I - A circunstância de alguém ter interesse no desfecho do processo não lhe retira em abstracto, enquanto legal meio de prova, credibilidade, nem pode equivaler a uma menorização da relevância da sua narrativa, apenas impõe um cuidado acrescido na avaliação da sua isenção e credibilidade.
II - Se os factos, consubstanciados num único episódio, não revelam que tenha sido por força de relacionamento onde o arguido surge como figura dominadora, controladora, humilhadora, que coloca a visada numa posição de fragilidade e subjugação perante si, que a ofensa se produziu, não se mostra correcto o enquadramento da conduta na previsão do crime de violência doméstica, antes devendo ser reconduzido, no caso concreto, ao crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.º e 145.º, n.ºs 1, al. a) e 2, ex vi art. 132.º, n.º 2, al. b), todos do CPenal.
III - Se no decurso do mesmo episódio, o ofendido, menor de 13 anos, vê o arguido a desferir dois socos na sua mãe e após interpela aquele sobre o que se passou, sendo-lhe desferido um estalo na cara, a única leitura que se pode fazer, independentemente da pressão exercida ao ser desferia a estalada, é que ocorreu ali um acto de agressão, um ataque ao corpo do ofendido, que consubstancia em concreto um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º do CPenal.
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo local Criminal da Maia – Juiz 2
Sumário:
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Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular n.º 104/21.6PAMAI, a correr termos no Juízo Local Criminal da Maia, Juiz 2, por sentença de 14-12-2023, foi decidido:
«A – julgar parcialmente procedente por, nessa medida, provada a acusação deduzida, e, em consequência:
I. condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo art. 152º, nºs. 1, alínea b), 2, alínea a) Código Penal, na pena parcelar de dois anos e dois meses de prisão;
II. condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física qualificado, previsto e punível pelos arts. 143º, nº 1, 145º, nºs. 1, alínea a) e 2 e 132º, nº 2, alínea c), todos do Código Penal, na pena parcelar seis meses de prisão;
III. em cúmulo das penas parcelares impostas em I e II, condenar o arguido AA na pena única de dois anos e quatro meses de prisão;
IV. nos termos do disposto nos arts. 52º, nºs. 2, proémio e 3, 53º, nº 1 e 54º, nº 3, proémio do Código Penal e 34º-B, nº 1 da Lei 112/2009, de 16 de setembro do Código Penal, suspende-se a execução da pena pelo período de dois anos e quatro meses, sendo a suspensão acompanhada de regime de prova, incluindo este, como regra de conduta, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência e local de trabalho, a proibição de contactos, por qualquer meio;
V. condenar o arguido AA, nos termos do disposto no art. 152º, nºs. 4 e 5 do Código Penal, na pena acessória de proibição de contacto com a vítima BB pelo período de dois anos e dois meses, incluindo o afastamento da sua residência;
VI. condenar, ainda, o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em duas ucs, nos termos do disposto nos arts. 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais, por referência à tabela III anexa e 513º, nºs. 1 a 3 do Código de Processo Penal.»
«A. SALVO O DEVIDO RESPEITO, A CONDENAÇÃO DO ARGUIDO PELA PRÁTICA DE (I) UM CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E DE (II) UM CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA, ALEGADAMENTE PERPETRADOS CONTRA A SUA EX-COMPANHEIRA BB E O FILHO DESTA, CC, BASEIA-SE, ALÉM DAS QUESTÕES DE SUBSUNÇÃO, EM ERROS NOTÓRIOS NA APRECIAÇÃO DA PROVA E CONTRADIÇÕES ENDÓGENA SAO NÍVEL DA FUNDAMENTAÇÃO E DA DECISÃO;
B. DE FACTO, A PRÓPRIA SENTENÇA RECORRIDA RECONHECE A FALTA DE CREDIBILIDADE DOS TESTEMUNHOS DOS OFENDIDOS BB E CC, NELA SE RESSALTANDO VÁRIAS CONTRADIÇÕES ENTRE ESTES DEPOIMENTOS (DE RESTO RELATIVAS A FACTOS DA MAIS CENTRAL RELEVÂNCIA E DE INEGÁVE LGRAVIDADE QUE HAVIAM IMPUTADO AO ARGUIDO), BEM COMO AS CONTRADIÇÕES ENTRE ESTES DEPOIMENTOS E A RESTANTE PROVA PRODUZIDA, O QUE LEVOU À INSERÇÃO DESSES FACTOS NA MATÉRIA NÃO PROVADA – CFR. “DISCUSSÃO PROPRIAMENTE DITA DOS MEIOS DE PROVA”, QUANTO AOS FACTOS NÃO PROVADOS N.º 2, 3, 4, 8, 9, 11.
TODAVIA,
C. A MESMA SENTENÇA RECORRIDA VEM A SUSTENTAR A CONDENAÇÃO DO ARGUIDO UNICAMENTE NOS RELATOS, AINDA ASSIM CONTRADITÓRIOS, DESTES MESMOS DOIS OFENDIDOS, NA ESCASSA MATÉRIA EM QUE APARENTAM CONFLUIR.
ORA,
D. CONSIDERANDO AS CONTRADIÇÕES EVIDENCIADAS E TRANSCRITAS EM SEDE DE MOTIVAÇÃO, QUE SÃO EVIDENTES E IMANENTES AOS DEPOIMENTOS PRESTADOS, É ABSOLUTAMENTE CONTRÁRIO ÀS REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM QUE SE POSSA ATRIBUIR CREDIBILIDADE À PARCA PARCELA DOS DEPOIMENTOS QUE VAGAMENTE COINCIDE ENTRE OS SI – E EM TAL BASE PROBATÓRIA SUSTENTAR POR INTEIRO A CONDENAÇÃO DO ARGUIDO. DE FACTO,
E. ENTRE MUITAS OUTRAS CONTRADIÇÕES ESCALPELIZADAS, ENQUANTO QUE A OFENDIDA AFIRMA QUE O FILHO CC NÃO TESTEMUNHOU AS ALEGADAS AGRESSÕES VERTIDAS NO ARTIGO 10 DA FACTUALIDADE PROVADA, O OFENDIDO CC AFIRMA TÊ-LAS TESTEMUNHADO,
F. E ENQUANTO O OFENDIDO CC RELATA QUE O ARGUIDO LHE DEU UM “ESTALO”, SEM QUALQUER ESPECIFICAÇÃO DA INTENSIDADE OU CONSEQUÊNCIAS DO MESMO, A OFENDIDA NADA REFERE QUANTO A ALEGADO ESTALO.
G. SE É CERTO QUE O JUÍZO DE CREDIBILIDADE DE UMA TESTEMUNHA ESTÁ INTIMAMENTE LIGADO COM A IMEDIAÇÃO, É TAMBÉM INEGÁVEL QUE ESSE JUÍZO DEVE SUSTENTAR-SE EM CRITÉRIOS OBJETIVOS, DISCERNÍVEIS E SINDICÁVEIS, QUE NÃO OFENDAMAS REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM – NESTE SENTIDO, O AC. TRG DE 27.04.2006.
BEM ASSIM,
H. É PERFEITAMENTE LÍCITO AO DOUTO TRIBUNAL DE RECURSO AQUILATAR SE O TRIBUNAL RECORRIDO “RECORREU ÀS REGRAS DE EXPERIÊNCIA E APRECIOU A PROVA DE FORMA OBJECTIVA E MOTIVADA, SE NA SENTENÇA SE SEGUIU UM PROCESSO LÓGICO E RACIONAL DE APRECIAÇÃO DA PROVA, OU SEJA, SE A DECISÃO RECORRIDA NÃO SE MOSTRA ILÓGICA, ARBITRÁRIA OU NOTORIAMENTE VIOLADORA DAS REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM” – NESTE SENTIDO, VIDE, ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA DE 20/02/2019.
I. NÃO SE IGNORANDO O PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA E AS VANTAGENS DA IMEDIAÇÃO NA APRECIAÇÃO DA CREDIBILIDADE DAS TESTEMUNHAS, RESULTA EVIDENTE NA PRÓPRIA SENTENÇA QUE AS CONTRADIÇÕES ENTRE OS DEPOIMENTOS DE OFENDIDA E OFENDIDO SÃO NÍTIDAS E EXCESSIVAS, SEM QUE NUNCA SE TENHA EXPLICADO, NA MOTIVAÇÃO DA DITA SENTENÇA, ACERCA AS RAZÕES QUE LEVARAM O TRIBUNAL A CONFERIR CREDIBILIDADE AOS RELATOS DE DUAS TESTEMUNHAS QUE TÃO EVIDENTEMENTE EMPOLARAM, DETURPARAM, OMITIRAM E FALTARAM À VERDADE EM RELAÇÃO A FACTOS DA MAIS CENTRAL RELEVÂNCIA, DEVENDO ASSIM SER DADO COMO NÃO PROVADO O VERTIDO NOS FACTOS 8 A 12 DA FACTUALIDADE PROVADA, POR INEXISTÊNCIA DE PROVA CREDÍVEL QUE OS SUSTENTE E POR APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO.
J. ALÉM DA SUPRESSÃO DOS FACTOS PROVADOS 8 A 12 E CONCOMITANTE SUPRESSÃO DOS FACTOS PROVADOS N.º 13 A 19 (i.e. transferência para a factualidade não provada), DEVE AINDA PROCEDER-SE, PELAS RAZÕES ELENCADAS NA MOTIVAÇÃO SUPRA, À MODIFICAÇÃO DO TEOR DO FACTO PROVADO N.º 6, E À INSERÇÃO NA MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA DO FACTO N.º 7.
K. PELAS RAZÕES ELENCADAS NA MOTIVAÇÃO SUPRA, DEVERÃO SER ADITADOS À MATÉRIA DE FACTO PROVADAOS SEGUINTES FACTOS: “O ARGUIDO TERMINOU A RELAÇÃO E SAIU DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA NO DIA 20 DE JANEIRO DE 2021”, E “A OFENDIDA PROCUROU REATAR A RELAÇÃO COM O ARGUIDO, CONTACTANDO-O VÁRIAS VEZES”.
NO QUE AO DIREITO RESPEITA,
L. SENDO EVIDENTE QUE A PROCEDÊNCIA DA MODIFICAÇÃO FACTUAL ORA REQUERIDA FARIA SOÇOBRAR A POSSIBILIDADE DE QUALQUER SUBSUNÇÃO JURÍDICO-CRIMINAL, DEVE AINDA, POR CAUTELA DE PATROCÍNIO, SALIENTAR-SE QUE, INDEPENDENTEMENTE DE QUALQUER MODIFICAÇÃO DA BASE FACTUAL, AS CONDUTAS IMPUTADAS AO ARGUIDO NÃO SÃO SUBSUMÍVEIS AOS TIPOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA.
