegado quando se trate de interpretar o conteúdo de documentos ou completar a prova documental”.
14. Na análise agora da situação dos autos, observamos que a Relação ao abordar a impugnação da decisão de facto, concretamente, ao reconhecer e confirmar como demonstrado o item 9. dos factos julgados como provados, não deixou de acolher a orientação, pacificamente aceite pela doutrina e jurisprudência, de que existindo um princípio de prova escrita suficientemente verosímil, fica aberta a possibilidade de complementar, mediante testemunhas, a prova do facto contrário ao constante da declaração decorrente do documento autêntico, ou seja, de demonstrar não ser verdadeira a afirmação consciente e voluntariamente produzida perante o documentador.
Assim, respigamos, com utilidade, e sufragamos do aresto sob escrutínio:
“4.2. – Do ponto de facto nºs 2.9
Reclama o apelante que seja este ponto de facto [ “ O empréstimo destinou-se a custear a aquisição da fracção “I” ” ] eliminado do elenco dos factos provados, desde logo porque o julgamento de facto que o mesmo encerra incorre em contradição com o teor das declarações negociais exaradas na escritura em causa, sendo que o valor jurídico de tais declarações é fixado na lei, impedindo a produção de prova testemunhal em contrário do seu teor.
Ao referido acresce que, diz o apelante, porque não credíveis e não imparciais, não pode e deve o tribunal a quo valer-se do no depoimento de parte da 2.ª R. (filha dos A.A. mas verdadeira “autora” da presente acção, servindo-se do nome dos pais, incapacitados) e do depoimento da testemunha HH.
Já o Primeiro Grau, a justificar o referido julgamento aduz que “ O ponto 9 (o efectivo destino do empréstimo – financiar a aquisição da fracção “I”) resultou das declarações prestadas por HH, actualmente funcionária de uma Conservatória, tendo antes trabalhado no Cartório Notarial de EE onde foi celebrada a escritura de empréstimo, bem como a escritura de compra e venda da fracção “I”, que declarou que conhecer os RR como clientes do Cartório onde trabalhou, tendo-lhe sido dito no que toca ao empréstimo, que o mesmo se destinava à “compra do escritório pelo Dr. AA”, em conjugação com as declarações prestadas pela 2ª Ré, em depoimento de parte, que também referiu de forma credível que o valor mutuado destinava-se a pagar o valor do escritório do 1º Réu e “despesas conexas”.
Apreciando
Para começar, temos para nós que nada obstava ao tribunal a quo lançar mão de prova testemunhal para a amparar o facto provado nº 2.9, a tal não obstando o disposto nos artºs 393º, nº 2 e 394º, nº1, ambos do CC.
Desde logo porque, sendo certo que dispõe o primeiro do referido normativo que “Também não é admitida prova por testemunhas, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena”, a verdade é que como bem avisam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “é necessário interpretar nos seus justos termos a doutrina do nº 2, cingindo-se aos factos cobertos pela força probatória plena do documento. Assim, nada impede que se recorra à prova testemunhal para demostrar a falta ou os vícios da vontade, com base nos quais se impugna a declaração documentada.
Ou seja, “o documento prova, em dados termos, que o seu autor fez as declarações nele constantes; os factos compreendidos na declaração consideram-se provados quando contrários aos declarantes. Mas o documento não prova nem garante, nem podia garantir, que as declarações não sejam viciadas por erro ou, dolo, ou coação ou simuladas.”
Dito de uma outra forma, em rigor o documento autêntico faz prova plena da materialidade das declarações prestadas, mas já não da sinceridade, veracidade ou validade das declarações emitidas pelo declarante, dado que transcendem a área das percepções do documentador.
Já no que ao nº 2, do artº 394º, do CC concerne [ “ É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores” ], recorda-se que sendo a convenção contrária ao conteúdo do documento aquela que contraria, por oposição, o contido nesse escrito, e ,a convenção adicional, aquela que encerra uma estipulação complementar ao conteúdo do documento, tal implica que não se mostra já afastada a prova testemunhal com o objetivo “de se provar qualquer elemento, como o fim ou o motivo por que a dívida documentada foi contraída, elemento que nem é contrário ao conteúdo do documento, nem constitui cláusula adicional à declaração ”.
