I – A instrução constitui uma fase processual autónoma relativamente ao inquérito e ao julgamento, podendo ser requerida pelo arguido ou pelo assistente nas situações enunciadas no n.º 1 do artigo 287.º do CPP.
II – É a sua realização a requerimento desses sujeitos processuais que lhe confere o carácter facultativo, estabelecido na lei (n.º 2 do art. 286.º do mesmo Código).
III – A natureza facultativa da instrução reporta-se ao exercício do direito de a requerer, esgotando-se tal direito no momento em que o requerimento é admitido e a respectiva fase processual é declarada aberta.
IV – Depois de proferido despacho judicial nesse sentido, a instrução passa a ser obrigatória, não sendo admissível a sua desistência por parte do requerente.
V – O facto de a lei nada estabelecer a esse respeito, não permite concluir pela admissibilidade da desistência da instrução.
VI - A admitir-se a desistência da instrução, tal representaria um afloramento do princípio do dispositivo, próprio do processo civil, o qual é contrário à natureza publicista do processo penal.
VII – E essa admissibilidade iria contra princípios estruturantes do processo penal, maxime o princípio do inquisitório, além de poder atentar contra a descoberta da verdade e da boa administração da justiça.
(da responsabilidade do Relator)
CONFERÊNCIA DE 18-09-2024. (Instrução / A co-arguida requereu a abertura da instrução relativamente à acusação de um crime de insolvência dolosa, indicando provas e requerendo a sua não pronúncia / Foi declarada aberta a instrução e produzidas provas, tendo depois a requerente desistido da instrução, o que foi admitido pela JIC, determinando a imediata remessa dos autos para julgamento / Recurso do co-arguido, dizendo que não é admissível a desistência da instrução na altura em que foi requerida / Procedência).
I
Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
Nos presentes autos n.º 2417/19.8T9VFR, provenientes do Juízo de Instrução Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 2, foi, em 28-11-2023, proferido despacho a admitir a desistência da instrução por parte da co-arguida AA, a qual a havia requerido relativamente à acusação que o Ministério Público tinha deduzido contra si e o co-arguido BB, imputando-lhes a prática, em co-autoria material, de um crime de insolvência dolosa, previsto e punido pelo artigo 227.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal (ref.ª 130240658).
- Admissibilidade legal da desistência da instrução, sustentando o recorrente que tal desistência só é permitida até ao momento do despacho a declarar aberta a fase da instrução, o que aqui não se verifica, sendo que a instrução inclui obrigatoriamente o debate instrutório (art. 289.º, n.º 1, do CPP), sob pena de ocorrer o vício da nulidade relativa da instrução, por insuficiência, conforme previsto no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP, pugnando pela revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que determine a não aceitação da desistência da instrução apresentada pela co-arguida AA, designando-se data para continuação da produção da prova requerida, seguida de debate instrutório e dos ulteriores termos do processo (ref.ª 15654638).
II
As conclusões formuladas, resultado da motivação apresentada, acima sintetizadas, delimitam o objeto do recurso (arts. 412.º, n.º 1, do CPP), sendo a única questão a apreciar a da (in)admissibilidade de desistência da instrução, invocando-se a violação do disposto no artigo 289.º, n.º 1, do CPP, o que constituirá nulidade, nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do mesmo Código.
Porque relevante para a apreciação do que está em causa no recurso, importa, antes de mais, enunciar a tramitação processual ocorrida desde o despacho de encerramento do inquérito, a qual é a seguinte:
a) Em 12-02-2023 foi proferido despacho de acusação pelo Ministério Público, nele se imputando aos arguidos BB e AA a prática, em co-autoria material, de um crime de insolvência dolosa, previsto e punido pelo artigo 227.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal (ref.ªs 125831376 e 126934211).
b) Em 17-05-2023 a co-arguida AA apresentou requerimento de abertura da instrução, pedindo que, produzia a prova que indicou, seja proferido, quanto a ela, despacho de não pronúncia (ref.ª 14573801).
c) Em 30-06-2023 foi proferido despacho pela Exm.ª Juiz de Instrução a admitir tal requerimento de abertura da instrução, declarando aberta a fase da instrução, tendo-se indeferido a reinquirição de parte das testemunhas ali indicadas e designado o dia 03 de Outubro para tomada de declarações à arguida / requerente AA, para inquirição das restantes testemunhas e para a realização do debate instrutório, sendo essa data depois alterada para 14 de Novembro (ref.ªs 128171070, 120209912 e 129262410).
d) No designado dia 14 de Novembro teve lugar a tomada de declarações à arguida AA e a inquirição de algumas das testemunhas, com designação do dia 21 de Novembro para a continuação da diligência (ref.ªs 130059520).
e) No referido dia 21-11-2023, a arguida AA dirigiu requerimento ao processo, declarando “desistir da instrução, requerendo o prosseguimento dos autos para julgamento” (ref.ª 15351141).
f) Na mesma data, no decurso da agendada continuação da diligência, foi exercido o contraditório relativamente a tal declaração de desistência da instrução, tendo a Exm.ª Magistrada do Ministério Público dito nada ter a opor à referida desistência, atenta a natureza facultativa da instrução, sendo que a Ilustre Mandatária do arguido BB se pronunciou no sentido de ser indeferida a requerida desistência, pois que a instrução foi declarada aberta e até produzida prova no seu decurso, não podendo agora desistir-se da mesma, pois que tal redundaria numa fraude aos fins da instrução, impedindo o tribunal de exercer um juízo de valoração sobre a prova produzida, mais dizendo só ser possível tal desistência até ao momento do despacho que declare aberta essa fase processual, pelo que, tendo sido declarada aberta a instrução pelo despacho de 30-06-2023, tornou-se a mesma obrigatória, bem como a realização do correspondente debate instrutório, sob pena de a sua falta consubstanciar uma nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º, alínea b), do CPP (ref.ª 130189084).
g) Em 28-11-2023, foi proferido o despacho recorrido, o qual é do seguinte teor:
“DESPACHO
O Ministério Público deduziu acusação contra BB e AA, imputando-lhes a prática, em co-autoria material, de um crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo art.º 227.º, n.º 1, al. a), do Código Penal.