SE NÃO VEJAMOS,
M. NO CASO SUB JUDICE E COM RELEVÂNCIA PARA A SUBSUNÇÃO AO TIPO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, FICARAM PROVADOS ESSENCIALMENTE TRÊS GRUPOS DE FACTOS:
a. QUE O ARGUIDO TERÁ DIRIGIDO “COM UMA FREQUÊNCIA QUE NÃO POSSÍVEL APURAR EM CONCRETO, EXPRESSÕES COMO «VOCÊS SÃO MESMO DE CHELAS»” (FP N.º 4);
b. UM EPISÓDIO OCORRIDO EM ..., QUE APENAS RELATA UMA DISCUSSÃO E UMA CONDUTA DA OFENDIDA DE RETIRAR O TELEMÓVEL AO ARGUIDO, TENDO-SE DADO COMO NÃO PROVADO QUE A ISSO SE TENHA SUCEDIDO QUALQUER AGRESSÃO POR PARTE DO ARGUIDO (FP N.º 6 E FNP N.º 3);
c. UM EPISÓDIO OCORRIDO NO DIA 16 DE JANEIRO DE 2021, NO QUAL SE DÁ COMO PROVADO QUE A OFENDIDA COMEÇOU POR DIZER AO ARGUIDO QUE O ARROZ ERA MERDA, TENDO DEPOIS CONFRONTADO O ARGUIDO POR TER DEITADO FORA O ARROZ E TENDO, DE SEGUIDA, AMEAÇADO O ARGUIDO QUE LHE ATIRARIA COM UM OBJETO. A SENTENÇA IMPUTA AO ARGUIDO A CONDUTA DE, NESTA SEQUÊNCIA, DESFERIR DOIS SOCOS NA OFENDIDA, DE QUE NÃO RESULTARAM QUAISQUER LESÕES PROVADAS. ORA,
N. COMO JÁ EXPENDIDO, A ÚNICA FACTUALIDADE COM RELEVÂNCIA PENAL ABSTRATA ENCONTRA-SE VERTIDA NOS FACTOS 8 A 12 DA ACUSAÇÃO, ISTO É, ESTAMOS PERANTE UM EPISÓDIO ÚNICO E ESPORÁDICO DE ALEGADA VIOLÊNCIA FÍSICA INSERIDA NUMA SITUAÇÃO DE ELEVADA CONFLITUOSIDADE E AGRESSIVIDADE PERPETRADA PRIMARIAMENTE PELA OFENDIDA E QUE REPRESENTOU A RUTURA FINAL DA RELAÇÃO ENTRE OFENDIDA E ARGUIDO, POR INICIATIVA DESTE – SENDO CERTO QUE TAL FACTUALIDADE NÃO É SUBSUMÍVEL AO TIPO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA POR VÁRIAS ORDENS DE RAZÕES.
O. COMO RESULTA DA AMPLA JURISPRUDÊNCIA CITADA NA MOTIVAÇÃO, «“ESSENCIAL É QUE OS COMPORTAMENTOS ASSUMAM UMA GRAVIDADE TAL QUE JUSTIFIQUE A SUA AUTONOMIZAÇÃO RELATIVAMENTE AOS ILÍCITOS QUE AS CONDUTAS INDIVIDUALMENTE CONSIDERADAS POSSAM INTEGRAR”, E SE NÃO NECESSITA DE UMA REITERAÇÃO (FACE À NORMA LEGAL) NÃO PRESCINDE DE UMA GRAVIDADE QUE VÁ PARA ALÉM E ULTRAPASSE A OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA» - CFR. AC. TRP DE 12.10.2016 E AC. TRG DE 10.07.2014. ORA,
P. POR UM LADO, COMO SE DISSE, A SENTENÇA RECORRIDA É OMISSA EM RELAÇÃO A ESTE ELEMENTO QUALIFICADOR ESSENCIAL À SUBSUNÇÃO OPERADA, SENDO NULA POR FORÇA DO DISPOSTO NO ARTIGO 379.º, N.º 1, AL. C), CPP, E, ALÉM DISSO, A MESMA SENTENÇA NÃO DÁ COMO PROVADO QUALQUER FACTO DE QUE POSSA RETIRAR-SE ESSE ELEMENTO QUALIFICADOR, POIS
Q. AS CONDUTAS DADAS COMO PROVADAS –ALÉM DE NÃO REFLETIREM A VERDADE DOS FACTOS – NÃO SÃO APTAS A PREENCHER O TIPO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA EXATA MEDIDA EM QUE NÃO FORMAM, NO SEU TODO DE CINCO ARTIGOS (FP4, E 8 A12), UMA CONDUTA TÍPICA DIRIGIDA À SUBJUGAÇÃO OU ANULAÇÃO DA AUTONOMIA E DIGNIDADE HUMANA DA OFENDIDA.
R. SENDO CERTO QUE A TOTAL AUSÊNCIA DE UMA RELAÇÃO DE DOMINAÇÃO OU SUBJUGAÇÃO DA OFENDIDA FICA EVIDENTE PERANTE:
d. O FACTO DE TER SIDO O ARGUIDO QUEM PÔS IMEDIATO TERMO À RELAÇÃO APÓS O EPISÓDIO DE DIA 16 DE JANEIRO DE 2021, NÃO TENDO CEDIDO AOS CONTACTOS DA OFENDIDA NO SENTIDO DE REATAR A REFERIDA RELAÇÃO;
e. O FACTO DE O ARGUIDO TER SAÍDO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA, DEIXANDO O SEU USO AO AGREGADO PARA MINIMIZAÇÃO DO IMPACTO DA SEPARAÇÃO NO MESMO;
f. O FACTO DE A OFENDIDA TER INCORRIDO EM VÁRIOS DE COMPORTAMENTOS DE ÍNDOLE AGRESSIVA, FACTOS DADOS COMO PROVADOS, COMO QUE A OFENDIDA:
i. TENTOU “RETIRAR O TELEMÓVEL” AO ARGUIDO NO EPISÓDIO RELATADO NO PONTO 6 DA FACTUALIDADE PROVADA, SENDO CERTO QUE O ARGUIDO SE ENCONTRAVA APENAS A FALAR COM O CONTABILISTA DO AGREGADO;
ii. RESPONDEU “É MERDA” À PERGUNTA DO ARGUIDO ACERCA DO ARROZ QUE SE ENCONTRAVA NO FOGÃO (FP N.º 23);
iii. AMEAÇOU O ARGUIDO QUE LHE ATIRARIA COM UM OBJETO PARA “SE DEFENDER” DE PALAVRAS QUE O ARGUIDO ALEGADAMENTE PROFERIA NO DIA 16 DE JANEIRO DE 2021 (FP N.º 24).
S. RESULTA TAMBÉM NÍTIDO QUE, MESMO TENDO POR FACTUAL O EPISÓDIO VERTIDO NOS PONTOS 8 A 11 DA FACTUALIDADE PROVADA, O MESMO NÃO CORRESPONDERIA A QUALQUER TENTATIVA DE O ARGUIDO SUBJUGAR A OFENDIDA NO ÂMBITO DA RELAÇÃO QUE OS UNIA, RELAÇÃO A QUE O PRÓPRIO ARGUIDO PÔS TERMO DE IMEDIATO, PELO CONTRÁRIO, ESSE EPISÓDIO ENCONTRA-SE INSERIDO NUM MOMENTO DE RUTURA TOTAL DA RELAÇÃO DOS INTERVENIENTES, EPISÓDIO MARCADO (ATÉ CRIADO) POR UMA ATITUDE DE PROFUNDA AGRESSIVIDADE POR PARTE DA OFENDIDA. ASSIM,
T. A CONDUTA DESCRITA NÃO INTEGRA O CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, QUER PORQUE NÃO SE ENCONTRAM REUNIDOS OS ELEMENTOS OBJETIVOS INERENTES AO TIPO, QUER POR FORÇA DA COMPROVADA EXISTÊNCIA DE “ATOS AGRESSIVOS RECÍPROCOS, NA MESMA OCASIÃO E COM IGUAL OU IDÊNTICA GRAVIDADE”, SITUAÇÃO EM QUE “O BEM JURÍDICO TUTELADO PELA NORMA INCRIMINATÓRIA NÃO É AFETADO, NÃO TRADUZINDO ESSAS AÇÕES TRATAMENTO DESUMANO E DEGRADANTE”. – NESTE SENTIDO, VIDE DOUTO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO DE 09.05.2018.
U. QUANTO AO ALEGADO CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA DO OFENDIDO CC, E COMO SE DISSE, A PROVA DO MESMO NÃO PODE SUSTENTAR-SE NOS DEPOIMENTOS MANIFESTAMENTE CONTRADITÓRIOS DOS OFENDIDOS. MAS, MESMO QUE ASSIM NÃO FOSSE, O OFENDIDO CC NUNCA REFERIU AO TRIBUNAL QUE O “ESTALO” QUE LHE FOI DADO LHE TENHA CAUSADO QUALQUER DOR OU SEQUER DESCONFORTO FÍSICO, NEM DEU QUALQUER INDICAÇÃO ACERCA DA INTENSIDADE DO MESMO OU DE CONSEQUÊNCIAS FÍSICAS COMO VERMELHIDÃO – FP º 12.
V. ISTO É, INEXISTEM ELEMENTOS PROBATÓRIOS QUE PERMITAM AQUILATAR SE ESTE “ESTALO” ATINGIU, SEQUER, O PATAMAR MÍNIMO DE PUNIBILIDADE, ISTO É, A DIGNIDADE PENAL DE QUE DEPENDE A TIPICIDADE,
ASSIM,
W. O ARGUIDO NUNCA VIOLOU A INTEGRIDADE FÍSICA DO OFENDIDO CC OU LHE CAUSOU QUAISQUER DORES E A FACTUALIDADE PROVADA, ENQUANTO TAL, NÃO PERMITE AFIRMAR A RELEVÂNCIA PENAL E CONSEQUENTE TIPICIDADE DA CONDUTA, DEVENDO O ARGUIDO SER ABSOLVIDO DESSE CRIME.
X. POR MAIORIA DE RAZÃO, FICA INEQUIVOCAMENTE POR PREENCHER O REQUISITO DA ESPECIAL CENSURABILIDADE DE QUE DEPENDE A QUALIFICAÇÃO DO CRIME, NOS TERMOS DOS ARTIGOS 145.º, N.º 1, ALÍNEA A), E 132.º, N.º 2, ALÍNEA C), DO CÓDIGO PENAL, POIS RIGOROSAMENTE NADA PERMITE AFIRMAR A ESPECIAL CENSURABILIDADE DE UM ALEGADO ESTALO, DE QUE NEM VERMELHIDÃO OU DORES RESULTARAM PROVADOS, E QUE ALEGADAMENTE OCORRIDO NUM MOMENTO DE ELEVADA TENSÃO FAMILIAR QUE PRECEDEU A TOTAL RUTURA DO AGREGADO, COM A SAÍDA DE CASA DO ARGUIDO.
ACRESCE QUE,
Y. NA SEQUÊNCIA DA SEPARAÇÃO, FOI ACORDADA EM SEDE DE REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS A RESIDÊNCIA ALTERNADA DO FILHO MENOR DE ARGUIDO E OFENDIDA, DD, SENDO QUE NA PRÓPRIA SENTENÇA RECORRIDA SE DEIXOU VERTIDO QUE “ARGUIDO E OFENDIDA TÊM SIDO CAPAZES DE MANTER UMA COMUNICAÇÃO CORDIAL, RESTRITA A ASPETOS RELACIONADOS COM O SUPERIOR INTERESSE DO FILHO EM COMUM”.
NO ENTANTO,
Z. O TRIBUNAL A QUO OPTOU POR APLICAR A SANÇÃO ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONTACTOS COM A OFENDIDA POR QUALQUER VIA, DESCONSIDERANDO DESSE MODO O IMPACTO ABSOLUTAMENTE NEFASTO QUE TAL MEDIDA TERIA NA RELAÇÃO DE CO-PARENTALIDADE E RESIDÊNCIA ALTERNADAQUE TEM SIDO PACÍFICA ENTRE ARGUIDO E OFENDIDA E AS RESPETIVAS CONSEQUÊNCIAS PARA O FILHO DE AMBOS, DD.
