Confirma-se que, em face da factualidade dada como provada, o interesse da criança impõe, por verificação da previsão do art. 1978.º, n.º 1, als. d) e e) e n.º 3 do CC, que se lhe aplique, a seu favor, a medida de promoção e protecção de confiança com vista a futura adopção, prevista no art. 35.º, n.º 1, al. g), da LPCJP.
1. No âmbito do presente processo de promoção e protecção instaurado a favor do menor AA, foi proferido acórdão pela 1.ª instância no qual foi decidido aplicar a AA a medida de promoção e protecção de confiança à instituição R...... ..... ........, com vista à adopção, e inibir o exercício das responsabilidades parentais dos seus progenitores.
Inconformado, o progenitor de AA interpôs recurso de apelação para o Tribunal de Relação de ... que, em 23-04-2024, proferiu acórdão que julgou o recurso improcedente e, em consequência, confirmou a sentença recorrida.
2. Novamente inconformado, o progenitor interpôs recurso de revista, por via excepcional, para o Supremo Tribunal de Justiça, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do art. 672.º do CPC, formulando as seguintes conclusões:
«I) Antes de mais, o presente recurso de revista excepcional vem interposto do Acórdão da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de ..., datado de 23/04/2024, que decidiu julgar improcedente o recurso de apelação do Recorrente e em manter a decisão recorrida de 1.ª Instância.
II) Tendo o Tribunal recorrido concluido que a aplicação ao Menor da medida de promoção e protecção mais drástica, de confiança a instituição com vista à sua futura adopção, se mostra, alegadamente, a mais adequada e proporcional à situação do caso concreto, não devendo ser substituída por outra medida de promoção e protecção que não implique o afastamento total do Menor do seu Progenitor.
III) Porém, salvo o devido respeito por opinião contrária, por tal entendimento improceder de facto e de Direito, não pode o mesmo merecer qualquer aplauso ou acompanhamento por banda do Recorrente.
IV) Vertendo ao caso concreto, a relevância da delineação de um projecto de vida de uma criança de 4 anos de idade, em articulação com a intranquilidade ou incompreensão sociais que o decretamento da ruptura definitiva de uma relação de filiação sempre causa, apresentam-se como circunstâncias integradoras do pressuposto a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 672.º do C.P.C., sendo justificativas da excepcionalidade do recurso de revista e da outorga de um duplo grau de recurso.
V) Na realidade, considerando que no caso concreto estamos perante uma situação em que existe uma ligação efectiva entre o Menor e o seu Progenitor, e que a ruptura definitiva dessa relação pode ser geradora de intranquilidade ou incompreensão social, verifica-se o pressuposto previsto no artigo 672.º, n.º 1, alínea b) do C.P.C., conducente à admissibilidade da revista excepcional.
VI) Posto isto, atento o particular relevo social da matéria em causa, encontram-se verificado os pressupostos previstos no artigo 672.º, n.º 1, alínea b) do C.P.C., cumprindo ser admitida a presente revista excepcional.
VII) Por sua vez, entre as três questões colocadas ao Tribunal da Relação de ... no seu recurso de apelação, o Recorrente imputou ao acórdão do Tribunal de 1.ª Instância o vício de erro de julgamento quanto à interpretação e aplicação do artigo 1978.º, n.º 1, alíneas d) e e) do Código Civil, uma vez que as circunstâncias do caso concreto não se integram, relativamente ao Progenitor, em nenhuma das alíneas daquele normativo.
VIII) Todavia, melhor compulsado o teor do acórdão recorrido, verifica-se que o Tribunal ad quem omitiu por completo qualquer apreciação e decisão esta questão do erro de julgamento do Tribunal de 1.ª Instância que lhe foi colocada em sede própria e de modo processualmente adequado.
IX) Assim, não tendo o acórdão recorrido conhecido de todas as questões que devia conhecer, nem as resolvendo minimamente, o mesmo padece de nulidade por omissão de pronúncia, à luz do disposto nas disposições conjuntas dos artigos 608.º, n.º 2 e 615.º, n.º 1, alínea d), ambos do C.P.C.
X) Por outra banda, a aplicação da medida de confiança judicial com vista à adopção, a que alude o artigo 35.º, alínea g) da L.P.C.J.P., pressupõe que se encontrem seriamente comprometidos os vínculos próprios da filiação, mercê da verificação objectiva de qualquer das situações previstas no artigo 1978.º do C.C.
XI) Como se salienta nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 10/11/2022, referente ao Proc. n.º 1455/20.2T8GDM.P1.S1 e de 02/02/2023, relativo ao Proc. n.º 377/18.1T8FAF.P1.S1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt, a verificação dos factos objectivos no artigo 1978.º, n.º 1 do C.C. deve ser acrescida do sério comprometimento ou inexistência de vínculos afectivos próprios da filiação entre os progenitores e a criança.
XII) Por sua vez, quanto ao Recorrente, não se encontra documentado nos autos que o mesmo padeça de alguma doença mental ou incapacidade física, sendo estes dois requisitos essenciais para fazer funcionar o artigo 1978.º, n.º 1 do C.C.
XIII) Além disso, o Recorrente não adoptou qualquer comportamento ou teve qualquer atitude que colocasse em causa a saúde, segurança e o são desenvolvimento do Menor.
XIV) Na verdade, o Progenitor tem manifestado interesse pelo filho e nunca desistiu do mesmo, tendo visitado o Menor inúmeras vezes, não obstante a considerável distância geográfica que os separa, com todas as dificuldades conhecidas em transportes e contactos pessoais, como decorre dos factos provados 3) e 61) do acórdão recorrido.
XV) Por seu turno, o Recorrente trabalha e tem mantido ligações afectivas com o Menor, tendo mostrado interesse no seu desenvolvimento na instituição onde o mesmo se encontra, sendo o Recorrente reconhecido pelo Menor como seu Pai, numa manifestação clara de intensificação dos laços familiares entre os dois.
XVI) De igual modo, encontra-se documentado nos autos a existência da manifestação de vontade de um casal amigo do Recorrente em acolher e receber no imediato o Menor, com a inteira concordância do Progenitor, para entretanto reunir melhores condições pessoais e financeiras, a qual não foi tido em qualquer consideração pelo Tribunal de 1.ª Instância e o pelo Tribunal ad quem.
XVII) Na verdade, este Pai que foi afastado da vida do Menor nos seus primeiros anos de vida, não desistiu nunca do seu filho e mantém-se firme no propósito de querer criar as condições necessárias para o acolher.
XVIII) Além disso, certamente ter um emprego não suficiente para que a criança seja confiada a este Pai, mas é um princípio de que o Progenitor está na disposição de encaminhar a sua vida e criar todas as condições para acolher o Menor, começando por dispor de um trabalho que permita satisfazer as necessidades do mesmo.
XIX) De facto, mesmo tendo em conta a factualidade provada, da mesma não é possível concluir-se que o Progenitor revelou manifesto desinteresse pelo seu filho, muito menos em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade dos respectivos vínculos, não sendo os factos provados pelo Tribunal de 1.ª Instância suficientes para considerar como preenchidos os requisitos das alíneas d) e e) do n.º 1 do artigo 1978.º do C.C.
XX) Face aos factos provados, não se permite afirmar, com a segurança e certeza mínimas, que o Progenitor tenha, por acção ou omissão, colocado em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do Menor, tal como não se permite demonstrar minimamente que o Recorrente tenha manifestado desinteresse pelo filho em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade do vínculo da filiação.