A arguida AA requereu a abertura de instrução, alegando não ser verdade o vertido na acusação no que se refere aos factos que lhe são imputados e terminou pedindo a prolação de um despacho de não pronúncia.
Foi proferido despacho a declarar aberta a instrução e designada data para inquirição de testemunhas arroladas pela arguida no seu requerimento de abertura de instrução e para interrogatório da própria conforme por si requerido, seguida de realização de debate instrutório.
Sucede, porém, que após se proceder ao interrogatório da arguida e à inquirição de duas das testemunhas por si arroladas no requerimento de abertura de instrução, a arguida requerente da instrução veio desistir da mesma.
O Ministério Público não se opôs a tal desistência.
A Ilustre Mandatária do arguido BB opôs-se à admissibilidade de tal desistência, neste momento, por considerar ser apenas admissível até ao despacho de abertura da instrução.
Cumpre decidir.
Dispõe o art.º 286.º, n.º 2, do Código de Processo Penal que “a instrução tem carácter facultativo”.
Por outro lado, conforme dispõe o n.º 1 do mesmo preceito legal, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”, sendo que, nos termos do disposto no art.º 287.º, n.º 1, als. a) e b), têm legitimidade para requerer a abertura da instrução, o arguido relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação e o assistente, caso o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação.
A fase da instrução culmina com a prolação de um despacho de pronúncia, caso tenham sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança ou de um despacho de não pronúncia, em caso contrário – cfr. art.º 307.º, n.º 1, e 308.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.
Conforme refere Maia Costa, in “Código de Processo Penal Comentado”, 4.ª ed. revista, pág. 969, “a instrução constitui uma fase processual autónoma, de carácter facultativo, que visa exclusivamente a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar tomada no final do inquérito.
A instrução visa, pois, a comprovação das seguintes decisões:
a) da acusação do Ministério Público, a requerimento do arguido;
b) da acusação do assistente, em procedimento por crime particular, a requerimento do arguido;
c) do despacho de arquivamento do Ministério Público, nos procedimentos por crime público ou semipúblico, a requerimento do assistente.
A comprovação consiste no controlo jurisdicional sobre qualquer dessas decisões por parte de um juiz diverso do juiz do julgamento.
No último caso (despacho de arquivamento) a instrução não se destina a repetir ou a completar o inquérito, nem a realizar um inquérito complementar, abrangendo novos factos ou novos suspeitos ou arguidos; destina-se apenas a fiscalizar a decisão que pôs termo ao inquérito. Se o assistente considera o inquérito insuficiente em termos de investigação e recolha de prova, deverá reclamar hierarquicamente, nos termos do art.º 278.º, n.º 2, e não requerer a abertura da instrução.
É esta a concepção que respeita e se coaduna com a natureza acusatória do processo penal.
(…)
A instrução a pedido do arguido, na sequência da acusação, constitui um simétrico complemento das garantias de defesa, de alguma forma sustentando no art.º 32.º, n.º 4, da Constituição, mas não imposto propriamente por um modelo acusatório do processo como o português, em que o inquérito é conduzido por uma entidade autónoma, como é o Ministério Público.
Não existe fundamento constitucional, nomeadamente em nome do princípio da presunção de inocência, para atribuir ao arguido o direito a uma fase prévia ao julgamento, que imponha ao tribunal uma investigação tão aprofundada e esgotante como aquela que deverá realizar-se em audiência de julgamento. (…)
A instrução não é um julgamento “antecipado”, com o mesmo nível de garantias e direitos de defesa, com a mesma intensidade de produção e apreciação da prova. A instrução, insiste-se, visa apenas a comprovação da acusação, isso é, saber se existe fundamento para abrir a fase de julgamento, que é a fase central e paradigmática do processo penal, segundo o modelo garantista herdado do iluminismo”.
A doutrina e parte da jurisprudência tem entendido, ainda que invocando argumentos distintos e com matizes diferentes, que é inadmissível a desistência da instrução.
Com efeito, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, vol. II, 5.ª ed. actualizada, pág. 205, “a instrução tem carácter facultativo, mas a lei não permite que o requerente da instrução possa desistir da mesma em qualquer momento. A razão é esta: a desistência da instrução onde já tivesse sido produzida prova em sentido desfavorável ao requerente da instrução constituiria fraude à lei, isto é, uma fraude aos fins públicos da instrução, impedindo o tribunal de exercer o seu juízo de valoração sobre a prova produzida. Isto não prejudica a faculdade do requerente da instrução prescindir da prova por si arrolada que ainda não tenha sido produzida”.
Pedro Soares de Albergaria, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo III, 2.ª ed., pág. 1242, por seu turno, refere que “a mais de teleologicamente vinculada, a instrução é (como se disse já) uma fase processual facultativa (n.º 2). Pressupostos os requisitos para requerê-la, quem para tanto tiver legitimidade pode ou não fazê-lo. Ser facultativa, porém, não faz dela em todo caso uma fase processual (absolutamente) disponível. Pode-se ou não requerê-la, a bel talante e de acordo com a estratégia de quem como se disse para tanto tiver legitimidade. Mas uma vez requerida, a disponibilidade sobre a mesma é limitada, parecendo-nos seguro afirmar que se pode dela desistir até ao despacho que declare a abertura da mesma, em termos aliás, análogos ao que se dispõe no art.º 415.º para a desistência do recurso. Donde resulta que, sem prejuízo dessa possibilidade, ela uma vez requerida, torna-se obrigatória e a sua falta constitui nulidade insanável (art.º 119.º/d))”.
Já Maia Costa in “Código de Processo Penal Comentado”, 4.ª ed. revista, pág. 970, considera que “a instrução, sendo facultativa, só a requerimento (do assistente ou do arguido, conforme se reaja contra o arquivamento ou a acusação) pode ser desencadeada.
Porém, uma vez requerida, não há lugar à desistência, que não está prevista na lei”.