AA. DE RESTO, SENDO QUE A PRÓPRIA SENTENÇA QUE JUSTIFICA A DESNECESSIDADE DE MEIOS DE CONTROLO À DISTÂNCIA COM “A INEXISTÊNCIA DE OCORRÊNCIAS SUBSEQUENTES ENTRE ARGUIDO E VÍTIMA”, E SENDO CERTO QUE A CONDUTA IMPUTADA AO ARGUIDO NÃO REVESTE A NECESSÁRIA GRAVIDADE OU QUAISQUER INDÍCIOS DE QUE SEJA NECESSÁRIA OU PROPORCIONAL A PROTEÇÃO ADICIONAL DA VÍTIMA,
BB. E SENDO TAMBÉM QUE O ARGUIDO NUNCA PROCUROU A OFENDIDAA NÃO SER NO QUE FOSSE ESTRITAMENTE NECESSÁRIO AO SUPERIOR INTERESSE DO FILHO CUJA GUARDA PARTILHAM SEM INCIDENTES, REVELA-SE DE MODO INEQUÍVOCO QUE NÃO É ESSENCIAL À PROTEÇÃO DA OFENDIDA A IMPOSIÇÃO DE TAL MEDIDA, CUJOS EFEITOS NEFASTOS PARA O INTERESSE DO MENOR SE SUBLINHAM E REITERAM, REQUERENDO-SE A REVOGAÇÃO DA PENA ACESSÓRIA DE AFASTAMENTO DO ARGUIDO DA VÍTIMA, DA SUA RESIDÊNCIA E LOCAL DE TRABALHO E PROIBIÇÃO DE CONTACTOS, POR QUALQUER MEIO – BEM COMO DA REFERIDA CONDIÇÃO AO REGIME DE PROVA – POR VIOLAÇÃO DAS CONDIÇÕES DOS ARTIGOS 152.º, N.º 4 E 5 DO CÓDIGO PENAL E 34.º-B, N.º 1, DA LEI 112/2009, DE 16 DE SETEMBRO.»
O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência e pela manutenção da decisão recorrida.
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
- Erro de julgamento em sede de matéria de facto; e
- Erro de julgamento em sede de direito - qualificação jurídica e pena acessória/condição de afastamento.
«II. Fundamentação
Factualidade provada e não provada
Dos factos vertidos na acusação, na contestação e bem assim dos que resultaram da discussão da causa, mostra-se provado, com relevo para a respectiva decisão, que:
1. O arguido manteve com a vítima BB uma relação amorosa, como se de marido e mulher se tratasse, partilhando leito, mesa e habitação, durante cerca de quatro anos e até janeiro de 2021, com interregnos;
2. Dessa união nasceu DD, a ../../2016;
3. O casal fixou residência na Rua ..., ..., na ... sendo que do agregado familiar fazia ainda parte CC, nascido a ../../2007 e filho da vítima BB;
4. Desde 30 de agosto de 2019, o arguido começou a dirigir à vítima BB, com uma frequência que não foi possível apurar em concreto, expressões como “vocês são mesmos de Chelas”;
5. Em data não concretamente apurada, mas durante o primeiro confinamento decretado pela COVID 19, o agregado familiar, acompanhado pela irmã da vítima, mudaram-se na habitação dos pais do arguido em ..., pelo período de dois meses;
6. Em data não concretamente apurada do mês de abril/maio do ano de 2020, na sala da habitação onde se encontravam, gerou-se uma discussão entre o arguido e a vítima BB, durante a qual a vítima, de forma concretamente não apurada, procurou retirar o telemóvel ao arguido, que se encontrava a falar com o contabilista de ambos;
7. Em data não concretamente apurada do mês de maio de 2020, altura em que a vítima regressaria ao seu emprego, esta propôs ao arguido que as responsabilidades parentais atinentes ao filho de ambos previssem a residência alternada, como forma de conciliarem as suas profissões, com a guarda do filho menor;
8. No dia 16 janeiro de 2021, à hora do almoço, deu-se uma discussão entre o casal, por causa da confeção da refeição, durante a qual o arguido atirou um tacho de arroz confecionado pela vítima ao lixo;
9. A vítima achou tal atitude provocatória e questionou o arguido dos seus motivos;
10. Volvidos poucos minutos, encontrando-se a vítima na sala de jantar a dar a sopa ao filho de ambos, surgiu o arguido, que lhe desferiu um soco no queixo do lado esquerdo e um soco no abdómen;
11. A conduta do arguido causou dores nas regiões corporais atingidas;
12. No decurso deste episódio o filho de ambos presenciou as agressões e o filho da vítima CC veio em socorro da mãe; nessa sequência o arguido desferiu um estalo na face do menor;
13. Atuou o arguido com o objetivo de agredir, de humilhar a vítima BB, ofendendo o seu corpo honra, consideração, bem como a sua auto-determinação;
14. Agiu com o propósito de subjugar a vítima BB à sua vontade, procurando sujeitá-la às suas vontades;
15. Agiu indiferente à relação que havia mantido com a vítima BB e ao dever de respeito que dessa relação para si nasceu, relação e dever de que estava bem ciente;
16. Quis ainda agredir o filho da vítima, CC, bem sabendo que este era menor e incapaz de se defender;
17. Sabia que o filho menor da vítima, CC, que com o casal residia, assistia às suas condutas agressivas do arguido sobre a sua mãe, o que lhe causava tristeza e aflição;
18. Sabia que a sua conduta causava danos na saúde física e psíquica da vítima BB e de seu filho CC;
19. Agiu livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal;
21. O arguido levou o menor CC a consultas mesmo após o término da relação;
22. Assegurou-se que tinha o consentimento da ofendida para, uns dias mais tarde, se deslocar a essa casa e reaver algumas roupas e outros bens essenciais;
23. Na ocasião referida em 8, o arguido perguntou à ofendida “o que é aquilo em cima da placa?” ao que esta respondeu “é merda”;
24. A ofendida muniu-se de uma jarra, que ameaçou atirar ao arguido;
25. À data dos alegados factos, AA exercia funções na Clínica O meu Doutor e pouco tempo depois passou a colaborar com a Clínica ..., ambas no Porto. Do seu percurso formativo dedicado à medicina dentária consta um bacharelato obtido na A... (A...), uma pós-graduação obtida em Santiago de Compostela e um mestrado em medicina dentária, concluído em 2011 na Universidade .... Atualmente mantém o exercício de funções na Clínica ... e numa das clínicas dentárias da rede Médis do Porto. Aufere um rendimento líquido mensal que ronda os 2050 euros. Apresenta como encargo fixo mensal um valor médio de 1100 euros. A relação entre arguido e ofendida desenvolveu-se em contexto de trabalho, a partir de 2015. O arguido conta com o apoio dos familiares. Após período de conjugalidade cessado, constituiu agregado isolado no qual integra, em semanas alternadas, o seu filho de 7 anos. Arguido e ofendida têm sido capazes de manter uma comunicação cordial, restrita a aspetos relacionados com o superior interesse do filho em comum. O seu padrão de funcionamento é associado a características de imprevisibilidade e défices ao nível do pensamento consequencial;
26. Não tem antecedentes criminais.
1. Em setembro de 2019 o arguido tenha agarrado a vítima pelos braços, ficando esta com hematomas nas zonas atingidas;
2. Desde 30 de agosto de 2019, o arguido tenha começado a dirigir à vítima BB, com uma frequência que não foi possível apurar em concreto, expressões como “não consegues nada sem mim, nem comprar um carro, senão fosse eu andavas a pé, és uma ordinária, uma atrasada mental;
3. Na ocasião do facto provado 6, o arguido tenha empurrado a vítima, o que levou a que esta caísse de costas, embatendo com estas numa mesa de apoio;
4. Na mesma ocasião, quando o CC entrou na sala, o arguido lhe tenha desferido um estalo na face;
5. Nessa ocasião, a ofendida tenha atravessado o corredor num ataque de fúria, desferindo um estalo na face do arguido e arranhões, tendo marcado a sua face no lado direito;
6. O arguido se tenha limitado a manietar os braços da ofendida, sentando-a no sofá da sala, enquanto lhe pedia que tivesse calma;
7. Neste momento o CC entrou na divisão e tenha começado a projetar objetos pela casa e a pontapear o mobiliário;
8. No período situado no mês de abril/maio de 2020, próximo da hora do almoço, o filho da vítima, CC, se encontrasse a estudar, quando o chamaram para almoçar, ao que o jovem retorquiu que iria de seguida; nessa altura o arguido o tenha agarrado pelo braço, puxando-o para cadeira e de imediato desferindo-lhe um estalo na face;
9. Nas situações descritas em 4 e 8 o menor tenha sentido dores;
10. Na ocasião referida no facto provado 7, o arguido tenha rejeitado a hipótese, alegando que o seu emprego era mais importante do que o da vítima BB e que esta poderia sobreviver com o abono dos menores;
11. Na ocasião referida no facto provado 9, o arguido tenha respondido “és uma ordinária”, expressão que repetiu por inúmeras vezes, com a intenção de perturbar e provocar a vítima;
12. Na circunstância descrita no facto provado 10, o arguido tenha agarrado a vítima BB, projetando-a contra um dos móveis;
14. O arguido tenha tido várias relações amorosas antes daquela que manteve com a ofendida e nunca tenha sido acusado de qualquer comportamento violento ou controlador, mantendo-se em bons termos com todas as suas ex-companheiras;
15. O arguido tenha oferecido à ofendida o seu primeiro carro, contribuído com a quantia de 2 mil euros para a compra do seu segundo carro, sem quaisquer condições;
16. O arguido tenha suportado sozinho a entrada para a compra da casa de morada de família, em 2019, bem como a remodelação da cozinha e de todo o recheio da habitação;
17. Tenha sido o arguido quem se assegurou que o CC, à data com 13 anos, tinha um computador que lhe permitisse assistir às aulas aquando do primeiro confinamento decretado no contexto da pandemia de COVID-19 (quando a família se encontrava em ...), tendo-se deslocado ao Porto para recolher o seu próprio computador pessoal, que formatou e disponibilizou ao CC para o efeito;
18. Quando decidiu terminar a relação, o arguido tenha deixado a casa de morada de família com todo o recheio e todos os seus pertences no interior, de forma a não perturbar as rotinas do seu filho e do menor CC, e nunca tenha deixado de assegurar o pagamento da prestação bancária e das contas;
19. Na ocasião referida no facto provado 22, a ofendida tenha chamado “reles” ao arguido, acusando-o de ter abandonado a família;
20. A ofendida apelidasse de “putas” quaisquer amigas ou conhecidas com quem o arguido mantivesse contactos e vasculhando os seus dispositivos eletrónicos pessoais;
21. A ofendida tenha agredido o arguido com um estalo na face em frente ao filho de ambos que, à data, tinha seis meses de idade;
22. Sempre que o casal tinha algum diferendo, a ofendida levantasse a voz e dirigisse expressões ao arguido como “põe-te a andar”, “és um merdas”, “és reles” e “tu não me conheces, não sabes do que sou capaz”;
23. Na ocasião referida no facto provado 8, a ofendida tenha começado a berrar expressões ao arguido como “filho da puta”, “és um merdas”, “parto-te as pernas”, “põe-te a andar” e “filho da puta”, em frente do filho DD;
24. Neste momento o CC tenha projetado objetos pela casa e pontapeado o mobiliário;
25. A ofendida tenha censurado o arguido por este ter desistido da família;
26. O arguido deixou o seu computador pessoal na habitação, pois este era utilizado pelo CC para as tarefas escolares.
Para dispor sobre a matéria de facto que antecede, ancorado nas regras da experiência, fundou este tribunal a sua convicção na apreciação crítica do conjunto da prova produzida e no seu cotejo com o princípio da livre apreciação.