XXI) Deste modo, verifica-se o vício de erro de julgamento por parte do Tribunal recorrido quanto à interpretação e aplicação do artigo 1978.º, n.º 1, alíneas d) e e), do C.C., uma vez que as circunstâncias do caso concreto quanto ao Progenitor não se integram em qualquer uma das situações elencadas nestas disposições legais.
XXII) Ademais, entre os princípios orientadores da intervenção judicial do Estado elencados no artigo 4.º da L.P.C.J.P. surge-nos logo à cabeça o “interesse superior da criança”, como critério básico e fulcral que deverá nortear qualquer decisão relativas às crianças ou a jovens.
XXIII) Além disso, não se pode descurar ainda o princípio da proporcionalidade a que alude a alínea e) do artigo 4.º da L.P.C.J.P., segundo o qual a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade.
XXIV) Ora, se é certo que o critério prioritário é a defesa do superior interesse da criança, também é verdade que, de acordo com o enquadramento constitucional vigente, a valorização do papel da paternidade conduz à conclusão de que tal defesa passa, igualmente, pela protecção e apoio dos pais biológicos, no sentido de exercerem a sua insubstituível acção em relação aos filhos.
XXV) Como se decidiu no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 17/01/2023, acessível in www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler “(…) 13. É esse primado da família que impõe ao Estado o dever de apoiar famílias que evidenciem carências várias nos planos material, da organização e gestão de recursos, social, sanitário e pedagógico (as famílias ditas disfuncionais) em ordem à criação de condições mínimas que permitam a todas as crianças e jovens a oportunidade de um desenvolvimento harmonioso.”
XXVI) Nesta medida, ao decidir-se pela medida mais drástica e extrema de confiança da criança a instituição com vista à sua futura adopção, o Tribunal ad quem violou claramente o princípio jurídico de que a adopção deverá ser sempre a solução de ultima ratio.
XXVII) Efectivamente, o Menor tem o direito a que lhe seja dada a oportunidade de viver com o seu Pai, direito esse que lhe foi negado quase com dois anos de idade, quando a sua Progenitora o levou consigo quando abandonou a sua casa de morada de família e se ausentou para parte incerta, como resulta do facto provado 2), sem que a segurança e saúde do mesmo estivesse em risco.
XXVIII) De harmonia com o entendimento perfilhado no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29/04/2014, proferido no Proc. n.º 2454/13.6TBVFX.L1-1, relatado pela Exma. Desembargadora Maria do Rosário Gonçalves, disponível in www.dgsi.pt:
“Há que privilegiar a integração familiar perante a institucionalização, ou seja, dar primazia às relações biológicas, quando há um mínimo de garantia que as mesmas não sejam perniciosas para a criança, satisfazendo os seus interesses quer em termos afectivos, quer em termos de um harmónico desenvolvimento educacional, sem perigo para a sua vida ou integridade física.” (Sublinhado nosso).
XXIX) Revertendo ao caso concreto, o Progenitor nunca deixou de acompanhar e seguir a vida do Menor, mesmo tendo em conta a distância geográfica que os separou até à actualidade, tendo efectuado um investimento nas suas capacidades parentais, o que se traduziu numa evolução positiva na relação com o seu filho, sendo o Progenitor reconhecido pelo Menor como seu Pai, numa manifestação evidente da intensificação dos laços familiares entre os dois.
XXX) Desta feita, concluir pela adopção do Menor, sem lhe ser concedida uma oportunidade de voltar a viver com o seu Pai, ainda que com medidas de apoio à família, é uma violência atroz, inequivocamente desnecessária e desproporcional.
XXXI) Como tal, uma vez que o Progenitor nunca desistiu do Menor e sempre acompanhou o seu desenvolvimento na instituição onde se encontra, importa sempre proporcionar ao Progenitor e ao Menor um acompanhamento que permita aprofundar os laços afectivos que começaram a desenvolver-se entre si, não se devendo seguir de imediato o caminho de quebrar irremediavelmente os laços familiares.
XXXII) Agora que o Menor aceita a maior proximidade, visitas e contactos pessoais do Progenitor, as quais foram procuradas e desejadas por ambos e se começaram a consolidar laços afectivos entre si, quebrar tal ligação e tais laços de forma abrupta e repentina através da medida aplicada pelo Tribunal recorrido não pode deixar de se revelar como desadequada e desproporcional.
XXXIII) Com contornos semelhantes aos dos presentes autos, veja-se como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12/12/2023, proferido no Proc. n.º 14732/20.3TSPRT.P1.S1, relatado pelo Exmo. Conselheiro Sousa Lameira, disponível in www.dgsi.pt:
XXXIV) Assim, o contexto factual dos presentes autos, em conjugação com os princípios orientadores da intervenção do Estado, previstos no artigo 4.º da L.P.C.J.P., nomeadamente os princípios do interesse superior da criança, da proporcionalidade, da responsabilidade parental, do primado da continuidade das relações psicológicas profundas, prevalência da família, bem como o princípio da adopção como ultima ratio, impunham uma decisão diversa daquela que foi adoptada pelo Tribunal recorrido, revelando desproporcional e excessiva.
XXXV) Em face do exposto, além de ter violado aqueles princípios orientadores, a interpretação e aplicação pelo Tribunal recorrido do normativo extraído dos artigos 4.º e 35.º, n.º 1 da Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro, no sentido de considerar adequada e proporcional a aplicação ao Menor da medida de confiança a instituição com vista à sua futura adopção, padece de inconstitucionalidade material.
XXXVI) Por violação dos direitos e princípios do Estado de Direito Democrático, da proporcionalidade, na vertente da necessidade, da família, da paternidade e da infância, consagrados nos artigos 2.º, 8.º, 18.º, n.º 2, 36.º, n.ºs 5 e 6, 67.º, n.º 1, 68.º, n.ºs 1 e 2 e 69.º, n.ºs 1 e 2, todos da C.R.P., a qual se deixa desde já suscitada para todos os efeitos legais.».
Não foram apresentadas contra-alegações.
3. Por acórdão da Conferência de 11-07-2024, o Tribunal da Relação pronunciou-se no sentido da não verificação da invocada nulidade do acórdão recorrido.
4. Subidos os autos a este Supremo Tribunal em 27-08-2024, o Senhor Conselheiro de turno durante o período de férias judicias exarou, no dia subsequente, despacho no qual, considerando “preenchidos os requisitos gerais de admissibilidade do recurso de revista em processos de jurisdição voluntária” e dando como verificado o obstáculo da dupla conforme à admissibilidade da revista por via normal, remeteu os autos à formação de juízes prevista no art. 672.º, n.º 3, do CPC para apreciação da admissibilidade do recurso por via excepcional.
5. O recurso foi admitido por acórdão da formação proferido em 11-09-2024.
II – Objecto do recurso
Tendo por referência as conclusões do recurso de revista em análise, cumpre apreciar as seguintes questões:
• Da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia;
• Do preenchimento dos pressupostos de que depende a aplicação da medida de promoção e protecção de confiança de criança a instituição, com vista a futura adopção, previstos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do art. 1978.º do Código Civil.
III - Fundamentação de facto
Encontram-se provados os seguintes factos (mantêm-se a numeração e a redacção do acórdão da Relação):
1) A criança AA nasceu a ........2019, em ..., e é filho de BB e de CC, a essa data, cada um dos progenitores, respectivamente, com 51 e 33 anos.
2) O AA viveu com os pais, na Rua ..., em ..., até ... de Outubro de 2021, data em que a mãe abandonou a casa de morada da família, ausentando-se para parte incerta, com a criança, sem dar conhecimento ao pai.
3) No dia ... de Outubro de 2021, o pai deslocou-se aos Serviços do Ministério Público de ..., onde deu conta dessa situação, referindo que não sabia o paradeiro da criança e estava preocupado com a sua saúde e segurança, tendo igualmente participado a fuga à PSP de ....
