RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
LESÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Sumário

I – As lesões que uma pessoa sofre no seu corpo podem dar origem a consequências patrimoniais, para além das não patrimoniais. Todas as que possam ser identificadas devem ser indemnizadas e compensadas, seja qual for o nome que as partes lhes tenham dado ou a construção que tenham feito, e tal não representa qualquer duplicação de valores.
II – É adequada uma compensação de 1.000.000€ por todos os danos não patrimoniais de um lesado, incluindo o sofrimento de uma pessoa que, à data dos factos, tinha 35 anos e era profissionalmente activa e que fica com uma incapacidade geral de 97,375% e na situação correspondente que pode ser descrita, sem possibilidade de erro, da forma que qualquer um pode imaginar, depois de ter passado anos de internamentos, intervenções e tratamentos - de que continuará a precisar para o resto da vida - e está consciente da sua situação.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

A, representado pela mãe na qualidade de legal representante para este efeito, intentou uma acção contra a Companhia de Seguros SA, M e H, pedindo, entre o mais, que a 1.ª ré fosse condenada a pagar-lhe uma série de valores por danos patrimoniais, e 25.000.000€ de indemnização por danos não patrimoniais próprios, presentes e futuros, designadamente, danos corporais e morais, com juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, desde a data da citação, até integral pagamento.

Alegou para tanto, em síntese, que no dia 08/10/2017 foi vítima de um atropelamento por um veículo automóvel propriedade da 2.ª ré, por culpa exclusiva do respectivo condutor, 3.º réu, e cuja eventual responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo tinha sido transferida para a 1.ª ré por contrato; desse embate derivaram as consequências que pretende sejam reparadas com os valores pedidos, que é superior aos limites da responsabilidade civil obrigatória.
A ré seguradora assumiu a responsabilidade do condutor do veículo seguro, no tocante ao circunstancialismo do acidente; diz que já pagou, por conta do capital seguro, 472.363,82€ a vários terceiros; quanto ao pedido de pagamento de danos não patrimoniais, diz que não há dúvida que são devidos, sendo, no entanto, incompreensível a exorbitância da quantia peticionada, considerando os critérios usualmente perfilhados na jurisprudência para casos semelhantes.
No procedimento cautelar apenso – apenso B – o autor e a seguradora chegaram a acordo, que foi homologado por sentença no dia 05/01/2022, desistindo o autor de alguns dos pedidos. E a 20/04/2023 foi homologado (consignando-se na penúltima página da acta da audiência que o autor esteve presente na sessão da tarde e foi chamado e foi-lhe dado conhecimento pessoal do acordo alcançado na sessão da manhã e sentença homologatória do presente dia, tendo o mesmo declarado que corresponde ao acordo alcançada com a ré que aceita e ratifica) um outro acordo (mais tarde alterado por um outro de 01/05/2023, homologado na sentença de 11/07/2023) quanto aos pedidos restantes (incluindo o dano patrimonial futuro por incapacidade para o trabalho – passando a ré a pagar um rendimento anual igual ao perdido), excepto quanto ao pedido de indemnização por danos não patrimoniais e respectivos juros. Relativamente às custas, as partes para além do mais requereram a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça.
Depois de realizada a audiência final, foi a 11/07/2023 proferida sentença, julgando parcialmente procedente o pedido relativo aos danos não patrimoniais, condenando a ré seguradora a pagar ao autor 1.000.000€ “relativos a danos não patrimoniais (incluindo o dano biológico enquanto dano não patrimonial) acrescida de juros à taxa legal civil, desde a data da presente decisão até integral e efectivo pagamento, e absolvendo os 2.º e 3.º réus da instância, por ilegitimidade, por os montantes indemnizatórios se confinarem ao limite do seguro obrigatório da responsabilidade civil. As custas foram fixadas na proporção do decaimento, nada tendo sido dito quanto à dispensa do remanescente.
A ré interpôs revista para o STJ contra esta sentença, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1\ O tribunal não podia ter autonomizado o dano biológico, quando tal dano não foi expressamente peticionado pelo autor, enquanto tal.
