COMPRA E VENDA COMERCIAL
DENÚNCIA DOS DEFEITOS
PRAZO DE DENÚNCIA
PRAZO DE CADUCIDADE
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I - No âmbito do disposto no art. 471.º do Cód. Comercial, o início do prazo de oito dias aí referido não se conta sempre da data da entrega, mas antes a partir do momento em que o comprador, se atuasse com a diligência exigível ao tráfego comercial, teria descoberto os defeitos. Tal significa que tal prazo de 8 dias, contado da data da entrega da coisa para a denúncia dos defeitos, só opera relativamente aqueles defeitos que possam ser detetados através do simples exame/inspeção do bem objeto do contrato.
II - Sendo o prazo fixado no art. 471.º do Cód. Comercial um prazo de caducidade, aplica-se ao mesmo o regime previsto no n.º 2 do art. 342.º do Cód. Civil, face ao que é sobre o vendedor que recai o ónus de prova de que a comunicação dos defeitos foi efetuada para além do prazo de 8 dias, contados do seu conhecimento pelo comprador.
III - Resultando da factualidade provada que o vendedor, perante a comunicação efetuada pelo comprador de concretas anomalias no funcionamento da máquina vendida, sempre atuou no sentido de as reparar, inclusive procedendo à substituição de peças/componentes da máquina vendida com vista à eliminação de tais anomalias, tal atuação configura um reconhecimento da existência dos defeitos comunicados e do direito do comprador à sua eliminação, constituindo assim causa impeditiva da caducidade dos direitos do comprador previstos no art. 914.º do Cód. Civil, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 331.º do Cód. Civil.

Texto Integral

Processo 1708/23.8T8MTS.P1 – Apelação

Tribunal a quo Juízo Local Cível de Matosinhos – J4

Recorrente(s) A... Lda

Recorrido(a/s) AA

Sumário:

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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:


I. Relatório

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

AA instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra A..., Lda, peticionando “(…) se digne declarar resolvido o contrato de compra e venda do equipamento ..., e, consequentemente a devolução à Autora do preço pago acrescido de juros a taxa legal, no valor total de 13.628,40€, por esta à Ré e consequente entrega do equipamento.

Se assim não se entender, e subsidiariamente, deverá a Ré ser condenada a entregar à Autora uma máquina nova em substituição da máquina entregue.

Requer ainda a condenação da Ré ao pagamento da quantia de 2.000,00 € pelos danos sofridos pela Autora, a título de indemnização.”

Para tanto, alegou que adquiriu à ré, para o exercício da sua atividade comercial, uma máquina de lavar e secar animais domésticos, pelo preço de € 13.628,40, que pagou, equipamento esse que, desde a instalação e montagem, realizada pela ré, apresenta problemas/anomalias, das quais reclamou, e que apesar das diversas intervenções/reparações efetuadas pela ré, não foram integralmente eliminadas, pelo que, tendo a ré recusado a peticionada substituição da máquina, pretende resolver o contrato, com a restituição das prestações efetuadas.

Alega que sofreu prejuízos e incómodos para resolver os problemas de funcionamento que se foram verificando.

Citada, a ré contestou, defendendo-se por exceção (caducidade) e por impugnação.

A autora exerceu o contraditório quanto à exceção de caducidade, e apresentou articulado superveniente (requerimento de 20-06-2023, ref. 35989051), alegando manterem-se problemas de funcionamento, o que comunicou em 26 de abril de 2023 – relativamente à qual à ré fez deslocar técnico para a resolução – e, novamente, no dia 5 de junho, quanto a nova paragem de funcionamento do equipamento, ocorrida no dia 4 de junho, já anteriormente verificada e que não foi resolvida, sem que a ré tenha respondido a esta comunicação, de onde resulta existir uma avaria total e irreparável da máquina.

Exercido contraditório pela ré, opondo-se à admissão do articulado, a autora, em 07-09-2023 (ref. 36576491), apresenta novo requerimento alegando que as anomalias da máquina persistem durante o mês de agosto, o que comunicou à ré em 17 de agosto, a qual se deslocou para a efetuar a sua resolução, tendo apresentado relatório da intervenção efetuada do qual não consta a causa que deu origem à anomalia.

A ré opôs-se à admissão deste requerimento/articulado.

Na fase intermédia da ação (despacho de 13-11-2023, ref. 453652433), foram admitidos os articulados supervenientes e dado prazo para exercício de contraditório pela ré à factualidade alegada, foi fixado o valor da causa, o objeto do litígio e os temas da prova, proferido despacho quanto à admissão dos meios de prova e designada data para julgamento.

A ré, na resposta ao articulado superveniente (requerimento de 27-11-2023, ref. 37404837), “impugnou os factos alegados pela Autora que estejam em contradição com a tese apresentada pela Ré”, e excecionou a caducidade do direito de ação da autora relativamente a tais factos por, reportando-se aos meses de abril a agosto de 2023, terem ocorrido após o prazo de seis meses de garantia previsto no artigo 921.º do Código Civil, e alegou ainda que sempre prestou assistência efetuando todas as reparações de anomalias que lhe foram comunicadas, e que desde agosto de 2023 que não foi comunicada qualquer anomalia ou feita qualquer reclamação pela autora, de onde se depreende que o equipamento se encontra em normal e pleno funcionamento.

A autora exerceu o contraditório quanto a tal requerimento.

Em 15-01-2023 (ref. 455627939) foi proferido despacho de admissão do contraditório da ré aos articulados supervenientes apresentados pela autora e determinada a inclusão dessa matéria nos temas da prova e objeto do litígio.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, decidiu nos seguintes termos:

a) julgo improcedente o pedido de resolução do contrato, absolvendo a ré do mesmo, bem como da devolução do peço pago pelo equipamento;

b) condeno a ré a proceder à substituição do equipamento, entregando à autora um equipamento novo, igual ao atual;

c) condeno a ré a pagar à autora a quantia de 750,00€ (setecentos e cinquenta euros);

d) No demais, absolvo a ré do pedido.

Inconformada com a sentença, a ré interpôs recurso de apelação, concluindo, no essencial:

(…)

C. Ora, em primeiro plano, no que concerne à apreciação da matéria de facto, a recorrente considera que o Tribunal a quo andou mal ao julgar como provados os factos 22 e 24 da matéria de facto dada como provada.

D. O facto 22 reporta-se ao problema da caldeira/termoacumulador, onde foi detetada uma fuga de água por baixo do termoacumulador.

E. Esta anomalia não é comum nos equipamentos comercializados pela recorrida, tal como foi afirmado pela própria legal representante da A..., pelo que a resolução passou pelo método tentativa-erro.

(…)

G. Até que com intervenção que o técnico BB, em 22-08-2023, o problema ficou solucionado com colocação de uma mangueira na válvula de segurança da caldeira para o esgoto – conforme Doc. 2 junto aos autos mediante requerimento apresentado pela autora a 07-09-2023.

H. Desde então, a caldeira não verte água para dentro do equipamento.

I. Note-se, contudo, que, durante este período de tentativas de resolução do problema, a máquina nunca esteve imobilizada, pois, como se verá adiante, este problema não impedia o normal funcionamento da máquina.

J. Neste sentido e salvo melhor opinião, o facto 22 foi incorretamente julgado na medida em que leva a crer que o problema da caldeira ficou solucionado com a diminuição da temperatura da caldeira, o que, como se explicou, não foi o que realmente aconteceu.

K. Da mesma forma, a recorrida não se pode conformar com o teor do facto 24, onde julgou o Tribunal a quo que os problemas/anomalias (referindo-se, presumivelmente, às anomalias elencadas nos factos anteriores, designadamente no facto 23, onde se refere precisamente a questão da fuga de água na caldeira) mantiveram-se e mantêm-se.

L. Sobretudo, quando - de forma diametralmente oposta - no facto 29, dá como provado precisamente o contrário: o problema da queda constante água da caldeira mostra-se solucionado.

M. Importa atender aqui às declarações da recorrida sobre o problema da caldeira e sobre as anomalias que se verificaram à data da realização da audiência de julgamento (00:15:00 a 00:15:40; 00:16:04 a 00:16:15; 00:51:36 a 00:51:55).

N. Também a legal representante da ré e os técnicos que efetuavam as intervenções à máquina confirmaram que todas as anomalias, onde se inclui a questão da caldeira, se encontram resolvidas, não tendo havido qualquer reclamação por parte da recorrida desde agosto de 2023 até fevereiro de 2024 (00:03:08 a 00:05:40; 00:08:40 a 00:09:27).

O. Conclui-se, portanto, que: o problema da fuga de água da caldeira encontra-se, de facto, solucionado, em termos definitivos, como a própria recorrida reconhece (e como o Tribunal a quo dá como provado no facto 29), sendo que desde agosto de 2023 até à presente data não voltou a verificar-se, nem foi efetuada qualquer reclamação nesse sentido.

P. O problema da fuga de água no termoacumulador não impede o normal funcionamento da máquina e a máquina nunca esteve parada ou fora de serviço por conta desta anomalia.

Q. Ao contrário do que é afirmado no facto 24, os problemas não se mantêm à presente data: a única anomalia que ainda se verificou, à data da realização da audiência de julgamento, foi o erro relativo à placa C000,tratando-seeste erro da única anomalia que ainda ocorre esporadicamente.

R. Neste sentido, deve o facto 22 ser alterado da seguinte forma: 22. A caldeira foi mudada a 9 de dezembro de 2022, tendo o problema da fuga de água por baixo do termoacumulador persistido até 22 de agosto de 2023, data em que foi solucionado definitivamente com a intervenção do técnico BB.

S. E o facto 24: 24. O problema da fuga de água e do erro na placa foram reportados pela autora, conforme e-mails remetidos pela autora nos dias 7, 12, 23, 25, 26 e 28 de dezembro de 2022, conforme documento 15 junto com a petição inicial.

T. Devem, ainda, ser aditados os seguintes factos novos à matéria de facto dada como provada:

U. A anomalia respeitante à fuga de água no termoacumulador não impede o normal funcionamento da máquina e esta nunca esteve parada por conta deste problema.

V. A máquina em questão esteve completamente operacional desde 22 de agosto de 2023 (data da última intervenção da ré) até 27 de janeiro de 2024, data em que se verificou novamente o erro C000.

W. Desde 22 de agosto de 2023, não foi reportada qualquer anomalia por parte da autora à ré.

X. Por sua vez, os factos 28 e 31 também merecem censura na medida em que, o documento junto em sede de audiência final não faz qualquer prova de que se mantém a anomalia do secadorque motiva que a máquina vá abaixo, uma vez que o referido documento é apenas uma fotografia do tal erro C000, relativo à placa de software que bloqueia na inserção de notas e moedas.

Y. Veja-se as declarações da recorrida sobre a questão: 00:09:51 a 00:10:58; 00:11:03 a 00:11:13).

Z. Por outro lado, nem se consegue precisar quando é que foi efetuada a reclamação do problema relativo ao secador provocara “ida abaixo da máquina”, pois, tal reclamação não consta de nenhum e-mail junto aos autos, nas seguintes datas: 11/10/2022, 26/10/2022 e 10/02/2023.

AA. Razão pela qual, entende a recorrente que não podia o Tribunal a quo dar como provado um facto relativo a uma anomalia que não consta de nenhum elemento probatório carreado para o processo.

BB. Pelo que, impõe-se a alteração do facto 28 nos seguintes termos: 28. Atualmente mantém-se a anomalia referentes ao Erro C 000, que impede a máquina funcionar, conforme documento junto em audiência final.

CC. Pelas mesmas razões aqui elencadas, impõe-se igualmente a exclusão da alínea e) dos factos não provados.

DD. Também não se compreende como é que este douto Tribunal dá como provado o facto 31, isto é, que não ficou resolvido o problema da “água no secador” quando a própria autora, ora recorrida, nas suas declarações afirma – expressamente - o contrário! (00:49:19 a 00:49:56)

EE. Nestes termos, o problema do secador ficou indubitavelmente resolvido, pelo que, o facto 31 deverá ser alterado para o seguinte: 31. Ficou definitivamente resolvido o problema da água no secador.

FF. Ao contrário do que é dado como provado no facto 34, a autora nunca se deslocou ao local da máquina pelo não funcionamento da mesma.

GG. Ou seja, as anomalias que iam sendo reportadas e que eram objeto de reparações esporádicas nunca paralisaram o negócio da autora, na medida em que a máquina nunca ficou imobilizada.

HH. Veja-se, a propósito, as declarações da legal representante da recorrente (00:18:26 a 00:19:50).

II. As anomalias objeto de reclamações não impediam, de todo, o funcionamento da máquina, que nunca esteve parada, conforme se pode extrair da prova documental junta aos autos e da prova testemunhal produzida em sede de audiência.

JJ. Nem mesmo o erro C000 implica a imobilização da máquina (apenas se trata de um bloqueio temporário), na medida em que a autora, diversas vezes, referiu que conseguiu solucionar o problema ao dirigir-se à loja para desligar e voltar a ligar a máquina.

KK. Neste sentido, entende a recorrida que o facto 36 deve ser excluído e o facto 34 deve ser alterado nos seguintes termos: 34. Inúmeras vezes a autora deslocou-se ao local da máquina para reparar algumas anomalias que impediam a seu integral funcionamento, designadamente o erro C000 que fazia com que a máquina bloqueasse e parasse, a fuga de água no termoacumulador, entre outras.

(…)

CCC. Devem ser considerados não provados os factos 39, 40, 42 e 43 da factualidade dada como provada, na medida em que a recorrida não logrou demonstrar a factualidade subjacente e, ao contrário do que considera o Tribunal a quo, as regras de bom senso e normalidade das coisas impõem uma decisão totalmente oposta à proferida por este douto Tribunal.

DDD. Por fim, no que toca à alínea b) dos factos não provados, entende a recorrida que o mesmo não foi apreciado corretamente, pois foi alegado e provado pelo depoimento dos técnicos da ré que esta realizou uma intervenção à máquina no seguimento do referido nos factos 33 e 34. Fê-lo em 27 de março de 2023, data concomitante à entrada da petição inicial (28/03/2023).

EEE. No mais, a própria recorrida que destaca a boa fé e disponibilidade sempre demonstradas pela recorrente. Veja-se as suas declarações (00:09:37 a 00:09:50; 00:12:36 a 00:12:45) e das da legal representante da recorrente (00:18:26 a 00:19:50).

FFF. A recorrente deduziu, em sede de contestação, a exceção perentória de caducidade, por decurso do prazo para a denúncia dos defeitos e para a propositura da presente ação.

GGG. Nos termos do artigo 471.º do Código Comercial, “(…) se o comprador examinar as coisas compradas no acto da entrega e não reclamar contra a sua qualidade, ou, não as examinando, não reclamar dentro de oito dias”.

(…)

III. Assim, os defeitos da coisa devem ser reclamados no prazo de 8 dias contados desde a entrega da coisa ou do momento em que o comprador se depara como defeito, mas sempre dentro de um prazo máximo de 6 meses contados desde entrega da coisa – artigo 916.º, 917.º e 921.º, n.º 2 e 3 do Código Civil, aplicados ex vi artigo 3.º do Código Comercial.