4) A mãe do AA já tinha outros dois filhos mais velhos (DD e EE, irmãos uterinos do AA), nascidos a ... de ... de 2011 e ... de ... de 2015, respetivamente, que foram confiados a instituição com vista a futura adoção, por decisão proferida no processo n.º 22 l 3/l 6.4..., transita em julgado a 21.12.2017.
5) No dia ... de Outubro de 2021, a PSP de ... sinalizou à CPCJ de ..., uma criança que estaria a viver na rua com a mãe e o companheiro desta, vindo a apurar-se que se tratava da criança AA.
6) A CPCJ ... apurou que já tinha sido aberto processo de promoção e proteção na CPCJ de ..., por ausência de cuidados e supervisão adequados, tendo-lhe remetido a sinalização.
7) Porém, a CPCJ de ... não realizara qualquer intervenção, dado que o pai não deu o consentimento, tendo o processo de promoção e proteção sido remetido aos Serviços do MP de ... (dando origem ao PA nº 721/21.4...) antes de a criança ter sido localizada.
8) Não tendo a criança chegado a ser alvo de qualquer medida de promoção e proteção, por parte das referidas CPCJ, permanecendo com a mãe sem se saber em que condições, pois a mesma, entretanto, ausentou-se da cidade de ..., sem que aí voltasse a ser localizada.
9) No dia ... de Fevereiro de 2022, foi sinalizada por populares, à GNR de ..., uma criança pequena, que se encontrava com um casal, que estava a consumir bebidas alcoólicas na rua, junto ao Auchan, em ..., que aparentava não ter o mínimo de condições para lhe prestar os cuidados básicos nem para velar pela sua segurança.
10) A GNR de ... deslocou-se ao local, tendo identificado a criança AA, a mãe e o companheiro desta (FF), que se apresentou como sendo o pai do AA.
11) O casal declarou aos militares, que estavam de regresso a ... com o filho, pois tinham vindo para o ... à procura de trabalho, não tinham conseguido e estavam sem meios de subsistência.
12) Mais referiram que, há dois dias que se encontravam a dormir num descampado, onde tinham improvisado uma tenda e já se haviam deslocado ao Serviço de Ação Social da Câmara Municipal de ..., onde lhe tinham sido fornecidas refeições quentes e bilhetes de autocarro para regressarem a ..., com a criança.
13) A GNR sinalizou a situação à CPCJ de ..., a qual, face à informação da Ação Social de que o agregado ia regressar nesse mesmo dia a ..., remeteu a sinalização à CPCJ da referida localidade.
14) O casal não compareceu na paragem de autocarro e permaneceu em ..., onde pernoitou mais uma noite num terreno, de onde acabaria por ser expulso pela proprietária.
15) No dia seguinte, dirigiram-se novamente aos Serviços da Ação Social da Câmara, alegando que tinham adormecido, tendo-lhe sido entregues novos bilhetes para assegurar o seu regresso a ..., onde, mais urna vez, declararam residir.
16) Porém não regressaram, permanecendo no ..., tendo-lhe mais uma vez, sido perdido o rasto.
17) No dia ... de Março de 20211, a CPCJ de ..., recebeu nova sinalização, dando conta de que, um casal com uma criança se encontrava a viver numa ruína, sita na ..., ..., sem quaisquer condições de habitabilidade (sem portas, janelas, instalação sanitária, água e eletricidade).
18) No interior da ruína, o casal tinha acendido uma fogueira, de onde saía muito fumo, estando a criança exposta ao mesmo, e a progenitora, perante os Técnicos, não apresentava capacidades para prestar os cuidados à criança como alimentação facultada por terceiros e troca da fralda.
19) Ao serem abordados, mais uma vez, o namorado da mãe, FF, identificou-se como sendo o pai da criança, esclarecendo que o seu ex-patrão os tinha expulsado de casa e não tinham para onde ir.
20) O AA apresentava várias erupções cutâneas, aparentando ter escabiose (sarna), tendo sido conduzido às urgências do C..., onde foi confirmado o diagnóstico e lhe foi prescrita medicação.
21) Por não existirem condições para ser entregue ao casal, a CPCJ de ... deliberou aplicar a seu favor a medida de acolhimento residencial, tendo a criança sido acolhida no R...... ..... ........, em ..., onde deu entrada no próprio dia ... de Março de 20211 e onde ainda se encontra.
22) A medida foi aplicada pelo período de 12 meses, tendo a mãe e o companheiro (que se apresentou como pai), assinado o APP respetivo na mesma data (... .03.2022).
23) O processo prosseguiu, apurando-se que o pai não era FF, companheiro da mãe e sim BB, à data a residir em ....
24) Contactado o pai, este deu a sua concordância à aplicação da medida, por entender que, nesse momento não tinha condições para acolher o filho (por estar em processo de mudança de habitação e local de trabalho), mas que o faria logo que a essa situação se concretizasse, pois pretendia acolher o AA.
25) A criança passou a receber visitas quer do pai, quer da mãe e companheiro desta, na instituição.
26) Volvidos seis meses sobre a data da aplicação da medida, nem a mãe e companheiro, nem o pai tinham criado condições para reintegrar a criança nos respetivos agregados familiares.
27) A mãe e o companheiro tinham passado a morar numa casa modular, instalada num terreno agrícola sito na ..., ..., ..., ..., nos ..., onde FF estava a trabalhar.
28) Concordaram que a medida fosse revista e mantida por mais seis meses, tendo assinado o APP respetivo, a ... de Outubro de 2022.
29) O pai da criança passara a residir em ... (...), onde não tinha qualquer suporte familiar e mantinha-se a trabalhar em Évora, para onde se deslocava diariamente, não tendo disponibilidade para assegurar os cuidados da criança.
30) Face à ausência de condições que permitissem o retorno da criança ao meio familiar, a CPCJ propôs aos pais, a continuidade da medida de acolhimento com a intervenção do CAF AP num programa de aquisição de competências parentais, situação a que o pai se opôs, por entender que reunia essas condições, levando a que a CPCJ remetesse o processo a tribunal.
31) Instaurado o presente processo judicial de promoção e proteção, foi aplicada ao AA a medida de acolhimento residencial, por despacho judicial proferido a 30.01.2023.
32) A 7 de Março de 2023, foram ouvidos os pais e, por se manter inalterada a sua situação, face ao tempo decorrido desde a data do acolhimento, sem que tivessem criado condições para lhe ser entregue, foram elucidados de que a criança podia vir a ser confiada à instituição com vista à sua adoção, tendo os mesmos recusado dar o consentimento.
33) O pai confirmou que vivia sozinho, em ..., trabalhava durante o dia, sem contrato e que, se o filho lhe fosse entregue iria para a pré-escola, em ... e poderia ser auxiliado pela avó materna, que trabalha nas limpezas, na Câmara Municipal de ..., onde residia e com quem tinha boa relação, ou então, pela tia materna GG, residente em ....
34) A mãe declarou que não estava a trabalhar, continuava a viver com o companheiro, e este estava à procura de outro trabalho porque o patrão queria vender o terreno onde estavam a habitar. Referiu ainda que andava doente e estava a tomar medicação.
35) Estas declarações foram corroboradas pelo companheiro, que acrescentou que a mesma estava inchada devido à medicação, negando que estivesse grávida.
36) Dois dias depois, a ... de Março de 2023, a mãe deu à luz outra criança, HH, filho do companheiro FF.