Em suma, a proibição de produção de prova pessoal apenas se refere às convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento, e não a simples declarações.
Sem necessidade de mais considerações, nada obstava assim ao tribunal a quo socorrer-se da prova testemunhal e até de depoimento de parte [ainda que prima facie sem valor confessório – cfr. artºs 353º, nº 2 e 361º, ambos do CC] para formar a convicção que subjaz ao ponto de facto nº 2.9..
(…) Postas as apontadas considerações, e analisados os depoimentos/declarações prestadas em audiência de julgamento pela testemunha HH e 1ª Ré DD, respectivamente, confirma-se que [tal como assim o justificou o Primeiro Grau] ambas referiram [com base em depoimento/s fundamentado/s e justificados] que o valor mutuado foi destinado essencialmente a pagar a aquisição – pelos Réus e em 19 de Março de 2007 – da fracção autónoma designada pela letra “I” e identificada em 2.6..
Estando em causa duas escrituras separadas por escassos 7/8 dias, valores totais muito aproximados [150.000 versus 137.000] e existindo uma ligação familiar [indício affectio] entre AA e Ré, temos assim que além de o ponto de facto nº 2.9. se mostrar amparado em prova produzida, dir-se-á que tudo conjugado a “versão” que este último valido e assume apresenta-se igualmente verosímil, desde logo em face das regras da experiência comum/humana.
(…) Ao exposto, acresce que não é toda e qualquer dúvida, lançada em abstracto, que legitima o funcionamento do princípio plasmado no artº 414º do CPC, antes se exige que – para o referido efeito - após a produção e análise crítica de todos os meios de prova relevantes e sua valoração de acordo com os critérios legais, se veja ainda assim o julgador confrontado com um estado em que permanece como razoavelmente possível mais do que uma versão do mesmo facto. Aqui chegados, tudo visto e ponderado, é nossa convicção que a conjugação da prova produzida e pelo apelante indicada, analisada a mesma com prudência, distanciamento e de acordo com as regras da experiência comum, não exige que enverede este Tribunal de recurso por uma diversa convicção, obrigando a mesma a uma modificação da matéria de facto no que respeita ao ponto de facto nº 2.9. Improcede, assim, a impugnação nesta parte.”
15. Da exposição decisória do acórdão recorrido resulta, inequivocamente, que o processo cognitivo percorrido pelo Tribunal a quo teve em devida atenção, para confirmar o demonstrado o item 9. dos factos julgados como provados, não só a escritura pública de compra e venda, como também o depoimento da testemunha, HH e da 1ª Ré, DD, evidenciando não estar violada quaisquer regras de direito probatório.
16. Assim, não cuidando, enquanto Tribunal de revista, de tecer juízos de valor acerca da valoração da prova, da competência das Instâncias, importando somente conhecer do alegado erro de direito, por alegada violação das regras de direito probatório, na reapreciação da decisão de facto, reconhecemos, por um lado, que este Tribunal de recurso, afasta qualquer erro de direito na apreciação da decisão de facto, afirmando-se que as estatuídas regras de direito probatório, reconhecidas na arquitetura da tramitação recursiva, atinente à impugnação da decisão de facto foram cumpridas, daí que não merece censura o aresto recorrido, acentuando, por outro lado, estar-lhe vedado conhecer da bondade da resposta ao item 9. dos factos provados, uma vez que a mesma está ancorada nos poderes de livre convicção da Relação, concorrendo com diversos elementos probatórios.
17. Afastado o erro de direito na reapreciação da decisão de facto (que permitiria ao Recorrente/Réu/AA, acaso fosse reconhecido, reagir contra a matéria de facto fixada e submeter o caso à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça), e uma vez que do confronto dos enunciados arestos divisamos, sem qualquer reserva, que o acórdão, objeto do recurso de revista, concluiu sem voto de vencido, aduzindo um enquadramento jurídico sem fundamentação essencialmente diferente, temos de reconhecer a atuação da dupla conforme.