(…)

NNN. A verdade é que, a 30 de dezembro de 2022, data em que terminou o prazo geral supletivo de garantia, a máquina estava totalmente operacional: foi realizada uma intervenção à máquina pela recorrente precisamente nesta data, tendo resultado, após a realização de testes, que a mesma se encontrava em pleno funcionamento.

OOO. Pelo que, os defeitos ocorridos já depois do decurso deste prazo de 6 meses, contados desde a entrega da coisa, e, por conseguinte, após o prazo legalmente previsto para a garantia de bom funcionamento do equipamento, já não são da responsabilidade da parte vendedora.

PPP. No entanto, o Tribunal recorrido entendeu que a conduta colaborante da recorrente é entendida como um reconhecimento e assunção de responsabilidade pelas anomalias, que impediu o decurso do prazo de caducidade, nos termos do artigo 331.º do Código Civil.

QQQ. E, por outro lado, entendeu que a recorrida exerceu os seus direitos atempadamente, não tendo a ré, ora apelante, logrado fazer prova que a primeira deixou passar o prazo de 8 dias em relação a algum dos defeitos.

RRR. A recorrente não se pode conformar com a posição adotada pelo Tribunal recorrido, porquanto, no que respeita ao prazo de 8 dias para a denúncia dos defeitos, importa realçar que os primeiros problemas detetados pela recorrida foram reportados telefonicamente, segundo a própria afirmou e tal como consta da factualidade dada como provada (facto 13).

SSS. A doutrina e jurisprudência não têm uma posição unânime acerca do início da contagem deste prazo de 8 dias: conta-se a partir da entrega da coisa ou do conhecimento do vício?

TTT. O Supremo Tribunal de Justiça já doutrinou que o prazo de 8 dias para a reclamação se conta a partir do momento em que o comprador teve, ou podia ter tido conhecimento de vício, se agisse com a diligência exigível ao tráfego comercial.

UUU. A propósito, diga-se que o equipamento foi entregue no dia 30-06-2022 e foi montado e testado pelos técnicos que trabalham para a ora apelante, tendo a máquina ficado a funcionar no mesmo dia.

VVV. Foi exatamente graças a essa montagem e à realização dos respetivos testes que foi possível identificar, desde logo, o problema do noteiro.

WWW. Dito isto, logo a 30-06-2022, as partes e, em especial, a recorrida, atuaram de forma diligente, tornando-se possível, nesse mesmo dia, a perceção de todos defeitos do equipamento – através da realização de testes, tal como sucedeu.

XXX. Assim, no caso em apreço, considera-se que o prazo de 8 dias deverá ser contado desde a entrega do equipamento, visto que, nessa data, a recorrida estava em condições de se aperceber dos defeitos da máquina.

YYY. Feita esta ressalva, é necessário salientar que também andou mal o Tribunal recorrido ao ter onerado a ora apelante com o ónus da prova da (in)tempestividade da denúncia dos defeitos.

(…)

DDDD. Assim, o ónus de prova sobre a tempestividade da referida denúncia recaia sobre o comprador, ora recorrido, e não sobre a vendedora, como decidiu este douto Tribunal.

EEEE. Relativamente ao segundo argumento utilizado pelo Tribunal recorrido - o reconhecimento dos defeitos e a sua necessidade de reparação pela ré -, também não merece colhimento, como veremos.

FFFF. Em primeiro lugar porque não se pode entender que a recorrente, ao ter agido de boa fé por tentar solucionar as anomalias da máquina, reconheceu-os como defeitos de fabrico e se responsabilizou por eles.

GGGG. Este raciocínio levaria a uma deturpação total do sentido interpretativo do princípio da boa fé negocial dentro do nosso sistema jurídico, na medida em que alguém ficaria prejudicado precisamente por ter atuado de boa fé.

(…)

LLLL. Por outro lado, parece-nos plausível que o reconhecimento dos defeitos para ser suscetível de impedir o decurso do prazo de caducidade terá que ser um reconhecimento expresso, solene e incontestável.

MMMM. Caso contrário, poderá ser apenas uma tentativa de resolução amigável e de boa fé dos problemas, sem haver, necessariamente, uma assunção de responsabilidade e de culpa.

NNNN. No caso em apreço, a recorrente nunca reconheceu – muito menos, de forma clara e evidente, como se exige – que as anomalias detetadas eram defeitos de fabrico ou assumiu responsabilidade pelas mesmas.

OOOO. Note-se que, na missiva endereçada à recorrida (junta como Doc. 13 da petição inicial), em resposta à carta onde a mesma comunica a intenção de resolver o contrato, é declinada qualquer tipo de responsabilidade (…)

RRRR. Também se pode extrair a mesma conclusão das declarações da autora em sede de audiência de julgamento (00:51:55 a 00:52:17).

SSSS. Neste sentido, deve a referida decisão ser revogada, decretando-se a exceção de caducidade por decurso do prazo para a realização da denúncia dos defeitos, pois

TTTT. a ora apelada não logrou provar que procedeu à sua reclamação dentro do prazo de 8 dias que a lei determina para o efeito, nem resulta da prova carreada para os autos que a recorrente reconheceu, de forma expressa e incontestável, que as anomalias reclamadas pela recorrida eram defeitos de fabrico do equipamento e que lhe eram imputáveis.

UUUU. Diga-se ainda, que o mesmo raciocínio se aplica para o prazo de caducidade do direito à ação previsto no artigo 917.º do Código Civil.

VVVV. Entendeu a sentença recorrida que o prazo de 6 meses previsto no referido preceito se deverá contar a partir da última intervenção efetuada pela recorrente, a 30-12-2022, justificando, para o efeito, que não fazia sentido intentar uma ação com a a executar reparações e substituições de peças.

WWWW. É de se referir que, quando a presente ação foi apresentada, a recorrente continuava (tal como continuou durante a pendência do processo) a fazer reparações e a prestar serviço de assistência ao equipamento entregue à recorrida.

XXXX. Se ao argumento é válido naquele momento, também o é agora, visto que as reparações se protelaram no tempo.

YYYY. Por outro lado, seguindo a doutrina já aqui referenciada de Pedro Romano Martinez, tal denúncia ou reclamação nunca pode exceder o prazo de seis meses, contado após a data da entrega/recepção da coisa.

(…)

BBBBB. De acordo com a posição unanime da nossa doutrina e jurisprudência, o prazo em apreço conta-se, indiscutivelmente, desde a entrega da coisa. Pelo que, as reclamações efetuadas após esse prazo (que no caso dos autos, findou a 30-12-2022) são consideradas juridicamente irrelevantes.

CCCCC. Deve, assim, ser revogada a decisão recorrida e ser julgada procedente a exceção de caducidade invocada pela apelante.

DDDDD. Enquadrando o caso em apreço no regime da compra e venda de bens defeituosos e, por conseguinte, no âmbito da responsabilidade contratual, o incumprimento do contrato foi determinado pelo facto de a recorrente estar obrigada a entregar o bem móvel, objeto do contrato, à recorrida, sem irregularidades, nem defeitos.

EEEEE. Antes de mais, os defeitos que merecem tutela do direito serão apenas os que impediam a realização do fim a que a máquina se destinava, pelo que a procedência do peticionado pela Autora dependia da prova - que a onerava, enquanto factualidade constitutiva do seu direito (art.º 342º, 1, do CC) -, da essencialidade daqueles defeitos em termos de funcionalidade da máquina (…).

FFFFF. Competindo ao comprovar provar não a sua existência como também que a sua gravidade impossibilita ou afeta o seu uso, ou acarreta a sua desvalorização.

GGGGG. Conforme já foi aqui esclarecido, as anomalias que a recorrida detetou não impediam o normal funcionamento da máquina, a qual nunca esteve imobilizada ou fora de serviço em resultado das mesmas.

HHHHH. A recorrida não logrou provar da essencialidade daqueles defeitos para o normal funcionamento da máquina.

IIIII. Muito pelo contrário: aqui remete-se para as suas declarações sobre a fuga da água do termoacumulador, onde refere expressamente que esse problema não implica a paralisação da máquina, trata-se apenas de “água a pingar”.

JJJJJ. Pelo que, as anomalias em questão não são consideradas “defeitos” segundo terminologia adotada pela doutrina, o que prejudica a aplicação do regime jurídico da venda de coisa defeituosa e as suas consequências, mormente, a obrigação de substituição da coisa.

KKKKK. Por outro lado, o Tribunal recorrido entendeu que a recorrente não ilidiu a presunção de culpa que sobre si impende, pois, a defesa apresentada pela baseia-se na existência de culpa da sua parte, referindo que sempre colaborou na resolução dos problemas.

LLLLL. À luz da sentença recorrida, foi precisamente a conduta da recorrente - de boa fé, ao tentar resolver os problemas que iam sendo detetados pela recorrida – que determinou a sua culpa, ainda que de forma negligente, e a assunção da mesma.

MMMMM. Mais uma vez, coloca-se aqui a questão da deturpação do sentido lógico inerente ao princípio da boa fé: poderá a conduta da recorrente ser considerada, por um lado, de boa fé, e por outro, culposa?

(…)

QQQQQ. Como é referido, e bem, na sentença recorrida, o devedor não responde pelos causados ao credor quando, de acordo com as circunstâncias do caso, se concluir que o mesmo não pode ser censurado, porque não lhe era exigível agir de outra forma.

RRRRR. Temos para nós que é precisamente esse o caso dos autos: a conduta da recorrente não merece censura porque não lhe era exigível fazer mais do que aquilo que fez.

SSSSS. Uma nota adicionalpara a questão relativa à placa de software onde aparece o tal erro C000: a recorrida reconhece que a recorrente tudo fez para solucionar este problema, na medida em que trocou a placa diversas vezes, tirou e voltou a pôr, fez uma limpeza dos contactos, etc. (…)

UUUUU. A verdade é que a recorrente desconhece qual é a causa deste problema, porquanto a placa não é fabricada pela própria. Por essa razão, chegaram a contactar o fabricante das referidas placas, porém, os próprios também ainda não conseguiram detetar qual é o problema que faz com que haja um bloqueio no moedeiro ou no noteiro (00:07:04 a 00:07:49; 00:10:34 a 00:10:54).

VVVVV. Neste âmbito, entende a doutrina que o vendedor e o empreiteiro podem afastar a responsabilidade derivada de cumprimento defeituoso se fizerem a prova da existência de uma causa estranha que tenha estado na origem do defeito.

WWWWW. Também por este motivo, isto é, facto imputável a terceiro, o Tribunal a quo não poderia qualificar a conduta da recorrente como culposa.

XXXXX. A falta de preenchimento dos requisitos essenciais à aplicação do regime da responsabilidade contratual, determina que fique, desde logo, prejudicada a apreciação dos restantes requisitos (prejuízo e nexo de causalidade).

YYYYY. Em resultado, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que determina a improcedência da ação e do pedido de resolução ou substituição da máquina, por não se encontrarem preenchidos os requisitos da responsabilidade contratual.

ZZZZZ. Subsidiariamente e caso assim não se entenda, se o douto Tribunal ad quem decidir manter a sentença recorrida, considera-se essencial fazer uma ponderação e balanço entre os benefícios que a recorrida venha a ter com a substituição da máquina e os prejuízos que esta substituição acarrete para a recorrente.

(…)

GGGGGG. Em conclusão, o equipamento é composto por unidades independentes, substituíveis e completamente autónomas ao nível da sua função.

HHHHHH. O único problema que aparece, esporadicamente, no equipamento, encontra-se na placa, que está associada ao noteiro e moedeiro, reportando-se, segundo esta explicação, aos elementos de menores dimensões e acessíveis ao utilizador.

IIIIII. É de ressalvar que as restantes componentes da máquina estão totalmente operacionais, designadamente a primeira parte do equipamento, no âmbito da qual não foi efetuada qualquer reclamação pela recorrida.

JJJJJJ. Pelo que, tratando-se de uma máquina composta por unidades autónomas e divisíveis entre si, a condenação da recorrente na substituição da máquina na sua totalidade, levaria à substituição de componentes sobre as quais não foram efetuadas quaisquer reclamações, causado custos desnecessários, tanto para a recorrente (que será obrigada a substituir todas as componentes, nomeadamente, as que se encontram perfeitas condições de funcionamento),

KKKKKK. quer para a recorrida (que terá, por exemplo, um custo associado com a remoção da porta de entrada da loja, necessária para a passagem e montagem do equipamento).

LLLLLL. Em termos monetários, a mudança total do equipamento terá um custo aproximado de € 5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros), ao passo que o custo de mudar a placa ronda os € 300,00 (trezentos euros).

MMMMMM. E mais: o problema da placa de sotfware, ao que parece, é um problema ao nível do próprio fabricante, o fornecedor da recorrente. Pelo que, o mais provável é dar-se o caso de, a ser substituída a totalidade das componentes da máquina, com um custo de milhares de euros para a recorrente, o problema volte a surgir com a nova placa…

NNNNNN. No caso, a prestação revelar-se-á demasiado onerosa para o devedor, sem que haja qualquer benefício para o credor.

(…)

WWWWWW. Por fim, no que se refere aos danos não patrimoniais alegados, atente-se ao que já foi dito quanto à apreciação dos factos 39, 40, 42 e 43, na medida em que a apelada não logrou fazer prova dos factos que fundamentam o seu pedido de indemnização por danos não patrimoniais.

Conclui a apelante pela reapreciação da matéria de facto impugnada e reapreciação da matéria de direito incorretamente julgada e revogação da sentença proferida pelo tribunal de primeira instância, absolvendo a ré do peticionado.

A apelada apresentou resposta às alegações de recurso, concluindo pela sua improcedência.

Após os vistos legais, cumpre decidir.


II. Objeto do recurso

São as conclusões das alegações de recurso que – exceto quanto a questões de conhecimento oficioso – delimitam o objeto e âmbito do recurso, nos termos do disposto nos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil.

Face às conclusões das alegações de recurso, são as seguintes as questões suscitadas pela apelante:

– Impugnação da decisão de facto.

– Se é de julgar procedente a exceção de caducidade.

– Afastamento da responsabilidade da apelante por inexistência de culpa, por não ser censurável a atuação da mesma.

– Excessiva onerosidade da condenação na substituição da máquina.

– Revogação da condenação no pagamento de indemnização por danos não patrimoniais, por falta de prova da existência de danos não patrimoniais.

Acresce ainda a responsabilidade pelas custas.


*
III. Apreciação dos fundamentos do recurso


Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

A apreciação do mérito do recurso implica que se tenha em consideração a fundamentação de facto da sentença recorrida, que se passa a transcrever.

Fundamentação de Facto

Factos provados

Da prova produzida nos autos, seja por acordo das partes, elementos documentais, declarações/depoimentos de parte e prova testemunhal, o Tribunal entende que se provaram os seguintes factos:

1. A autora encomendou à ré um equipamento ... para interior no dia 2 de maio de 2022, conforme documento 1 junto com a petição inicial.

2. Equipamento adquirido como novo e que se destina a lavagem e secagem em regime de auto-serviço de animais domésticos, conforme fotografia junta como documento nº 2 da petição inicial.