37) O parto desta criança ocorreu de forma natural, dentro da casa em que ambos habitavam, instalada no terreno do patrão do companheiro, sem que antes do nascimento os mesmos se tivessem apercebido da existência da gravidez.
38) A gravidez não foi objeto de qualquer tipo de vigilância médica, tendo o recém-nascido dado entrada no Hospital de ..., após o parto, por ter sido acionado o INEM.
39) Esta criança, irmão uterino do AA, foi acolhida no R...... ..... ........, assim que teve alta hospitalar, mediante aplicação medida de promoção e proteção de acolhimento residencial.
40) A 23 de Março de 2023, a mãe e o companheiro foram viver [para] casa da mãe deste último, sita em ....
41) À data da audição dos progenitores em sede judicial o progenitor residia sozinho, em ..., numa garagem adaptada a habitação, pela qual paga renda, aparentemente higienizada ao olhar, mas com entulho e perigos para uma criança, cheiro nauseabundo a animal de estimação e a tabaco, a sua situação laboral afirmada é de ser trabalhador como pintor embora não existindo registo de desconto na SS desde 2017, condições que se têm-se mantido inalteradas até à data do debate, tendo o próprio reconhecido não dispor das melhores condições habitacionais e já tendo solicitado habitação social que, segundo afirma, lhe será concedida se tiver aos seus cuidados o filho.
42) Na avaliação psicológica realizada ao pai, conclui-se que este nunca prestou cuidados ao AA sozinho e de forma autónoma, nem consegue identificar as necessidades de uma criança da sua idade, evidenciando limitações quanto à capacidade de satisfazer as suas necessidades de forma adequada (não reconhece que a criança necessita de cuidados diários e supervisão diária, que o mesmo não lhe consegue proporcionar, por não ter suporte familiar, nem tem condições habitacionais adequadas).
43) A avaliação psiquiátrica efetuada à mãe, concluiu que a mesma tem diagnóstico de atraso mental não especificado, com défices cognitivos permanentes e irreversíveis, sendo característica essencial do atraso mental de que padece, o funcionamento intelectual global em grau inferior ao esperado com limitação no funcionamento adaptativo em várias áreas (comunicação, cuidado próprio, vida doméstica, competências interpessoais e sociais, auto-controle), que do ponto de vista funcional se pode considerar como ligeiro a moderado.
44) Apesar de possuir algum grau de autonomia nas atividades básicas da vida diária, necessitará sempre de apoio e supervisão para viver em comunidade.
45) A anomalia psíquica de que padece interfere com o seu funcionamento nas relações interpessoais, bem como, na sua relação com o filho, não apresentando capacidades para deter a responsabilidade parental.
46) A patologia de que padece não é passível de tratamento eficaz com terapêutica psicofarmacológica ou intervenção psicoterapêutica.
47) Da avaliação psiquiátrica ao progenitor concluiu-se que tem uma capacidade incerta para reconhecer e satisfazer as necessidades da criança; é apontada uma impulsividade latente e períodos de maior exaltação potencial; suspeitas de abuso de álcool; tem uma tendência para negar tudo o que seja negativo e para ver a realidade de acordo com os seus desejos e não como ela é; não tem qualquer experiência em cuidados de crianças e pouco conhecimento de todas as necessidades que envolvem o adequado desenvolvimento físico, psicológico e social de uma criança com a idade do AA; tem fraca capacidade de insight relativamente a reconhecer as suas áreas problemáticas mostrando tendência para a negação; mostrou algum potencial de mudança mas de forma insuficiente para que os factores de risco seja afastados, vendo-se com reserva o exercício da parentalidade.
48) Ao contrário do afirmado pelo progenitor, nem a avó nem a tia materna do AA apresentam qualquer vontade de ser um suporte familiar de apoio à criança.
49) A avó materna não se disponibilizou para acolher a criança, nem para dar qualquer suporte a qualquer dos pais, alegando não saber da filha há muito tempo e não ter condições para cuidar do neto, tendo inclusivamente, verbalizado à técnica da EMAT: "não quero cá o gaiato; eles é são os pais e eles é que tem que resolver o assunto".
50) O mesmo sucedeu com a tia GG, que ao ser contactada pela EMAT, se manifestou muito incomodada, dizendo que o pai nunca a abordara sobre o assunto e apesar de ter conhecimento que o AA estava na instituição, não estava disponível para assumir qualquer responsabilidade.
51) O progenitor não tem suporte familiar.
52) O progenitor, por a isso ter sido interpelado nos autos, passou a ser acompanhado pela E... devido aos hábitos aditivos (consumos de álcool).
53) Quando entrou no R...... ..... ........, o AA tinha atraso global no desenvolvimento, por falta de estimulação e negligência por parte dos pais na prestação de cuidados básicos essenciais e que lhe advinham desde o seu nascimento.
54) O AA necessitou de várias terapias a fim de ser colmatado esse atraso, as quais lhe tem sido proporcionadas pela instituição que o acolheu, apresentado uma evolução gradual muito positiva a nível de todas as áreas do seu desenvolvimento global.
55) O AA encontra-se bem integrado e adaptado às regras, dinâmica e funcionamento da CA.
56) O AA é uma criança que precisa de uma organização e antecipação nas rotinas do seu dia a dia para manter a segurança, estruturação e organização interna que alcançou ao longo do período de acolhimento.
57) É uma criança que durante o acolhimento alcançou capacidades intelectuais e de linguagem muitos boas, mas ainda aquém das suas verdadeiras potencialidades.
58) Desde que foi acolhido, não recebeu visitas ou contactos de qualquer familiar materno ou paterno.
59) A progenitora visitou o AA a 2.5.2022, 23.5.2022, 14.6.2022, 13.7.2022, 12.8.2022, 16.9.2022, 14.10.2022, 18.11.2022, 23.12.2022, 3.2.2023 data desde a qual a mãe não visita o AA, tendo feito alguns contactos telefónicos entre Março e Novembro de 2023.
60) O progenitor visitou o AA a 8.4.2022, 22.4.2022, 30.5.2022, 8.6.2022, 11.7.2022, 27.7.2022, 26.8.2022, 6.9.2022, 27.10.2022, 19.1.2023, 6.3.2023, 30.5.2023, 22.6.2023, 14.7.2023, 4.8.2023, 25.8.2023, 4.10.2023, 19.10.2023, 17.11.2023, 15.12.2023, tendo feito alguns contactos telefónicos.
61) Os convívios supervisionados com os progenitores foram de fraca qualidade de interação, tendo de existir intervenção técnica para regular a criança nos períodos em que está com a mãe que revela comportamento descontextualizado e imaturidade e, no caso do progenitor, sem que este consiga ter iniciativa e capacidade para estimular, desenvolver e controlar as brincadeiras da criança, não existindo qualquer dificuldade na separação após a realização do convívio.
62) O progenitor não mostrou preocupação em se inteirar junto da CA das necessidades da criança, rotinas, estado de saúde e desenvolvimento.
IV – Fundamentação de direito
1. Da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia
Invoca o recorrente a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia por considerar, no essencial, que o Tribunal da Relação não se pronunciou sobre o erro de julgamento da 1.ª instância no que concerne à interpretação e aplicação do art. 1978.º, n.º 1, alíneas d) e e) do Código Civil, matéria que, segundo alega, foi oportunamente suscitada em sede de recurso de apelação.
Como indicado no ponto 3. do relatório do presente acórdão, o Tribunal da Relação pronunciou-se, em sede de Conferência, considerando não se verificar a invocada nulidade por omissão de pronúncia.
Vejamos.
Este Supremo Tribunal tem-se pronunciado, de forma unânime, no sentido de que apenas a total ausência de pronúncia sobre as questões objecto de decisão gera o vício de nulidade por omissão de pronúncia.