1. tem bom relacionamento com todos os familiares, incluindo com os avós do CC; tinha acabado de sair de uma situação que o deixou fragilizado; confirma a data do termo da relação; aos seis meses de idade do DD houve uma interrupção no relacionamento que persistiu até depois dos dois anos do filho;
3. confirma; adquiriu a casa, fez melhoramentos, sendo o declarante quem pagava a prestação; a ofendida fez contas consigo e transferências a partir de fevereiro de 2021;
4 e 16 - nega;
5. num episodio em ... a ofendida deu-lhe (a si) um estalo no telemóvel, atingindo-o na cara; o CC atirou com um estojo e o declarante deu-lhe um toque na parte detrás na cabeça; agarrou a ofendida pelos braços para que ela parasse com o seu gesto ofensivo;
6. nega; mas foi o declarante quem lhe pagou o primeiro automóvel e deu uma entrada para a segunda viatura;
7. confirma, mas menos tempo;
10. segurou-a pelos braços e sentou-a no sofá;
11. confirma;
12. nega; admite que possa ter dito qualquer coisa;
15. quis sempre ficar com a guarda do DD; não se opôs à guarda conjunta; nega tê-lo dito;
17 e 18 - não verbalizou a expressão “ordinária”; na ocasião estava debilitado e com covid; perguntou à ofendida o porquê de um arroz já feito e ela disse que era merda; pôs no lixo; a ofendida chamou-o de filho da puta e empunhou uma jarra como se lha fosse atirar;
19. disse que ela não tinha vergonha de ser um miúdo de quatro anos a corrigir; o declarante limitou-se a afastá-la com um braço quando ela veio por trás com uma tijela na mão; pode ter feito algum esforço com o braço; ela desequilibrou-se e foi contra a televisão e aparador;
20. não viu nada disso; dias depois foi lá e ela estava toda produzida;
21. na parte detrás da cabeça; nunca assistiu a reprimendas físicas pela mãe.
Referiu ademais que a ofendida lhe desferiu uma bofetada quando o DD tinha seis meses de idade. O declarante não presenciou discussões entre os pais e não conseguia lidar com a atitude da ofendida. Sem que se recorde, admite poder ter dito que o contexto fazia parecer um bairro de chelas. Mas nunca diminuiu a ofendida e sempre a tentou enaltecer. Nunca lhe chamou atrasada mental. Ela estava sempre a dizer-lhe põe-te a andar. Não agarrou o CC pelo braço. Pôs o arroz no lixo depois de ela ter dito que era merda. A BB chamou pelo CC pelo que ele se pode ter convencido de que ela estava a precisar de ajuda. Acha que ela sustenta a versão factual porque sentiu que o declarante não voltava à relação. Quando foi esgadanhado no rosto ficou com um arranhão que mostrou à EE. No episodio do arroz, a ofendida disse-lhe “atiro-te já com isto, filho da puta”.
- BB, ex-companheira do arguido. Referiu ter engravidado em 2015 e, em fevereiro de 2016, o arguido foi viver consigo. O relacionamento amoroso começara em maio/junho 2015. Durante a gravidez já havia discussões. Mais tarde quiseram os dois viver juntos. Depois do nascimento do DD houve uma zanga. O arguido saiu de casa entre outubro e fevereiro seguinte. Depois reconciliaram-se. Passados dois meses tornaram a separar-se, durante um ano e meio. Voltaram a reconciliar-se em outubro de 2018. Mantiveram-se juntos até 2021. Em 2019 compraram a casa onde a depoente sempre viveu. Ele dizia “tu não vales nada como mulher, estudasses” e, para si e para o CC, “são de chelas”. O arguido dizia que o CC não ia dar em nada na vida, por causa de comportamentos dele. A depoente chamava-o à atenção. Durante a pandemia houve agressões. Quando estavam em ..., .... O arguido estava a falar com o contabilista e a depoente não gostou da forma como ele se referiu à sua pessoa, pelo que lhe tirou o telefone da mão e disse que não achava correcto o que ele estava a dizer. Foi por ele empurrada para cima de uma mesa e caiu de costas. O CC viu a mãe no chão e a mesa virada. O CC ao interferir levou um estalo do arguido. Nesse dia não se falaram mais. Isto ocorreu em março/abril de 2020 (estiveram dois meses lá). Nesse período o arguido dormia à parte. Noutra situação, quando se preparavam para almoçar, chamaram o CC para o almoço; ele distraiu-se com o computador e o arguido puxou-o por um braço, sentou-o à força e deu-lhe um estalo na cara. A sua irmã, que estava presente, recusou-se a permanecer porque não aguentava o ambiente. No que respeita ao ponto 14 da acusação, não era uma questão de guarda, porque viviam juntos. Em 15 dias abdicou de trabalhar para ficar com os filhos. Mas houve compreensão da entidade patronal. Contribuíam os dois para as despesas domésticas. A depoente auferia o salário de mil euros. Ele disse que a depoente ficava em casa porque recebia o abono. Sentiu como se a profissão dele fosse mais importante do que a sua. Teve covid em dezembro de 2020. Depois os filhos e depois o arguido. Que ficou diferente. Muito fechado. Em janeiro teve uma discussão por causa de uma refeição que a depoente tinha preparado, arroz, que o arguido achou que não estava bem e deitou para o lixo. Confirma ter dito merda. Ele não tinha sido educado consigo, daí a sua reacção. Discutiram e ele chamou-lhe ordinária. A depoente ameaçou atirar-lhe um objecto. O arguido aproximou-se, intimidou-a e a depoente pousou e foi dar a sopa ao DD. Entretanto o arguido veio da cozinha e desferiu-lhe um soco no maxilar esquerdo e no abdómen. Cada soco com uma mão. Pediu socorro, o DD começou a chorar e o CC entrou na sala. O CC abriu a porta e foi chamar a FF a seu pedido, que terá ouvido o arguido dizer que como mulher não valia nada. O arguido partilhava consigo tarefas domésticas, em particular aos fins de semana. Uma ou duas vezes foi pelo mesmo agarrada pelos braços. Uma antes da pandemia no seio de uma discussão, mas não sabe precisar a data. Em janeiro de 2021, foi o arguido quem terminou a relação. A depoente ligou-lhe a perguntar se a ia deixar ficar sozinha com os filhos. Durante uma semana ou duas não sabia se ele ia voltar. Apresentou queixa em fevereiro. Doc 2 da contestação, primeira mensagem: não sabe a que se referia a transferência. Ele avisou-a de que ia buscar os seus pertences e disse que não ia sozinho. Duas semanas depois de sair de casa. Em ... tirou-lhe o telemóvel do ouvido mas não lhe bateu. Não se apercebeu de um arranhão. O CC entrou em pânico nessa situação, pontapeou uma almofada e levou uma estalada do arguido. A partir da estalada ao almoço, o CC poderá ter ido uma vez com o arguido para .... Chegaram a ir todos fazer actividades para ..., incluindo o pai do CC. Após término da relação, o CC continuou a ter contacto com o arguido, que o levou ao dentista.
- CC, filho da antecedente testemunha, referiu que há cerca de três anos, em sua casa e em ..., no primeiro confinamento, presenciou a mãe e o arguido a discutirem; o depoente estava na cozinha e via o que se passava na sala. O arguido estava ao telefone e disse alguma coisa de que a sua mãe não gostou. Viu o arguido a agarrar a mãe e a caírem os dois para o chão, a sua mãe caída no chão e o arguido em cima dela. Não viu a mãe a tirar o telemóvel ao arguido. Foi chamar a sua tia. Não viu nenhum arranhão no arguido. A mãe ficou a chorar. Nos dias seguintes ficaram na outra casa existente no local. Depois ficou um ambiente tenso durante mais tempo mas acabaram por fazer as pazes. Em fevereiro de 2021, no último confinamento, o depoente estava com a mãe na casa de banho. Houve troca de palavras (o arguido questionou a sua mãe sobre que arroz era aquele e ela respondeu que era merda). Da casa de banho ouviu discussão entre os dois. Eles foram para a sala e, na presença do depoente, o arguido desferiu-lhe um soco na face esquerda e outro na barriga. O depoente perguntou o que ele tinha feito à mãe e ele deu-lhe um estalo na cara. Depois da confusão a vizinha bateu à porta e o depoente disse que não se estava a passar nada. A mãe estava atrás de si. A mãe ficou com o rosto pisado. Depois da separação viu várias vezes o arguido, porque ele ia buscar o irmão do depoente. O arguido ligou-lhe uma vez e pediu para falar com o DD. Foi uma vez com o arguido a uma consulta de ortodontia. Ele apoiava-o mas também o deitava abaixo. Antes do que aconteceu havia convívio do arguido com o pai do depoente. De vez em quando iam todos para .... Apos o episódio de ... não voltou a ir a sós com o arguido para tal localidade. Antes disso tinha acontecido.
- GG, disse ter sido vizinha do arguido durante 4/5 anos, frequentava sua a casa. Ouvia discussões, com protagonismo de ambos, mas não percebia o teor. Numa situação ouviu o DD a dizer “pára”. Ouviu a ofendida a dizer para chamar a FF e que chamasse a polícia. Bateu à porta e o CC disse que eles se tinham pegado mas já estava tudo bem. A ofendida estava próxima da porta a limpar o chão. Ainda ouviu o arguido dizer, “como mulher não vales nada”. Cruzava-se com a ofendida. Não reparou em lesões.
- EE, irmã da ofendida, referiu que o arguido saiu de casa por duas vezes, por motivo de feitios incompatíveis. Mais tarde soube pelo CC que o arguido desferira um soco à irmã da depoente. Isso ocorreu pouco tempo antes da saída do arguido de casa. Durante o primeiro confinamento, na sua presença, o arguido desferiu um estalo no CC. Relativamente à sua irmã nunca assistiu a nada. Noutra situação, o CC relatou que a mãe tinha levado um estalo e um empurrão. A depoente estava na outra casa e o CC foi chamá-la. A sua irmã confirmou-o. Não viu lesões. Numa freguesia .... Em contexto de discussões, ouviu algumas vezes o arguido dizer “estás parva”, “vai à merda”. Não se recorda de ver arranhão no rosto do arguido. Após a saída do AA a depoente foi lá para casa, aquando do segundo confinamento.
- HH, irmã do arguido, disse que ele teve anteriores namoradas e nunca teve conflitos. Sabe que ele mantém boas relações com as suas ex-namoradas. A depoente não conviveu muito com a ora ofendida. Durante um confinamento, o arguido esteve com a depoente a chorar e a pedir ajuda. Relatou-lhe que a ofendida lhe tinha gritado e dirigido vocabulário impróprio, num evento em que algo foi para o lixo. Depois disso ele voltou para casa mas depois foi para sua casa onde permaneceu cerca de um mês.
- II, técnico de prótese dentária, referiu ter sido colega de curso do arguido em 1995 e bem assim serem amigos próximos. Falam diariamente. Trabalharam juntos em parcerias. Ele teve outros relacionamentos, sem problemas de agressividade. Não privou com o casal a não ser aquando de um baptizado. O arguido era cuidador e tratava bem o filho da ofendida. Quando o arguido se separou disse ao depoente que não estava para faltas de respeito para consigo e para com os miúdos. Após a separação foi lá a casa com o arguido e não viu lesões na ofendida. Ele tem uma boa relação com os colegas e assistentes.
- fls. 31 e ss. (certidões),
- fls. 42 e ss. (auto de notícia),
- fls. 47 e ss. (fotografias) e
- documentos juntos com a contestação.
A ausência de antecedentes criminais resulta do último crc junto aos autos.
O arguido admitiu a veracidade dos factos provados nºs. 1, 3, 5, 7 a 9,
O facto provado 2 decorre da elencada prova documental.
O facto provado 4 decorre do depoimento da ofendida e da assunção da sua eventual prática por parte do arguido.
O facto provado 6 decorre da conjugação da versão do arguido com a da ofendida. Aquele sustenta a ocorrência de agressões, com causação de uma lesão. Esta refere que apenas retirou o telemóvel ao arguido. A tese do arguido não foi corroborada por nenhum outro meio de prova.