18. Pelo exposto, verificada a dupla conforme, decorrente da aplicação do artºs. 671º n.º 3 e 674º n.º 3, ambos do Código de Processo Civil, impõe-se que este Tribunal ad quem não conheça do objeto da revista, em termos gerais, por inadmissibilidade, nos termos enunciados.
19. Porém, como já avançamos, o Recorrente/Réu/AA, interpôs recurso excecional de revista, com fundamento no art.º 672º n.º 1, alíneas a), b) e c) do Código Processo Civil, sustentando, com utilidade que o presente recurso tem por objeto duas ordens de questões:
- Uma relativa à violação e errada aplicação da lei de processo, em sede de matérias atinentes à incapacidade judiciária ativa dos autores, em razão da sua incapacidade para prestarem os respetivos depoimentos de parte, mercê do julgamento nesse sentido feito na 1.ª Instância e confirmado na apelação (ainda que, nesta, com fundamentação que se crê essencialmente diversa daquela);
- Outra concernente ao erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais em ofensa a disposições expressas da lei fixando a força de determinados meios de prova, bem como à violação da lei substantiva.
20. Neste particular, importa considerar que excecionalmente, nos termos dos artºs. 672º n.º 1, alíneas a), b) e c) e 671º n.º 3, ambos do Código Processo Civil, cabe recurso de revista do acórdão da Relação, nos casos em que não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª Instância, nomeadamente, quando esteja em causa a apreciação de questões de relevo jurídico e/ou social, outrossim, quando o acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.
Nestas circunstâncias, estatui o direito adjetivo civil – art.º 672º n.º 3 do Código do Processo Civil - “A decisão quanto à verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 compete ao Supremo Tribunal de Justiça, devendo ser objeto de apreciação preliminar sumária, a cargo de uma formação constituída por três juízes escolhidos anualmente pelo presidente de entre os mais antigos das secções cíveis”.
Contudo, impõe-se relembrar que a Formação apenas poderá conhecer da verificação dos pressupostos do n.º 1 do art.º 672º do Código de Processo Civil, cumpridos que estejam os exigidos ónus adjetivos, tendo em consideração que só é possível este conhecimento desde que a revista, em termos gerais, seja admissível, mas não permitida por efeito da conformidade de julgados, daí que seja necessário distinguir se no caso sub iudice se encontra excluída a admissibilidade da revista excecional por virtude da decisão em escrutínio não comportar revista, em termos gerais, por razão diversa da conformidade de julgados.
21. No caso que nos ocupa, sublinhamos que o presente recurso tem por objeto duas ordens de questões, sendo que quanto à questão atinente ao invocado erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais em ofensa a disposições expressas da lei fixando a força de determinados meios de prova, bem como à violação da lei substantiva, já reconhecemos que ocorre dupla conformidade entre as decisões da 1.ª e da 2.ª Instância, não descaracterizada pela julgamento de facto por parte da Relação, quanto à impugnação do item 9. dos Factos Provados, donde, perante a configuração com que emerge a decisão impugnanda, ao pretender-se a reponderação da matéria de facto, cuja decisão está isenta do apontado erro de direito, como acabamos de discretear, não cabe, salvo o devido respeito por opinião contrária, a aferição dos requisitos de excecionalidade decorrentes do art.º 672º do Código de Processo Civil, designadamente, os genericamente aludidos pelo Recorrente/Réu/AA (relevância jurídica e social), na medida em que não faz sentido invocar a excecionalidade da revista para ultrapassar o obstáculo recursório decorrente da conformidade das decisões, quando já se afasta o invocado erro de direito na apreciação da impugnação da decisão de facto, concluindo-se que a impugnação da decisão de facto não descaraterizou a dupla conformidade das decisões das Instâncias.