Também o Ac. da Relação do Porto de 16/02/2022, disponível in www.dgsi.pt., refere que:
“I - Embora a instrução seja uma fase facultativa do processo penal, daí não decorre a sua irrestrita disponibilidade por banda de quem a requeira.
II – Posto que a lei nada prevê directamente nessa matéria, e sendo o debate instrutório um acto obrigatório, sob pena de nulidade, tal levará a sustentar que, uma vez requerida, essa desistência não poderá já ter lugar.
III – Há doutrina que sustenta que o requerente da instrução não pode desistir dela em qualquer momento, desde logo, se já tiver sido produzida prova que lhe fosse desfavorável, pois que isso resultaria em fraude aos fins públicos da instrução, impedindo o tribunal de exercer o juízo de valoração sobre a prova produzida.
IV – Porém, acolhendo-se esta doutrina, e levando-a às consequências últimas, caberia admitir a desistência da instrução a todo o tempo, com o limite do encerramento do debate, enquanto não tivesse sido produzida prova desfavorável ao requerente, mas isso faria tábua rasa da já dita obrigatoriedade do debate, uma vez ela iniciada”.
Não perfilho tal entendimento de inadmissibilidade ou inadmissibilidade a todo o tempo da desistência de instrução.
Salvo o devido respeito, o argumento segundo o qual não está expressamente previsto na lei, não tolhe perante a expressa previsão no supra citado art.º 286.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, do carácter facultativo da fase da instrução.
Por outro lado, o argumento da fraude a lei, mostra-se, desde logo, afastado não só pelo argumento vertido no supra citado Ac. da Relação do Porto de 16/02/2022, como também porque sendo o objectivo do arguido ao requerer a instrução, um despacho de não pronúncia, isto é, conseguir não ser submetido a julgamento e estando vedado ao Juiz de Instrução Criminal, nos termos do disposto nos art.º 303.º, n.º 3, e 309.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, pronunciá-lo por factos que constituem alteração substancial dos descritos na acusação, salvo o devido respeito, a apreciação da prova desfavorável ao arguido produzida em sede de instrução, apenas redundaria na prolação de um despacho de pronúncia dada a confirmação judicial da acusação contra si já proferida.
E se é certo que, nos termos do disposto no art.º 303.º, n.º 1 e 5, do Código de Processo Penal, o Juiz de Instrução Criminal pode proceder à alteração não substancial dos factos e à alteração da qualificação jurídica, a verdade é que também pode fazê-lo o Juiz do Julgamento e este não está vinculado àquelas.
Acresce que nada obsta, que o Ministério Público, o assistente ou o arguido, nos termos legalmente previstos, possam requerer, em sede de julgamento, que se tome em consideração a prova que chegou a ser produzida na fase de instrução e que aí não chegou a ser apreciada, como o poderiam fazer, caso fosse proferido um despacho de pronúncia – cfr., neste sentido, o Ac. da Relação do Porto de 06/07/2022, disponível in www.dgsi.pt.
Também o argumento da nulidade prevista no art.º 119.º, al. d), do Código de Processo Penal e da obrigatoriedade de realização de um debate instrutório, nos termos do disposto no art.º 289.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, não tolhe.
Conforme entende Henriques Gaspar, in “Código de Processo Penal Comentado”, 4.ª ed. revista, pág. 339, a nulidade prevista no art.º 119.º, al. d), do Código de Processo Penal, dado que “apesar da redacção da norma, a nulidade, pressupondo a “obrigatoriedade”, não pode abranger a “falta” da instrução; nos termos do artigo 286.º, n.º 2, “a instrução tem carácter facultativo”” – cfr., no mesmo sentido, João Conde Ferreira in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo I, 2.ª ed., pág. 1282 e, em sentido contrário, Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal.
Creio, no entanto, que tal normativo legal poderá ser interpretado no sentido de sendo requerida a instrução por quem tem legitimidade e no prazo legal previsto para o efeito e não tendo havido desistência da mesma, tal fase é obrigatória, no sentido de não poder ser o processo remetido para julgamento sem decorrer a fase de instrução e, bem assim, que não havendo desistência da instrução, é obrigatória a realização do debate instrutório.
Entendo ser esta, aliás, a interpretação mais compatível até com o disposto no art.º 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”, tal como refere o Ac. da Relação do Porto de 06/07/2022, disponível in www.dgsi.pt, e cujo entendimento perfilho.
Refere o mencionado acórdão “é indubitável que o processo penal tem estrutura acusatória e uma estrutura, imposta pela Constituição (artigo 32.º, n.º 5), integrada por um princípio subsidiário de investigação. Uma estrutura que, de forma congruente, satisfaz as finalidades que o processo penal de um Estado de direito democrático deve prosseguir:
- a descoberta da verdade material;
- a realização da justiça;
- a tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos, ainda que estes tenham assumido o estatuto de arguido;
- o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa com a prática do crime.
Aqui incluída a paz jurídica do arguido, a quem a Constituição reconhece o direito de ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa e a quem dá a garantia de não poder ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime (artigos 29.º, n.º 5, e 32.º, n.º 2, da CRP).
Não podemos olvidar que o mais importante princípio que enforma o processo penal é o da presunção da inocência (…), sendo a obrigatoriedade de julgamento no mais curto prazo uma dimensão importante do princípio da presunção de inocência do arguido.
O princípio do processo célere, positivado na Constituição da República Portuguesa, artigo 32.º, n.º 2, garante ao cidadão que a prestação jurisdicional deverá ser célere, respeitando o direito material controvertido para que este não fique esbatido antes que seja efectivada a sua tutela.
Vejamos então se a desistência da instrução, no caso em apreço esbate algum destes princípios ou direitos.
A arguida declarou pretender desistir da instrução. (...)
É nosso entendimento que esta decisão, não são cerceadas e nem ofendidas ou ofende as finalidades do processo penal porquanto, a causa, tal como foi objecto de acusação pelo Ministério Público, será submetida a julgamento com vista a alcançar a descoberta da verdade material e realizada a justiça, não deixando de acautelar os direitos do arguido a quem a Constituição reconhece o direito de ser julgado no mais curto prazo compatível com todas as garantias de defesa (artigo 32.º,
n.º 2, da CRP).