Como se sabe, a invocada nulidade encontra-se relacionada com o comando normativo ínsito no art. 608.º, n.º 2, do CPC, segundo o qual “[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”, ocorrendo quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar (cfr. art. 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC).
Este Supremo Tribunal tem vindo também a entender, de forma absolutamente pacífica, que “a nulidade da decisão por omissão de pronúncia apenas se verificará nos casos em que ocorra omissão absoluta de conhecimento relativamente a cada questão e já não quando seja meramente deficiente ou quando se tenham descurado as razões e argumentos invocados pelas partes” (acórdão de 09-03-2022 (proc. n.º 1600/17.5T8PTM.E1.S1), disponível em www.dgsi.pt. Neste sentido, vejam-se, entre outros, os acórdãos de 23-03-2021 (proc. n.º 618/17.2T8ETR.P1.S1), de 12-01-2021 (proc. n.º 379/13.4TBGMR-B.G1.S1) e de 16-11-2021 (proc. n.º 5097/05.4TVLSB.L2.S3), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Transpondo estes ensinamentos para o caso que ora nos ocupa, cumpre afirmar que não assiste qualquer razão ao recorrente.
Efectivamente, lido o acórdão recorrido resulta patente que o Tribunal da Relação realizou uma análise dos factos dados como provados à luz das normas jurídicas pertinentes, deixando expresso o entendimento de que os vínculos próprios da filiação se mostravam comprometidos e de que os progenitores do menor AA não se mostravam capazes de assegurar a segurança, saúde e formação do seu filho, revelando, em relação a esta criança, manifesto desinteresse.
Ora, saber se o Tribunal da Relação decidiu bem ou mal é matéria que se prende, em exclusivo, com um eventual erro de julgamento e não com qualquer nulidade da decisão por omissão de pronúncia.
Aliás, como salientou o Tribunal da Relação, em sede de acórdão proferido em Conferência, o próprio recorrente admite isto mesmo, ou seja, admite que o Tribunal da Relação analisou a matéria colocada à sua apreciação, discordando, contudo, das conclusões a que este tribunal chegou. Afirmou o recorrente a este propósito que “o Tribunal recorrido entendeu que se encontram reunidos os pressupostos a que alude o artigo 1978.º, n.º 1, alíneas d) e e) do Código Civil. Porém, salvo o devido respeito por melhor opinião, os factos julgados como provados não evidenciam com segurança e certeza mínimas que tais pressupostos se encontram observados no caso concreto.”.
Resulta, assim, manifesto que existiu uma efectiva pronúncia por parte do tribunal recorrido, não se verificando, por esse motivo, a invocada nulidade.
2. Do preenchimento dos pressupostos para a aplicação da medida de promoção e protecção de confiança de criança a instituição, com vista a futura adopção, previstos nas alíneas d) e e) do n.º 1 do art. 1978.º do Código Civil
O progenitor recorre da decisão do tribunal recorrido, invocando, em síntese, que não se encontram preenchidos os pressupostos das alíneas d) e e) do n.º 1 do art. 1978.º do Código Civil, não se mostrando seriamente comprometidos os vínculos da filiação no que se refere ao progenitor.
Vejamos se assim é.
2.1. A Lei de Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro (LPCJP), tutela as situações de crianças ou jovens que vivenciam situações de perigo (enumeradas, exemplificativamente, no n.º 2 do seu art. 3.º) a que o sistema social e judiciário tenta pôr cobro, de molde a que lhes sejam proporcionadas condições que permitam proteger a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral, garantindo ainda a recuperação física e psicológica de crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso (cfr. Paulo Guerra, “A nova justiça das crianças e jovens - três anos depois, para onde vais, rio que eu canto?”, Infância e Juventude, Janeiro-Fevereiro, n.º 1, Lisboa, Instituto de Reinserção Social, 2004, pp. 9-40).
A intervenção para a promoção e protecção dos direitos da criança e do jovem em perigo funda-se, desde logo, no art. 69.º da Constituição da República Portuguesa, norma que comete à sociedade e ao Estado o dever de proteger aqueles contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão, e contra o exercício abusivo de autoridade, com vista ao seu desenvolvimento integral.
Tal intervenção encontra ainda suporte nos arts. 19.º e 20.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada por Portugal logo em 19901, disposições essas que impõem aos Estados o dever de proteger as crianças em perigo e o dever de encontrar uma alternativa viável para as crianças privadas do seu ambiente familiar.
A intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem justifica-se, assim, sempre que se verifique uma situação de perigo e destina-se a proporcionar à criança visada as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação educação, bem-estar e desenvolvimento integral, assim como a garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso (cfr. arts. 3.º e 34.º da LPCJP).
Como ensinam Helena Bolieiro e Paulo Guerra (A Criança e a Família – Uma Questão de Direitos, Visão Prática dos Principais Institutos do Direito da Família e das Crianças e Jovens, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 72), concluindo-se pela existência de uma situação de perigo a demandar a aplicação de uma destas medidas, a escolha deverá atender ao conjunto de providências que sejam susceptíveis de concretização efectiva, atentos os meios e recursos disponíveis no momento e local em que são aplicadas, de maneira a imprimir eficácia à intervenção.
A escolha da medida em cada caso concreto deverá, por conseguinte, atender, para além do (i) critério de exequibilidade da medida, acima mencionado, (ii) aos princípios orientadores da intervenção de promoção e protecção, consagrados no art. 4.º da LPCJP, interpretados sempre à luz do superior interesse da criança.
Um desses princípios é, justamente, o princípio da “prevalência da família” (art. 4.º, alínea h), da LPCJP), que postula a primazia de princípio pelas medidas que integrem a criança ou o jovem na sua família biológica ou que promovam a sua adopção. E isto porque “compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens” (art. 1878.º, n.º 1, do Código Civil).
No plano constitucional, a família é reconhecida como elemento fundamental da sociedade, com direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros (art. 67.º da CRP). Por outro lado, segundo o art. 36.º, n.ºs 5 e 6, da CRP, os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos e os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial.
Assim, a intervenção de promoção e protecção, designamente no que diz respeito à escolha da medida de protecção, deve privilegiar a manutenção ou integração da criança ou jovem na família natural, nuclear ou alargada. A medida de confiança a instituição com vista a futura adopção é, assim, uma medida de ultima ratio, aplicável apenas nas situações previstas no art. 1978.º do Código Civil.
Dispõe o referido preceito legal que:
“1. O tribunal, no âmbito de um processo de promoção e proteção, pode confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva de qualquer das seguintes situações:
a) Se a criança for filha de pais incógnitos ou falecidos;
b) Se tiver havido consentimento prévio para a adopção;
c) Se os pais tiverem abandonado a criança;
d) Se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança;
e) Se os pais da criança acolhida por um particular, por uma instituição ou por família de acolhimento tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança.
2. Na verificação das situações previstas no número anterior, o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses da criança.
3. Considera-se que a criança se encontra em perigo quando se verificar alguma das situações assim qualificadas pela legislação relativa à proteção e à promoção dos direitos das crianças.
4. A confiança com fundamento nas situações previstas nas alíneas a), c), d) e e) do n.º 1 não pode ser decidida se a criança se encontrar a viver com ascendente, colateral até ao 3.º grau ou tutor e a seu cargo, salvo se aqueles familiares ou o tutor puserem em perigo, de forma grave, a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança ou se o tribunal concluir que a situação não é adequada a assegurar suficientemente o interesse daquela.”.