22. No que concerne à enunciada segunda questão, objeto da revista, cuja excecionalidade se pretende ver reconhecida, por alegada contradição de julgados, impõe-se salientar que a presente revista sobre acórdão da Relação, no que a esta segunda questão diz respeito, aprecia uma decisão interlocutória de 1.ª Instância que recai sobre a relação processual subsumível na previsão do art.º 671º n.º 2 do Código de Processo Civil, daí que não estará em condições de, tão pouco, ser apreciada pela Formação, sendo inútil a respetiva remessa.
Na verdade, a Formação apenas poderá conhecer da verificação dos pressupostos do n.º 1 do art.º 672º do Código de Processo Civil, cumpridos que estejam os exigidos ónus adjetivos, tendo em consideração que só é possível este conhecimento desde que a revista, em termos gerais, seja admissível, mas não permitida por efeito da conformidade de julgados, tornando-se, por isso, necessário distinguir se no caso se encontra excluída a admissibilidade da revista excecional por virtude da decisão em escrutínio não comportar revista, em termos gerais, por razão diversa da conformidade de julgados.
As questões eminentemente processuais que se integram no n.º 2 do art.º 671º do Código de Processo Civil (como é o caso atinente a esta enunciada segunda questão), não podem ser, nunca, objeto de revista excecional, na medida em que esta só se admitirá nos precisos termos do n.º 1 do art.º 671º do Código de Processo Civil, quando se conhece de fundo ou quando a decisão ponha fim ao processo nos termos aí prevenidos, em conjugação com as regras adjetivas decorrentes do art.º 672º do mencionado Código de Processo Civil.
Na verdade, a excecionalidade do recurso de revista tem, necessariamente, de encerrar situações em que perpassa dos autos uma dupla conformidade entre as decisões da 1ª Instância e do Tribunal da Relação, donde, como já adiantamos, não sendo admissível a revista, por motivo distinto da conformidade de julgados, encontra-se excluída a admissibilidade da revista excecional.
23. Ademais, poder-se-ia conceber, como adianta o Recorrente, mas que não se concede, quanto a esta segunda questão (relativa à violação e errada aplicação da lei de processo, em sede de matérias atinentes à incapacidade judiciária ativa dos autores, em razão da sua incapacidade para prestarem os respetivos depoimentos de parte), uma fundamentação essencialmente diversa consignada pelas Instâncias, que afastaria a dupla conformidade e nos remeteria para a revista em termos gerais, a apreciar ao abrigo do n.º 2, alínea b), do art.º 671º do Código de Processo Civil.
24. Mesmo a conceber que não a conceder uma fundamentação essencialmente diversa das Instâncias, sempre seria inadmissível a revista, em termos gerais.
25. Sustenta o Recorrente/Réu/AA que, restrito às questões atinentes à incapacidade de partes, suas consequências e regime legal aplicável, o acórdão recorrido está em contradição com o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 27 de outubro de 2016, proferido no âmbito do Processo n.º: 803/14.9...
26. Como sobejamente já reconhecemos ao abordarmos o caso sub iudice, distinguimos estar em causa o escrutínio de um acórdão que, neste segmento que ora releva, não pôs termo ao processo, tendo recaído sobre decisão interlocutória, com efeito circunscrito à relação processual, tornando-se necessário convocar as regras adjetivas civis decorrentes do art.º 671º n.º 2 do Código de Processo Civil.
Textua o art.º 671º do Código de Processo Civil:
“2 - Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:
a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;
b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.”
Enunciados os pressupostos substanciais de admissibilidade do recurso do acórdão que apreciou uma decisão interlocutória de 1ª Instância que recaiu unicamente sobre a relação processual, confirmado na apelação, mesmo concebida fundamentação essencialmente diversa daquela, importa afirmar inexistir, neste caso trazido a Juízo, circunstância que quadre quaisquer dos casos previstos no mencionado art.º 671º n.º 2 alíneas a) e b) do Código de Processo Civil.