O facto provado 10, pese embora negado pelo arguido, foi consistentemente sustentado pela ofendida e corroborado pelo depoente CC, ambos num registo de fluência descritiva e desprovido de caracteres sugestivos de efabulação ou pré-ordenação discursiva. No que respeita a marcas corporais, a circunstância de não terem sido vistas na ocasião pela vizinha pode decorrer da sua precocidade e bem assim, posteriormente, por terceiros, por motivo de dissimulação. Desconhece-se a data da captura das elencadas fotografias. No entanto, é plausível que as mesmas decorram deste episódio, atento o seu teor e os contornos objectivos do mesmo.
O facto provado 11 decorre das regras da experiência comum, considerando os contornos objectivos do facto subjacente.
O facto provado 12 decorre, na primeira parte, das declarações do arguido e no remanescente, da versão factual da ofendida, confirmada pelo visado CC, de forma que o tribunal acolhe como credível, pelas razões acima referidas.
Os factos provados 13 a 19 decorrem das regras da experiência comum que se afirmam em razão dos contornos empíricos da materialidade factual objectiva.
O facto provado 20 decorre do conjunto das declarações do arguido e dos depoimentos dos ofendidos BB e CC.
Os factos provados 21 a 24 decorrem das declarações do arguido, confirmadas pela ofendida.
O facto não provado 2 decorre da circunstância de, pese embora (em parte) sustentado pela ofendida, não ter sido objecto de válida corroboração por outros meios de prova.
O facto não provado 3, sustentado pela ofendida, não foi objecto de consistente corroboração pelo depoente CC.
O facto não provado 4, sustentado pela ofendida, não foi confirmado pelo depoente CC, o suposto destinatário do gesto ali descrito.
Os factos não provados 5 a 7, 15 a 18 e 21 a 24 foram sustentados pelo arguido, mas não por nenhum outro meio de prova.
Os factos não provados 8 e 9, pese embora sustentados pela ofendida e bem assim pela depoente EE, não o foram pelo suposto visado.
O facto não provado 11, sustentado pela ofendida, não o foi por nenhum outro meio de prova.
O facto não provado 13 decorre da circunstância de, pese embora o teor dos prints de mensagens de texto acima elencados, tal não ser suficiente para concluir com uma asserção tão categórica quanto a ora em apreço.
O facto não provado 14 não resultou evidenciado nos seus precisos (e abrangentes) termos, não sendo para o efeito suficiente a sua sustentação pelo arguido e bem assim pelos depoentes HH e II.
O facto não provado 25 não resultou, na sua amplitude semântica, evidenciado pelos prints de mensagens juntos com a contestação, os quais não permitem tal asserção.
Quanto aos demais factos não provados, foram-no porquanto, a seu respeito, não ocorreu qualquer sustentação probatória.»
Na análise deste segmento do recurso importa ter presente que resulta do texto do art. 412.º, n.º 3, do CPPenal que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto.
As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com a valoração realizada pelo Tribunal a quo, devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.
Ou seja, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo Tribunal a quo, é necessário que essa versão seja a única admissível. E, na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios. Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.
É necessário que os recorrentes demonstrem que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si pugnada, e não à consignada pelo Tribunal em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada.
E na análise da prova que apresentam na sua impugnação da matéria de facto têm os recorrentes de argumentar fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova.
Esta ideia sobressai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2017, onde se afirmou[2]:
«I - Há uma dimensão inalienável consubstanciada no princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP. A partir de um raciocínio lógico feito com base na prova produzida afigura-se, de modo objectivável, ter por certo que o arguido praticou determinados factos. Exige-se não uma certeza absoluta mas apenas e só o grau de certeza que afaste a dúvida razoável, a dúvida suscitada por razões adequadas. O que há-de ser feito mediante uma «valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência comum».
II - Percorrido este caminho na fundamentação, a impugnação dos factos há-de ser feita com a indicação das concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida sob pena de tal impugnação redundar em mera discordância acerca da apreciação da prova desses mesmos factos, respeitável decerto, mas sem consequências de índole processual.»
E esta posição está igualmente associada à ideia – que é preciso não perder de vista – de que o reexame da matéria de facto não de destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1.ª Instância.
Neste sentido, que é pacífico, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2017[3]:
«I - O reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova, uma nova ou uma suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP.
II - O recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida.»
Contextualizado, de forma sumária, o quadro legal e jurisprudencial em que assenta o reexame da matéria de facto pelos Tribunais da Relação, apreciemos a argumentação do recurso.
O recorrente começa por um introito geral à avaliação da prova, salientando desde logo a diferença entre o conjunto dos factos provados e dos factos não provados, para daí retirar a ilação da falta de credibilidade da ofendida BB e do seu filho CC, apontando contradições nos respectivos depoimentos, que vieram a conduzir à não demonstração de número significativo de facto que foram descritos na acusação.
Ora, esta avaliação não encontra reflexo na motivação do Tribunal a quo, que apenas constata quanto aos factos não provados, por exemplo, que foram corroborados pela ofendida, mas não pelo seu filho ou por outros meios de prova, não retirando aí qualquer ilação quanto à credibilidade deste depoimentos, que encontram o desenho das sua avaliação na justificação do ponto 10 da matéria de facto provada onde se refere que «pese embora negado pelo arguido, foi consistentemente sustentado pela ofendida e corroborado pelo depoente CC, ambos num registo de fluência descritiva e desprovido de caracteres sugestivos de efabulação ou pré-ordenação discursiva.»
O Tribunal a quo podia ter desenvolvido um pouco mais esta análise e exame crítico da prova, mas percebe-se do conjunto da fundamentação quanto aos factos não provados que procurou consolidar a avaliação através da conjugação de mais de um meio de prova relativamente a cada facto, não os considerando provados quando nenhum ou apenas um elemento de prova permitiu a sua demonstração, não revelando esta avaliação qualquer juízo de valor depreciativo sobre a credibilidade dos depoimentos da ofendida ou do seu filho, também ofendido.
Ou seja, o intróito apresentado pretende convencer que o Tribunal a quo fixou como não provada parcela significativa dos factos imputados por força da falta de credibilidade inerente às contradições detectadas nos depoimentos dos ofendidos, o que na realidade não é o que resulta da motivação da sentença.
Posto isto, há que apreciar a matéria de facto impugnada na real dimensão do que resulta dos elementos de prova apresentados, despida desta capa depreciativa atribuída à avaliação realizada pelo Tribunal a quo e que não tem correspondência com a argumentação que consta da sentença.
Nesta sequência, é falso quando se alega que «é a própria sentença que reconhece e sustenta a ausência de credibilidade destes testemunhos quanto a vários factos que, na Acusação, se imputou ao Arguido, e que revestem inegável gravidade.»[4]
Em segundo lugar, o recorrente apela à falta de credibilidade da testemunha CC pela simples circunstância de ser «filho adolescente da Ofendida, nascido de um relacionamento anterior, e, por isto, se encontra numa posição naturalmente comprometida no sentido de proteger a versão dos acontecimentos defendida pela sua mãe, ao que acresce a conhecida tendência para omitir factos potencialmente negativos para esta (o que sucedeu em diversos aspectos do depoimento do CC).»
Ora, um tal raciocínio é inadmissível e não encontra respaldo na lei. É certo que o julgador deve avaliar com cautela as declarações ou depoimentos de todos aqueles que têm interesse explícito ou implícito no desfecho da causa. Por isso mesmo, o Tribunal a quo entendeu apenas dar como provados factos corroborados por mais de um meio de prova, o que fez indiscriminadamente para a ofendida, seu filho ou para o arguido.
Mas essa circunstância de interesse no desfecho do processo não lhes retira em abstracto, enquanto legal meio de prova, credibilidade, nem pode equivaler a uma menorização da relevância das suas narrativas.
Seguindo este raciocínio, nunca seria dada credibilidade aos arguidos, pois estes são os maiores interessados no desfecho do processo a seu favor.
Por isso, o grau de credibilização que em abstracto possa ser dada aos testemunhos dos ofendidos não interfere com o princípio in dubio pro reo, entendimento que nenhum fundamento encontra na lei, que também não foi invocada.
Este olhar que o recorrente lança genericamente sobre a avaliação realizada pelo Tribunal a quo não corresponde a qualquer erro de julgamento, mas apenas a uma diferente visão, uma diversa leitura da prova, mas que não é fundamento, por si só e com os contornos apresentados, da possibilidade de alteração da matéria de facto.
Vejamos, agora, se em concreto, na avaliação que faz relativamente a diversos pontos de facto, assiste razão ao recorrente.
O recorrente começa por impugnar parcialmente o ponto 6 da matéria de facto provada (em data não concretamente apurada do mês de abril/maio do ano de 2020, na sala da habitação onde se encontravam, gerou-se uma discussão entre o arguido e a vítima BB, durante a qual a vítima, de forma concretamente não apurada, procurou retirar o telemóvel ao arguido, que se encontrava a falar com o contabilista de ambos), argumentando que não resulta dos depoimentos dos ofendidos, e das suas próprias declarações, que estivesse em curso uma discussão quando a ofendida procurou retirar o telemóvel com que estava a falar com o contabilista, e que lhe tirou efectivamente o telemóvel.
O Tribunal a quo não acolheu, pelas razões já enunciadas (não corroboração por outros elementos de prova), a totalidade da versão do arguido sobre esta acontecimento, fixando, contudo, o que em comum retirou dos referidos elementos de prova.
Ora, seguindo este raciocínio, que não afronta a lei, e ouvida a prova respectiva, reconhecemos que assiste razão ao depoente, já que resulta do conjunto dos descritos depoimentos e declarações que a discussão ocorreu após o episódio do telemóvel e que a ofendida se deslocou da cozinha para a sala, onde efectivamente retirou o telemóvel da mão do arguido, por não ter gostado do que estava a ser conversado entre este e o contabilista.
Deve, assim, ser rectificada a redacção do ponto 6 da matéria de facto, que passará a ser a seguinte:
«6. Em data não concretamente apurada do mês de abril/maio do ano de 2020, a ofendida, por ficar desagradada com o teor da conversa telefónica que o arguido estava a ter com o contabilista de ambos, dirigiu-se da cozinha para sala da habitação onde se encontrava o arguido e, de forma concretamente não apurada, retirou-lhe o telemóvel da mão enquanto decorria aquela conversa.»
Prosseguindo, o recorrente impugna o ponto 7 da matéria de facto provada (em data não concretamente apurada do mês de maio de 2020, altura em que a vítima regressaria ao seu emprego, esta propôs ao arguido que as responsabilidades parentais atinentes ao filho de ambos previssem a residência alternada, como forma de conciliarem as suas profissões, com a guarda do filho menor), que considera dever ser dado como não provado, já que aquela conversa não faz sentido no período em que ocorreu, pois nessa altura o arguido e a ofendida coabitavam, não tendo lógica a menção à residência alternada.
Justifica ainda que na própria sentença, «no resumo do depoimento da Ofendida BB que integra a decisão recorrida na página 10», se refere que: «”No que respeita ao ponto 14 da acusação, não era uma questão de guarda, porque viviam juntos. Em 15 dias abdicou de trabalhar para ficar com os filhos. Mas houve compreensão da entidade patronal.”»
De facto, a sentença, apesar de ensaiar nos termos citados a contextualização desta conversa, não só não explica de forma clara esse enquadramento, como também não adapta a redacção do ponto 7 da matéria de facto provada à essência da conversa que foi tida – e que a ofendida explica entre 00:21:25 e 00:23:36 do seu depoimento, o que o recorrente não questiona –, e que, no fundo, respeitou ao problema logístico decorrente do encerramento dos infantários na altura da pandemia COVID, qual seja, o de saber quem ficava com o filho menor em casa e quem abdicava das suas obrigações laborais.