2\ Ainda que [assim não] se entenda […] existe uma dupla duplicação na indemnização arbitrada, face ao acordo alcançado entre as partes, em 20/04/2023, à condenação pelo dano biológico e ainda aos ressarcimentos dos danos não patrimoniais.
3\ A primeira duplicação verifica-se entre os valores acordados entre as partes (os quais contemplaram o chamado “dano corporal” ou dano biológico, na sua vertente patrimonial, face à comprovada perda de capacidade de ganho do lesado, quer considerando os lucros cessantes, o dano patrimonial futuro e a perda de chance – conferir alíneas (a) a (c) do pedido) e a condenação pelo dano biológico, na medida em que é jurisprudência constante do STJ que, em caso de perda de capacidade de ganho do lesado, o dano biológico deve ser arbitrado, na sua vertente patrimonial, não cabendo reparar esse dano em sede não patrimonial […] – cf. acórdãos do STJ de 24/02/2022 [1082/19.7T8SNT.L1.S1 - TRL] e de 20/04/2023 [não é do STJ, mas sim do TRL: 1133/19.5T8SNT.L1-2 - TRL]
4\ A outra duplicação está patente no arbitramento do dano biológico e dos danos não patrimoniais, visto que, considerando a 1.ª instância que o dano biológico deverá ser ressarcido na sua vertente não patrimonial, atendendo aos “danos corporais e morais” alegados, nomeadamente, nos artigos 141, 145 e 146 da petição, então não deveria ressarcir esses mesmos danos em sede de danos não patrimoniais (atente-se que o autor peticiona o ressarcimento de quantum doloris, dano estético, prejuízo de afirmação pessoal e desgosto – cf. artigos 140 a 161 da petição).
5\ […] a sentença recorrida não respeitou os critérios usualmente perfilhados pela jurisprudência, nem a equidade, não se verificando a reparação de danos não patrimoniais de 1M em qualquer decisão semelhante, mesmo em casos graves como o presente – cf. art.º 566/3 do CC e STJ, processo 5808/12.1TBALM.L1.S1.
O autor contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso da ré, e apelou subordinadamente, ao mesmo tempo que requeria, por isso, a rejeição do saltum pretendido pela ré, terminando as suas alegações concluindo, em síntese deste TRL, que, face a matéria de fato assente, o valor da condenação a título de danos não patrimoniais e biológicos deveria ser superior aos 1.000.000€, diante da extensão e gravidade dos danos sofridos.
Por despacho de 10/05/2024, o STJ não admitiu o recurso da ré como recurso per saltum, determinando-se, nos termos do art.º 678/3 do CPC, a baixa do processo ao TRL, a fim de ambos os recursos aí serem processados como recursos de apelação.
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Questão a decidir: se o dano biológico não devia ter sido atribuído e menos ainda pelo valor em que o foi.
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Os factos:
Visto que a matéria de facto não foi impugnada, nem há lugar a qualquer alteração dela, remete-se para as 42 páginas da decisão da 1.ª instância com aquela matéria (art.º 636/6 do CPC).
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A fundamentação da sentença recorrida, na parte do Direito, foi a seguinte, em síntese:
[…]
O quarto pressuposto da obrigação de indemnizar exigido pelo art.º 483/1 do CC é o dano, que surge como a consequência do facto ilícito e culposo do agente.
[…]
Os danos podem ser patrimoniais ou não patrimoniais, consoante sejam ou não susceptíveis de avaliação pecuniária e incidam sobre interesses de natureza material ou económica, que se reflectem no património do lesado, ou sejam relativos a valores de ordem espiritual, ideal ou moral […], tais como as dores, desgostos, complexos de inferioridade, etc. […] que devem ser objecto de compensação. Com efeito, ao atribuir-se valores pecuniários pretende-se proporcionar ao lesante, prazeres que, de certa forma, minimizem os sofrimentos causados pelo lesante.
Os danos não patrimoniais são ressarcíveis quando, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito – art.º 496/1 do CC, gravidade que se medirá por um padrão objectivo e não subjectivo (de um lesado, p. ex., especialmente sensível). […]
O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à situação económica do lesante e do lesado, e proporcionado à gravidade dos danos, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida e as circunstâncias concretas do dano (neste sentido Antunes varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 500).