27. Cotejado o requerimento de interposição do recurso que contém a alegação do Recorrente/Réu/AA e respetivas conclusões, reconhecemos a ausência de invocação de qualquer oposição jurisprudencial subsumível ao art.º 671º n.º 2 alínea b) do Código de Processo Civil, ou seja, conquanto o Recorrente/Réu/AA tivesse discreteado sobre a contradição de julgados, entre o acórdão recorrido e o enunciado acórdão fundamento, certo é que este foi proferido pelo Tribunal da Relação, não podendo, por isso, sustentar o preenchimento dos requisitos necessários à admissibilidade da revista, cujo objeto é uma decisão interlocutória, na medida em que o dispositivo adjetivo civil que se impõe convocar para a revista em decisões interlocutórias é muito claro ao exigir, expressamente, que o acórdão fundamento, com transitado em julgado, tenha sido proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.
28. Em abono do reconhecimento desta orientação, traduzida na exigência da enunciação de um acórdão fundamento proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que está em contradição com o acórdão recorrido, conduzindo, na sua omissão, à inadmissibilidade da revista, impõe-se que tenhamos presente que na interpretação das leis, conforme decorre do direito substantivo civil “o interprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” - art.º 9º n.º 3 do Código Civil - .
A este propósito, Pires de Lima e Antunes Varela, in, Código Civil anotado, Volume I, página 16, em anotação ao aludido preceito substantivo civil sustentam que “o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios”, destacando-se, por isso, que na exegese da lei, descortinando o respetivo sentido e alcance, não se deverá atender somente à letra da lei, sendo pacificamente aceite que na respetiva interpretação também intervêm elementos lógicos, de ordem sistemática (condizente à ordem jurídica em que se integra a norma jurídica a interpretar, importando a consideração da unidade do sistema jurídico), histórica (reconhecimento e consideração dos acontecimentos históricos que aclaram a criação da lei, concretamente, os trabalhos preparatórios e todo a realidade social que envolveu o seu aparecimento) e racional ou teleológica (a razão de ser da lei sustentada na respetiva justificação e no objetivo pretendido com a sua criação).
A interpretação da lei exige, assim, a consideração do elemento literal que, necessariamente, encerra o primeiro passo, todavia, importa atender que deverá ser obrigatoriamente acompanhado daqueles enunciados elementos lógicos, que integram “todos os restantes factores a que se pode recorrer para determinar o sentido da norma”, nas palavras de Oliveira Ascensão, in, O Direito Introdução e Teoria Geral, 13ª Edição Refundida, página 407, que afirma ainda, a propósito, “Antes devemos distinguir uma apreensão literal do texto, que é o primeiro e necessário momento de toda interpretação da lei, pois a letra é o ponto de partida. Procede-se já a interpretação, mas a interpretação não fica ainda completa. Há só uma primeira reacção em face da fonte, e não o apuramento do sentido, E ainda que venha a concluir-se que esse sentido é de facto coincidente com a impressão literal, isso só se tomou possível graças a uma tarefa de interligação e valoração, que excede o domínio literal”, ibidem, página 406, o que, de resto, se identifica com o pensamento de Baptista Machado, in, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1994, páginas 181 e 182 quando declara “Convém salientar, porém, que o elemento gramatical (“letra da lei”) e o elemento lógico (“espírito da lei”) têm sempre que ser utilizados conjuntamente. Não pode haver, pois, uma modalidade de interpretação gramatical e uma outra lógica; pois é evidente que o enunciado linguístico que é a “letra da lei” é apenas um significante, portador de um sentido (“espírito”) para que nos remete.”
29. Regressando ao caso em apreço, uma vez interiorizados os enunciados ensinamentos, e tendo em vista o sentido e alcance da alínea b) do n.º 2 do art.º 671º do Código de Processo Civil, destacamos que o legislador disse o que queria ao expressar no texto do aludido normativo adjetivo civil que os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual podem ser objeto de revista, concretamente, quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme, distinguindo-se, à evidência, do elemento literal do preceito, a declarada exigência de que o acórdão fundamento seja prolatado pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Outrossim, estão verificados elementos lógicos que integram os fatores a que se pode recorrer para determinar o sentido e alcance da norma, sendo que estes também justificam a acolhida orientação, traduzida na exigência da enunciação de um acórdão fundamento, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, que está em contradição com o acórdão recorrido, levando, na sua ausência, à inadmissibilidade da revista que tem por objeto decisões interlocutórias.