Resulta do regime legal acabado de transcrever que a aplicação da medida de confiança a instituição com vista a futura adopção pressupõe sempre a inexistência ou o sério comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação, situação que se presume nas situações objectivas previstas nas diversas alíneas em que se decompõe o n.º 1 da citada disposição legal. Sobre esta matéria, vejam-se, entre outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 27-05-2021 (proc. 2389/15.8T8PRT-D.P1.S1) e de 23-06-2022 (proc. n.º 23290/19.0T8LSB.L1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.
Neste sentido se pronunciaram Helena Bolieiro e Paulo Guerra (A Criança e a Família: uma questão de direito(s), ob. cit., págs. 349 e 350), Maria Clara Sottomayor (“A nova lei da adopção”, in Direito e Justiça, Vol. XVIII, Tomo II, 2004, págs. 244 a 247), Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira (Curso de Direito da Família, Vol. II - Direito da Filiação, Tomo I - Estabelecimento da filiação; adopção, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pág. 278), Tomé de Almeida Ramião (A adopção – regime jurídico actual, Quid Juris, Lisboa, 2005, pág. 56) e Beatriz Borges (Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2011, págs. 148, 171 e 172).
Como este Supremo Tribunal teve já oportunidade de afirmar em acórdão de 14-07-2021 (proc. n.º 1906/20.6T8VCT.G1.S1), consultável em www.dgsi.pt, assim sumariado:
“I - Por ideal que seja a prevalência da família [cfr. art. 4.º, al. h), da LPCJP], o essencial é sempre o interesse superior da criança ou do jovem [cfr. art. 4.º, al. a), da LPCJP], devendo a medida a aplicar ser a necessária e a adequada a salvaguardar a criança ou o jovem do perigo em que se encontra no momento da aplicação da medida [cfr. art. 4.º, al. e), da LPCJP].
II - Para se aferir da existência ou do não comprometimento sério dos “vínculos afectivos próprios da filiação” para os efeitos do n.º 1 do art. 1978.º do CC não basta ver se existe uma ligação afectiva entre o(s) progenitor(es) e a criança; é preciso ver se ela se concretiza em gestos, actos ou atitudes que revelem de que o(s) progenitor(es) têm(tem) não só a preocupação como também a aptidão para assumir plenamente o papel que, por natureza, lhes cabe – o papel de pai(s) da criança.
III - Sempre que os factos demonstrem, seja o desinteresse, seja a falta de capacidade do(s) progenitor(es) para assumir plenamente este papel de pais da criança, é de concluir que não existem ou estão seriamente comprometidos, para os efeitos da norma do art. 1978.º do CC, os “vínculos afectivos próprios da filiação”.”.
No caso dos autos, como se afirmou, está em causa o preenchimento das previsões normativas contidas nas alíneas d) e e) do n.º 1 do art. 1978.º do CC.
De acordo com as considerações constantes do acórdão deste Supremo Tribunal de 27-05-2021 (proc. n.º 2389/15.8T8PRT-D.P1.S1)2, consultável em www.dgsi.pt, o preenchimento da previsão normativa contida na alínea d) do n.º 1 do art. 1978.º do CC:
“[N]ão exige uma verificação de culpa, de vontade consciente ou de imprevisão censurável, por parte dos progenitores, mas antes uma simples situação de impreparação, de falta de aptidão, de inexistência de possibilidade de simbolizar conscientemente a necessidade de criação de vínculos cuidadores, posto que, antes da idade adulta, o ser humano é totalmente dependente de terceiros para sobreviver.” e que “ainda que se considere que o “comprometimento sério dos vínculos afectivos próprios da filiação”, referido no corpo do art. 1978.º, n.º1 CCiv, é o verdadeiro requisito da confiança com vista a futura adopção, apenas indiciado ou presumido pelas previsões das diversas alíneas citadas do normativo, é necessário salientar que esses vínculos afectivos não se constituem como uma abstracção, isto é, “não basta que haja relação afetiva entre pais e filhos, é necessário que esta assuma a natureza de verdadeira relação pai/mãe – filho, com a inerente auto-responsabilização do progenitor pelo cuidar do filho, por lhe dar orientação, estimulá-lo, valorizá-lo, amá-lo e demonstrar esse amor de forma objetiva e constante, de molde que a própria criança encare o progenitor como referência com as referidas caraterísticas; pais são aqueles que cuidam dos filhos no dia a dia, são aqueles que cuidam da segurança, da saúde física e do bem estar emocional das crianças, assumindo na íntegra essa responsabilidade”. [negrito nosso]
Neste sentido, veja-se também, entre outros, o acórdão deste Supremo Tribunal de 13-05-2021 (proc. n.º 2481/17.4T8BRR.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt.
No que concerne à previsão da alínea e) da mesma norma legal, socorremo-nos das palavras de Maria Clara Sottomayor (Código Civil – Livro IV – Direito da Família Anotado, Almedina, Coimbra, 2020, págs. 1110 e 1011):
“A lei não exige que o «manifesto desinteresse» revelado pelos pais se traduza numa ausência completa de visitas à criança acolhida por uma instituição. Tratando-se de uma criança de tenra idade, e tendo em conta o estado de desenvolvimento desta, o julgador pode entender que as visitas esporádicas ou espaçadas, durante os três últimos meses, comprometem seriamente os vínculos afetivos próprios da filiação. Conforme se afirma no Ac. STJ 30/11/2004, «Sendo a família um lugar de afecto, o interesse ou desinteresse dos pais pelos filhos não pode aferir-se exclusivamente por um critério meramente cronológico, traduzido apenas pela existência ou inexistência de uma visita dos primeiros aos segundos em cada três meses». A jurisprudência considera que preenche o conceito de manifesto desinteresse um «contacto periódico com os filhos nas instituições, de forma maquinal e rotineira, não se interessando pelo desenvolvimento da criança nem cuidando das suas necessidades, vendo fisicamente a criança, mas sem esforço para o restabelecimento das condições que permitiriam o seu regresso ao lar». O critério relevante é a qualidade da relação afetiva e não a quantidade das visitas”. [negritos nossos]
Neste âmbito, Helena Bolieiro e Paulo Guerra (ob. cit., págs. 364 e segs.) explicam que “o desinteresse distingue-se do abandono, porquanto este representa um comportamento activo (activo, no afastamento, omissivo, na sua manutenção), traduzindo-se num objectivo, patente e inequívoco afastamento (voluntário ou não), existindo já a quebra do vínculo afectivo da filiação. O desinteresse supõe uma situação omissiva, de não fazer, em que ainda há contacto com a criança, gerando-se a dúvida acerca da manutenção ou não do referido vínculo. Da omissão reiterada à acção de afastamento (afastamento inicial com posterior omissão de contacto com o menor) é uma questão de grau, pelo que havendo dúvida sobre o abandono, dever tratar-se a questão, ou em sede de perigo ou em sede de desinteresse. O perigo omissivo e o desinteresse supõem o contacto com a criança e a manutenção de um certo vínculo que pode estar comprometido. A gravidade do perigo omissivo parece-nos ser, assim, um critério de distinção (…). Mas mais importante é o facto de, na generalidade dos casos, não existir perigo imediato para a criança nos casos da alínea e) do artigo 1978.º, n.º 1, isto porque ela está ao cuidado de uma instituição”. [negrito nosso]
Feito este breve enquadramento teórico, cumpre apreciar o caso dos autos.
2.2. Como já se fez referência, o acórdão recorrido concluiu pela aplicação do regime das alíneas d) e e) do n.º 1 do art. 1978.º do CC e, bem assim, pelo sério comprometimento da relação afectiva entre o progenitor/recorrente e o menor AA, concluindo pela necessidade da aplicação da medida de confiança a instituição com vista a futura adopção.