[…]
Apreciando em relação ao caso em análise:
[…]
Do embate dos autos resultaram danos físicos/corporais para o autor, dos quais resultaram danos patrimoniais e não patrimoniais, dados como provados, sendo que urge atender aos danos não patrimoniais, atento o acordo já alcançado quanto aos demais.
[…]
Entre os chamados danos de natureza “não patrimonial” temos o quantum doloris (que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade), o “dano estético” (que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e de recuperação da vítima), o “prejuízo de afirmação pessoal” (dano indiferenciado, que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadíssimas vertentes – familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica), o “prejuízo da saúde geral e da longevidade”, [o] dano biológico (o dano da dor e o défice de capacidade, de bem estar, em que se valoriza os danos irreversíveis/sequelas na saúde e no corpo e no bem estar da vítima e que conta na expectativa da vida) e, finalmente, o pretium juventutis (que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a Primavera da vida).
O autor sofreu todo esse tipo de danos (lesões corporais, estético, incapacidades, dano biológico, sofrimento psicológico, dores, e ainda sofre dores, tendo ficado com sequelas, sendo o grau de incapacidade quase total, e capacidade quase residual), o que tudo constitui danos não patrimoniais.
No caso do autor os factos provados falam por si.
O acidente além de lhe “tirar” a vida que tinha, deixou-o numa situação de eterna hospitalização seja institucional, seja no domicílio, num constante e continuado sofrimento, esgotando-se a sua “vida” num perpétuo “calvário” de consultas, exames médicos, internamentos, actos de enfermagem, terapias, e sem esperança de melhoras significativas, apenas para manter o grau de funcionalidade residual.
Um corpo saudável, no vigor da idade (35 anos), desportivo, militar da marinha do corpo de fuzileiros e taxista, que se vê agora quase totalmente disfuncional, num grau de 97,375. Em que nem a parte cognitiva, nem a parte física funcionam. E o mais penoso é que o autor tem consciência do seu estado! É terrível o seu sofrimento, não há palavras para o qualificar, e muito menos “dinheiro que pague”! Vejam-se as fotografias juntas aos autos que mostram o autor antes do acidente e depois do acidente, onde é bem visível a diferença.
As lesões graves que sofreu: danos cerebrais graves e alterações vitais: TCE com múltiplas lesões; TCE grave; GCS inicial 3; traumatismo com diâmetros aproximados 5x2,5 cm; traumatismo crânio encefálico grave, caracterizado por lesão axonal difusa com micro hemorragias cortico-subcorticais frontoparietal direitas e hematomas talâmicos e mesencéfalo direito; hemorragia intraventricular (derrame pleural bilateral) com fractura de l1 l-2; fracturas vertebrais; hematoma peri-renal TC, (hematoma subcapsular do rim direito) na vertente póstero-inferior do rim direito; níveis hemáticos nos cornos occipitais dos ventrículos laterais; aerocelos bifrontais a moldar a parênquima; marcado abaulamento do sistema ventricular supra-tentorial e relação com hidrocefalia.
Os tratamentos a que se sujeitou e sujeita, os internamentos ao longo dos últimos 5 anos e que perdurarão no futuro.
A consolidação das lesões, mas com sequelas com que ficou: Quadro de tetraparésia espástica de predomínio direito com força muscular grau 0 à drt e força muscular grau 2 à esquerda. Comunicação quase inexistente pronuncia palavras com hipofonia e de difícil percepção. Alimentado por recurso a PEG (gastrostomia endoscópica percutânea) por ineficácia e défice de segurança da via oral. Apresenta ainda sialorreia com fuga anterior de saliva com perigo de asfixia. Não apresenta capacidade para transferências, marcha, ortotatismo, sem equilíbrio em sedestação, apresenta espasticidade cervical com necessidade de apoio cefálico. Incontinência de esfíncteres sob uso de fralda, infecções respiratórias e urinárias recorrentes.