Na verdade, também a razão da ordem jurídica em que se integra a norma jurídica a interpretar, importando a consideração da unidade do sistema jurídico, determina o sentido e alcance da norma ao permitir registar a preocupação do legislador em criar uma norma estritamente direcionada à admissibilidade da revista de decisões interlocutória, com um Capitulo e Secção dedicados - Recurso de revista - Interposição e expedição do recurso - (art.º 671º n.º 2 do Código de Processo Civil) - encerrando particularidades face ao Capitulo atinente às Disposições gerais (art.º 629º do Código Processo Civil), sendo de enfatizar, enquanto elemento racional ou teleológico que a exegese deve comtemplar, enquanto razão de ser da lei, sustentada na respetiva justificação e no objetivo pretendido com a sua criação, a circunstância de o legislador ao prevenir no art.º 671º n.º 2 “Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista: a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível” e ao acrescentar a alínea “b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme” demonstra, inequivocamente, ter querido diferenciar as situações que se quadram com a alínea d) do n.º 2 do art.º 629º do Código de Processo Civil e aqueloutras prevenidas na alínea b) do art.º 671º n.º 2 do Código de Processo Civil, pois, não fora essa intenção legislativa, perguntar-se-ia porque razão o legislador não se ficou somente com a previsão da enunciada alínea a) do art.º 671º n.º 2 do Código de Processo Civil que, sem qualquer tibieza, afirma que cabe revista das decisões interlocutórias nos casos em que o recurso é sempre admissível, sentindo, ao invés, a necessidade de elaborar previsão normativa quando esteja em causa uma contradição de julgados, fazendo questão de enunciar que o acórdão fundamento, já transitado em julgado, tem de ser proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, dando redação diversa daqueloutra alínea d) do n.º 2 do art.º 629º do Código de Processo Civil que textua “Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.
30. Em obiter dictum poder-se-ia questionar se a contradição de julgados, invocada na revista de decisões interlocutórias, sustenta a respetiva admissibilidade ao abrigo do disposto nos artºs. 671º n.º 2 e 629º n.º 2 alínea d), ambos do Código de Processo Civil.
31. A resposta a esta interrogação, como vimos, é decisivamente negativa.
32. Há obstáculos à admissibilidade do interposto recurso das decisões interlocutórias ao abrigo do art.º 629º n.º 2 alínea d) do Código de Processo Civil, sendo que esta disposição adjetiva civil, não se confunde, de todo, com aqueloutro preceito condizente ao art.º 671º n.º 2 alínea b) do Código de Processo Civil, ou está integrada na alínea a) do n.º 2 do art.º 671º do Código de Processo Civil.
Não se tratando de uma decisão que tenha posto termo ao processo, mas antes de uma decisão que recaiu sobre intercorrência processual, a mesma só é suscetível de revista nas hipóteses das alíneas a) e b) do art.º 671º n.º 2 do Código de Processo Civil, afastando a convocação da alínea d) do n.º 2 do art.º 629º do Código Processo Civil, tanto mais que esta só tem lugar nos casos que normalmente não são suscetíveis de recurso, independentemente do valor da causa e da sucumbência, verbi gratia, nos processos de jurisdição voluntária (art.º 988º n.º 2 do Código de Processo Civil), processo especiais de expropriação (art.º 66º n.º 5 do Código das Expropriações), nas providências cautelares (art.º 370º n.º 2 do Código de Processo Civil) e quanto à conta de custas, onde também vale a referência a “um grau” de recurso, constante do n.º 6 do artigo 31.º do Regulamento das Custas Processuais, de que não cabe recurso ordinário por motivo estranha à alçada do tribunal, sendo que não cai nesse pressuposto a alínea a) do n.º 2 do art.º 671º do Código de Processo Civil, razão pela qual, a menção que nela se faz “aos casos em que o recurso é sempre admissível” não abrange o caso previsto na alínea d) do n.º 2 do art.º 629º do Código de Processo Civil, sufragado, aliás, na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como decorre do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Fevereiro de 2020 (Processo n.º 383/17.3T8BGC-B.P1.S2 - 6.ª Secção), não publicado, ao consignar: “Entender diferentemente levaria ao absurdo de uma contradição de julgados em simples matéria interlocutória de natureza processual autorizar recurso para o Supremo independentemente do valor da causa e da sucumbência, enquanto a oposição de julgados relativa a decisão final de mérito que viesse a ser proferida nas circunstâncias dos n.ºs 1 e 3 do art. 671.º do CPC só admitiria recurso para o Supremo (por via da revista excecional) se se verificassem os requisitos atinentes ao valor e a sucumbência”.