O recorrente entende que este facto é irrelevante e que deve ser dado como não provado.
Enfim, sendo facto que constava da acusação e reflecte contexto da relação do arguido com a ofendida não deve ser simplesmente considerado como não provado, antes se impondo a rectificação do sentido da conversa, nos termos em que o recorrente a apresenta.
Deve, assim, ser rectificada a redacção do ponto 7 da matéria de facto, que passará a ser a seguinte:
«7. em data não concretamente apurada do mês de maio de 2020, altura em que a vítima regressaria ao seu emprego, mas em que o infantário do filho menor ainda estava fechado na sequência da pandemia COVID, esta propôs ao arguido que ficassem alternadamente em casa, como forma de conciliarem as suas profissões com a guarda do filho menor.»
Prosseguindo, o recorrente questiona de seguida a factualidade assente nos pontos 8 a 12 da matéria de facto provada (8. No dia 16 janeiro de 2021, à hora do almoço, deu-se uma discussão entre o casal, por causa da confeção da refeição, durante a qual o arguido atirou um tacho de arroz confecionado pela vítima ao lixo; 9. A vítima achou tal atitude provocatória e questionou o arguido dos seus motivos; 10. Volvidos poucos minutos, encontrando-se a vítima na sala de jantar a dar a sopa ao filho de ambos, surgiu o arguido, que lhe desferiu um soco no queixo do lado esquerdo e um soco no abdómen; 11. A conduta do arguido causou dores nas regiões corporais atingidas; 12. No decurso deste episódio o filho de ambos presenciou as agressões e o filho da vítima CC veio em socorro da mãe; nessa sequência o arguido desferiu um estalo na face do menor), que entende dever ser dada como não provada, por falta de credibilidade dos ofendidos nos depoimentos que prestaram.
Tal fundamentação, como já se explicou, não é suficiente para dar como não provados os factos impugnados.
O Tribunal a quo reconheceu credibilidade aos ofendidos nos depoimentos que prestaram e da sua audição não resulta que esta perspectiva da prova não pudesse de modo algum ser aceite.
Pelo contrário, apesar de alguma resistência da ofendida em relatar este episódio em toda a sua dimensão, por vergonha, diríamos, atento o tom de voz sumido com que foi reconhecendo a sua própria actuação, não encontramos razões objectivas para não o considerar, já que corroborado também pelo ofendido CC, sem contradições quanto ao essencial, contrariamente à interpretação levada a cabo pelo recorrente, que não acompanhamos.
Não obstante, da audição destes depoimentos, designadamente dos segmentos indicados no recurso, e de outros ao longo de ambas as narrativas, resultam contornos do presente episódio um pouco diferentes, os quais devem ser inseridos na matéria de facto provada no local próprio, porque relevantes para a compreensão global da relação do arguido com a ofendida.
Assim, neste episódio a que podemos chamar do arroz, a ofendida, num primeiro momento, respondeu ao arguido que o que estava no tacho era “merda” e previamente aos socos que o mesmo lhe desferiu agarrou numa jarra gesticulando como se fosse atirá-la ao arguido, o que acabou por não fazer, e dirigiu-lhe palavras de conteúdo não apurado.
Estes factos mostram-se parcialmente descritos nos pontos 23 e 24 da matéria de facto provada, mas a sua enunciação fora da sequência dos acontecimentos retira à situação os seus reais contornos.
Devem, assim, eliminar-se estes pontos de factos e incluir a matéria respectiva na sequência descritiva dos pontos 8 a 12 da matéria de facto provada.
De igual modo, precisa de intervenção correctiva a narrativa da intervenção do ofendido CC, que não ocorreu em simultâneo com a agressão à ofendida, nem ele foi em socorro dela, no sentido de apartar o recorrente, que é a leitura que de imediato se retira do ponto 12 da matéria de facto provada.
Antes, resulta do depoimento do ofendido CC (entre 00:07:00 e 00:12:00) que ao aperceber-se da discussão e ao passar pela sala viu o recorrente a desferir os dois mencionados socos na mãe. Depois, já cessada a agressão, procurou saber junto da mãe se esta estava bem e depois interpelou o recorrente no sentido de saber o que se passou, o que ele fez à mãe, altura em que o mesmo lhe dá um estalo.
Assim, à semelhança dos outros pontos de facto impugnados já analisados, cumpre alterar a redacção dos pontos 8 a 10 e 12 da matéria de facto provada (mantendo-se inalterado o ponto 11) nos seguintes termos:
«8. No dia 16 janeiro de 2021, à hora do almoço, deu-se uma discussão entre o casal, por causa da confeção da refeição, durante a qual o arguido perguntou à ofendida o que estava na placa, tendo esta respondido que era “merda”, após o que o arguido atirou um tacho de arroz confecionado por aquela ao lixo»;
«9. A vítima achou tal atitude provocatória e questionou o arguido dos seus motivos, tendo pegado numa jarra gesticulando como se fosse atirá-la ao arguido, o que acabou por não fazer»;
«10. Volvidos poucos minutos, encontrando-se a vítima na sala de jantar a dar a sopa ao filho de ambos, surgiu o arguido, a quem a ofendida dirigiu palavras de conteúdo não apurado, desferindo-lhe aquele um soco no queixo do lado esquerdo e um soco no abdómen»; e
«12. No decurso deste episódio o filho de ambos presenciou as agressões, assim como o filho da vítima CC, que, cessadas aquelas, procurou saber junto da mãe se ela estava bem e depois interpelou o recorrente no sentido de saber o que se passou, o que ele fez à mãe, altura em que o mesmo lhe dá um estalo da face.»
Como se referiu, os pontos 23 e 24 da matéria de facto eliminam-se por a matéria respectiva se mostrar relatada nos pontos 8 e 9 da matéria de facto provada.
Prosseguindo a sua impugnação, entende o recorrente que ficou demonstrado em julgamento que «foi o Arguido quem terminou a relação com a Ofendida poucos dias após o episódio de 16 de janeiro de 2021, bem como que foi a Ofendida quem procurou reatar a relação», posto que esses factos foram por si alegados na contestação e a própria ofendida os confirmou em julgamento, indicando o segmento da prova respectivo.
Ouvida esta prova, mostra-se confirmada a alegação do recorrente, sendo relevantes para a apreciação global da relação do arguido com a ofendida e da conduta deste a sua inserção no elenco dos factos provados.
Devem assim, acrescentar-se à matéria de facto provada os seguintes pontos, a que se atribui a numeração de ordem de 12-A. e 12-B.:
«12-A. O arguido terminou a relação com a ofendida poucos dias após o episódio de 16 de janeiro de 2021, saindo da casa de morada de família»;
«12-B. Depois disso, a ofendida procurou reatar a relação com o arguido».
Por fim, nesta sede, entende o recorrente que, caída a imputação dos factos anteriormente referidos, fica sem sustentação o vertido nos pontos de facto provados 13 a 19.
Uma vez que a alteração preconizada pelo recorrente não foi acolhida em toda a sua extensão por este Tribunal de recurso, já que não deu como não provados os factos respeitantes às agressões infligidas, mostra-se pertinente a factualidade vertida nos pontos 13 a 19 da matéria de facto provada, os quais devem, apenas, ser adequados à circunstância de existir um único episódio de agressões.
Assim, os pontos 17 e 18 dos factos provados devem passar ter a seguinte redacção:
«17. Sabia que o filho menor da vítima, CC, que com o casal residia, assistiu às condutas agressivas do arguido sobre a sua mãe, o que lhe causou tristeza e aflição»;
«18. Sabia que a sua conduta causou danos na saúde física e psíquica da vítima BB e de seu filho CC».
Resta uma alusão, oficiosa, à redacção do ponto 4 da matéria de facto provada.
Diz este ponto de facto que desde 30 de agosto de 2019, o arguido começou a dirigir à vítima BB, com uma frequência que não foi possível apurar em concreto, expressões como “vocês são mesmos de Chelas”.
A frequência com que esta expressão era dirigida à ofendida, não demonstrada, não é irrelevante, sendo totalmente diferente ocorrer uma ou duas vezes ou verificar-se diariamente ou semanalmente ao longo de meses e anos.
A sentença não nos dá pistas para esta concretização, sendo certo que a própria expressão induz a que foi mais do que uma vez que esse facto ocorreu.
Podemos então afirmar, à luz, aqui sim, do princípio in dubio pro reo, que esta atitude aconteceu mais do que uma vez, mas não sabemos se mais de duas.
Deve, pois, concretizar-se, em substituição da expressão com uma frequência que não foi possível apurar em concreto, que esses factos ocorreram, pelo menos, duas vezes.
Deste modo, o ponto 4 dos factos provados deve passar a ter a seguinte redacção:
«4. Desde 30 de agosto de 2019, pelo menos, por duas vezes, o arguido dirigiu à vítima BB expressões como “vocês são mesmos de Chelas”.»
Em suma, é de conceder parcial provimento ao recurso nesta sede da impugnação ampla da matéria de facto, alterando-se e aditando-se a matéria de facto provada nos termos supramencionados.
Neste segmento do recurso, alega o recorrente que, ainda que não ocorra qualquer alteração da matéria de facto provada e não provada, as condutas imputadas ao arguido não são subsumíveis aos tipos de violência doméstica e de ofensa à integridade física qualificada
Invoca, quanto ao crime de violência doméstica, que «[a] jurisprudência, incluindo a do Supremo Tribunal de Justiça, tem sido unânime no sentido deque a violência doméstica, enquanto tipo complexo que pode integrar uma grande amplitude de condutas típicas e atípicas, não deixa de exigir um elemento unificador de qualificação das condutas “que tem na sua base (cfr. a redacção do n.º 1 do art. 152.º) o conceito nuclear de maus tratos (físicos ou não físicos), que verdadeiramente o distingue de outras infracções (à integridade física, ameaça, perseguição, injúria, difamação).” – Ac. do STJ de 30.10.2019 (proc. n.º 39/16.4TRGMR.S2, disponível em dgsi.pt).
(…)
Como o aresto citado menciona, “os maus-tratos, como se espelha na jurisprudência do STJ, acima transcrita, e da doutrina a seguir mencionada, hão-se assumir-se, ou traduzir-se, em lesões graves, intoleráveis, brutais, pesadas”. Ora,
(…)
No caso sub judice e com (eventual) relevância para esta subsunção, ficaram provados essencialmente três episódios:
i. Que o Arguido terá dirigido “com uma frequência que não possível apurar em concreto, expressões como «vocês são mesmo de Chelas»” (FP n.º 4);
ii. Um episódio ocorrido em ..., que apenas relata uma discussão e uma conduta da Ofendida de retirar o telemóvel ao Arguido, tendo-se dado como não provado que a isso se tenha sucedido qualquer agressão por parte do Arguido (FPn.º 6 e FNP n.º 3);
iii. Um episódio ocorrido no dia 16 de janeiro de 2021, no qual se dá como provado que a Ofendida começou por dizer ao Arguido que o arroz era merda, tendo depois confrontado oArguido por ter deitado fora o arroz e tendo, de seguida, ameaçado o Arguido que lhe atiraria com um objeto. A sentença imputa ao Arguido a conduta de, nesta sequência, desferir dois socos na Ofendida, de que não resultaram lesões provadas.
(…)
Em primeiro lugar, a relevância jurídico-penal do facto mencionado no antecedente ponto (i), sem que haja prova de quaisquer outros “insultos” ou “humilhações”, é, salvo o devido respeito, nula.