Por outro lado, proferida decisão após julgamento será alcançado o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa com a prática destes crimes e também a paz jurídica da arguida que vê acautelados os seus direitos de defesa e seria julgada no mais curto prazo. (…)
Estamos, pois, com Artur Cordeiro, Inquérito e Instrução: modelos de investigação criminal, revisão do papel e função do jic e do mp, medidas de coacção (…) quando refere que a fase de instrução é facultativa mas que o requerente nem sempre dela pode desistir: “poderá fazê-lo o arguido quando for o seu requerente, pois configurando-se esta fase também como um seu direito de defesa faz sentido que dele possa dispor, designadamente por entender afinal que pretende acelerar a marcha do processo de modo a ver decidido o processo em sede de julgamento sendo ainda certo que qualquer elemento de prova que antes da desistência tenha sido colhido no decurso da instrução necessário ou útil para a descoberta da verdade e à boa decisão da acusa – eventualmente prejudicial ao arguido – se encontrará sinalizado e a sua produção poderá ser requerida em sede de audiência de julgamento, pelo MP, arguido ou assistente”. Não podemos olvidar que outro dos princípios que preside às normas processuais é o da economia processual, entendida esta como a proibição da prática de actos inúteis, conforme estabelece o art.º 130.º do Código de Processo Civil. É certo que o Código de Processo Penal não contém norma equivalente, mas tal não impede a aplicação daquele preceito nos termos do artigo 4.º do Código de Processo Penal, porquanto o princípio que lhe serve de substracto harmonizasse em absoluto com o processo penal.
Trata-se, como acentua o Prof. José Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, I, pág. 240) duma norma que se impõe a todos, juiz, secretaria e partes, visando proibir os actos que apenas tenham o efeito de complicar o processo, impedindo-o de rapidamente chegara a seu termo.
Tendo presente, conforme se expôs, que o mais importante princípio que enforma o processo penal é o da presunção de inocência, e que o arguido deve ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa (art.º 32.º, n.º 2, da CRP) e atendendo a que a demora do processo penal, além de prolongar o estado de suspeição e as medidas de coacção sobre o arguido, tenderá a esvaziar de sentido e retirar conteúdo útil ao princípio da presunção de inocência, e sendo a fase de instrução, quando requerida pelo arguido, como é o caso, destinada à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” – art.º 286.º, n.º 1 e n.º 2, do CPP – ao desistir da instrução, o arguido está a dizer ao tribunal que quer que a sua causa seja submetida a julgamento, qua tale.
Sendo essa a situação aqui em apreço, não faz qualquer sentido não admitir a desistência da instrução, a qual em nada contende com os direitos inerentes ao estatuto processual do arguido.
Na verdade, não admitir a desistência e obrigar o juiz a realizar o debate instrutório num caso em que se sabe de antemão que o processo vai para julgamento é salvo o devido respeito, determinar a prática de um acto inútil e proibido por lei (artigo 130.º do CPC, ex vi do artigo 4.º do CRP). Repare-se que, visando o debate instrutório, nos termos do artigo 298.º do CPP “permitir uma discussão perante o juiz, de forma oral e contraditória, sobre se, no decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento”, não tem qualquer utilidade determinar a realização de um debate instrutório, sabendo, antecipadamente, que o processo será enviado para julgamento e que a decisão instrutória a proferir só poderá ser essa, conforme vontade por este manifestada ao desistir da instrução e pretender se julgado, de imediato, com todos os direitos de defesa”.
Conforme já se referiu supra, no caso concreto, o Ministério Público deduziu acusação contra BB e AA, imputando-lhes a prática, em co-autoria material, de um crime de insolvência dolosa p. e p. pelo art.º 227.º, n.º 1, al. a), do Código Penal e foi a arguida AA quem, unicamente, requereu a abertura de instrução, alegando não ser verdade o vertido na acusação no que se refere aos factos que lhe são imputados e terminou pedindo a prolação de um despacho de não pronúncia.
Foi a arguida requerente da abertura da instrução quem declarou desistir da instrução, o que mereceu a não oposição do Ministério Público e sim a do co-arguido.
Tendo em consideração os argumentos supra expendidos e, bem assim, que atendendo ao teor do requerimento de abertura de instrução e pese embora o disposto no art.º 307.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, nunca seria proferido um despacho de não pronúncia do arguido BB e, bem assim, que o mesmo, podendo fazê-lo, optou por não requerer a abertura da instrução, entendo pois, que não pode agora a sua oposição à desistência relevar.
Em face de tudo o que ficou exposto, defiro o requerido, aceitando-se a solicitada desistência da instrução e, consequentemente, declaro-a finda.
Condeno a arguida requerente no pagamento de taxa de justiça que se fixa em 3 UC, a liquidar a final com a condenação pela prática do crime pelo qual foi acusada (art.º 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e art.º 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).
Registe, electrónica e fisicamente (conforme Provimento de 13/09/2016), notifique e dê baixa, de imediato, na estatística oficial.
Após, remeta, de imediato, à distribuição para julgamento.” (ref.ª 130240658).
Não há dúvidas de que a instrução “tem carácter facultativo”, pois que isso mesmo estabelece o n.º 2 do artigo 286.º do CPP.
A mesma constitui uma fase processual autónoma (relativamente ao inquérito e ao julgamento) e pode ser requerida pelo arguido - quanto aos factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, no caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação - ou pelo assistente - se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação -, conforme estabelece o n.º 1, alíneas a) e b), do artigo 287.º do mesmo Código.
A fase da instrução “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” (n.º 1 do citado art. 286.º).
Tendo presente o referido caráter facultativo, a questão coloca-se ao nível da possibilidade de desistência da instrução depois de o respectivo requerimento ter sido recebido e declarada aberta essa fase processual por despacho judicial (aludido nos n.ºs 3, 4 e 5 do art. 287.º).