3. E com o qual a autora abriu uma pequena loja sita na Travessa ... em ... e na qual desenvolve a sua atividade comercial com o CAE principal ... - atividades dos serviços para animais de companhia e CAE secundário ... - com. ret.animais comp. e respect. alimentos, estab. espec, sob o nome de “B...”.

4. Imediatamente após a encomenda foi emitida a 07 de maio de 2022 a fatura nº ..., no valor de 2.750,00 €, acrescido de IVA, o que perfaz o montante de 3.382,50 €.

5. Que correspondia a uma adjudicação no valor corresponde a 25% do valor total, conforme documento 3 junto com a petição inicial.

6. A qual foi integralmente paga pela autora, conforme documento 4 junto com a petição inicial.

7. O equipamento foi entregue no dia 30 de junho de 2022 tendo sido emitida a 11 de julho de 2022, a fatura nº ..., no valor remanescente de 8.330,00 €, acrescido de IVA o que perfaz o valor total de 10.245,90 €, conforme documento nº 5 junto com a petição inicial.

8. Tendo sido esta fatura integralmente paga, conforme documento 6 junto com a petição inicial.

9. Não existindo qualquer valor em divida, tendo sido pago o preço na sua totalidade - 13.628,40€.

10. O trabalho de montagem e ligação foi assumido e realizado pela ré.

11. Uma vez equipado o estabelecimento, a autora deu início à atividade comercial.

12. Sucede que, o equipamento adquirido teve problemas diversos, desde logo aquando a sua instalação.

13. Problemas esses que foram sendo reportados por diversas vezes pela autora telefonicamente.

14. Até que, no dia 11 de outubro de 2022, decorridos três meses e, cansada dos problemas que haviam surgido, a autora remete email à ré, cujo teor se reproduz:

Começou pelo dia da entrega, cujas notas não ficaram a funcionar. Percebo agora, que embora tenham vindo arranjar, o problema continua, pois já aconteceu mais do que uma vez, na minha presença, depois da inserção de uma nota, dar problema em continuar a usar a máquina. Estou a aguardar à 1 semana, que vão substituir a placa.

Aconteceu mais do que uma vez na minha presença e como é do vosso conhecimento este negócio é auto-serviço, logo poderá acontecer quando eu não estou presente, o que consequentemente, será desagradável para o cliente, podendo mesmo não voltar.

Entretanto, também o secador deixou de funcionar de repente, obrigando a uma intervenção num sábado. Também por acaso, estava no local e pude resolver, desligando a máquina, para que o cliente pudesse acabar de secar o cão. Mas tive de repor algum dinheiro pelo tempo que perdeu à espera que eu chegasse. Outro prejuízo,

As ligações da torneira da água fria e quente estavam trocadas, causando-me um prejuízo de 50% num banho que tive de oferecer ao cliente, pois perdeu muito tempo na máquina e tive de o compensar.

A válvula de segurança da caldeira está estragada e cai água no chão da máquina, correndo o risco no futuro de estragar a madeira.

Alguma destas situações ainda não estão resolvidas (válvula e placa das notas), desde a semana passada e a troca dos tubos da torneira demorou mais de 1 mês a ficar resolvida”, conforme documento 7 junto com a petição inicial.

15. No dia 26 de outubro de 2022 a autora remete novo email à ré, com o seguinte teor:

Venho por este meio, fazer novas reclamações sobre o equipamento - maquina de lavagem de animais.

Ontem, uma cliente ligou-me pois colocou 2 euros na máquina, fez a desinfeção da banheira e colocou na pausa.

Quando ia começar a lavagem, carregou no chuveiro e nos restantes botões e a maquina não ativou, continuava na pausa. Quando o tempo da pausa acabou, continuou a tentar (tinha mais de 2 minutos de tempo) e só conseguiu ativar novamente a máquina já com meia dúzia de segundos. Mais uma vez, para não perder a cliente, vou ter prejuízo, pois vou ter repor pelo menos os 2 minutos que perdeu e poderei mesmo perder o cliente, que era a primeira vez.

Por causa desta situação, hoje fui à loja, testar e ver o que se passava e qual não é o meu espanto, quando constato que, o tempo de pausa que deveria estar programado para 2 minutos apenas, está programado par 1 minuto ininterruptamente, ou seja, o cliente, pode colocar em pausa, quantas vezes quiser e não apenas 2 minutos, como é o que deveria estar programado.

Também o botão de regulação da velocidade do secador não funciona. Roda em falso, mantendo sempre a mesma velocidade que é a mínima.

O conceito de self-service pressupõe que não esteja ninguém na loja e neste sentido, um equipamento que é novo tem obrigatoriamente de dar garantia de bom funcionamento, o que não é o caso.

Já relatei inúmeros problemas, já tive prejuízo e um negócio é para dar lucro e não prejuízo”, conforme documento 8 junto com a petição inicial.

16. Por entender que as anomalias persistiam, a autora enviou novo email à ré no dia 02 de novembro de 2022, com o seguinte teor:

Serve o presente para informar que a banheira está novamente com água por baixo da caldeira.

Este defeito, que foi visualizado no local pelo CC e reportado por fotos e email, foi reparado há cerca de 2 a 3 semanas, tendo sido trocada a válvula de segurança da caldeira. Contudo, está novamente com problemas, como fotos em anexo de 2 dias diferentes, um dia com menos água e noutro dia já com mais água.

O técnico ficou de passar na loja para resolver o assunto da pausa ontem, terça feira, mas não foi.”, conforme documento 9 junto com a petição inicial.

17. No dia 24 de novembro a autora remete novo email à ré:

Em resposta ao meu email de ontem, dia 23 recebi uma chamada do vosso técnico para arranjar pela terceira vez a fuga de água da máquina.

O técnico pode ir arranjar a máquina, mas não invalida a minha pretensão de resolução do contrato, com a restituição do valor pago e o consequente levantamento da máquina, visto não ter sido efetuada a sua troca.

Continuo a aguardar a data para o seu levantamento.”, conforme documento 10 junto com a petição inicial.

18. Perante as queixas da autora, os técnicos da ré deslocaram-se no dia 25 de novembro ao local onde se encontrava a máquina e efetuaram uma intervenção na mesma.

19. Na sequência dessa intervenção, a 27 de novembro, a autora enviou novo email à ré, com o seguinte teor:

Boa noite, na passada quarta feira, dia 23, fiz pela terceira vez uma reclamação pelo facto de estar a pingar água na máquina. Sexta feira, dia 25, os vossos técnicos foram arranjar.

Ontem, sábado, quando cheguei à loja, a máquina estava como demonstram as imagens e o filme.

A máquina esteve a trabalhar sexta de tarde e sábado de manhã. À tarde, estava como podem ver, muito pior do que estava na quarta.

Esta água vai danificar com o tempo a base da máquina que é de madeira.

Quando cheguei a máquina não estava a pingar, mas após ligar a água para limpar a máquina, começou novamente a pingar, como explico no filme.

Já não sei sinceramente o que dizer, pois esta situação é insustentável e inqualificável.”, conforme documento 11 junto com a petição inicial.

20. No dia 12 de dezembro de 2022, a mandatária da autora remeteu carta registada com aviso de receção à ré, com o seguinte teor:

Serve a presente, e em representação da Exma. Senhora D. AA, para informar V. Exa. de que o equipamento adquirido pela m/ cliente, identificado em epígrafe, referente ao um equipamento denominado por “...”, banheira automática para cães de uso individualizado pelos seus donos, mediante o pagamento prévio, tem, desde a data de entrega, apresentado diversos problemas no funcionamento, os quais foram sendo reportados pela m/ cliente quer telefonicamente, quer via email, reiteradamente, conforme poderão V. Exas. confirmar, nos dias 11 e 26, 27 e 28/10; 2, 23 e 24/11; 2/12 de 2022.

O equipamento em questão foi adquirido pelo valor de 13.628,40 € a que correspondem as faturas, n.º ... e ..., e entregue em 30.06.2022, equipamento que foi, relembra-se, adquirido como novo.

O certo é que os problemas e defeitos verificados desde a data de entrega e até agora, decorridos apenas uns meses, têm sido muitos e constantes, sendo que a máquina foi já alvo de substituição de diversas peças e, há menos de uma semana, procederam V. Exas. à substituição da caldeira, no dia 9 de dezembro peça fulcral para o funcionamento da máquina, pois é responsável pelo aquecimento da água, o que bem demonstra a não conformidade da máquina adquirida.

A m/ cliente, viu-se por diversas vezes obrigada a restituir o valor aos clientes pela impossibilidade de uso adequado da máquina e de assim conseguirem dar banho aos seus animais de estimação, assim como teve de se deslocar inúmeras vezes ao local pela impossibilidade de uso da máquina, quando, em bom rigor, a máquina deveria ser para uso automático sem intervenção de terceiros, funcionado em autogestão.

Aliás, reitera-se, os factos ora descritos são do V/ conhecimento, uma vez que a m/ cliente tem solicitado uma tomada de posição da V/ parte, nomeadamente, a responsabilização pelos danos que está a sofrer consecutivamente, responsabilidade que procuram evitar, nomeadamente, não respondendo por escrito a qualquer dos emails relativamente a reclamações.

Da única vez que a gerente da empresa, a Exma. Senhora D. DD, falou com a minha cliente, via telefone, a mesma alegou não trocar a máquina ou devolver o dinheiro, uma vez que esta não tinha danos na estrutura ou peças fundamentais ao seu funcionamento, o que é absolutamente falso e não se aceita.

A última avaria, e mesmo com a suposta substituição da caldeira, não ficou resolvida, aliás, piorou, uma vez que verte mais água, ao ponto de ter se colocar uma bacia e implica a que a m/ cliente tenha de se deslocar diversas vezes ao dia ao local, para tirar a água da bacia (que enche).

Os defeitos da máquina são por demais evidentes, assim como, a impossibilidade da V/ parte de garantir o bom funcionamento da mesma. Não se podendo aceitar as inúmeras e constantes necessidades de intervenção para arranjos da máquina. Diziam inclusive que até substituiriam a caldeira, ora, aparentemente nem essa substituição resolveu os problemas já exaustivamente reportados.

Posto isto, e tendo já sido pedida a substituição da máquina integral pela m/ cliente, o que não foi aceite, vem-se aqui exigir a imediata resolução do contrato, encontrando-se em tempo para o efeito, pelo que requer seja marcado dia e hora para a entrega da máquina e restituição do valor pago.

Na falta de resposta à presente missiva no prazo de dez dias a presente resolução contratual e devolução da quantia paga será exigida judicialmente.”, conforme documento 12 junto com a petição inicial.

21. A esta carta respondeu a ré, admitindo ter assumido as alegadas “reparações” e substituições de peças, mas declinando, quer a resolução contratual e consequente devolução do valor pago, quer a substituição da máquina por uma nova, conforme documento 13 junto com a petição inicial.

22. A caldeira foi mudada dia 9 de dezembro, mas os problemas continuaram até dia 30 de dezembro, quando baixaram a temperatura da caldeira.

23. Em 11 de dezembro de 2022, a autora enviou email à ré com o seguinte teor:

… Conforme o email que enviei na sexta à hora do almoço, quando voltei à loja a caldeira nova estava a pingar, pelo que liguei ao Sr EE, a informar do sucedido. Voltou à loja esteve a "arranjar" e justificou que a caldeira estava a pingar, por erro dele.

Com receio que o problema não tivesse ficado resolvido e como esta caldeira não permite, por causa da altura de colocar uma bacia por baixo, colocaram uma mangueira para a água cair dentro da bacia.

Hoje, dia 11/12, fui à loja e deparei-me com água dentro da bacia e água novamente na base da máquina, como demonstram as imagens em anexo.

Este problema, não tem solução.”, conforme documento 14 junto com a petição inicial.

24. Os problemas/anomalias mantiveram-se e mantêm-se, conforme emails remetidos pela autora nos dias 7, 12, 23, 25, 26 e 28 de dezembro, conforme documento 15 junto com a petição inicial.

25. No dia 29 de dezembro de 2022 a autora chamou a C... ao local de modo a garantir o bom funcionamento das ligações, tendo os respetivos funcionários elaborado um relatório, conforme documento 16 junto com a petição inicial.

26. Nesse relatório se conclui “…não ter sido detetada nenhuma anomalia nas infraestruturas sob gestão desta empresa. Mais informamos que os valores de pressão no arruamento onde se situa o local de consumo de V. Exa. encontram-se em conformidade com os valores regulamentares.

27. A ré voltou ao local efetuar novas reparações no dia 30 de dezembro de 2022.

28. Atualmente mantém-se as anomalias referentes ao Erro C 000, que impede a máquina funcionar e ao secador que motiva que a máquina vá abaixo, conforme documento junto em audiência final.

29. O problema da queda constante água da caldeira mostra-se solucionado.

30. Não ficou resolvido o problema da placa, relacionado com as moedas e notas, aparecendo a mensagem “Erro C 000”, conforme o mesmo documento junto em audiência final.

31. E o problema da água no secador.

32. No dia 10 de fevereiro de 2023, a autora teve mais uma vez que se deslocar ao local em virtude de ter ocorrido nova avaria…a lavagem ficou a meio, com um prejuízo acrescido para a autora, conforme documento 17 junto com a petição inicial.

33. A ré respondeu no dia 20 de fevereiro de 2023, informando que “…o nosso pessoal técnico procurará apurar se existe algum problema técnico associado às situações que reportou…”, conforme documento 18 junto com a petição inicial.

34. Inúmeras vezes a autora deslocou-se ao local da máquina, pelo mau ou não funcionamento da máquina.

35. Tendo de deixar o que estava a fazer para “acudir” os clientes, desculpabilizando-se.

36. Ora a água não saía quente, ora estava a pingar, ora a máquina parava e não voltava a funcionar, após as pessoas colocarem as moedas.

37. Teve que oferecer banhos grátis aos clientes pelos transtornos causados.

38. E teve de devolver dinheiro – o que aconteceu diversas vezes - num valor total equivalente a 30,00 €.

39. Todas estas situações causaram e causam desgaste à autora, que cada vez que atende um número não conhecido só espera que não seja para alguém se queixar do seu serviço.

40. Anda ansiosa e nervosa com o desgaste associado à não resolução deste problema.

41. A falta de prestação de um bom serviço é uma má publicidade que, dia após dia, vai causando estragos na imagem do serviço.

42. Os factos expostos importam a perda de clientes consecutivamente, dado que a melhor publicidade é a de um cliente satisfeito.

43. Os problemas que a máquina apresenta causaram e causam stress à autora.

44. Após entrada da presente ação, nomeadamente no dia 26 de abril de 2023, a máquina voltou a demonstrar anomalia, tendo a autora remetido email com o seguinte teor:

Serve o presente para informar que cerca de 1 mês depois da vossa última visita para reparação do disjuntor do expulsor, continuo à espera que solucionem o problema da água por baixo do secador. Solicito mais uma vez, os livros de instruções/manuais dos equipamentos.”, conforme documento junto em 20/06/2023.