A situação de eterno “doente” a viver em ambiente “hospitalar” institucional ou domiciliário. As intercorrências e infecções que se verificaram durante os sucessivos internamentos.
O dono estético [6 em 7 – facto 83 - TRL], o quantum doloris [6 em 7 – facto 79 - TRL], fixado até à consolidação das lesões mas que perdura e perdurará na vertente quer de dor física quer psicológica, manifestada no choro e tristeza, o défice funcional permanente, o grau máximo de repercussão na actividade profissional, desportivas e de lazer e na actividade sexual, traduzido em incapacidade total.
As ajudas permanentes a que tem estado e estará sujeito: Ajudas medicamentosas. Neste caso, antiepilépticos. Tratamentos médicos regulares: avaliação em consulta de fisiatria 4 vezes por ano, se necessário, aplicação de toxina botulínica para controlo da espasticidade e sialorreia, e renovação de produtos de apoio. Avaliação em consulta de neurologia 4 vezes por ano para realização de ajustes terapêuticos e seguimento clínico. Programa regular de reabilitação com objectivo de manutenção de quadro neuro-motor, evicção de sequelas de imobilidade e manutenção de amplitudes articulares coordenado por médico fisiatra com integração em sessões de fisioterapia 2 a 3 x por semana, terapia ocupacional 1 a 2 vezes por semana, terapia da fala 1 a 2x por semana, estimulação cognitiva, Manutenção de ajuste de terapêutica ventilatória segundo indicação por médico pneumologista a cada 6 meses. Acompanhamento de gastroenterologia, nutricionista, oftalmologia, neuropsicologia, medicina geral e familiar.
Ajudas técnicas: cadeira de rodas com mecanismo de tilt e verticalização, com apoio cefálico ajustável, tabuleiro reclinável e apoios de braços e pés ajustáveis para posicionamento com condução por terceiros (a rever a cada 5 anos); cadeira de rodas desdobrável, para transporte por curtas distâncias, com apoio cefálico simples amovível (a rever a cada 2 anos); Standing-frame (a rever a cada 3 anos); cicloergómetro de membros inferiores e membros superiores com mecanismo para mobilização passiva e activa-assistida (a rever a cada 2 anos). Elevador de transferências (rever a cada 5 anos); cadeira de banho (a rever a cada 3 anos), fraldas (prescrição segundo necessidade); cama articulada com mecanismo elevatório, possibilidade de tilt moderado, grades de protecção (a rever a cada 5 anos). Colchão anti-escaras (a rever anualmente), cadeira de rodas de banho com dispositivo sanitário e rodízios (a rever a cada 5 anos); almofada anti-escaras alto perfil (a rever a cada 2 anos). Adaptação do domicílio, do local de trabalho ou do veículo caso a adaptações no domicílio já realizadas de forma adequada com casa de banho adaptada e larguras de portas que possibilitem a passagem de cadeiras de rodas, sem barreiras arquitectónicas, nomeadamente degraus para o exterior. Dependências que impedem que o mesmo visita casas de outros familiares, não adaptadas.
Ajuda de terceira pessoa pois que o autor por estar totalmente dependentes nas AVD necessita de apoio de 3.ª pessoa de forma permanente 24/h por dia.
A incapacidade total para gerir a sua pessoa e bens.
Há que ponderar também que as dores e sofrimento se prolongaram desde o acidente, até à consolidação das lesões e que continuam, não obstante essa consolidação, atenta as sequelas relativas a dores, conforme decorre dos factos provados.
As dificuldades de comunicação, até para dizer se tem fome ou sede, se fez necessidades e é preciso mudar a fralda, se tem dores, pois que não consegue comunicar plenamente, beber água, comer, vestir-se, deglutir normalmente, lavar-se, marchar, correr, saltar, dançar, pentear-se, desfazer a barba, alimentar-se, mover-se na cama sozinho, levantar-se, entre outras tarefas básicas, em consequência da grave lesão cerebral sofrida, o engasgar com saliva, o nervoso e inquietação pelo uso de fralda, grande desconforto, sendo necessário mudar-lhe a fralda frequentemente de dia e de noite (doc. 9.1). O ter deixado de se alimentar normalmente, de sentir o prazer e o gosto da comida normal. O não poder beber líquidos. O constante necessitar de ajuda para tudo. O não poder exercer a profissão que certamente gostava, o não poder ter relacionamento afectivo/sexual, casar e não poder ter filhos, não poder viajar, sair com os amigos, ir à praia, à piscina, não poder ter liberdade de ir para onde quiser, visitar quem quiser. A diminuição da esperança de vida. O mais descrito nos factos provados.