Invocada uma oposição jurisprudencial com um outro Acórdão da Relação, na revista do acórdão que recaiu sobre intercorrência processual, está, necessariamente, afastada a hipótese da alínea a) do art.º 671º n.º 2 do Código de Processo Civil, e porque não existe qualquer impedimento impugnatório adveniente de razões de alçada, o recurso de revista interposto apenas poderia quadrar a situação prevenida na alínea b) do art.º 671º n.º 2 do Código de Processo Civil, estando em causa a contradição com um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, não fazendo sentido, salvo o devido respeito por opinião contrária, o recurso à alínea d) do n.º 2 do art.º 629º do Código de Processo Civil, neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Janeiro de 2019 (Processo n.º 1410/17.0T8BRG-A.G1.S2), in, http://www.dgsi.pt.
Esta orientação, traduzida na exigência da enunciação de um acórdão fundamento proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que está em contradição com o acórdão recorrido, com vista à admissibilidade de revista estando em causa uma decisão que recaiu sobre intercorrência processual, já foi por nós defendida ao subscrevermos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Abril de 2020 (Processo n.º 7459/16.2T8LSB-A.L1.S1) in, http://www.dgsi.pt “(…) por razões de coerência interna do regime de recursos para o STJ, deve entender-se que a norma da al. a), do nº 2, do art. 671º, do CPC não abrange a situação prevista na alínea d) do n.º 2 do art.º 629º do mesmo Código, sob pena de os requisitos de admissibilidade do recurso para o STJ de uma decisão intercalar serem mais amplos do que o recurso que viesse a ser interposto de uma decisão final. Foi esta também a orientação seguida na decisão singular proferida no proc. n.º 112/14.3T2AND.P1.S1, desta mesma secção, subscrita pelo Juiz Conselheiro Oliveira Abreu e que aqui intervém como 1º Adjunto, a qual merece a nossa inteira concordância.”
33. Mesmo a conceber a fundamentação essencialmente diversa das Instâncias sobre a intercorrência processual em debate, reconhecemos inexistir circunstância que quadre quaisquer dos casos previstos no art.º 671º n.º 2 do Código de Processo Civil.
34. Tudo visto, relembrando que a Formação apenas poderá conhecer da verificação dos pressupostos do n.º 1 do art.º 672º do Código de Processo Civil, cumpridos que esteja os exigidos ónus adjetivos, e tendo em consideração que só é possível este conhecimento desde que a revista, em termos gerais, seja admissível, mas não permitida por efeito da conformidade de julgados, o que, de resto, não distinguimos no caso sub iudice, importa concluir que se encontra excluída a admissibilidade da revista excecional.
III. DECISÃO
Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, acordam em rejeitar o presente recurso de revista excecional.
Custas pelo Recorrente/Réu/AA.
Notifique.
Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 19 de setembro de 2024
Oliveira Abreu (relator)
Nuno Ataíde das Neves
Fátima Gomes (com a seguinte declaração de voto)
“Voto a decisão. Não acompanho a fundamentação na parte em que se afirma “não se tratando de uma decisão que tenha posto termo ao processo, mas antes de uma decisão que recaiu sobre uma intercorrência processual, a mesma só é susceptível de revista nas hipótese das alíneas a) e b) do art.º 671.º, n.2 do CPC, afastando a convocação da alínea d) do n.º2 do art.º 629.º”.”)