Ora, em face dos factos dados como provados, não podemos senão concluir pelo preenchimento da previsão normativa contida nas referidas alíneas d) e) do n.º 1 e no n.º 3 do art. 1978.º do CC, em conjugação com o previsto no art. 3.º, n.º 2, alíneas c) e d), da LPCJP.
Vejamos mais detalhadamente.
A este propósito, cumpre realçar a seguinte factualidade dada como provada:
- A criança AA nasceu a ........2019, em ..., e é filho de BB e de CC, a essa data, cada um dos progenitores, respetivamente, com 51 e 33 anos.
- O AA foi acolhido no R...... ..... ........, em ..., onde deu entrada no próprio dia ... de Março de 20211 e onde ainda se encontra.
- Contactado o pai, este deu a sua concordância à aplicação da medida, por entender que, nesse momento não tinha condições para acolher o filho (por estar em processo de mudança de habitação e local de trabalho), mas que o faria logo que a essa situação se concretizasse, pois pretendia acolher o AA.
- A criança passou a receber visitas quer do pai, quer da mãe e companheiro desta, na instituição.
- Volvidos seis meses sobre a data da aplicação da medida, nem a mãe e companheiro, nem o pai tinham criado condições para reintegrar a criança nos respetivos agregados familiares.
- O pai da criança passara a residir em ... (...), onde não tinha qualquer suporte familiar e mantinha-se a trabalhar em Évora, para onde se deslocava diariamente, não tendo disponibilidade para assegurar os cuidados da criança.
- Face à ausência de condições que permitissem o retorno da criança ao meio familiar, a CPCJ propôs aos pais, a continuidade da medida de acolhimento com a intervenção do CAF AP num programa de aquisição de competências parentais, situação a que o pai se opôs, por entender que reunia essas condições, levando a que a CPCJ remetesse o processo a tribunal.
- A 7 de Março de 2023, foram ouvidos os pais e, por se manter inalterada a sua situação, face ao tempo decorrido desde a data do acolhimento, sem que tivessem criado condições para lhe ser entregue, foram elucidados de que a criança podia vir a ser confiada à instituição com vista à sua adoção, tendo os mesmos recusado dar o consentimento.
- O pai confirmou que vivia sozinho, em ..., trabalhava durante o dia, sem contrato e que, se o filho lhe fosse entregue iria para a pré-escola, em ... e poderia ser auxiliado pela avó materna, que trabalha nas limpezas, na Câmara Municipal de ..., onde residia e com quem tinha boa relação, ou então, pela tia materna GG, residente em ....
- À data da audição dos progenitores em sede judicial o progenitor residia sozinho, em ..., numa garagem adaptada a habitação, pela qual paga renda, aparentemente higienizada ao olhar, mas com entulho e perigos para uma criança, cheiro nauseabundo a animal de estimação e a tabaco, a sua situação laboral afirmada é de ser trabalhador como pintor embora não existindo registo de desconto na SS desde 2017, condições que se têm-se mantido inalteradas até à data do debate, tendo o próprio reconhecido não dispor das melhores condições habitacionais e já tendo solicitado habitação social que, segundo afirma, lhe será concedida se tiver aos seus cuidados o filho.
- Na avaliação psicológica realizada ao pai, conclui-se que este nunca prestou cuidados ao AA sozinho e de forma autónoma, nem consegue identificar as necessidades de uma criança da sua idade, evidenciando limitações quanto à capacidade de satisfazer as suas necessidades de forma adequada (não reconhece que a criança necessita de cuidados diários e supervisão diária, que o mesmo não lhe consegue proporcionar, por não ter suporte familiar, nem tem condições habitacionais adequadas).
- Da avaliação psiquiátrica ao progenitor concluiu-se que tem uma capacidade incerta para reconhecer e satisfazer as necessidades da criança; é apontada uma impulsividade latente e períodos de maior exaltação potencial; suspeitas de abuso de álcool; tem uma tendência para negar tudo o que seja negativo e para ver a realidade de acordo com os seus desejos e não como ela é; não tem qualquer experiência em cuidados de crianças e pouco conhecimento de todas as necessidades que envolvem o adequado desenvolvimento físico, psicológico e social de uma criança com a idade do AA; tem fraca capacidade de insight relativamente a reconhecer as suas áreas problemáticas mostrando tendência para a negação; mostrou algum potencial de mudança mas de forma insuficiente para que os factores de risco seja afastados, vendo-se com reserva o exercício da parental idade.
- Ao contrário do afirmado pelo progenitor, nem a avó nem a tia materna do AA apresentam qualquer vontade de ser um suporte familiar de apoio à criança.
- A avó materna não se disponibilizou para acolher a criança, nem para dar qualquer suporte a qualquer dos pais, alegando não saber da filha há muito tempo e não ter condições para cuidar do neto, tendo inclusivamente, verbalizado à técnica da EMAT: "não quero cá o gaiato; eles é são os pais e eles é que tem que resolver o assunto".
- O mesmo sucedeu com a tia GG, que ao ser contactada pela EMAT, se manifestou muito incomodada, dizendo que o pai nunca a abordara sobre o assunto e apesar de ter conhecimento que o AA estava na instituição, não estava disponível para assumir qualquer responsabilidade.
- O progenitor não tem suporte familiar.
- Quando entrou no R...... ..... ........, o AA tinha atraso global no desenvolvimento, por falta de estimulação e negligência por parte dos pais na prestação de cuidados básicos essenciais e que lhe advinham desde o seu nascimento.
- O AA necessitou de várias terapias a fim de ser colmatado esse atraso, as quais lhe têm sido proporcionadas pela instituição que o acolheu, apresentado uma evolução gradual muito positiva a nível de todas as áreas do seu desenvolvimento global.
- O progenitor, por a isso ter sido interpelado nos autos, passou a ser acompanhado pela E... devido aos hábitos aditivos (consumos de álcool).
- Desde que foi acolhido, não recebeu visitas ou contactos de qualquer familiar materno ou paterno.
- O progenitor visitou o AA a 8.4.2022, 22.4.2022, 30.5.2022, 8.6.2022, 11.7.2022, 27.7.2022, 26.8.2022, 6.9.2022, 27.10.2022, 19.1.2023, 6.3.2023, 30.5.2023, 22.6.2023, 14.7.2023, 4.8.2023, 25.8.2023, 4.10.2023, 19.10.2023, 17.11.2023, 15.12.2023, tendo feito alguns contactos telefónicos.
- Os convívios supervisionados com os progenitores foram de fraca qualidade de interação, tendo de existir intervenção técnica para regular a criança nos períodos em que está com a mãe que revela comportamento descontextualizado e imaturidade e, no caso do progenitor, sem que este consiga ter iniciativa e capacidade para estimular, desenvolver e controlar as brincadeiras da criança, não existindo qualquer dificuldade na separação após a realização do convívio.
- O progenitor não mostrou preocupação em se inteirar junto da CA das necessidades da criança, rotinas, estado de saúde e desenvolvimento.
Como tem sido entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, não basta que o progenitor tenha uma mínima ligação afectiva com o filho, sendo igualmente necessário que o progenitor demonstre e concretize em actos e gestos que tem aptidão para desempenhar o papel de pai, demonstre preocupação, afecto e adeque a sua vida e os seus comportamentos às necessidades que o filho apresenta.
Ora, no caso que nos ocupa, o menor AA encontra-se em situação de acolhimento há mais de dois anos. Neste período temporal, se é certo que o progenitor o foi visitar cerca de 20 vezes, o que poderá ser compreensível face à distância que separa a sua residência da casa de acolhimento e às despesas associadas a esta deslocação, a verdade é que não resulta dos factos provados a realização de qualquer investimento sério ao nível da aquisição de competências parentais e ao nível da melhoria das condições de vida do progenitor.