[…]
No que respeita aos danos (sequelas) permanentes ao nível do défice funcional da integridade físico-psíquica e à indemnização por estes danos também na perspectiva do dano não patrimonial.
Efectivamente, a compensação do “dano biológico” tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial trata-se de uma incapacidade funcional ou fisiológica que se centra, em primeira linha, na diminuição da condição física, resistência e capacidade de esforços, por parte do lesado, o que se traduz numa deficiente ou imperfeita capacidade de utilização do corpo, no desenvolvimento das actividades pessoais, em geral, e numa consequente e, igualmente, previsível maior penosidade, dispêndio e desgaste físico na execução das tarefas que, no antecedente, vinha desempenhando, com regularidade, neste sentido, ac. do TRL de 26/09/2017 [não se encontrou nenhum ac. do TRL com esta data e conteúdo, embora haja vários acórdãos das relações e do STJ que têm o mesmo tipo de síntese – parenteses rectos deste TRL].
Na expressão do acórdão do STJ de 11/12/2012, “Por dano biológico ou corporal tem-se entendido, geralmente, o dano pela ofensa à integridade física e psíquica da vítima, quer dela resulte ou não perda da capacidade de ganho; consequentemente, o dano biológico, envolvendo sempre uma vertente não patrimonial, pode, também, abranger uma vertente patrimonial, caso em que devem os danos ser valorados em ambas as vertentes, sem que isso implique duplicação.” [não se encontrou nenhum ac. do STJ com esta data e conteúdo, embora haja dois acórdãos, um do TRG de 30/03/2023, proc. 3380/20.8T8GMR.G1, e outro do TRL de 22/11/2016, proc. 1550/13.4TBOER.L1-7, que o citam nos mesmos termos – parenteses rectos deste TRL].
Veja-se também o mais recente acórdão do STJ de 21/06/2022, proc. [1633/18.4T8GMR.G1.S1 - TRL] cujo sumário se reproduz: […] IV- Entre os danos indemnizáveis encontra-se, na moderna terminologia o chamado dano biológico, que costuma ser definido como um estado de danosidade físico-psíquico em que ficou a pessoa lesada, com repercussões negativas na sua vida. V - Dano esse que tanto pode ser ressarcido enquanto dano patrimonial futuro, como compensado a título de dano não patrimonial, o que resultará de uma avaliação casuística, e que normalmente resultará da verificação/conclusão se a lesão originou no futuro, e só por si, uma perda da capacidade de ganho do lesado ou se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade. […]”
O “dano biológico” tomado em si mesmo, é conceptualmente transversal a várias realidades, nomeadamente no que se refere à classificação dicotómica entre “danos patrimoniais” e “não patrimoniais”.
[…]
O dano biológico do autor traduzido nas sequelas, correspondente aos 97,375 pontos de desvalorização, em si, corresponde também um dano não patrimonial que deve ser autonomizado em relação ao dano patrimonial futuro daí decorrente.
Nem se diga que não foi peticionado o dano biológico na vertente não patrimonial, porquanto além de se encontrar contido no pedido “danos corporais e morais”, também no título danos não patrimoniais (danos corporais e morais) vêm mencionadas as sequelas que determinam o dano biológico nos artigos 141/a-b-e-f-i-j, 145 e 146 da PI.
Atenta a gravidade e dimensão dos danos considera-se mais que justo e equitativo fixar o valor de 1.000.000€ (500.000€ correspondentes ao dano biológico na perspectiva do dano não patrimonial e 500.00€ para os demais danos não patrimoniais), que embora não reparem tal enormidade de danos, traduz a compensação possível e um alento para que uma réstia de esperança de recuperação se mantenha quer no autor quer nos pais e irmã, seja em que “parte do planeta for”.