(…)
Além de ser profundamente duvidoso que tal afirmação tenha um conteúdo injurioso, podendo a mesma ser formulada em contextos e sentidos muito distintos, não foi sequer apurada a frequência da mesma, nem foi apurado qualquer outro insulto ou agressão verbal que o Arguido dirigisse à Ofendida (vide FNP 2).
(…)
Sobrando, deste modo, para a operação de subsunção ao tipo p.p. 152.º, do Código Penal, um episódio único, descrito nos factos provados 8 a 12 e 23, episódio esse que está inserido numa situação de agressividade perpetrada primariamente pela Ofendida, que correspondeu ao momento de rutura da relação entre Ofendida e Arguido, por iniciativa deste, situação essa que tem um carácter isolado, i.e., e não reiterado – não sendo tal factualidade subsumível ao tipo de violência doméstica por várias ordens de razões.
Em primeiro lugar, a lei impõe que, para que possa defender-se o enquadramento típico de um episódio único de violência física, seja apurada a existência de um elemento qualificador especial (que a eleve a conduta da “mera” ofensa à integridade física aos maus-tratos) – e quanto a isso, em nada esclarece a leitura da fundamentação da sentença recorrida, que omite por completo a questão.
(…)
Resulta nítido dos critérios doutrinais e jurisprudenciais de definição dos elementos objetivos da conduta típica no crime de violência doméstica que, para que uma conduta não reiterada seja subsumível ao tipo legal de violência doméstica, é necessário que da factualidade resulte “uma certa gravidade, ou seja, que traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária da parte do agente” – cfr. o STJ no Ac de 14/11/97 CJ III, 235 e, no mesmo sentido, Ac. TRPAc. R. Évora 23/11/99 CJ V, 283, Ac. R. E. 25/1/05, CJ I, 260, Ac. R. Porto 12/5/04, www.dgsi.pt, proc. 0346422.
(…)
Como se discorre no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.10.2016, Relator José Carreto (citando-se também o Acórdão da Relação de Guimarães de 10.07.2014): «“Essencial é que os comportamentos assumam uma gravidade tal que justifique a sua autonomização relativamente aos ilícitos que as condutas individualmente consideradas possam integrar", e se não necessita de uma reiteração (face à norma legal) não prescinde de uma gravidade que vá para além e ultrapasse a ofensa à integridade física ou à honra (sob pena de o crime de violência doméstica se traduzir apenas num crime familiar)”- entendimento citado e corroborado também no Acórdão da Relação do Porto de 09.05.2018.
(…)
Prossegue o mencionado aresto reiterando a necessidade de existência de um “especial desvalor da ação”, ou “particular danosidade do facto”, para sustentar a tipicidade da conduta não reiterada enquanto crime de violência doméstica:
“Assim à luz do bem jurídico protegido os factos devem apresentar-se perante a vítima como dotados de um especial desvalor (pondo em causa a dignidade da pessoa enquanto tal, nomeadamente pelo desejo de domínio da relação familiar existente), sob pena de não se verificar o ilícito de violência doméstica. Cremos ser este o sentido do Ac. RC 21/10/2009 www.dgsi.pt, e do ac. R.P 30/1/2013 www.dgsi.pt/jtrp, sob pena de não revelando a conduta do agente o "especial desvalor da acção" ou a "particular danosidade social do facto" (cf. Valadão e Silveira, Maria Manuela "Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais", in APMJ, Do Crime de Maus Tratos, Lisboa, 2001, pág.21) o crime não se mostrar fundamentado. O que fundamenta tal ilícito são pois os actos que, como expressa o Ac. TRP 28/9/2011 www.dgsi.pt/jtrp "... pelo seu caráter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima." e nos casos de actos singulares tem de se verificar esta especial qualidade da acção, sob pena de não se mostrar preenchido o ilícito em causa.”
(…)
Como se disse, a sentença recorrida é omissa em relação a este elemento qualificador essencial à subsunção operada e, além disso, a mesma sentença não dá como provado qualquer facto de que possa retirar-se esse elemento qualificador, pois
(…)
As condutas dadas como provadas – além de não refletirem a verdade dos factos – não são aptas a preencher o tipo de violência doméstica na exata medida em que não formam, no seu todo de cinco artigos (FP4, e 8 a 12), uma conduta típica dirigida à subjugação ou anulação da autonomia e dignidade humana da Ofendida.
Na realidade,
(…)
A total ausência de uma relação de dominação ou subjugação da Ofendida fica evidente perante:
a. O facto de ter sido o Arguido quem pôs imediato termo à relação após o episódio de dia 16 de janeiro de 2021, não tendo cedido aos contactos da Ofendida no sentido de reatar a referida relação;
b. O facto de o Arguido ter saído da casa de morada de família, deixando o seu uso ao agregado para minimização do impacto da separação no mesmo;
c. O facto de a Ofendida ter incorrido em vários de comportamentos de índole agressiva, factos dados como provados, de onde resulta que a Ofendida:
(i) tentou “retirar o telemóvel” ao Arguido no episódio relatado no ponto 6 da factualidade provada, sendo certo que o Arguido se encontrava apenas a falar com o contabilista do agregado;
(ii) respondeu “É merda” à pergunta do Arguido acerca do arroz que se encontrava no fogão (FP n.º 23);
(iii) ameaçou o Arguido que lhe atiraria com um objeto para “se defender” de palavras que o Arguido alegadamente proferia no dia 16 de janeiro de 2021 (FP n.º 24).
(…)
Resulta também nítido que, mesmo tendo por factual o episódio vertido nos pontos 8 a 11 da factualidade provada, o mesmo não corresponderia a qualquer tentativa de o Arguido subjugar a Ofendida no âmbito da relação que os unia, relação a que o próprio Arguido pôs termo de imediato!
(…)
Pelo contrário, esse episódio encontra-se inserido num momento de rutura total da relação dos intervenientes, episódio marcado (até criado) por uma atitude de profunda agressividade por parte da Ofendida.
(…)
É, portanto, nula a sentença recorrida na parte em que omite o juízo de especial censurabilidade a que deveria ter submetido o episódio único em que sustenta a subsunção, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP,
(…)
Não sendo, aliás, a factualidade provada subsumível ao tipo legal do artigo 152.º, do Código Penal, que foi violado pela decisão recorrida, por não se encontrarem reunidos os elementos objetivos e subjetivos de que depende a subsunção, razão pela qual deverá o Arguido ser absolvido do crime em questão.
Assim, sem prescindir,
(…)
Mesmo que não se adira à argumentação supra aduzida, ainda assim a conduta seria atípica por força da comprovada existência de “atos agressivos recíprocos, na mesma ocasião e com igual ou idêntica gravidade”, situação em que “o bem jurídico tutelado pela norma incriminatória não é afetado, não traduzindo essas ações tratamento desumano e degradante”. – Neste sentido, vide douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.05.2018.
(…)
No episódio em apreço, a Ofendida iniciou um conflito e, numa conduta sem justificação plausível, ameaçou que atiraria um objeto ao Arguido, estando também provado que num outro episódio lhe “retirara o telemóvel” enquanto este fazia uma chamada e simplesmente por não ter gostado de algo que ouvira o Arguido dizer ao contabilista.
(…)
Perante tais factos provados, resulta evidente que a situação em análise vem, como todo o teor da Acusação e da sentença recorrida, eivada da agressividade revelada pela Ofendida em diversos momentos, e que é, portanto, atípica por existência de agressividade e conflituosidade que, além de simultânea, deverá, no mínimo, afirmar-se mútua.
(…)
Estando, também por isto, em falta o elemento objetivo central de que depende a subsunção ao tipo de violência doméstica, isto é, a relação de domínio e subjugação.»
Transcrevemos a totalidade da argumentação do recorrente quanto a este segmento do recurso por se mostrar clara, assertiva e correcta, levando a que no essencial com a mesma concordemos, dispensando mais e repetida argumentação, sem prejuízo de pontuais especificações, algumas decorrentes das alterações introduzidas à matéria de facto provada.
Assim, quanto à matéria do ponto 4 da factualidade assente como provada, fica demonstrada a sua ocorrência apenas por, pelo menos, duas vezes, o que torna pouco relevante o carácter depreciativo da mensagem no cômputo de uma relação de cerca de quatro anos, ainda que com interregnos. Para além disso, ainda que se perceba que a afirmação de que vocês são mesmo de Chelas é uma crítica e não um elogio, fica por esclarecer o contexto em que foi naquelas duas vezes produzida, o que não é irrelevante dada a natureza menos evidente da mensagem em comparação com outras expressões de carácter ofensivo.
O ponto 6 da matéria de facto provada é importante no sentido de evidenciar que a ofendida não se sentia atemorizada pelo arguido, nem se deixava subjugar facilmente, tendo reagido de forma ousada, inopinada e enérgica, e também revelando pouca educação, a algo que – desconhecendo-se o seu teor – a terá desagrado na conversa entre o arguido e o contabilista de ambos.
Mas nada dali resulta que se possa apontar ao arguido em seu desfavor.
Resta a situação descrita nos pontos 8 a 15, 18 e 19 da matéria de facto provada.
E nesta situação, no que à ofendida BB respeita, mais uma vez – sem diminuir a gravidade da conduta levada a cabo pelo arguido, que deitou ao lixo um arroz que a ofendida cozinhou, numa atitude de profundo desprezo e humilhação, e desferiu sobre a mesma dois socos em frente ao filho menor de ambos e ao filho menor daquela –, verificamos a ocorrência de condutas agressivas e também provocatórias por parte daquela, onde não perpassa qualquer sentimento de receio ou subalternização face ao arguido.
Esta conduta do arguido, condenável, sem a menor duvida, não atinge aquele patamar de gravidade pressuposto pela previsão do crime de violência doméstica resultante de conduta única, não transparecendo qualquer intuito generalizado de controlo, humilhação e subalternização da ofendida no âmbito da relação de conjugalidade estabelecida com o arguido.
Estamos perante um episódio único em que o que sobressai, ponderando tudo o que se mostra provado no âmbito da relação entre arguido e ofendida, é um acesso de fúria por parte do arguido, com conduta igualmente desrespeitosa e agressiva por parte da ofendida, em que aquele perdeu as estribeiras e partiu para a violência a fim de impor a sua posição, mas não são evidenciados contornos de atentado à dignidade da ofendida pressupostos pela violência doméstica.
Percebemos que a relação entre este casal não era pacífica, até pelos interregnos que sofreu, mas ficou demonstrado que tal não resulta de conduta unilateral do ofendido, antes se evidenciando comportamentos insolentes e hostis por parte da ofendida, não resultando dos autos que assumia nesta relação uma posição mais frágil ou subjugável ao domínio pelo arguido.
Dito de outro modo, os factos não revelam que tenha sido por força de relacionamento onde o arguido, aqui recorrente, surge como figura dominadora, controladora, humilhadora, que coloca a visada numa posição de fragilidade e subjugação perante si, que a ofensa se produziu.
Não se mostra, pois, correcto o enquadramento da conduta do arguido na previsão do crime de violência doméstica.
Importa esclarecer que a decisão não é nula na acepção que o recorrente invoca (art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPPenal), isto é, por ter realizado diferente qualificação jurídica dos factos, que não merece acolhimento. Apenas errou na subsunção dos factos ao direito.
Contudo, e contrariamente ao defendido pelo recorrente, a solução não é a sua absolvição.
O comportamento do arguido reflectido nos pontos de facto em análise reconduz-se ao crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.º e 145.º, n.ºs 1, al. a) e 2, ex vi art. 132.º, n.º 2, al. b), todos do CPenal, que se mostra compreendido no crime violência doméstica.
Explicando.