45. Novamente o técnico da ré, BB, deslocou-se ao local no dia 28 de abril às 11h, e colocou silicone no suporte do secador e chuveiro.

46. Em 17 de agosto de 2023 a autora comunicou à ré novamente o aparecimento de água por baixo do esquentador, conforme documento junto em 07/09/2023.

47. Tendo sido marcado pela ré uma deslocação para o dia 22 de agosto ao local e verificação, no entanto, e para transtorno da autora que teve de recorrer a terceiros, pedindo o favor de aí se deslocarem pois não estava no Porto.

48. No dia 25 de agosto de 2023 foi enviado relatório à autora pela ré e do mesmo resulta apenas a intervenção da ré, mas não qual a causa que deu origem à anomalia e respetiva intervenção, conforme documento junto também a 07/09/2023.

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49. No dia 30 de junho de 2022, aquando da montagem da máquina, verificou-se um problema com o noteiro e com o moedeiro, sendo substituído o moedeiro e programada a placa de notas, tendo ficado em funcionamento em 07 de julho de 2022.

50. Seguidamente, foi reportado um problema com o secador.

51. Foi feita uma intervenção pela ré a 16 de julho de 2022 relativamente ao secador.

52. Em outubro de 2022, foi reportado um problema de fuga de água detetada abaixo do termoacumulador e um problema com a placa para a inserção de notas.

53. No dia 14 de outubro de 2022, foi realizada uma intervenção por parte da ré que substituiu a válvula de segurança do termoacumulador, colocando uma de maior porte de forma a solucionar o problema da fuga de água e foi trocada e reprogramada a placa das notas, ficando ambas as peças, naquele momento, a funcionar.

54. No dia 04 de novembro de 2022, a autora reclamou que o botão de pausa se encontrava “ininterrupto” e que o regulador de potência do secador não estava a funcionar.

55. A ré substituiu o botão do secador.

56. O termoacumulador acumula pressão, que é libertada aquando da sua utilização, através da saída de água quando o equipamento é utilizado.

57. Ao substituir a válvula reguladora de pressão por uma de maior porte, a ré tentou que o equipamento aguentasse mais pressão, para não ter que fazer tantas descargas para libertação do vapor de água acumulado no termoacumulador, e assim deixasse de verter água.

58. O problema voltou a aparecer em 25 de novembro de 2022, e numa tentativa de resolver a questão, a ré decidiu substituir o termoacumulador, uma vez mais sem qualquer custo para a autora.

59. A 09 de dezembro de 2022 foi substituído o termoacumulador e realizados os testes necessários para verificar se o problema se mantinha com o novo aparelho.

60. Em 25 de dezembro de 2022, a autora volta a reportar uma fuga de água por baixo do termoacumulador e a 26 de dezembro de 2022 também refere ter tido um problema com o ecrã e com a luz da máquina se desligaram, alegadamente, de forma súbita.

61. Nesta sequência, mais uma vez a ré se deslocou ao local, a 30 de dezembro de 2022, intervencionando o equipamento, ficando o mesmo a funcionar em condições normais.

62. O equipamento vendido é uma máquina, a ser usada, sem supervisão, pelos utilizadores: é natural que ocorram erros e mau uso pelos clientes.

63. Em 27 de março de 2022, a ré reparou uma situação de mau contacto no disjuntor do secador.

64. A ré sempre se disponibilizou a fazer o que fosse necessário para resolver os problemas apontados pela autora, mesmo após os primeiros 6 meses e sem nunca cobrar qualquer montante.

65. A autora nunca reportou o problema do vinil levantado.

Factos não provados

a) A ré enviou à autora os livros de instruções do equipamento;

b) Na sequência do referido em 33 e 34 o pessoal técnico da ré não apareceu nas instalações da autora;

c) O vinil está todo levantado;

d) O problema do secador referido em 51, deveu-se a uma falha na alimentação do secador relativamente à rede elétrica;

e) Na sequência da intervenção referida em 52, o problema do secador ficou resolvido;

f) O equipamento não era utilizado com frequência.

1. Alteração da decisão quanto aos factos provados

Com a impugnação da decisão de facto, o apelante pretende:

a) – a alteração dos factos 22, 24, 28, 31 e 34 dos factos provados;

b) – exclusão (consideração como não provados) dos n.os 36, 39, 40, 42 e 43 dos factos provados;

c) – aditamento dos seguintes 3 novos factos aos factos provados:

–A anomalia respeitante à fuga de água no termoacumulador não impede o normal funcionamento da máquina e esta nunca esteve parada por conta deste problema.

–A máquina em questão esteve completamente operacional desde 22 de agosto de 2023 (data da última intervenção da ré) até 27 de janeiro de 2024, data em que se verificou novamente o erro C000.

– Desde 22 de agosto de 2023, não foi reportada qualquer anomalia por parte da autora à ré.

d) – exclusão da al. e) dos factos não provados;

e) – passagem da al. b) dos factos não provados para os factos provados.

1.1. Satisfação dos ónus previstos no art. 640.º do Cód. Proc. Civil

Dispõe o art. 640.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil que, “[q]uando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.

Conforme se refere no Ac. do TRL de 19-03-2024, proc. 1251/17.4T8PVZ.L1-7 [1], que passamos a citar, «(…) a indicação dos meios probatórios que impunham decisão diferente (…) deve, por um lado, ser consequente, isto é, deve compreender a explicação dessa imposição – por exemplo, uma testemunha ter afirmado concretamente aquilo que se pretende que seja dado por provado ou tenha negado aquilo que se pretende que seja dado por não provado. Por outro lado, quando a impugnação seja fundada em prova gravada, deve o apelante, conforme resulta do disposto no art. 640.º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Civil, “indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Sobre cada uma das proposições de facto que integram o objeto do processo, o tribunal formula um “julgamento” ou “decisão”. Embora o termo assuma diferentes sentidos no âmbito processual-civil, o “julgamento”, na sua essência, é o juízo de adesão, ou não, a uma proposição posta. O regime acabado de descrever tem por objeto o juízo apresentado pelo julgador sobre uma concreta proposição de facto.

Porque sobre o litígio já se pronunciou um órgão jurisdicional independente, e considerando que inexiste para Processo Civil qualquer exigência constitucional da garantia de um duplo grau de jurisdição, este regime é marcado por três características principais: (i) o elevado nível (standard) de rigor imposto ao impugnante; (ii) a recondução da impugnação a cada concreta proposição de facto julgada (vedando-se a impugnação indiscriminada da decisão respeitante à matéria de facto); (iii) a inexistência da previsão de um convite ao aperfeiçoamento da satisfação dos ónus impostos.

O elevado nível (standard) de rigor imposto ao impugnante é revelado pelos ónus previstos neste artigo. A alegação imprecisa (na concretização dos pontos impugnados e dos meios de prova pertinentes, ou na indicação da decisão alternativa apropriada) é, não raramente, um fenómeno intencional. A parte tende a ser menos precisa quando se vê forçada a justificar a sua tese contrária à realidade processualmente adquirida, quando a posição sustentada assenta num silogismo falhado ou falacioso. Assim se justifica, sem dificuldade, a proibição de uma impugnação vaga ou ambígua, não sendo claro o seu sentido, prestando-se (propositadamente) a diversas interpretações.

Importa, no entanto, ter presente que o elevado nível de rigor não equivale a elevado nível de dificuldade. Pelo contrário, seguro do acerto do seu juízo dissidente sobre determinado ponto da decisão respeitante à matéria de facto, o apelante não terá a menor dificuldade em identificar este concreto ponto nem o concreto meio de prova em que assenta o seu juízo; menos ainda em enunciar a decisão alternativa que entende dever ser proferida. São estes requisitos ónus que, na generalidade dos casos, qualquer observador atento à produção de prova, ainda que leigo, poderá facilmente satisfazer (apenas se exigindo rigor, labor e eupatia).

A recondução da impugnação a cada concreta proposição de facto jugada impõe que sobre cada específico e individualizado juízo contestado o recorrente apresente uma fundamentação dedicada. Tendo a impugnação por objeto cada concreto juízo formulado pelo tribunal a quo – isto é, cada ponto da decisão de facto, objeto de um concreto juízo sobre uma proposição de facto processualmente adquirida –, sobre este deve ser desenvolvido um específico silogismo demonstrativo, de modo a poder ser o tribunal superior persuadido da bondade da posição do impugnante. Assim, cada impugnação constitui-se como uma célula autossuficiente, contendo a indicação do ponto impugnado, o juízo alternativo a formular e o concreto meio de prova que diz respeito a esta impugnação, isto é, apenas o segmento da prova produzida pertinente ao concreto silogismo demonstrativo apresentado, devidamente iluminado, destacado da restante prova.

Não pode o apelante despejar num enunciado (ou num bloco de enunciados) todos os pontos da matéria de facto que entende terem sido erradamente julgados, apresentando depois, de um só fôlego, a transcrição de todos os depoimentos prestados que entende serem pertinentes, sem identificar os concretos enunciados – contidos em documentos, relatórios periciais ou transcrição de depoimentos gravados, por exemplo – que contradizem cada um dos concretos juízos de facto do tribunal a quo, e adjudicar ao tribunal ad quem a tarefa de distribuir pertinentemente os meios de prova por cada uma das proposições, putativamente, mal julgadas – cfr. o Ac. do STJ de 16-01-2024, proc. n.º 818/18.8T8STB.E1.S1.

Finalmente, devemos notar que a falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados, incluindo a falta de indicação das passagens da gravação em que o recorrente funda a sua impugnação, determina a “imediata rejeição do recurso na respetiva parte” (art. 640.º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Civil). O mesmo é dizer que a lei não consente aqui a prolação de um despacho de convite ao aperfeiçoamento da alegação, contrariamente ao que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil.

Assim é por decorrência das características do regime descrito, designadamente, como referido, por serem os ónus impostos de muito simples satisfação, não exigindo mais do que um grau mínimo de diligência na atuação da parte. Recorde-se, a propósito, que, na fase de recurso, todos os recorrentes devem estar patrocinados por advogado (art. 40.º, n.º 1, al. c), do Cód. Proc. Civil) (…)».

A apreciação da impugnação da decisão de facto será efetuada quando e na medida em que tenha sido efetuado o cumprimento, pelo apelante, relativamente a cada um dos concretos prontos da decisão de facto impugnados, dos ónus estabelecidos no art. 640.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, nos moldes que adiante se concretizarão.

1.2. Mérito da impugnação

Há que ter presente, na decorrência do que acima já foi dito a propósito do cumprimento do ónus previsto no art. 640.º do Cód. Proc. Civil, que a impugnação da matéria de facto não se destina a contrapor a convicção da parte e do seu mandatário à convicção formada pelo tribunal, com vista à alteração da decisão. Destina-se, sim, à especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (art. 640.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil).

Acresce que entendemos – conforme é referido no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-04-2022, processo n.º 9338/21.2T8LSB.L1-2 [2] – que «(…) Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre os factos num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão.

O julgamento dos factos, na sua valoração, mormente quando se reporta a meios de prova produzidos oralmente, não se reconduz a uma operação aritmética de número ou de adição de depoimentos, antes tem de atender a uma multiplicidade de factores, não se bastando com a palavra pronunciada, mas nele confluindo aspetos tão variados como, as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber quem estará a falar com verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida. (…)».

1.2.1. Alteração dos pontos 22, 24, 28, 31 e 34 dos factos provados

Pretende o apelante, em primeiro lugar, a alteração da redação dos pontos 22 e 24, indicando como meios de prova que a justificam as declarações da recorrida que transcreve no corpo das alegações de recurso e as declarações da legal representante da ré que transcreve. Indica ainda haver contradição entre o facto provado sob o n.º 29 e o facto provado sob o n.º 24.

Fundamenta a pretendida alteração na consideração de que de tais meios de prova transcritos resulta que “O. (…) o problema da fuga de água da caldeira encontra-se, de facto, solucionado, em termos definitivos, como a própria recorrida reconhece (e como o Tribunal a quo dá como provado no facto 29), sendo que desde agosto de 2023 até à presente data não voltou a verificar-se, nem foi efetuada qualquer reclamação nesse sentido. // P. O problema da fuga de água no termoacumulador não impede o normal funcionamento da máquina e a máquina nunca esteve parada ou fora de serviço por conta desta anomalia. // Q. Ao contrário do que é afirmado no facto 24, os problemas não se mantêm à presente data: a única anomalia que ainda se verificou, à data da realização da audiência de julgamento, foi o erro relativo à placa C 000, conforme também se verá infra, tratando-se este erro da única anomalia que ainda ocorre esporadicamente (…)”.

Alteração do n.º 22. dos factos provados

Pretende a apelante, em primeiro lugar, a alteração do n.º 22. dos factos provados [22. A caldeira foi mudada dia 9 de dezembro, mas os problemas continuaram até dia 30 de dezembro, quando baixaram a temperatura da caldeira.] para:

22. A caldeira foi mudada a 9 de dezembro de 2022, tendo o problema da fuga de água por baixo do termoacumulador persistido até 22 de agosto de 2023, data em que foi solucionado definitivamente com a intervenção do técnico BB.

O tribunal a quo considerou a matéria de facto do n.º 22 dos factos provados assente por acordo das partes, como resulta do seguinte excerto da motivação: «Para fundamentar a decisão relativa à matéria de facto no caso presente, o Tribunal deu logo como provados os factos 1 a 23, 25, 26, 27, 29, 32 a 38, 44 a 46 e 48, com base no acordo das partes, porquanto a ré não os impugnou de forma expressa e a sua versão dos factos não os contraria.».

E, efetivamente, resulta da leitura dos articulados – arts. 27.º e 34.º da petição inicial e arts. 55.º e 56.º da contestação – estar assente, por acordo das partes, que com a intervenção de 30 de dezembro de 2022 ficaram resolvidos os problemas de constante fuga de água da caldeira/termoacumulador. Dos meios de prova indicados pela apelante (parte dos depoimentos da autora e da legal representante da ré transcritos) como fundamento da pretendida alteração nada é referido quanto ao tipo de intervenção que foi efetuada no dia 30 de dezembro de 2022, na sequência da qual cessaram os problema da fuga de água do termoacumulador que se vinham verificando desde a comunicação efetuada no dia 11 de outubro de 2022 da ocorrência de tal problema (veja-se o n.º 14. dos factos provados). Resulta, de resto, também do teor do n.º 61. dos factos provados, que não foi impugnado pela apelante – e que tem por base o alegado pela própria ré nos arts. 55.º e 56.º da contestação – que a ré aceitou que foi só com a intervenção efetuada no dia 30 de dezembro de 2022 que se conseguiu debelar a constante fuga de água do termoacumulador.

Isto não obstante ter ocorrido novamente, em 17 de agosto de 2023, nova comunicação pela autora à ré do aparecimento de água por baixo do esquentador, determinando nova intervenção da ré, realizada em 22 de agosto de 2023 (factos provados sob os n.os 46. a 48., não impugnados).

Os meios de prova indicados não suportam, assim, a pretendida alteração.