Cabe à 1.ª ré o seu pagamento, atento o contrato de seguro e os limites do seguro obrigatório que cobrem tal montante.
Apreciação:
As lesões que uma pessoa sofre no seu corpo podem dar origem a consequências patrimoniais, para além das não patrimoniais.
(assim, por exemplo, os acórdãos do STJ de 19/04/2012, proc. 3046/09.0TBFIG.S1: um dano base ou um dano central, um verdadeiro dano primário, sempre presente em cada lesão da integridade físico-psíquica, sempre lesivo do bem saúde; de 26/01/2017, 1862/13.7TBGDM.P1.S1: I - Devendo o dano biológico ser entendido como uma violação da integridade físico-psíquica de uma pessoa, com tradução médico-legal, tal dano existe em qualquer situação de lesão dessa integridade, mesma que sem rebate profissional e sem perda do rendimento do trabalho […] II - O dano biológico não se pode reduzir aos danos de natureza não patrimonial na medida em que nestes estão apenas em causa prejuízos insusceptíveis de avaliação pecuniária e naquele estão também em causa prejuízos de natureza patrimonial provenientes das consequências negativas ao nível da actividade geral do lesado; e de 29/10/2019, proc. 683/11.6TBPDL.L1.S2: I. O chamado dano biológico ou corporal, enquanto lesão da saúde e da integridade psicossomática da pessoa imputável ao facto gerador de responsabilidade civil delitual, traduzida em incapacidade funcional limitativa e restritiva das suas qualidades físicas e intelectuais, não constitui uma espécie de danos que se configure como um tertium genus na dicotomia danos patrimoniais vs danos não patrimoniais; antes permite delimitar e avaliar os efeitos dessa lesão – em função da sua natureza, conteúdo e consequências, tendo em conta os componentes de dano real – enquanto dano patrimonial (por terem por objecto um interesse privado susceptível de avaliação pecuniária) ou enquanto dano moral ou não patrimonial (por incidirem sobre bem ou interesse insusceptível, em rigor, dessa avaliação pecuniária).
Todas as consequências que possam ser identificadas devem ser indemnizadas e compensadas, seja qual for o nome que as partes lhes tenham dado ou a construção que tenham feito, e tal não representa qualquer duplicação de valores (sendo que, naturalmente, o autor falou de todas elas na sua petição inicial de 87 páginas e 210 artigos).
Se, como consequências patrimoniais, se averiguam outras perdas, futuras, para além dos rendimentos de trabalho (perdas essas a que alguns chamam dano biológico - assim, por exemplo, o ac. do STJ de 02/06/2016, proc. 2603/10.6TVLSB.L1.S1; o mais ou menos no mesmo sentido, o acórdão do STJ de 21/01/2016, proc. 1021/11.3TBABT.E1.S1, invocado pelo autor nas contra-alegações) ou se só se averiguam aquelas perdas em vez de perdas efectivas de rendimentos (caso em que alguns também falam em dano biológico – assim, por exemplo, um dos dois acórdãos invocados pela ré, ou seja, o ac. do STJ de 24/02/2022, 1082/19.7T8SNT.L1.S1: I. No caso dos autos, verifica-se que a acepção em que a Relação utilizou a expressão “dano biológico” corresponde essencialmente àquela que se afigura ser predominante na jurisprudência do STJ: “dano biológico” enquanto consequências patrimoniais da incapacidade geral ou funcional do lesado. II. O aumento da penosidade e esforço do lesado para desenvolver as mesmas tarefas profissionais ou quaisquer outras é atendível no domínio das consequências patrimoniais da lesão corporal, e não apenas no domínio das consequências não patrimoniais, na medida em que se entenda provado que tal aumento de penosidade e esforço tem como consequência provável a redução da sua capacidade genérica de obtenção de proventos, no exercício de actividade profissional ou de outras actividades económicas. […] Neste acórdão aumentou-se para 50.000€ o valor fixado pelo TRL para o ‘dano biológico’, no sentido de consequências patrimoniais da afectação da capacidade geral ou funcional deste”, sendo que o recurso não