Numa primeira abordagem, atento aquele carácter facultativo da instrução, poderíamos ser levados a considerar que também o requerente poderá desistir da própria instrução a todo o tempo, como se entendeu no despacho recorrido e foi defendido na resposta do Exm.º Magistrado do Ministério Público ao recurso e no Parecer do Exm.º Procurador-Geral Adjunto, apoiando-se, essencialmente, no Acórdão desta Relação do Porto de 06-07-2022, acessível em www.dgi.pt (Des. Amélia Catarino).
Porém, bem vistas as coisas, julgamos que tal desistência não é legalmente admissível, considerando-se estar a razão do lado do recorrente BB, o que se procurará demonstrar, tal como já se sustentou no Acórdão desta Relação de 09-02-2022, proferido no Processo n.º 9276/19.9T9PRT, relatado pelo agora também relator, igualmente disponível em www.dgsi.pt.
É sabido que o processo penal constitui um conjunto sequencial e encadeado de actos, com vista à descoberta da verdade e à realização da justiça criminal.
No dizer de Manuel da Costa Andrade “o processo penal visa investigar e comprovar a prática de um facto criminalmente ilícito e passado – porque já consumado ou porque já ocorreram actos de execução – em ordem à punição do seu agente.” (in RLJ, Ano 151, N.º 4035, pág. 334).
Nessa decorrência, a realização da justiça pressupõe que sejam observadas as formalidades legais do processo, sendo, dessa forma, salvaguardados os direitos e garantias dos sujeitos processuais, designadamente do arguido, constitucionalmente consagrados (art. 32.º da CRP).
Com efeito, tal como refere Fernando Gama Lobo, o processo penal está todo ele enformado pelo princípio da legalidade (in Código de Processo Penal Anotado, Almedina, 2020, pág. 191).
Trata-se de uma codificação das normas reguladoras da administração da justiça penal, conducentes à execução prática do direito penal substantivo, em que se traduz o ius puniendi do Estado. Consequentemente, a tramitação processual não poderá, a não ser nos casos expressamente previstos na lei, ficar na livre disponibilidade dos sujeitos processuais.
Efetivamente, devido aos interesses que estão “em jogo”, não vigoram no direito processual penal as regras e princípios da jurisdição cível, designadamente o princípio do dispositivo, sendo este um dos princípios estruturantes do direito processual civil.[2]
A margem de disponibilidade da procedibilidade e da acção penal por parte dos sujeitos processuais está limitada aos crimes que o legislador considera de menor gravidade, onde não estão em causa, primordialmente, interesses públicos, classificados de crimes semi-públicos e particulares, relativamente aos quais é possível não iniciar o procedimento e também pôr termo ao processo, neste caso até à publicação da sentença em 1.ª instância, mediante desistência de queixa por parte do ofendido, sem oposição do arguido (arts. 113.º, n.º 1, e 116.º, n.º 2, do C. Penal e 51.º do CPP).
Mas a desistência de queixa não é a mesma coisa que a desistência da instrução. Porém, se estiverem apenas em causa nos autos crimes de natureza semi-pública ou particular, relativamente a cuja(s) acusação(ões) o arguido tenha requerido a abertura da instrução, a eventual desistência de queixa pelo ofendido / assistente e sua homologação judicial faz, por consequência, terminar a fase da instrução, sem necessidade de proferir decisão instrutória.
Já nos crimes de natureza pública, aqueles cujo procedimento criminal não depende de queixa, tal desistência (de queixa) não é admissível, estando entre estes o crime de insolvência dolosa, p. e p. pelo artigo 227.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, objeto de participação e imputado pelo Ministério Público aos arguidos no despacho de acusação (ponto a) supra).
No decurso do processo legislativo de aprovação do actual CPP foi rejeitada uma proposta de redacção para o n.º 2 do artigo 286.º do seguinte teor: “a instrução tem caráter facultativo, mas não admite desistência.” (cfr. Código de Processo Penal, V.II.TII, Assembleia da República – Divisão de Edições, 1999, pág. 169).
Não tendo sido aprovado o texto com a parte final, poderia julgar-se que, ao não ficar consagrada a inadmissibilidade de desistência da instrução, tal desistência seria permitida.
Efetivamente, não existe no ordenamento adjectivo penal qualquer norma a prever a desistência da instrução ou a proibir essa desistência.
Contudo, ainda que a apresentação de requerimento de abertura da instrução esteja dependente da vontade dos sujeitos processuais - arguido e assistente -, após a apresentação e admissão do mesmo, ou seja, após declarada aberta da fase da instrução, julgamos que esta fase processual se torna obrigatória, terminando, em princípio,[3] com a decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia (arts. 307.º e 308.º do CPP).
Com efeito, estando na disponibilidade do arguido e do assistente requerer a abertura da instrução, nas situações que a lei enuncia (n.º 1 do art. 287.º), a partir do momento em que é proferido despacho a admitir tal ou tais requerimentos e é declarada aberta a fase da instrução, a mesma passa a ser obrigatória, não podendo o requerente pôr-lhe termo através de desistência.
Na verdade, a admitir-se a desistência da instrução, tal representaria um afloramento do aludido princípio do dispositivo - próprio do processo civil -,[4] contrário à natureza publicista do processo penal.
O legislador foi particularmente cuidadoso no elenco das situações em que as “desistências” são admissíveis, permitindo, nomeadamente, a desistência da queixa (nas situações já aludidas), mas com o limite temporal da publicação da sentença em 1.ª instância (n.º 2 do art. 116.º do C. Penal),
De igual modo, nalguns crimes de furto qualificado e de abuso de confiança admite-se a extinção da responsabilidade criminal, por acordo do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à publicação da sentença da 1.ª instância, conforme estabelece o artigo 206.º, n.º 1, do Código Penal.
Também se prevê expressamente a desistência do recurso interposto, mas com limitações temporais, pois que a mesma apenas é permitida “até ao momento de o processo ser concluso ao relator para exame preliminar” (art. 415.º, n.º 1, do CPP).