Alteração do n.º 24. dos factos provados

Pretende ainda a apelante, com base nos mesmos meios de prova, a alteração do n.º 24. dos factos provados [24. Os problemas/anomalias mantiveram-se e mantêm-se, conforme emails remetidos pela autora nos dias 7, 12, 23, 25, 26 e 28 de dezembro, conforme documento 15 junto com a petição inicial.] para:

24. O problema da fuga de água e do erro na placa foram reportados pela autora, conforme e-mails remetidos pela autora nos dias 7, 12, 23, 25, 26 e 28 de dezembro de 2022, conforme documento 15 junto com a petição inicial.

A pretensão de alteração da apelante distorce a realidade factual: nos e-mails dos dias 7, 12, 23, 25, 26 e 28 de dezembro de 2022 que constam do documento 15 junto com a petição inicial a autora comunica a manutenção dos problemas já anteriormente reportados (como resulta claramente do teor dos referidos e-mails e também dos anteriores factos provados sob os n.os 14. a 19. e 22. e 23.), nomeadamente quanto à fuga de água, apesar das intervenções efetuadas para a sua resolução; não são e-mails a reportarem (designadamente, pela primeira vez) uma única ocorrência do problema de fuga de água e uma única ocorrência de erro na placa.

O tribunal a quo fundamentou a sua convicção quanto a este facto nos seguintes termos: «Relativamente ao facto 24, o Tribunal alicerçou a sua convicção nas declarações/depoimento de parte da autora AA, conjugadas com o documento 15 aí referido e com o depoimento das testemunhas FF, amiga da autora e GG, cunhada da autora, mas que assumiram uma postura isenta e objetiva, tendo ido ao local várias vezes e convencendo que os problemas persistiam, pelo menos até agosto de 2023.»

Das declarações da autora transcritas pela apelante resulta que a autora afirmou que o erro na placa de software continuou a ocorrer e mantém-se (veja-se também neste sentido a prova documental junta na audiência de discussão e julgamento de 30-01-2024, consistente em fotografia da máquina com o referido código de erro tirada no dia 27-01-2024), tendo a autora afirmado ainda que, apesar da cessação da fuga de água do termoacumulador na sequência da intervenção efetuada em 30 de dezembro de 2022, em agosto de 2023 voltou a aparecer água.

Das declarações prestadas pela testemunha GG, cunhada da autora, resultou que a mesma se deslocou por 3 vezes distintas, a pedido da autora, ao local onde a máquina se encontrava, tendo-se deslocado uma das vezes por a máquina ter ‘encravado’ quando estava a ser usada por uma cliente, tendo confirmado que tal situação foi a retratada nas fotografias que foram juntas ao processo como doc. 3-A com o articulado superveniente de 20-06-2023, confirmando assim a manutenção do problema do erro de código paragem em junho de 2023.

Consideramos, assim, que se justifica uma alteração apenas no sentido de precisão do tipo de problemas que se mantiveram e que ainda se mantêm, e não a alteração nos moldes pretendidos pela apelante.

Em conformidade, altera-se o n.º 24. dos factos provados nos seguintes moldes:

24. Os problemas/anomalias consistentes na fuga de água do termoacumulador e do erro na placa mantiveram-se, conforme emails remetidos pela autora nos dias 7, 12, 23, 25, 26 e 28 de dezembro de 2022, conforme documento 15 junto com a petição inicial, mantendo-se ainda o problema da placa nos termos referidos nos n.os 28. e 30. dos factos provados, e tendo ocorrido ainda o aparecimento de água por baixo do esquentador referido no n.º 46. dos factos provados.

Alteração do n.º 28. e do n.º 31. dos factos provados

Defende a apelante que da prova produzida – excerto das declarações da autora que transcreve e identifica; a inexistência de qualquer referência nos emails de 11-10-2022, de 26-10-2022 e de 10-02-2023 ao facto do secador provocar que a máquina vá abaixo e ao facto do documento junto em audiência nada ter que ver com o secador – não resulta a ocorrência da anomalia considerada provada no ponto 28. [28. Atualmente mantém-se as anomalias referentes ao Erro C 000, que impede a máquina funcionar e ao secador que motiva que a máquina vá abaixo, conforme documento junto em audiência final.], consistente no ‘secador que motiva que a máquina vá abaixo’, impondo-se a alteração do n.º 28. dos factos provados para: “28. Atualmente mantém-se a anomalia referentes ao Erro C 000, que impede a máquina funcionar, conforme documento junto em audiência final.”.

E defende ainda, quanto ao n.º 31. dos factos provados [de onde resulta, no seguimento da matéria considerada provada no n.º 30., ter sido considerado provado que não ficou resolvido o problema da água no secador], a sua alteração no sentido de se considerar provada a resolução do problema da água no secador, com base no depoimento da autora que transcreve, pugnando pela sua alteração nos seguintes termos:

31. Ficou definitivamente resolvido o problema da água no secador.

O tribunal a quo fundamentou a sua convicção quanto a estes factos nos seguintes termos: «O Tribunal convenceu-se dos factos 28, 30 e 31 com base também declarações/depoimento de parte da autora AA, que convenceu que estes problemas/anomalias se mantêm, corroborados com a referida testemunha GG e o documento junto em sede de audiência final, que prova que muito recentemente, no fim de semana passado, 27 de janeiro de 2024, voltou a aparecer a mensagem de erro C 000 na máquina.

O Tribunal atendeu ainda ao depoimento da testemunha HH, uma cliente/utilizadora da máquina, que aí foi lavar o seu cão e atestou as falhas da mesma no inverno de 2022/2023, merecendo credibilidade.».

Vejamos.

Quanto ao n.º 28., a apelante pretende ver eliminada a parte do n.º 28. dos factos provados na qual foi considerado provado que atualmente mantém-se a anomalia referente ao secador que motiva que a máquina vá abaixo.

Quanto a depoimentos orais, a autora, no depoimento/declarações prestadas em audiência de julgamento, fez referência a tal anomalia consistente no facto de a máquina ir abaixo com a utilização do secador. A mesma, no seu depoimento, referiu serem 3 os problemas/anomalias recorrentes apresentados pela máquina: 1) fuga de água do termoacumulador; 2) erro de softwre sistemático, relacionado com a placa e com o moedeiro/noteiro, que bloqueia o funcionamento da máquina (deixa de funcionar) e 3) secador vai abaixo (uma vez trocaram um fusível; doutras vezes é o disjuntor que dispara, e faz parar a máquina; vai abaixo e deixa de funcionar). Do depoimento da testemunha HH resultou que na única utilização que fez da máquina, no inverno de 2022, esta parou a meio do banho da cadela, tendo ligado para o n.º existente no local, o que determinou a deslocação da autora, a qual abriu a máquina e conseguiu recoloca-la a funcionar; quanto ao secador, o que a testemunha disse foi que após ter terminado o processo de lavagem e passado para a secagem ficou ‘chocada porque o ar do secador era gelado’.

Compulsados todos os e-mails enviados pela autora, e descritos nos factos provados, resulta que – diferentemente do que a apelante alega – foi feita, no e-mail enviado em 11 de outubro de 2022, comunicação da anomalia atinente ao funcionamento (rectius, falta de funcionamento) do secador que a autora referiu, em audiência de discussão e julgamento, manter-se, obrigando à intervenção da autora para voltar a colocar a máquina a funcionar: “(…) Entretanto, também o secador deixou de funcionar de repente, obrigando a uma intervenção num sábado. Também por acaso, estava no local e pude resolver, desligando a máquina, para que o cliente pudesse acabar de secar o cão. Mas tive de repor algum dinheiro pelo tempo que perdeu à espera que eu chegasse. Outro prejuízo (…)” – ver n.º 14. dos factos provados.

A mesma comunicou ainda diversas outras anomalias atinentes ao funcionamento do secador, designadamente, “o botão de regulação da velocidade do secador não funciona. Roda em falso, mantendo sempre a mesma velocidade que é a mínima.” (n.º 15. dos factos provados); um problema com o secador reportado após 7 de julho de 2022 e que motivou uma intervenção da ré efetuada em 16 de julho de 2022 (n.os 50. e 51. dos factos provados); no dia 4 de novembro de 2022 a autora comunicou que o regulador de potencia do secador não estava a funcionar (n.º 54. dos factos provados), tendo a ré substituído o botão do secador (n.º 55. dos factos provados).

Afigura-se-nos, deste modo, que da conjugação da comunicação efetuada no e-mail de 11-10-2022 com as declarações da autora prestadas em julgamento resulta prova da ocorrência da anomalia no funcionamento do secador que motiva que a máquina vá abaixo. A apelante não indicou, no recurso interposto, outros meios de prova que imponham decisão diferente quanto à ocorrência da referida anomalia.

Improcede a pretendida alteração, devendo, no entanto – porque assiste razão à apelante quando refere que o documento junto em audiência não faz prova da anomalia atinente ao secador mas apenas da anomalia atinente ao erro C000 (problema da placa de software) – ser efetuada a seguinte alteração à redação do n.º 28. dos factos provados:

28. Atualmente mantém-se as anomalias referentes ao Erro C 000, que impede a máquina funcionar, conforme documento junto em audiência final, e ao secador que motiva que a máquina vá abaixo.

Quanto ao n.º 31. dos factos provados, defende a apelante que as declarações da autora infirmam o facto considerado provado, transcrevendo a parte das declarações prestadas pela mesma na qual esta refere que, na sequência da comunicação efetuada pelo e-mail de 26 de abril de 2023 quanto à falta de resolução do ‘problema da água por baixo do secador’, tal problema foi resolvido, pugnando pela alteração do n.º 31. para a seguinte redação:

31. Ficou definitivamente resolvido o problema da água no secador.

A existência de um problema de água no secador (problema distinto da água a pingar do termoacumulador) foi alegada pela autora no art. 36.º da petição inicial (“Assim como surgiu o problema da água no secador”) – facto este impugnado pela ré no art. 73.º da contestação – e foi ainda alegado pela autora nos arts. 16.º a 18.º do articulado superveniente de 20-06-2023, nos seguintes termos:

16. Após entrada da presente ação, as razões que deram origem à mesma mantêm-se conforme foi relatado via email e informada a Ré.

17. No dia 26 de abril do corrente ano foi remetido email com o seguinte teor: Serve o presente para informar que cerca de 1 mês depois da vossa última visita para reparação do disjuntor do expulsor, continuo à espera que solucionem o problema da água por baixo do secador. Solicito mais uma vez, os livros de instruções/manuais dos equipamentos. Documento n.º 1 que se junta e se dá por integralmente reproduzido e integrado.

18. Novamente o técnico da Ré, de nome BB, deslocou-se ao local no dia 28/04 às 11h, e colocou silicone no suporte do secador e chuveiro.

A ré nada alegou, na resposta a este articulado, quanto ao facto de a intervenção realizada no dia 28-04-2023 ter resolvido esse problema.

Resultando, no entanto, das declarações prestadas pela autora em julgamento que tal problema foi resolvido com a aludida intervenção de colocação de silicone descrita no n.º 45. dos factos provados, impõe-se a exclusão da matéria de facto vertida no n.º 31. do elenco dos factos provados, uma vez que a autora não alegou nos competentes articulados a matéria que foi considerada provada – que o referido problema de água no secador se mantinha.

Em conformidade, em vez da pretendida alteração ao n.º 31., determina-se a eliminação deste n.º 31. do elenco da decisão de facto, uma vez que a referida matéria não constitui matéria de facto alegada por qualquer das partes nos articulados apresentados. E o que resultou da instrução da causa – nomeadamente, das declarações/depoimento prestado pela autora – é precisamente o oposto do que foi considerado provado sob o n.º 31.. Assim, o que constitui facto instrumental decorrente a instrução da causa, passível de ser considerado na decisão da matéria de facto, nomeadamente, atenta a alegação efetuada e aceite da existência da intervenção referida no n.º 45. dos factos provados (factos alegados e não impugnados, considerados assentes pelo tribunal a quo, como resulta da leitura da motivação da decisão recorrida) é o resultado positivo dessa intervenção, justificando-se, por conseguinte, o aditamento de tal factualidade instrumental ao n.º 45. dos factos provados, nos termos previstos no art. 5.º, n.º 2, al. a), do Cód. Proc. Civil, e no âmbito do disposto no art. 662.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil.

Em conformidade, julgando-se procedente a impugnação efetuada pela apelante quanto ao n.º 31. dos factos provados, determina-se:

– A eliminação do n.º 31. dos factos provados.

– A alteração do n.º 45. dos factos provados, nos seguintes termos:

45. Novamente o técnico da ré, BB, deslocou-se ao local no dia 28 de abril às 11h, e colocou silicone no suporte do secador e chuveiro, o que resolveu o problema da água por baixo do secador.

Alteração do n.º 34. dos factos provados

Requer a apelante a alteração do n.º 34. dos factos provados [34. Inúmeras vezes a autora deslocou-se ao local da máquina, pelo mau ou não funcionamento da máquina.] para a seguinte redação:

34. Inúmeras vezes a autora deslocou-se ao local da máquina para reparar algumas anomalias que impediam a seu integral funcionamento, designadamente o erro C000 que fazia com que a máquina bloqueasse e parasse, a fuga de água no termoacumulador, entre outras.

Como meio de prova justificativo da pretendida alteração indica o seguinte excerto das declarações da legal representante da ré:

“00:18:26 a 00:19:50

Legal Representante da Ré: Está tudo resolvido. E as situações ocorridas nunca foram limitativas do equipamento e nunca nós imputámos qualquer tipo de custo à D.ª AA, mesmo quando nós considerámos que o erro poderia ter sido até causado pelo utilizador ou por outras razões que nos transcenderam… porque o facto de existir esta fuga constante na válvula não é normal…”.

É manifestamente improcedente – além de desprovida de sentido ou relevância – a pretendida alteração, desde logo porque a matéria em causa foi levada aos factos provados por se tratar de matéria de facto assente por falta de impugnação, como expressamente referido pelo tribunal a quo na motivação (a matéria em causa foi alegada no art. 45.º da PI e não foi impugnada pela ré na contestação apresentada – veja-se o teor do art. 94.º da contestação).

Sem necessidade de outras considerações, concluímos pela improcedência da impugnação efetuada.

1.2.2. Exclusão (consideração como não provados) dos n.os 36, 39, 40, 42 e 43 dos factos provados

Exclusão do n.º 36. dos factos provados

No que concerne à pretendida exclusão do n.º 36. dos factos provados [36. Ora a água não saía quente, ora estava a pingar, ora a máquina parava e não voltava a funcionar, após as pessoas colocarem as moedas.], fundamenta a apelante tal pretensão na transcrição das declarações prestadas pela legal representante da ré com fundamento nas quais defendeu a alteração do n.º 34., já acima transcritas.

Além de valerem aqui, igualmente, as considerações supra expendidas quanto ao facto de a matéria em causa não constituir matéria controvertida carecida de prova – trata-se de matéria alegada no art. 45.º da PI e não impugnada pela ré, tendo sido levada aos factos provados por se tratar de matéria de facto assente por falta de impugnação –, é apodítico que as declarações transcritas, nada tendo que ver com a matéria constante do n.º 36. dos factos provados, nunca poderiam suportar a pretensão da apelante, a qual se mostra, assim, manifestamente infundada.