No plano da aquisição de competências parentais, cumpre recordar que, conforme resulta dos autos, foi dada ao progenitor a possibilidade de participar em programa destinado à obtenção de capacidades parentais, tendo este desperdiçado tal oportunidade, recusando-a.
Ora, o acesso a esta formação era essencial e necessário, já que, conforme resulta dos autos, à data do acolhimento, “o AA tinha atraso global no desenvolvimento, por falta de estimulação e negligência por parte dos pais na prestação de cuidados básicos essenciais e que lhe advinham desde o seu nascimento”, o que se integra na previsão do art. 1978.º, n.º 1, alínea d), do CC.
Este atraso global no desenvolvimento decorreu, assim, da falta de prestação de cuidados básicos e necessários à saúde e desenvolvimento do AA, razão pela qual há que concluir que também o progenitor comprometeu, com o seu comportamento, o desenvolvimento saudável e adequado desta criança.
Neste particular, não é de somenos importância uma referência aos relatos de ingestão de bebidas alcoólicas, o que, por si só, configura um comportamento capaz de colocar em causa a segurança e saúde do AA.
Por todos estes motivos, o acesso a um programa para a aquisição de competências parentais seria essencial para permitir equacionar a aplicação de uma medida em meio natural de vida.
Como é evidente, esta debilidade ao nível das competências parentais impossibilitou um efectivo e profícuo investimento do progenitor na relação com o seu filho. De facto, mesmo durante o período de institucionalização e apesar do número não negligenciável de visitas realizadas, o progenitor continuou a demonstrar uma total falta de capacidade de interacção adequada com o AA e uma total ausência de preocupação com as necessidades da criança, as suas rotinas, o seu estado de saúde e o seu desenvolvimento.
Todos estes elementos concorreram para a inexistência de laços afectivos entre ambos, de que é reflexo a ausência de qualquer dificuldade no momento da separação após a realização das visitas. A inexistência de qualquer ansiedade no momento da separação é demonstrativa do desapego sentido pelo AA face ao seu progenitor.
Isto, por um lado.
Por outro lado, no que concerne ao investimento para a obtenção de melhores condições de vida, dos factos provados não resulta que o progenitor tenha feito, ao longo destes últimos dois anos, um qualquer esforço no sentido de reunir as condições necessárias ao retorno do AA a casa.
Ora, não sendo este Supremo Tribunal insensível às dificuldades económicas sentidas pelo progenitor e ciente que está das condicionantes que muitos portugueses sentem com a excessiva onerosidade que, nos dias que correm, surge associada à habitação, a verdade é que, volvidos mais de dois anos de institucionalização desta criança, o progenitor continua a residir numa garagem – adaptada para habitação – que não revela condições mínimas para acolher, em condições de segurança, o AA.
De resto, ao contrário do que foi alegado, não resulta dos autos que o progenitor tenha solicitado auxílio às entidades oficiais no sentido de aceder a uma habitação condigna, sendo certo que continua a revelar um quadro laboral instável.
Ora, o interesse de um progenitor pelo seu filho não se basta com a realização de visitas desacompanhada de qualquer outro investimento em aspectos estruturais da vida; isto para dizer que se verifica manifesto desinteresse sempre que um progenitor, muito embora realize visitas ao seu filho na casa de acolhimento, nada mais faça no sentido de reunir condições para recuperar o seu filho (cfr. art. 1978.º, n.º 1, alínea e), do CC).
Em face do exposto, é manifesto que o progenitor pôs em causa a saúde e desenvolvimento do AA e que revelou um desinteresse pelo seu filho, durante, pelo menos, todo o período de institucionalização desta criança, pelo que se mostra igualmente preenchido o pressuposto temporal previsto na alínea e) do n.º 1 do art. 1978.º do CC.
Não se mostram, assim, reunidas quaisquer condições para assegurar o regresso do AA a casa.
De resto, o progenitor reconhece isto mesmo ao afirmar que tem um casal de amigos disponíveis para acolher o AA, pessoas estas que não se encontram sequer referenciadas nos autos e nunca visitaram esta criança.
Ora, à luz do tempo da criança e tendo em consideração que urge encontrar um verdadeiro lar para o AA, não tem qualquer cabimento eternizar a medida de acolhimento residencial, com aplicação de novas medidas, novos períodos de transição e realização de outras diligências, que apenas vão aumentar o sofrimento desta criança que anseia por uma família capaz de a acolher.
Como é evidente, a situação de acolhimento residencial não configura, em si mesma, um projecto de vida aceitável para uma criança com quase cinco anos de idade, tratando-se apenas de uma solução temporária e transitória.
O tempo relevante é o da criança e não o do progenitor.
Nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal, de 18-10-2018 (proc. n.º 533/14.1TBPFR.P2.S1), disponível em www.dgsi.pt, transponíveis, com as devidas adaptações, para o caso dos autos: “Se nestes últimos quatro anos em que está pendente o processo judicial o futuro das crianças tem estado em suspenso, a verdade é que o relógio biológico está em constante movimento, urgindo que se encontre uma solução estável enquanto a idade dos menores ainda o permitir, a qual passará pela passagem a uma outra importante fase, qual seja, a da confiança dos menores com vista à sua futura (e eventual) adoção.”.
É verdade que a medida de confiança com vista à futura adopção constitui a ultima ratio das medidas de promoção e protecção que o nosso ordenamento acolhe, mas, em face do demonstrado comprometimento dos vínculos afectivos do progenitor com o AA e dos demais aspectos a que se fez referência supra, não se perspectiva que, num futuro próximo, seja possível reverter esta situação.
Não existem, assim, quaisquer laços afectivos entre este progenitor e o AA, sendo manifesto que, ainda que a presente decisão cause sofrimento ao progenitor, não se cuida nos autos de zelar pelos seus interesses ou de terceiros, mas sim pelos interesses do AA, a única pessoa a favor do qual o presente processo de promoção e protecção foi instaurado.
Ademais, não se perfilam, na família alargada quaisquer alternativas viáveis e que se mostrem preferíveis face à medida mais gravosa.
Assim, tal como decorre da motivação do acórdão recorrido, entendemos que a única medida adequada, que respeita os direitos do AA e alcança a realização do seu superior interesse é a de confiança a instituição com vista a futura adopção, já que estão irremediavelmente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação.
Saliente-se que esta medida tem como finalidade primeira a defesa da criança, evitando que se prolonguem situações em que os menores sofram as carências derivadas da ausência de uma relação familiar com um mínimo de qualidade, visando criar as condições para que, em tempo útil – atendendo ao “tempo da criança” – se encontre um projecto de vida que permita o seu integral desenvolvimento.
Termos em que, tudo visto e ponderado, se conclui que o interesse desta criança impõe, por verificação da previsão do art. 1978.º, n.º 1, alíneas d) e e), e n.º 3 do CC, que se lhe aplique, a seu favor, a medida de promoção e protecção de confiança com vista a futura adopção, prevista no art. 35.º, n.º 1, alínea g), da LPCJP.
V – Decisão
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 19 de Setembro de 2024
Maria da Graça Trigo (relatora)
Paula Leal de Carvalho
Catarina Serra
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1. Aprovada, para ratificação, pela Assembleia da República em 8 de Junho de 1990 e ratificada por Decreto do Presidente da República de 12 de Setembro do mesmo ano.
2. Relatado pela Conselheira, 2ª Adjunta no presente acórdão.