De igual modo, no âmbito do direito contra-ordenacional foi consagrada, na fase de impugnação judicial, a possibilidade de “o Ministério Público, com o acordo do arguido, retirar a acusação”, mas tal só poderá ocorrer “até à sentença em 1.ª instância ou até ser proferido o despacho previsto no n.º 2 do artigo 64.º” [despacho que conhece do recurso], tal como estabelece o n.º 1 do artigo 65.º-A do Regime Geral das Contra-ordenações (RGCO - aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10, com as alterações posteriores, a última delas pela Lei n.º 109/2001, de 24-12).
Igualmente foi consagrada a possibilidade de retirada do recurso pelo arguido “até à sentença em 1.ª instância ou até ser proferido o despacho previsto no n.º 2 do artigo 64.º”, sendo que “depois do início da audiência de julgamento, o recurso só pode ser retirado mediante o acordo do Ministério Público.” (art. 71.º do mesmo RGCO).
Tais normativos, maxime o dito artigo 415.º, n.º 1, do CPP (desistência nos recursos) legitimam o entendimento de que somente nos casos e termos legalmente previstos é possível a desistência de fases processuais cujo desencadear está na disponibilidade do requerente (recursos / impugnações), não sendo admissível, por isso, desistir em situações que lei não prevê expressamente.
Ou seja, o silêncio da lei não permite concluir pela afirmativa a respeito da desistência da instrução.[5]
E não cremos que a possibilidade de desistência da instrução - depois de judicialmente admitida - possa estar dependente da qualidade do sujeito processual que a requereu, no caso o arguido e / ou o assistente, nem tão pouco de terem sido ou não praticados atos e produzida ou não prova nessa fase.
Com efeito, admitida a instrução, deixa o requerente de poder dispor dela, sendo ao Juiz que compete dirigir essa fase processual, tendo presentes as diligências probatórias requeridas e admitidas (arts. 288.º, n.º 1, 289.º, n.º 1, 290.º, n.º 1, 291.º e 292.º do CPP).
Ademais, a aceitar-se a desistência da instrução, a mesma não produziria os efeitos pretendidos pelo requerente - ou quaisquer outros -, tudo se passando como se ela nunca tivesse sido requerida, voltando os autos, forçosamente, ao momento em que foi proferido despacho final no inquérito, repristinando-se a acusação - pública ou particular - ou o arquivamento.
Mas se já tivessem sido realizadas diligências probatórias na instrução (vg. interrogatórios de arguidos e inquirição de testemunhas pelo JIC), sempre teria de questionar-se o relevo e a validade que essas provas teriam nos autos.
Com efeito, tendo deixado de existir a instrução, esses elementos probatórios teriam de considerar-se inexistentes e não poderiam ser utilizados em caso de reabertura do inquérito (n.º 1 do art. 279.º do CPP), isto na situação de a instrução ter sido requerida pelo assistente na sequência de despacho de arquivamento do Ministério Público.
E se a instrução tivesse sido requerida pelo arguido, com a desistência da mesma, indo os autos para julgamento (pois que subsistia a acusação), tais elementos probatórios também não poderiam ser utilizados, com eventual prejuízo para a descoberta da verdade.
É que, a admitir-se a possibilidade de desistência da instrução, tal equivaleria a ela nunca ter sido requerida, não podendo, a nosso ver, ter qualquer efeito ou validade futura os argumentos vertidos no requerimento de abertura da instrução e as provas requeridas e, eventualmente, produzidas até à altura da desistência, pois que esta tem efeitos retroactivos – ex tunc - (fica sem efeito o que se pediu e fez) e não apenas a partir do momento em que é formulada nos autos. Atente-se nos efeitos da desistência da queixa criminal (arts. 116.º, n.º 2, do C. Penal e 51.º do CPP) e também nos da desistência da instância e do pedido na jurisdição cível (art. 285.º do CPC).
Tal vale por dizer que as provas produzidas na fase da instrução não teriam qualquer relevo e validade nos autos, não podendo, por isso, ao contrário do sustentado no despacho recorrido, na resposta ao recurso e no Parecer, com invocação do referido acórdão desta Relação de 06-07-2022, vir a ser usadas em julgamento, designadamente as declarações e depoimentos prestados perante o JIC, mediante a sua leitura em audiência, nos termos dos artigos 356.º, n.ºs 2 e 3, e 357.º do CPP.
Além disso, a aceitar-se a desistência, não poderia deixar de equacionar-se a possibilidade de utilização da fase da instrução apenas como forma de protelar o andamento dos autos (no caso do arguido que foi acusado) ou mesmo de “gestão” da instrução em função do seu desenrolar, desistindo dessa fase se as diligências levadas a cabo não fossem favoráveis às pretensões do requerente, assim as inutilizando.
E não vemos que a defesa da possibilidade de desistência da instrução possa apoiar-se na celeridade processual que a mesma poderá proporcionar, ao remeter-se, caso o desistente seja o arguido, imediatamente os autos para julgamento, dando assim sustentação ao comando constitucional de “ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa” (n.º 2 do art. 32.º da CRP).
É que, sendo desejável que a justiça se realize em tempo razoável, se possível curto, tal não pode ser obtido à custa do desrespeito pelas normas processuais, sendo certo que a decisão instrutória, seja de pronúncia ou não pronúncia, tem de apreciar também a indiciação relativamente aos co-arguidos não requerentes da instrução, como aqui é o caso do recorrente BB, daí extraindo as necessárias ilações (n.º 4 do art. 307.º do CPP).
Por tudo quanto se deixa dito, cremos não ser correcto o entendimento de que a instrução, depois de admitida, continua na disponibilidade do requerente, podendo este dela desistir a todo o tempo.
Tal possibilidade, além de não estar prevista em qualquer norma legal, vai contra princípios estruturantes do processo penal, maxime o princípio do inquisitório, além de poder atentar contra a descoberta da verdade e da boa administração da justiça.
Conforme se refere na decisão recorrida, a generalidade da doutrina defende a inadmissibilidade da desistência a instrução, ainda que alguns dos autores sustentem entendimentos mais maleáveis.