Os socos disferidos à ofendida integram objectivamente a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º do CPenal, mas todo o contexto que rodeou a prática dessa agressão eleva o patamar de censurabilidade, atenta a especial perversidade e censurabilidade da conduta global.
Com efeito, a vítima era pessoa de outro sexo com quem o arguido mantinha uma relação análoga à dos cônjuges, sendo também progenitora de descendente comum em 1.º grau (art. 132.º, n.º 2, al. b), do CPenal).
Essa condição deve determinar um grau de respeito acrescido face a outros menos próximo, pois os laços familiares básicos ou idênticos, «devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade», sendo certo que a desinibição que a intimidade relacional propicia «não pode constituir um factor de tolerância da violência, fundando o legislador precisamente nessas relações um juízo de censura penal agravado.»[5]
Figueiredo Dias[6], por referência ao crime de homicídio qualificado, transponível para os demais crimes onde essas circunstâncias estão previstas, explica que «[o] especial tipo de culpa do homicídio doloso é em definitivo conformado através da verificação da “especial censurabilidade ou perversidade” do agente. À primeira vista dir-se-ia que, traduzindo-se a culpa jurídico-penal, em último temo, em um juízo de censura, apelar tipicamente para uma especial censurabilidade só poderia ter o significado tautológico e, como tal, inútil e equívoco, de apelar para uma culpa especial. Parece ser outro, todavia, o pensamento da lei e, na verdade, o de pretender imputar à “especial censurabilidade” aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à “especial perversidade” aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (na conclusão, ao que nos foi dado compreender, também TERESA SERRA, Homicídio Qualificado cit. 62 ss., louvando-se em lição oral de Sousa e Brito que, na argumentação, distinguiria componente da culpa relativos ao facto e ao agente, como de resto se encontra divulgado na doutrina alemã relativa à medida da pena: cf. SOUSA E BRITO, Homenagem Eduardo Correia III 1987 573 ss.; criticamente FIGUEIREDO DIAS, DP II § 284 ss. e ANABELA RODRIGUES, A Medida da Pena 1994 524 ss.). Esta distinção fica justificada, no essencial, quando se analisa a mais de perto cada um dos exemplos-padrão contidos nas diversas alíneas do art. 132º-2 e o seu significado para o “tipo orientador” em função do qual é construído o tipo de culpa.»
Nas palavras do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-03-2010[7], «[a] especial censurabilidade, documenta no facto, referentemente ao agente, uma forma da respectiva realização especialmente desvaliosa. A especial perversidade evidencia que o agente na materialização do facto é portador de qualidades altamente desvaliosas ao nível da personalidade, merecedor de um juízo de culpa agravado, neste sentido (cf. Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I volume, pág. 29).»
O acto de violência cometido na constância da vivência em comum é particularmente condenável, mas pode – fora do enquadramento do crime de violência doméstica, como é o caso dos autos – consubstanciar a prática de crime de ofensa à integridade física simples, de ofensa à integridade física grave ou de ofensa à integridade física qualificada, consoante o grau de lesão dos bens jurídicos em causa e as circunstâncias concretas da situação
No caso concreto, estamos perante agressão de mediana gravidade, consubstanciada em dois socos, desferidos na cara e no abdómen, e que causaram dor localizada à ofendida, objectivamente enquadráveis como ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º do CPenal, como se referiu.
Porém, a motivação do arguido, relacionada com o acompanhamento do almoço (arroz), mesmo ponderando a conduta desrespeitosa e agressiva da ofendida, afigura-se especialmente censurável, com laivos de proximidade ao motivo fútil. Para além disso, a forma de execução do acto é também especialmente censurável, posto que a agressão é realizada em frente ao filho menor do casal, de quatro anos, a quem aquela estava a dar a sopa, e ao filho menor da ofendida, de treze anos, potenciando o sofrimento psicológico desta, desde logo, pela humilhação sofrida de se ver tratada de tal forma junto dos filhos.
Esta forma de tratamento dispensada pelo arguido à ofendida, mesmo sopesando a sua quota de responsabilidade na escalada de violência, encerra sem dúvida uma culpa acrescida, um especial desvalor de atitude, que conforma o tipo legal de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.º e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. b), todos do CPenal.
No que concerne aos factos respeitantes ao ofendido CC, verificamos que resulta do ponto 12 da matéria de facto provada que no decurso deste episódio [do arroz] o filho de ambos presenciou as agressões, assim como o filho da vítima CC, que, cessadas aquelas, procurou saber junto da mãe se ela estava bem e depois interpelou o recorrente no sentido de saber o que se passou, o que ele fez à mãe, altura em que o mesmo lhe dá um estalo da face.
Pretende o recorrente que se considere o referido estalo como uma lesão insignificante, sendo atípica a conduta.
Ora, independentemente da força exercida sobre a face do menor, que não vem descrita, há que enquadrar este estalo dentro da normal latitude que um estalo encerra, e que não como uma lesão insignificante.
Na verdade, «[n]ão constitui condição de relevância típica a provocação de dor ou mal-estar corporal, incapacidade da vítima para o trabalho, aleijão ou marca física»[8].
No citado acórdão decidiu-se ainda, com o que concordamos, que «[o] acto de agarrar alguém pelo braço e de lhe desferir várias pancadas na cabeça e no ombro, com uma mala-mochila, ainda que pequena, exprime de forma inequívoca, do ponto de vista ético-social, uma agressão no corpo, um “ataque”, um gesto molestador, independentemente do efeito e ainda que o acto seja cometido por uma mulher e o visado seja um jovem de 18 anos de idade».
Ora, na situação dos autos, em que o ofendido vê, momentos antes, o arguido a desferir dois socos na sua mãe e de seguida, quando interpela aquele sobre o que se passou, é-lhe desferido um estalo na cara, a única leitura que se pode fazer, seja na perspectiva do ofendido, seja na da generalidade das pessoas, e independentemente da pressão exercida ao ser desferia a estalada, é que ocorreu ali um acto de agressão, um ataque ao corpo do ofendido.
Sem prescindir daquele invocado entendimento, alega ainda o recorrente que, a ser considerada uma ofensa à integridade física, a referida conduta não permite afirmar a especial censurabilidade decorrente apenas do desferimento de um estalo numa situação de tensão familiar que até determinou o fim da relação do casal.
E consideramos que assiste razão ao recorrente neste ponto, pois também aqui se deve considerar, à semelhança da situação julgada no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12-09-2017 invocado[9], que «[p]onderado conjugadamente este circunstancialismo, e sem escamotear o desvalor e a censurabilidade da conduta da recorrente, entendemos que a imagem global do facto não permite afirmar uma especial censurabilidade ou perversidade da recorrente, não ultrapassando o limiar do tipo de culpa pressuposto na previsão típica do crime de ofensa à integridade física simples, cuja moldura penal ademais tem elasticidade suficiente para o sancionamento de condutas deste jaez.»
Não é irrelevante nesta avaliação a circunstância de as agressões à ofendida BB já terem cessado e de o ofendido, no fundo, ter ido pedir explicações ao arguido a propósito da agressão que este exerceu sobre a sua mãe, em momento em que os ânimos estavam exaltados e havia muita tensão, percebendo-se que aquele gesto [estalo] foi uma reacção descontrolada.
Com efeito, se a factualidade apurada tivesse demonstrado, o que não se veio a confirmar, que o ofendido tinha ido em defesa da sua mãe, procurando fazer terminar as agressões em curso, e que nesse processo o arguido o tinha agredido, o juízo poderia ser diferente. Mas tendo sido clarificado esse ponto de facto nos termos em que o foi, e estando em causa apenas um estalo, há que entender que a qualificação jurídica correcta é a que reconduz a conduta do arguido à prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º do CPenal.
Por fim, no segmento da qualificação jurídica coloca o recorrente a questão da errónea aplicação da sanção acessória de afastamento, aplicada ao abrigo do disposto no art. 152.º, n.ºs 4 e 5, do CPenal.
Ora, uma vez desaparecida a condenação pela prática do crime de violência doméstica, automaticamente desaparece a condenação do recorrente na referida pena acessória, mostrando-se prejudicada a questão colocada.
A questão da determinação da medida concreta das penas não foi questionada pelo requerente, pelo que a apreciação efectuada na sentença aos factores relevantes para fixação das penas tem-se por assente, com as necessárias adaptações[10].
O crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.º e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. b), e ainda 41.º, n.º 1, todos do CPenal, é punido com pena de 1 (um) mês a 4 (quatro) de anos de prisão.
Por sua vez, o crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º e art. 47.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPenal é punido com pena 1 (um) mês a 3 (três) anos de prisão ou 10 (dez) a 360 (trezentos e sessenta) dias de multa.
De acordo com o art. 40.º do CPenal, as finalidades das penas são a protecção de bens jurídicos e a socialização do agente do crime, determinando-se que a culpa constitui o seu limite. Ou seja, é estabelecido, no que respeita à função e fins das penas, um modelo de prevenção[11], que exclui a culpa como seu fundamento.
E é dentro deste quadro que devem ser interpretados e aplicados os critérios de determinação da medida concreta da pena inscritos no art. 71.º do CPenal, os quais «devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente»[12].
Importa, ainda, ter presente que nos termos do art. 70.º do CPenal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, como ocorre no caso concreto relativamente ao crime de ofensa à integridade física simples, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Para avaliar da necessidade da opção pela pena de prisão importa, fundamentalmente, atender à personalidade do agente, conduta anterior e circunstâncias dos crimes, para aquilatar da probabilidade de a socialização só poder ter êxito com o cumprimento da pena de prisão.
No caso concreto, atento o contexto, de enorme desvalor da conduta, em que foi praticada a agressão ao ofendido CC, em continuidade próxima com a agressão infligida à ofendida BB, entende-se que as finalidades da punição resultariam goradas com a aplicação ao arguido de uma pena de multa, dada a gravidade global da conduta quanto ao ofendido em questão, que impõe a aplicação de sanção mais severa, apresentando-se a pena de prisão como única medida capaz de estabilizar as expectativas de reposição da ordem jurídica e da confiança na validade da norma violada e no cumprimento do direito por parte da comunidade, que não podem ser defraudadas.
Assim, quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.º e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. b), todos do CPenal, mostra-se adequado fixar ao arguido uma pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.
E no que concerne ao crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º do CPenal, mostra-se adequado fixar ao arguido uma pena de 5 (cinco) meses de prisão.
Efectuado o cúmulo jurídico destas penas parcelares, à luz dos critérios fixados na sentença recorrida, e tendo presente que a moldura penal abstracta da pena conjunta varia entre um mínimo de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses e um máximo de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão, mostra-se adequado fixar ao arguido uma pena única de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, que, pelas razões também avançadas na sentença recorrida, deve ser suspensa na sua execução por igual período, embora sem fixação de condições, que não se afiguram necessárias para a interiorização do mal cometido e a reinserção do condenado, considerando a ausência de antecedentes criminais e a cessação pelo arguido, em Janeiro de 2021, ou seja, há mais de três anos, da relação que teve com a ofendida, não havendo notícia de incidentes posteriores.
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em, concedendo parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA:
a) - Proceder à alteração da matéria de facto nos termos supramencionados;
b) - Proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos nos termos supramencionados, e bem assim das penas aplicadas, e, em consequência, condenar o arguido:
b1) - Pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.º e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, por referência ao art. 132.º, n.º 2, al. b), todos do CPenal (ofendida BB), numa pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão;
b2) - Pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143.º do CPenal (ofendido CC), numa pena de 5 (cinco) meses de prisão;
c) - Em cúmulo jurídico das penas parcelares indicadas em b1) e b2), condenar o arguido na pena única de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
Sem tributação (art. 513.º, n.º 1, do CPPenal).
Notifique.
Maria Luísa Arantes
Donas Botto