Exclusão dos n.os 39., 40., 42. e 43. dos factos provados

A matéria dos n.os 39. [Todas estas situações causaram e causam desgaste à autora, que cada vez que atende um número não conhecido só espera que não seja para alguém se queixar do seu serviço.], 40. [Anda ansiosa e nervosa com o desgaste associado à não resolução deste problema.], 42. [Os factos expostos importam a perda de clientes consecutivamente, dado que a melhor publicidade é a de um cliente satisfeito.] e 43. [Os problemas que a máquina apresenta causaram e causam stress à autora.] dos factos provados foi alegada pela autora, como fundamento do pedido deduzido de condenação no pagamento de indemnização pelos danos não patrimoniais por si sofridos, tendo sido considerada e valorada pelo tribunal a quo unicamente nesse âmbito.

O tribunal a quo motivou a sua convicção quanto à prova da referida matéria nos seguintes termos: «Quanto à matéria dada como provada em 39 a 43, alusiva aos danos de natureza não patrimonial, o Tribunal fez fé nas declarações da autora, aliadas às regras do senso comum e da normalidade das coisas, porquanto é notório que qualquer pessoa sentiria stress, incómodos e desgaste com tantas situações de falhas e anomalias no equipamento, tendo que apresentar várias reclamações e atender a clientes insatisfeitos.».

A apelante funda a sua impugnação na mera alegação da sua discordância quanto à convicção formada pelo tribunal a quo, por considerar que os factos provados quanto aos problemas ocorridos com a máquina não ‘justificam’ o que foi considerado provado, designadamente, quanto ao estado da autora (que é o que aqui releva, uma vez que a matéria em causa apenas foi valorada e considerada para efeitos da aferição da existência e indemnização de danos não patrimoniais).

Como acima já referimos – no âmbito do mérito da impugnação (ponto 1.2.) –, a ‘impugnação da matéria de facto não se destina a contrapor a convicção da parte e do seu mandatário à convicção formada pelo tribunal, com vista à alteração da decisão. Destina-se, sim, à especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (art. 640.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil).’ Ora, a apelante não indica qualquer meio de prova produzido passível de colocar em causa a convicção formada pelo tribunal recorrido, nos termos explicitados pelo mesmo na respetiva motivação, não tendo sido minimamente satisfeito, relativamente à impugnação desta matéria, o cumprimento dos ónus previstos nos n.os 1, al. b), e 2, al. a), do art. 640.º do Cód. Proc. Civil, pelo que se rejeita, nesta parte, a impugnação da matéria de facto.

1.2.3. Aditamento aos factos provados

Com fundamento nos mesmos meios de prova indicados para obter a alteração dos n.os 22. e 24. dos factos provados, pretende a apelante o aditamento à matéria de facto provada dos seguintes ‘novos factos’:

1.º) – A anomalia respeitante à fuga de água no termoacumulador não impede o normal funcionamento da máquina e esta nunca esteve parada por conta deste problema.

2.º) – A máquina em questão esteve completamente operacional desde 22 de agosto de 2023 (data da última intervenção da ré) até 27 de janeiro de 2024, data em que se verificou novamente o erro C000.

3.º) – Desde 22 de agosto de 2023, não foi reportada qualquer anomalia por parte da autora à ré.

O aditamento de factos não considerados na decisão recorrida apenas pode ocorrer nos termos e âmbito do disposto no n.º 1 do art. 662.º do Cód. Proc. Civil, sendo que apenas se pode reportar a factos já alegados pelas partes ou cuja consideração devesse ter sido efetuada pela decisão recorrida, designadamente, no âmbito e termos previstos no n.º 2 do art. 5.º do Cód. Proc. Civil. Por outro lado, apenas se justificará o requerido aditamento se os factos em causa assumirem relevância para a decisão a proferir.

No que concerne à matéria elencada em 1.º), tal corresponde, no essencial, ao alegado pela ré no art. 68.º da contestação [E mesmo que assim não fosse, este “defeito” não prejudicava o normal da máquina, pois não era um problema que afetasse a estrutura do equipamento, que continuava a funcionar sem qualquer limitação.], tendo a ré fundamentado, na contestação, a recusa de substituição da máquina, peticionada pela autora, com base na invocação de que tal substituição se revelaria excessivamente onerosa dado que “(…) os alegado defeitos reportados eram (e, na verdade foram) suscetíveis de (fácil) reparação e nunca impediram o normal funcionamento da máquina.” – arts. 131.º e 132.º da contestação.

Tendo esta matéria de facto sido, no essencial, oportunamente alegada pela ré, não constitui facto ‘novo’ – não alegado e, por conseguinte, insuscetível de ser invocado em sede de recurso – mas antes matéria de facto sobre a qual se nos afigura que, de acordo com as várias soluções plausíveis de direito, e face aos termos da defesa da ré, deveria ter havido pronúncia. Sendo certo que, como resulta das declarações da autora transcritas nas alegações de recurso, esta confirmou que a fuga de água permitia o funcionamento da máquina.

Em conformidade, defere-se nesta parte a impugnação efetuada, determinando-se o aditamento aos factos provados de um novo n.º 66., com a seguinte redação:

66. A anomalia respeitante à fuga de água no termoacumulador não impediu o normal funcionamento da máquina.

Já quanto à matéria elencada em 2.º) e 3.º), é de indeferir o pretendido aditamento. considerando, desde logo a falta de interesse da matéria em causa para a decisão do processo: o que se está a apreciar é a matéria alegada como fundamento da existência do direito da autora à resolução do contrato/substituição do bem vendido, em consequência dos defeitos que a máquina apresentou e que foram alegados na ação intentada em 28-03-2023, não se enquadrando a matéria em causa no art. 611.º do Cód. Proc. Civil.

Vai, assim, indeferido o pretendido aditamento aos factos provados do vertido nos pontos 2.º) e 3.º).

1.2.4. Exclusão de matéria considerada não provada

Com os mesmos fundamentos invocados para a pretendida alteração do n.º 28. dos factos provados requereu ainda o apelante a eliminação da alínea e) dos factos não provados – [e) Na sequência da intervenção referida em 52, o problema do secador ficou resolvido;] e, quanto à al. b) dos factos não provados [b) Na sequência do referido em 33 e 34 o pessoal técnico da ré não apareceu nas instalações da autora;], invocou que “o mesmo não foi apreciado corretamente, pois foi alegado e provado pelo depoimento dos técnicos da ré que esta realizou uma intervenção à máquina no seguimento do referido nos factos 33 e 34.”.

É apodítico, quanto a esta al. b) dos factos não provados, o lapso da apelante ao afirmar discordar da decisão recorrida: o que a mesma alega é precisamente que a prova produzida infirmou o que o tribunal recorrido incluiu na al. b) dos factos não provados.

De resto, ainda que assim não fosse, uma vez que os factos não provados não assumem nenhum papel ou relevância na decisão da causa, mostra-se desprovido de sentido pretender, sem outra consequência, a eliminação dos factos julgados não provados. É pretender substituir uma inexistência por outra inexistência, para além de que tal pretensão não satisfaz o disposto no art. 640.º, n.º 1, al. c), do Cód. Proc. Civil.

Deste modo, rejeita-se, quanto às als. b) e e) dos factos não provados, a impugnação da decisão respeitante à questão de facto.

1.3. Conclusão sobre a impugnação da decisão de facto

Em consequência da procedência parcial da impugnação da decisão sobre a matéria facto, são efetuadas as seguintes alterações ao elenco dos factos considerados provados na decisão recorrida:

Elimina-se o n.º 31. dos factos provados.

Alteram-se os n.os 24., 28. e 45. dos factos provados, que passam a ter a seguinte redação:

24. Os problemas/anomalias consistentes na fuga de água do termoacumulador e do erro na placa mantiveram-se, conforme emails remetidos pela autora nos dias 7, 12, 23, 25, 26 e 28 de dezembro de 2022, conforme documento 15 junto com a petição inicial, mantendo-se ainda o problema da placa nos termos referidos nos n.os 28. e 30. dos factos provados, e tendo ocorrido ainda o aparecimento de água por baixo do esquentador referido no n.º 46. dos factos provados.

28. Atualmente mantêm-se as anomalias referentes ao Erro C 000, que impede a máquina funcionar, conforme documento junto em audiência final, e ao secador que motiva que a máquina vá abaixo.

45. Novamente o técnico da ré, BB, deslocou-se ao local no dia 28 de abril às 11h, e colocou silicone no suporte do secador e chuveiro, o que resolveu o problema da água por baixo do secador.

Adita-se aos factos provados:

66. A anomalia respeitante à fuga de água no termoacumulador não impediu o normal funcionamento da máquina.

No mais, mantém-se a decisão de facto do tribunal a quo.


Análise dos factos e aplicação da lei

São as seguintes as questões de direito a abordar:
1. Procedência da exceção de caducidade
1.1. Ónus de prova da reclamação dentro do prazo de 8 dias
1.2. Reconhecimento dos defeitos pela ré enquanto causa impeditiva da caducidade
1.3. Caducidade pelo decurso do prazo de propositura da ação - art. 917.º do Cód. Civil
2. Direito da autora à substituição do bem vendido
2.1. Falta de prova da gravidade do defeito – afetação da utilização do bem vendido
2.2. Falta de verificação do pressuposto de responsabilidade contratual ‘culpa’
2.3. Excessiva onerosidade da substituição da máquina
3. Direito da autora à indemnização dos danos não patrimoniais
4. Responsabilidade pelas custas

1. Procedência da exceção de caducidade

O tribunal a quo julgou improcedente a exceção de caducidade invocada pela ré, tendo para o efeito, considerado:

– Para efeitos de determinação do prazo de caducidade, a qualificação do contrato celebrado entre as partes como uma compra e venda mercantil ou comercial (art. 463.º, al. a), do Cód. Comercial), ao qual é aplicável o regime da compra e venda comercial, regulado no Código Comercial e, subsidiariamente, o do Código Civil (art. 3º do Código Comercial), sendo o prazo aplicável o prazo de 8 dias previsto no art. 471.º do Cód. Comercial;

– Que, de acordo com a factualidade apurada, a falta de conformidade começou a manifestar-se no próprio dia da entrega e montagem da máquina (30 de junho de 2022), tendo-se seguido reclamações telefónicas e, a partir do dia 11 de outubro de 2022, por e-mail, as quais foram sempre atendidas pela ré, que sempre se deslocou junto da máquina reparando ou substituindo peças;

– Que tal atuação colaborante da ré equivale ao reconhecimento dos defeitos e à sua necessidade de reparação, assumindo-os, o que impede o decurso da caducidade nos termos e para os efeitos do art. 331º do Código Civil.

– Que a ré também não fez prova que a autora tenha deixado passar o prazo de 8 dias em relação a qualquer dos defeitos, por não ter alegado e provado a data exata do conhecimento do problema e o decurso do prazo de 8 dias.

– Que se aplica o prazo de 6 meses para a propositura da ação previsto no art. 917.º do Cód. Civil, pelo que, tendo o equipamento sido comprado em 30 de junho de 2022, tendo as anomalias começado a surgir desde esse dia, persistindo algumas até ao presente, e tendo a última intervenção ocorrido no dia 30 de dezembro de 2022, é a partir daí que corre o prazo de 6 meses para a propositura da ação, ‘sob pena da conduta da autora ser entendida como de má fé caso intentasse a ação no entretanto, porquanto a ré sempre se prontificou a resolver as anomalias.’, não fazendo sentido ‘intentar a ação com a ré a executar reparações e substituições de peças.’, face ao que contando-se o prazo de 6 meses desde a data da última reparação, tal prazo não tinha decorrido na data da propositura da ação (28 de março de 2023) nem na data da citação (31 de março de 2023).

A apelante – não obstante concordar com a decisão recorrida quanto à aplicação do prazo de 8 dias previsto no art. 471.º do Cód. Comercial para a denúncia dos defeitos e do prazo de 6 meses do art. 917.º do Cód. Civil para a propositura da ação –, defende a revogação da decisão de improcedência da exceção de caducidade, com os seguintes fundamentos:

a) – a requerida não logrou provar que procedeu à reclamação dentro do prazo de 8 dias, recaindo tal ónus sobre si;

b) – não resulta dos factos apurados o reconhecimento pela apelante de que as anomalias reclamadas eram defeitos de fabrico do equipamento e que eram imputáveis à ré;

c) – o prazo de 6 meses para a propositura da ação conta-se da data da entrega da coisa, eventualmente acrescido do prazo de denúncia que, no caso, é de 8 dias; se o defeito for descoberto decorridos 6 meses e 8 dias, já não é juridicamente relevante a denúncia do defeito (indica jurisprudência – Ac. RC de 11-01-2011; Ac. RP de 03-11-2009); não podia assim o tribunal recorrido ter considerado que tal prazo de 6 meses se inicia a partir da última intervenção realizada a 30-12-2022.

1.1. Ónus de prova da reclamação dentro do prazo de 8 dias

Não está controvertida a qualificação do contrato como uma compra e venda comercial, nem a aplicação no caso do regime previsto no art. 471.º do Cód. Comercial.

Dispõe o art. 471.º (Conversão em perfeitos dos contratos condicionais) do Cód. Comercial:

As condições referidas nos dois artigos antecedentes haver-se-ão por verificadas e os contratos como perfeitos, se o comprador examinar as coisas compradas no acto da entrega e não reclamar contra a sua qualidade, ou, não as examinando, não reclamar dentro de oito dias.

§ único. O vendedor pode exigir que o comprador proceda ao exame das fazendas no acto da entrega, salvo caso de impossibilidade, sob pena de se haver para todos os efeitos como verificado.

Estabelece este dispositivo o prazo de caducidade de 8 dias para a denúncia do defeito. Seguimos o entendimento maioritário da jurisprudência de que tal prazo se inicia, «não na data da entrega ou recepção da coisa, mas apenas na data em que os defeitos da coisa vendida se tornaram conhecidos ou congnoscíveis do comprador, de acordo com um padrão de diligência exigível no tráfico comercial» – cfr. José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 5.ª Reimpressão da edição de Outubro de 2009, p. 354.

Da consagração do dever do comprador de examinar a coisa o que resulta é que, não tendo o comprador atuado diligentemente – ou seja, quando resulte apurado que o defeito podia ter sido descoberto se o comprador tivesse examinado a coisa dentro do prazo de 8 dias a contar da data da entrega –, tal prazo de denúncia termina findos os 8 dias contados da entrega.