A tal respeito, podem ver-se:
- Paulo Pinto de Albuquerque, o qual refere que “[A] instrução tem carácter facultativo, mas a lei não permite que o requerente da instrução possa desistir da mesma em qualquer momento. A razão é esta: a desistência da instrução onde já tivesse sido produzida prova em sentido desfavorável ao requerente da instrução constituiria uma fraude à lei, isto é, uma fraude aos fins públicos da instrução, impedindo o tribunal de exercer o seu juízo de valoração sobre a prova produzida.” (in Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª Edição actualizada, Univ. Cat. Editora, pág. 778).
- Eduardo Maia Costa, o qual menciona que “[A] instrução, sendo facultativa, só a requerimento (do assistente ou do arguido, conforme se reaja contra o arquivamento ou a acusação) pode ser desencadeada. Porém, uma vez requerida, não há lugar à desistência, que não está prevista na lei.” (in Código de Processo Penal Comentado, 3.ª Edição Revista, Almedina, pág. 964).
- Fernando Gama Lobo, segundo o qual não faria sentido a previsão legal de desistência da instrução, “uma vez que, despoletada que seja, entramos numa fase irreversível de averiguação indiciária, que interessa a todos os intervenientes e não só aos requerentes da instrução, sendo certo que o tribunal tem sempre o dever de diligenciar pela descoberta da verdade.” (in Código de Processo Penal Anotado, 3.ª Edição, Coimbra Editora, pág. 595).
- Pedro Soares de Albergaria, o qual entende que o carácter facultativo da instrução “não faz dela em todo o caso uma fase processual (absolutamente) disponível. Pode-se ou não requerê-la, a bel talante e de acordo com a estratégia de que como se disse para tanto tiver legitimidade. Mas uma vez requerida, a disponibilidade sobre a mesma é limitada, parecendo-nos seguro afirmar que se pode dela desistir até ao despacho que declare a abertura da mesma, em termos aliás análogos ao que se dispõe no art. 415.º para a desistência do recurso. Donde resulta que, sem prejuízo dessa possibilidade, ela uma vez requerida torna-se obrigatória e a sua falta constitui nulidade insanável [art. 119.º/d)].” - (in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, 2.ª Edição, Almedina, pág. 1243).
- Jorge Emanuel Mendes Valente Dias, segundo o qual deve “aplicar-se ao requerimento para abertura da instrução, analogicamente, nos termos do art.º 4.º do CPP, o disposto no art.º 415.º, n.º 1, do CPP, isto é, deve ser admitida a desistência do requerimento de abertura da instrução até ao momento em que for proferido despacho de abertura da instrução, nos termos do artigo 287.º, n.º 4, do CPP. Só a partir do despacho de abertura da instrução é que a mesma passa a ser efectivamente obrigatória.” (in Considerações sobre a prova e contraditório na fase de instrução no processo penal”, Dissertação de Mestrado em Direito, Universidade Portucalense, pág. 70).
- Henrique Gustavo Ribeiro Ferreira de Antas e Castro, que enuncia algumas posições doutrinais a tal respeito (incluindo de Paulo Pinto de Albuquerque e Maia Costa, já acima enunciadas) e apresenta também o seu entendimento, nos seguintes termos:
“Tem-se colocado a questão se o facto de a instrução ser facultativa confere ao seu requerente a faculdade de dela desistir, depois de elaborado o requerimento de abertura de instrução. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE considerou que a lei não permite a desistência da instrução em qualquer momento, pois se “já tivesse sido produzida prova em sentido desfavorável ao requerente da instrução constituiria uma fraude à lei, isto é, uma fraude aos fins públicos da instrução, impedindo o tribunal de exercer o seu juízo de valoração sobre a prova produzida” (cfr. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª Edição Atualizada, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2009, pp. 751-752).
Para MAIA COSTA, a desistência da instrução nunca será possível, pois não está prevista na lei (AA. VV., Código de Processo Penal…, ob. cit., p. 1000).
Em sentido totalmente distinto, ARTUR CORDEIRO consagrou um conjunto de requisitos para a desistência da instrução. No caso de ser o arguido o requerente, este, visto que a instrução é o exercício de um direito de defesa, poderá desistir sempre. O Autor não encontra a objeção apontada por PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, na medida em que entende que qualquer elemento probatório que tenha sido obtido antes da desistência e que seja útil ou necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, mesmo que eventualmente prejudicial ao arguido, estará sinalizado, pelo que o Ministério Público ou o assistente podem requerer a sua produção na audiência de julgamento. Por outro lado, na circunstância de ser o assistente a requerer a abertura de instrução, este poderá desistir da instrução em caso de crimes de natureza semipública, desde que o arguido a isso não se oponha, já que sempre estaria na disponibilidade do assistente a desistência da queixa. No caso de crimes de natureza pública, a situação seria, pois, inquestionavelmente diferente, pois aí existem interesses públicos subjacentes à necessidade de esclarecimento das condutas em questão, não estando o prosseguimento do procedimento criminal dependente de qualquer impulso privado (cfr. ARTUR CORDEIRO, “Inquérito e Instrução…”, ob. cit.).
Por último, faremos apenas uma breve menção à opinião de RUI DA FONSECA E CASTRO, segundo o qual se deve aplicar analogicamente ao requerimento de abertura da instrução a norma do art.º 415.º, n.º 4, do CPP, ou seja, a desistência do requerimento apenas é possível até ao momento em que for proferido despacho de abertura da instrução. Não seria, pois, esta a única manifestação do princípio do dispositivo no processo penal, já que existem outros afloramentos desse princípio, como são exemplo a possibilidade de desistência da queixa e da acusação particular, ou a possibilidade de desistência do recurso (cfr. RUI DA FONSECA E CASTRO, Processo Penal – Instrução: Tramitação, Formulários, Jurisprudência, 2.ª Edição (revista e atualizada), Lisboa, Quid Juris, 2014, pp. 62 e ss.). De referir ainda que a perspetiva de RUI DA FONSECA E CASTRO foi também perfilhada por PAULA MARQUES DE CARVALHO (cfr. PAULA MARQUES DE CARVALHO, Manual Prático de Processo Penal, 7.ª Edição, Coimbra, Almedina, 2013, p. 317).
Não concordamos com a doutrina de ARTUR CORDEIRO, porquanto entendemos que permanece válido o óbice apontado por PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE na medida em que desistir da instrução no momento em que fosse produzida prova desfavorável ao seu requerente, seria contrário à lei. No entanto, não nos chocaria, e apesar de a possibilidade não estar legalmente prevista, a hipótese de desistência da instrução até um determinado momento, porventura nos moldes formulados por RUI DA FONSECA E CASTRO.” (Vide “Fase da Instrução: Quo Vadis? – Repensar o Sentido da Instrução Processo Penal Português”, Dissertação de Mestrado – Mestrado em Direito Judiciário (Direitos Processuais e Organização Judiciária), Universidade do Minho – Escola de Direito, Outubro de 2015, págs. 54 e 55, nota 179).
Também a jurisprudência se tem pronunciado quanto à possibilidade de desistência ou não da instrução regularmente admitida, podendo ver-se no sentido do aqui defendido, além do referido Acórdão desta Relação de 09-02-2022, proferido no Processo n.º 9276/19.9T9PRT (relatado igualmente pelo agora relator), o Acórdão desta mesma Relação de 16-02-2022 – Proc. n.º 2909/18.6JAPRT.P1 (Des. Pedro Lima), in www.dgsi.pt e CJ, Tomo I/2022, págs. 211 a 214, segundo o qual “Só é possível desistir da instrução até ao despacho que declara a abertura da mesma”, sendo defendida a possibilidade de desistência no já citado Acórdão desta Relação de 06-07-2022 – Proc. n.º 234/19.4PAVLG-A.P1 (Des. Amélia Catarino).
Respeitando os argumentos vertidos neste último Acórdão, que a decisão recorrida seguiu, não concordamos minimamente com os mesmos.
Desde logo, não poderá relevar para a apreciação da questão a qualidade do requerente da instrução, designadamente que tenha sido o arguido, não se descortinando razão válida para reconhecer especificamente a este o direito de desistir a qualquer momento da instrução, para obter a imediata remessa dos autos para julgamento, em ordem a lograr uma decisão final da causa em curto prazo, tal como enuncia o n.º 2 do artigo 32.º da CRP.
Com efeito, se o arguido pretende celeridade na decisão final, então poderá não requerer a instrução, o que leva a que os autos sejam imediatamente remetidos ao tribunal competente para o julgamento. Se opta por requerer a instrução e a mesma é judicialmente declarada aberta, então terá de aceitar a normal tramitação dessa fase processual.
E este nosso entendimento, julgamos, em nada contraria a (invocada) natureza facultativa da instrução, pois que tal natureza se reporta ao exercício do direito de requerer essa fase, esgotando-se o mesmo no momento em que o requerimento é admitido e a respectiva fase processual é declarada aberta. Assim, a natureza facultativa da instrução significa apenas e tão só que essa fase processual só será desencadeada a requerimento, do arguido ou assistente (n.º 1 do art. 287.º do CPP).
Nem tão pouco a intervenção do Juiz de Instrução se substitui, no caso de formulação de requerimento de desistência (não admissível), ao Ministério Público, pois que a este competirá sempre - ressalvada o ato de abertura da instrução - promover o processo penal, desde logo por crimes públicos, mas igualmente por crimes semi-públicos e particulares, desde que tenha havido queixa e, no último caso, também acusação particular (arts. 48.º a 50.º do CPP).
Ademais, o Juiz de Instrução também dispõe de poderes de investigação, realizando os atos que “entenda dever levar a cabo” (n.º 1 do art. 289.º), incluindo atos supervenientes com “interesse para a descoberta da verdade” (n.º 1 do art. 299.º do CPP), sendo esta uma fase, nas palavras de Germano Marques da Silva, “materialmente judicial”. (cfr. Curso de Processo Penal III, 2.ª Edição, Lisboa, Editorial Verbo, pág. 132).
No caso dos autos foram realizadas diligências probatórias no âmbito da instrução, que a Exm.ª Juíza levou a cabo, tendo designado nova data para o seu prosseguimento e para o debate instrutório, altura em que o requerimento de desistência foi apresentado, não chegando tais actos a realizar-se (pontos d) a f)).
No âmbito da instrução, além dos actos que devem ser levados a cabo, tem obrigatoriamente lugar o debate instrutório, tal como refere o n.º 1 do artigo 289.º do CPP, sendo que a lei estabelece como nulidade a insuficiência da instrução, por “não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios” (al. d) do n.º 2 art. 120.º do mesmo Código). – (Assim também Pedro Soares de Albergaria, ob. cit., pág. 1264).
Neste enquadramento, de forma alguma a obrigatoriedade da realização do debate instrutório pode ser vista como um acto inútil, nos termos do artigo 130.º do CPC, como se sustenta também naquele Acórdão de 06-07-2022.
Assim, perante o entendimento de que não é legalmente admissível a desistência da instrução, designadamente pelo arguido, o despacho recorrido não pode subsistir, impondo-se a sua revogação e substituição por outro que determine o prosseguimento da fase da instrução, com a produção das provas requeridas e subsequente realização do debate instrutório, com prolação de decisão instrutória de pronúncia ou de não pronúncia dos arguidos, no que ao imputado crime diz respeito, em conformidade com o disposto nos artigos 307.º e 308.º do CPP.
Nessa conformidade, procede o recurso interposto.
III
Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso interposto pelo arguido BB, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se a sua substituição por outro que ordene o prosseguimento da fase da instrução, com a produção das provas indicadas e subsequente realização do debate instrutório, bem como a posterior prolação de decisão instrutória, de pronúncia ou de não pronúncia dos arguidos, em conformidade com o disposto nos artigos 307.º e 308.º do CPP.
Sem custas (art. 513.º, n.º 1, do CPP, à contrário).