Como é referido no Ac. do TRP de 25-01-2021, proc. n.º 8600/18.6T8PRT-A.P1, «Não obstante a lei comercial parecer mais exigente do que a lei civil no que respeita ao exame das coisas exigido ao comprador, não se pode, contudo, concluir que uma denúncia deva ser efetuada antes dos defeitos poderem ser descobertos segundo um padrão de diligência exigível ao comprador. A unidade do sistema jurídico recomenda, também pela aplicação do art. 3º do Código Comercial, que o citado art. 471º seja interpretado de forma análoga ao estabelecido para a compra e venda civil e para a empreitada (arts. 916º, nº 2 e 1220º, nº 1, do Código Civil). Assim, o início do referido prazo de oito dias (que assume natureza supletiva) não se conta sempre da data da entrega, mas antes a partir do momento em que o comprador, se atuasse com a diligência exigível ao tráfego comercial, teria descoberto os defeitos (…)». Daqui resulta que tal prazo de 8 dias contado da data da entrega da coisa para a denúncia dos defeitos só opera relativamente aqueles defeitos que possam ser detetados através do simples exame/inspeção do bem objeto do contrato.

Discorda o apelante da decisão do tribunal a quo de que era à ré que incumbia o ónus de prova de que as reclamações – denúncia de defeitos – efetuadas pela autora o foram para além do prazo de 8 dias contados do conhecimento desses defeitos denunciados, defendendo que era a autora que tinha que ter alegado e provado que os denunciou dentro do aludido prazo de 8 dias contados do seu conhecimento.

Sem razão. O ónus de prova dos factos que integram a caducidade por decurso do prazo de denúncia, enquanto matéria de exceção, recai, em conformidade com o disposto no art. 342.º, n.º 2, do Cód. Civil, sobre a ré/vendedora. Neste sentido vai a maioria da jurisprudência mais recente – cfr., além do Ac. do TRP de 25-01-2021 já acima referido, os Acs. do TRC de 11-01-2011, proc. 1977/08.3TBAVR.C1, e de 12-10-2021 proc. 527/19.0T8FND.C1; Ac. do TRP de 08-09-2020, proc. n.º 74988/18.9YIPRT.P1.

1.2. Reconhecimento dos defeitos pela ré enquanto causa impeditiva da caducidade

Discorda ainda a ré apelante da decisão recorrida na parte em que valorou e subsumiu a apurada atuação da ré de tentativa de resolução das diversas anomalias que iam sendo reclamadas pela autora, designadamente, através da realização das diversas intervenções na máquina vendida que são referidas nos factos provados, nos quadros do reconhecimento do direito da autora, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 2 do art. 331.º do Cód. Civil – ou seja, como causa impeditiva da caducidade.

Fundamenta tal discordância na alegação de que ‘não se pode entender que a recorrente, ao ter agido de boa fé por tentar solucionar as anomalias da máquina, reconheceu-os como defeitos de fabrico e se responsabilizou por eles.’, referindo que toda a sua atuação se enquadra no serviço de assistência que presta, e que o reconhecimento dos defeitos como causa impeditiva do decurso do prazo de caducidade tem que ser um ‘reconhecimento expresso, solene e incontestável’.

Começaremos, desde logo, por afastar esta última objeção, uma vez que a declaração de reconhecimento do direito por parte do beneficiário da caducidade não tem de ser necessariamente expressa, podendo ocorrer, validamente, de modo tácito nos termos do disposto no art. 217.º, n.º 1, 2.ª parte do Cód. Civil.

Ora, resulta da factualidade apurada que, na sequência de todas as reclamações por e-mail enviadas pela autora à ré, esta fez deslocar os seus técnicos com vista à resolução dos diversos problemas/situações que iam sendo comunicados, sendo que, a despeito de tais intervenções tendentes a reparar os problemas comunicados, a ré não logrou, através das intervenções para reparação, incluindo com a substituição de peças da máquina, resolver alguns desses problemas.

Assim, e em concreto, resulta da factualidade apurada que – além de outros problemas comunicados e que ficaram resolvidos com a intervenção efetuada pela ré, como, por exemplo, o problema da água por baixo do secador (ver n.os 44. e 45. dos factos provados, e a eliminação efetuada, no diferimento parcial da impugnação da decisão do facto, do n.º 31. dos factos proados) – os maiores problemas que a máquina apresentou no seu funcionamento consistiram:

1.º) Numa fuga/queda de água do sistema de aquecimento, sucessivamente reclamados pela autora (n.os 14., 16., 20., 23., 52., 60.) que foi objeto de diversas intervenções por parte dos técnicos da ré, que sempre atendeu a todas as reclamações efetuando reparações, inclusive, com a substituição do termoacumulador (n.os 22., 27., 53., 56., 57., 58., 59., 61. e 63.) e que a autora aceitou que ficou resolvido, em data anterior à propositura da ação, com a intervenção realizada em 30 de dezembro de 2022 (n.os 22., 27., 29. e 61.).

2.º) Na anomalia da placa/software da máquina consistente no aparecimento do Erro C 000 que impede o funcionamento da máquina, quando ocorre, obrigando à intervenção da autora para desligar e voltar a ligar máquina (n.os 14., 24.) que, a despeito das intervenções efetuadas pela ré na sequência das sucessivas reclamações da autora (n.os 49., 52., 53. ) não foi resolvido (n.os 28. e 30. dos factos provados).

3.º) Em diversos problemas no funcionamento do secador que, reportados, levaram à intervenção dos técnicos da ré com vista à sua reparação (n.os 14., 15., 50., 51., 54., 55., 63.), mantendo-se, no entanto, uma anomalia com o funcionamento do secador que motiva que a máquina vá abaixo (n.º 28. dos factos provados).

Não subsistem dúvidas que da análise da factualidade provada resulta que a ré, perante a comunicação dos defeitos, atuou no sentido de os reparar, incluindo procedendo à substituição de peças/componentes da máquina vendida (placa – n.º 53.; botão do secador – n.º 55.; termoacumulador – n.º 59.).

Tal atuação configura um reconhecimento da existência dos defeitos comunicados e do direito da autora à sua reparação, inclusive com substituição integral de algumas das peças que integram a máquina vendida, com vista à eliminação das desconformidades do bem vendido. Ou seja, há efetivamente, por parte da ré, um inequívoco reconhecimento dos defeitos que a máquina vendida apresenta. Tais atuações configuram uma efetiva declaração de reconhecimento da existência dos defeitos, nomeadamente no que concerne ao problema de software na placa e da fuga de água no termoacumulador e de problemas de funcionamento do secador, tanto assim que a própria ré, assumiu voluntariamente a obrigação de reparação de tais defeitos – o que equivale ao reconhecimento do equivalente direito –, o que procurou fazer (ainda que sem sucesso, nomeadamente, quanto ao problema de software da máquina – placa – e quanto ao funcionamento do secador).

Tal atuação da ré, configurando um efetivo reconhecimento dos direitos da autora previstos no art. 914.º do Cód. Civil, constitui causa impeditiva da caducidade de tais direitos, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 331.º do Cód. Civil. Neste sentido, embora relativamente a defeitos de construção no âmbito do regime de contrato de empreitada, cfr. Ac do STJ de 08-03-2007, proc. n.º 07B372, nos termos do qual a «(…) proposta de reparação traduz inequivocamente o reconhecimento, por parte da ré/construtora, da existência dos defeitos que se propôs eliminar. Através deste reconhecimento, muito concreto e preciso, não subsistem dúvidas sobre a aceitação dos direitos da autora, tanto para, nos termos do aludido nº 2 do art. 1220º, o fazer equivaler à denúncia como para, segundo o nº 2 do art. 331º, impedir a caducidade. (…)»; cfr. ainda o Ac. do STJ de 09-07-2015, proc. n.º 3137/09.7TBCSC.L1.S1, e jurisprudência nele citada.

O entendimento preconizado pela apelante não tem cabimento no regime legal consagrado: perante a existência de um defeito, pode o comprador exigir do vendedor a reparação da coisa – art. 914.º do Cód. Civil. Efetuada a comunicação do defeito, a atuação de reparação por parte do vendedor enquadra-se no cumprimento da sua obrigação de reparação. Atuando ambas as partes de boa fé, é esta a atuação de exercício extrajudicial do direito à eliminação do defeito e de cumprimento voluntário da obrigação de reparação dos defeitos – o que implica, naturalmente, o reconhecimento da existência do defeito e do direito à sua eliminação. A pretendida subsunção nos quadros de um atuação de mera cortesia/bom relacionamento, dispondo-se a ré a efetuar reparações de problemas que não respeitam a defeitos de funcionamento da máquina por si vendida, não tem sequer suporte na factualidade apurada: veja-se que é a própria ré, na carta datada de 15 de dezembro de 2022 – em que responde à comunicação enviada pela autora em 12 de dezembro de 2022 –, que refere que “tem havido sempre disponibilidade da nossa parte para assumir a reparação do equipamento e substituir as peças necessárias de modo a assegurar o seu correto funcionamento”.

No sentido do afastamento da posição defendida pela apelante, posição essa que tem acolhimento em alguma jurisprudência, pronuncia-se Pedro Romano Martinez, Cumprimento Defeituoso – Em especial na compra e venda e na empreitada, Colecção Teses, Reedição de 2000, pp. 380 e 381, quando refere que tal jurisprudência – que defende uma interpretação restritiva do n.º 2 do art. 331.º do Cód. Civil, exigindo que o reconhecimento assuma o mesmo valor do ato que deveria ser praticado em seu lugar –, levaria a «(…) aceitar como válidas situações de manifesto abuso de direito.(…)». Prossegue este autor referindo que tal «(…) jurisprudência já tem considerado que não há impedimento da caducidade do prazo de garantia quando a vendedora reconheceu que o material fornecido tinha defeito, mostrando-se disposta a contribuir, em proporção a estabelecer, ou quando o empreiteiro, reconhecendo as deficiências da obra, prometeu repará-las, ou anda quando o vendedor disse que reparava a coisa e até ofereceu cinquenta mil escudos ao comprador para este fazer a reparação por sua conta. Admitir em tais casos a impunidade do faltoso, mediante uma interpretação restritiva do n.º 2 do art. 331.º, não parece aceitável. Até porque, perante as promessas daquele que cumpriu defeituosamente é natural que o credor não recorra, de imediato, à via judicial. Como refere Carbonnier, estando as partes em negociações amigáveis para solucionar o conflito, há uma impossibilidade moral de agir judicialmente.

(…)

Dever-se-á admitir que o reconhecimento do defeito, com promessas de solucionar o diferendo, constitui um impedimento da caducidade, pois não está em contradição com a letra do n.º 2 do art. 331.º, e permite evitar que se considerem como válidas situações violadoras do princípio da boa fé, designadamente da regra do não venire contra factuam proprium. (….)».

A defesa da posição assumida pela ré apelante, no caso dos autos, levaria precisamente a uma situação de violação do principio da boa fé: a despeito do reconhecimento dos defeitos e assunção da sua reparação por parte da ré, face ao que a autora só vem a lançar mão da competente ação judicial quando conclui que as sucessivas reparações que vão sendo efetuadas pela ré não conseguiram resolver a totalidade das anomalias comunicadas, mantendo-se as referidas nos n.os 28. e 30. dos factos provados, veria esta afastado o seu direito à eliminação dos defeitos (reconhecido pela atuação da ré) por não ter intentado a ação em vez de ter aceite a realização pela ré das intervenções tendentes à reparação/eliminação de tais defeitos.

Resulta, pois, que ocorreu uma assunção expressa da responsabilidade da ré pela eliminação dos defeitos – que constitui causa impeditiva da caducidade do direito da autora. Saber se o direito da autora à eliminação dos referidos defeitos é satisfeito com a reparação ou se exige a substituição, já é uma questão distinta e a resolver em momento ulterior (art. 914.º do Cód. Civil).

Concluímos, deste modo, pelo acerto da decisão recorrida quanto ao reconhecimento pela ré do direito da autora, como causa impeditiva da caducidade, nos termos previstos no art. 331.º, n.º 2, do Cód. Civil.

1.3. Caducidade pelo decurso do prazo de propositura da ação - art. 917.º do Cód. Civil

Com a finalidade da revogação da decisão de improcedência da exceção de caducidade, insurge-se a apelante quanto à afirmação, efetuada na sentença recorrida, de que o prazo de 6 meses previsto no art. 917.º do Cód. Civil se deverá contar a partir da última intervenção efetuada pela recorrente, a 30-12-2022, por ter o tribunal a quo considerado ‘que não fazia sentido intentar uma ação com a a executar reparações e substituições de peças.’. Fundamenta tal discordância na alegação de que, de acordo com o entendimento da doutrina e também da jurisprudência, que cita, é entendimento unânime que o prazo previsto no art. 917.º do Cód. Civil se conta a partir da data da entrega do bem vendido.

Consegue-se, com facilidade, reconduzir a fundamentação empírica da ‘falta de sentido’ invocada pelo tribunal recorrido à fundamentação jurídica atinente à violação do princípio da boa fé e ao instituto do abuso de direito, conforme explicitado por Pedro Romano Martinez no excerto do Cumprimento Defeituoso (…), supra transcrito em 1.2..

Da leitura conjugada do disposto nos arts. 916.º e 917.º do Cód. Civil – aplicáveis à compra e venda comercial ou mercantil – resulta que, efetivamente, a denúncia do defeito tem que ser efetuada dentro do prazo de 6 meses a contar da data da entrega/receção da coisa (art. 916.º, n.º 2, do Cód. Civil) e que a ação tem que ser intentada no prazo de 6 meses após a denúncia.

No caso em análise, o que ficou apurado foi que desde a instalação do aparelho, efetuada no dia 30 de junho de 2022, o equipamento apresentou ‘problemas diversos’ (n.º 12. dos factos provados), ‘que foram sendo reportados por diversas vezes pela autora telefonicamente (n.º 13. dos factos provados), sendo que a primeira denúncia escrita foi efetuada no e-mail de 11 de outubro de 2022, tendo sido denunciada a anomalia no funcionamento da placa de software, no funcionamento do secador e a queda/fuga de água da caldeira.

Pretende a apelante que, face a tal factualidade, a ação tinha que ter sido intentada até ao termo do prazo de 6 meses contados da data da entrega da máquina.

Esquece a ré apelante os efeitos do impedimento da caducidade, decorrentes do reconhecimento da existência dos defeitos e direito da autora à sua eliminação, nos termos da norma enunciada no n.º 2 do art. 331.º do Cód. Civil.

Do efeito impeditivo da caducidade emergente do reconhecimento do direito resulta que a caducidade fica definitivamente impedida, pelo que, tendo tal reconhecimento ocorrido antes do decurso do prazo de 6 meses contados da data da entrega do bem, ainda que se contasse o prazo de 6 meses para a propositura da ação a partir dessa data (como parece estar subjacente ao raciocínio da apelante), sempre seria de concluir pela improcedência da exceção de caducidade por força do seu impedimento, decorrente do reconhecimento do direito, nos termos acima referidos em 1.2., ficando, por conseguinte, prejudicado todo o raciocínio expendido pelo tribunal recorrido quanto à consideração do início do prazo de propositura da ação em 30 de dezembro de 2022 (data em que a ré ainda efetuou reparações).

Conforme referem Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição Coimbra Editora, L.da., p. 296, «(…) O reconhecimento impeditivo da caducidade, ao contrário do reconhecimento que interrompe a prescrição, «não tem como efeito abrir-se um novo prazo de caducidade: reconhecido o direito, a caducidade fica definitivamente impedida» (VAZ SERRA, “Prescrição e Caducidade”, BMJ nº 118). (…)». Considerando que «(…) Reconhecido o direito, a caducidade fica definitivamente impedida, tal como se tratasse do exercício da acção judicial; com efeito, se o direito é reconhecido, fica definitivamente assente e não há já que falar em caducidade. (…)», cfr. Ac. do STJ de 08-11-2018, proc. n.º 267/12.1TVLSB.L1.S1.

2. Direito da autora à substituição do bem vendido

Discorda a apelante da sua condenação na substituição da máquina vendida com os seguintes fundamentos:

– A autora não fez prova de que os defeitos apresentados pela máquina impedem a realização do fim a que a máquina se destina; não fez prova da essencialidade dos defeitos para o normal funcionamento da máquina.

– Falta de verificação do pressuposto da culpa da apelante, o que afasta a sua responsabilidade contratual.

– Subsidiariamente, invoca a excessiva onerosidade da substituição da máquina, violando o princípio da proporcionalidade e da justiça comutativa, como fundamento da revogação da decisão de condenação na substituição da máquina.

2.1. Falta de prova da gravidade do defeito – afetação da utilização do bem vendido

Defende a apelante que o direito da autora/apelada estava dependente da alegacão e prova da essencialidade dos defeitos que reclamou, por os mesmos impedirem o normal funcionamento da máquina – e que tal prova não foi feita, porque as ‘anomalias’ que a autora/apelada detetou não impediam o normal funcionamento da máquina, e a mesma nunca esteve imobilizada ou fora de serviço em consequência dessas anomalias.

Considerou a decisão recorrida que, por força do contrato de compra e venda celebrado entre as partes, sobre a ré/vendedora recaia o dever de entregar à autora/compradora “o bem, em conformidade com o acordado.”, ou seja, “o objeto (neste caso, o equipamento/máquina), tem de estar em boas condições e não apresentar defeitos que impeçam ou dificultem a realização do fim a que se destina.” E considerou que, no caso concreto, se estava perante “o cumprimento defeituoso da obrigação da ré, que era entregar à autora o bem móvel adquirido sem defeitos nem irregularidades – o que, como decorre da matéria assente, não aconteceu.”, por se ter apurado que “a ré vendeu à autora uma máquina que apresentou várias anomalias.”, para concluir que se encontra preenchido o primeiro requisito da responsabilidade contratual: “o incumprimento do contrato, consubstanciado na venda de coisa defeituosa.

É certo que se exige que o defeito assuma uma gravidade passível de afetar o uso ou a desvalorização da coisa – cfr. Pedro Romano Martinez, op. cit., p. 320. Mas também é certo que, diferentemente do defendido pela apelante, resulta da fundamentação de facto que as ‘anomalias’ consistentes no erro de software da máquina e no funcionamento do secador afetam o normal uso da máquina vendida, na medida em que determinam que esta deixe de funcionar, a qualquer altura e no meio da utilização que dela está a ser feita por um dos clientes, de forma imprevista, quando o referido erro C 000 ocorre, ou quando a utilização do secador deita a máquina abaixo, obrigando à deslocação da autora ao local para desligar e voltar a ligar a máquina, por forma a permitir que o cliente que a estava a utilizar consiga obter a prestação do serviço a que a máquina se destina.

Tratando-se de uma máquina que “se destina a lavagem e secagem em regime de auto-serviço de animais domésticos” (n.º 2. dos factos provados), é manifesto que tais defeitos de funcionamento, que se mantêm a despeito das intervenções da ré para reparação que foram sendo realizadas, afetam o uso a que a mesma se destina, constituindo defeitos graves, porque afetam o seu normal funcionamento.

2.2. Falta de verificação do pressuposto de responsabilidade contratual ‘culpa’

Defende a apelante que ‘não se pode presumir, como fez o tribunal recorrido, a culpa da autora, se esta atuou de boa fé ao tentar resolver os problemas que iam surgindo, tendo solucionado tudo exceto o Erro C000, pelo que a autora não pode ser condenada por não lhe ser exigível atuar de outra forma’.

O tribunal a quo considerou preenchido o segundo pressuposto da responsabilidade contratual da ré – a culpa –, nos seguintes termos:

“(…) Passemos, então, à análise do segundo requisito: a culpa da ré.

Nos termos do art. 799º nº 2 do Código Civil “a culpa é apreciada nos termos aplicáveis à responsabilidade civil”. O que nos remete para o art. 487º nº 2 do Código Civil e para o critério da culpa em abstrato – a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.

Segundo ANTUNES VARELA “agir com culpa significa atuar em termos de a conduta do devedor ser pessoalmente censurável ou reprovável. E o juízo de censura ou de reprovação da conduta do devedor só se pode apoiar no reconhecimento, perante as circunstâncias do caso, de que o obrigado não só devia, como podia ter agido de outro modo.” (in Das Obrigações em Geral, Volume II, 7ª Edição, Almedina, pág. 97).

Assim, o devedor não responde pelos danos causados ao credor quando, de acordo com as circunstâncias do caso, se concluir que o mesmo não pode ser censurado, porque não lhe era exigível agir de outra forma.

A culpa do devedor pode revestir duas modalidades: o dolo (que se exprime quando há uma adesão da vontade do devedor ao incumprimento da obrigação) ou a negligência (a censura do devedor funda-se no facto de não ter agido com a diligência e o discernimento exigíveis para evitar o incumprimento da obrigação ou no facto de não agido com a diligência devida para o prever e evitar).

Além disso, como refere ANTUNES VARELA “por força da mesma remissão [art. 799º nº 2 do Código Civil] pode ainda dar-se como certo que a negligência inclui, no âmbito da responsabilidade contratual, não só a falta de diligência, a deficiência da vontade, mas também a falta de qualidades, aptidões ou de discernimento exigíveis do devedor.” (op.cit., pág. 100).

Segundo este autor, na responsabilidade contratual, cada contraente deve poder confiar que o outro possui as qualidades/aptidões necessárias para a satisfação integral da prestação.

Como é evidente, o não cumprimento doloso exprime uma censura mais lesiva, por reveladora de uma vontade de incumprir, avessa ao Direito. A negligência, por sua vez, revela um comportamento que pode ser consciente ou inconsciente.

De referir ainda que não há culpa do devedor sempre que o incumprimento seja imputável a facto do credor ou de terceiro ou seja devido a caso fortuito ou de força maior.

Na responsabilidade contratual, presume-se a culpa do devedor (art. 799º nº 1 do Código Civil). E, quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (cfr. art. 350º nº 1 do Código Civil).

Por outro lado, e no que diz respeito à força probatória das presunções legais, o art. 350º nº 2 do Código Civil estabelece que as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, salvo nos casos em que a lei o proibir. Logo, as presunções legais importam a inversão do ónus da prova (cfr. art. 344º nº 1 do Código Civil), sendo designadas por presunções juris tantum as que podem ser ilididas por prova em contrário e por presunções juris et de jure as que não admitem prova em contrário. A presunção legal prevista no art. 799º nº 1 do Código Civil é uma presunção iuris tantum e, portanto, admite prova em contrário, não bastando, pois, a apresentação de mera contraprova para abalar a presunção, sendo antes necessário que se faça a prova em contrário.

A culpa é um conceito jurídico a extrair do exame global dos factos.

Feito este breve excurso teórico, vejamos se a ré ilidiu a presunção de culpa que sobre si impende, sendo certo que é este o quid do presente processo, pois a defesa apresentada pela ré baseia-se na inexistência de culpa da sua parte, referindo que sempre colaborou na resolução dos problemas.

Contudo, essa defesa apresenta-se como insuficiente, pois que se assume como uma tentativa de desresponsabilização.

Ou seja, a ré assume que tudo fez para reparar os defeitos, mas a verdade é que eles persistem.

Pois aqui mesmo está a sua culpa e a sua assunção da mesma.

À ré cabia a responsabilidade de entregar um bem sem os vícios que o equipamento apresentou.

Por isso, a ré tem culpa, sim, pelo estado em que vendeu a máquina, tendo vendido um bem com defeito.

Pelo que tem que ser responsabilizada.

Em face do que fica dito, concluiu-se que a ré atuou com culpa, ainda que na forma negligente.

Encontra-se, assim, verificado, o segundo requisito da responsabilidade contratual. (…)”.

Como resulta da leitura deste segmento da sentença, a presunção da culpa no cumprimento do contrato decorre da lei – art. 799.º do Cód. Civil –, sendo que a apelante não ilidiu tal presunção de culpa, a qual se reporta ao cumprimento da obrigação de fornecimento/venda de uma máquina sem defeitos que afetem o seu funcionamento.

A atuação da ré tendente a reparar tais defeitos não afasta a sua culpa (presumida) quanto à entrega à autora, em cumprimento do contrato de compra e venda, de uma máquina que apresenta os defeitos de funcionamento que constam dos factos provados.

Vem agora – e só agora, em sede de recurso – a apelante alegar ainda que ‘desconhece’ qual é a causa do problema da placa da máquina, que não é por si fabricada, para concluir, a partir de tal alegação, que ‘o defeito é imputável a terceiro, o que afasta a sua culpa, por prova da existência de uma causa estranha na origem do defeito’.

Tal questão não foi suscitada na primeira instância – de resto, nem sequer existem factos alegados passíveis de sustentar os juízos conclusivos formulados pela apelante como fundamento da pretensão de afastamento da sua culpa (presumida) –, sendo, por conseguinte, inadmissível qualquer pronúncia deste tribunal ad quem sobre a mesma: como resulta do disposto no art. 627.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, os recursos visam a modificação ou revogação das decisões do tribunal a quo, não se destinando nem podendo (salvo questões de conhecimento oficioso) apreciar e decidir matéria que não tenha sido objeto de apreciação na decisão impugnada. Como é jurisprudência pacífica, «Os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões precedentemente resolvidas pelo tribunal a quo e não a pronúncia do tribunal ad quem sobre questões novas.» - cfr. Ac. do STJ de 07-04-2005, proc. n.º 05B175.

2.3. Excessiva onerosidade da substituição da máquina

Por fim, pretende ainda a apelante a revogação da sentença com o fundamento de que ‘a substituição das peças que a compõem que não apresentam problemas causa custos desnecessários, sendo que a mudança total do equipamento terá um custo aproximado de € 5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros), ao passo que o custo de mudar a placa ronda os € 300,00 (trezentos euros), o que torna a prestação demasiado onerosa para o devedor sem beneficio para o credor, porque o problema da placa de sotfware, ao que parece, é um problema ao nível do próprio fabricante, o fornecedor da recorrente. Pelo que, o mais provável é dar-se o caso de, a ser substituída a totalidade das componentes da máquina, com um custo de milhares de euros para a recorrente, o problema volte a surgir com a nova placa’.

Sobre a reparação ou substituição da coisa dispõe o art. 914.º do Cód. Civil nos seguintes termos: O comprador tem o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela; mas esta obrigação não existe, se o vendedor desconhecia sem culpa o vício ou a falta de qualidade de que a coisa padece.

Mais uma vez, o aqui alegado pela apelante quanto ao custo da substituição da placa e quanto ao custo da substituição da máquina constitui matéria nova, que não foi alegada no momento oportuno, como fundamento da sua defesa; de igual modo quanto à matéria atinente à origem do defeito no fabrico da placa, matéria que só agora, em sede de recurso, é suscitada como fundamento da putativa causa de afastamento da obrigação de substituição a que se refere a 2.ª parte do art. 914.º do Cód. Civil, e não foi objeto de apreciação na decisão recorrida, pelo que nos está vedada a apreciação/conhecimento desta matéria como fundamento da invocada excessiva onerosidade da substituição e como fundamento da causa de afastamento da obrigação a que se reporta a 2.ª parte do art. 914.º do Cód. Civil.

Verifica-se, no entanto, que na contestação a ré alegou que a substituição da máquina ´é uma medida de carácter excecional e que é avaliada em termos objeitos, só podendo ser acionada se a reparação não for possível ou se revelar demasiado onerosa para o vendedor, e referindo ainda que a lei estabelece uma hierarquia entre a reparação e a substituição, apenas se admitindo que o comprador exija a substituição no caso de a reparação não ser passível de expurgar o vício ou a falta de qualidade.’

Sendo a exposição teórica efetuada pela ré correta, verificamos que, diferentemente do que a mesma defende, os defeitos apresentados pela máquina, consistentes no erro de software e no mau funcionamento do secador, afetam de forma grave e relevante a finalidade do uso a que a máquina se destina – lavagem e secagem em regime de auto-serviço de animais domésticos –, colocando em causa a finalidade para a qual a mesma foi adquirida. E a substituição não se mostra demasiado onerosa, mas antes necessária dado que os atos de reparação efetuados, designadamente, para eliminar o defeito da placa que, só por si, coloca em causa o bom e regular funcionamento da máquina, não lograram a sua eliminação, mantendo-se tal defeito.

O defeito consistente no erro de software não é um defeito insignificante – pelo contrário, afeta a finalidade a que se destina a máquina, colocando em causa o seu normal uso em regime de auto-serviço – e, por outro lado, dado que a sua eliminação não foi conseguida através das intervenções de reparação efetuadas pela ré, está demonstrada a necessidade da sua substituição, em conformidade com o disposto na 1.ª parte do art. 914.º do Cód. Civil.

Assim, este defeito referente ao Erro C 000, que impede a máquina funcionar é, por si só, suficiente para justificar a necessidade de substituição da máquina. O facto de a anomalia respeitante à fuga de água no termoacumulador não impedir o normal funcionamento da máquina – matéria de facto aditada na sequência da procedência parcial da impugnação – não assume, assim, relevância justificativa do afastamento da obrigação de substituição, dado que esta se funda na existência de um outro defeito que, diferentemente da fuga de água do termoacumulador, impede o normal funcionamento da máquina vendida.

Improcede este fundamento do recurso.

3. Direito da autora à indemnização dos danos não patrimoniais

Defende ainda a apelante a revogação da condenação no pagamento de indemnização pelos danos não patrimoniais, por falta de prova/demostração dos danos alegados, e por as ‘situações reportadas pela recorrida se encontrarem dentro do stress e ansiedade considerados normais para quem explora um negócio, com todos os constrangimentos que possam estar associados.

Atenta a improcedência da impugnação da decisão de facto quanto à falta de prova da matéria de facto considerada provada sob os n.os 39., 40., 42. e 43. dos factos provados, atinente aos danos não patrimoniais sofridos pela autora, da qual dependia a pretendida revogação da condenação da ré no pagamento à autora do montante de € 750,00, a título de indemnização pelos apurados danos não patrimoniais sofridos, improcede a pretensão da apelante, sendo de confirmar a decisão recorrida, também nesta parte.

4. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Cus. Proc.).

A responsabilidade pelas custas (da causa e da apelação) cabe à apelante, por ter ficado vencida (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).


IV. Dispositivo

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença apelada.

Custas a cargo da apelante, por ter ficado vencida (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).


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Notifique.

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Porto, 12/9/2024
Ana Luísa Loureiro
Isabel Peixoto Pereira
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] http://www.gde.mj.pt/jtrl.nsf/
[2] Acessível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/.