mexia nos 20.000€ atribuídos como compensação pelos danos não patrimoniais.; ac. do STJ de 06/04/2021, proc. 2908/18.8T8PNF.P1.S1: VIII. A afectação da integridade físico-psíquica (em si mesma um dano evento, que, na senda do direito italiano, tem vindo a ser denominado “dano biológico”) pode ter como consequência danos de natureza patrimonial e danos de natureza não patrimonial. Na primeira categoria não se compreende apenas a perda de rendimentos pela incapacidade laboral para a profissão habitual, mas também as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais, mesmo quando o lesado é menor e ainda não exerce uma profissão. IX. São reparáveis como danos patrimoniais as consequências danosas resultantes da incapacidade geral permanente (ou dano biológico), ainda que esta incapacidade não tenha tido repercussão directa no exercício da profissão habitual. […]) ou se não se averiguam quaisquer consequências patrimoniais mas apenas não patrimoniais (ou seja, apenas um dano biológico – por exemplo, o ac. do TRL de 20/04/2023, 1133/19.5T8SNT.L1-2: […] 4. Quando não se repercute directamente na esfera patrimonial do lesado, o dano biológico ou corporal é um dano não patrimonial que deve ser compensado […]), tudo isto deve ser devidamente reparado, pois que, caso contrário, se estaria a deixar o lesado numa situação inferior àquela que teria se não tivesse sido o evento que provocou a lesão (art.º 562 do CC).
No caso dos autos, o tribunal limitou-se a considerar, para além de todos os outros danos não patrimoniais, ainda o sofrimento psíquico que o autor naturalmente teve com o facto de ter ficado como ficou, ou seja, no estado inerente a uma incapacidade geral de 97,375% (assim, por exemplo, o ac. do TRP de 20/04/2010, proc. 5943/06.5TBVFR.P1, referido pelo autor nas contra-alegações do recurso: I - É mais adequada, face à situação da lei e da doutrina em Portugal, a consideração do “dano biológico” como um verdadeiro dano ressarcível, mas integrado, seja numa componente do dano patrimonial, seja numa componente do dano não patrimonial, tudo dependendo das consequências do dano, respectiva relevância e, em termos jurídico-formais e práticos, da alegação das partes (no caso, como se vê na parte restante do sumário, para além de uma indemnização pela incapacidade geral e permanente, atribuiu-se uma compensação pelo dano não patrimonial, vistas a incapacidade permanente (20%), o pretium doloris (ressarcimento da dor física sofrida — grau 4, em 7), o dano existencial e psíquico (o dano da vida de relação e o dano da dificuldade de coping, ou seja, da dificuldade em lidar com a sua actual incapacidade, bem como a dificuldade nas relações sociais, a incapacidade para o desempenho das actividades diárias, de cultivo ou agrícolas, de carpinteiro, ou outras, de utilidade permanente, e próprias do passadio de vida de qualquer cidadão e de qualquer estrato social, a dificuldade em realizar as tarefas tão simples de vestir, calçar ou tomar banho, em suma, o prejuízo de afirmação pessoal, fixada num grau 2 em 5 [neste caso, para além da compensação destes danos, atribuiu-se uma indemnização pelas consequências patrimoniais de incapacidade geral e permanente]). Não se deu origem, com isto, a qualquer duplicação. Se o tribunal não tivesse considerado tal dano, o resultado seria uma incompleta reparação de todos os danos não patrimoniais sofridos pelo autor.
Nunca ninguém defendeu que o sofrimento psíquico daquele que ficou com uma incapacidade geral não fosse compensado, ou que ele já tinha sido reparado com a indemnização das perdas patrimoniais inerentes, a pretexto de que esta indemnização reparava o dano biológico, como é defendido pela ré. Nenhum dos acórdãos que foram invocados pela ré, ou qualquer outro que possa ser invocado, defende semelhante resultado.
Em todos os casos dos acórdãos acabados de citar (excepto no ac. do TRL de 20/04/2023, 1133/19.5T8SNT.L1-2, por não se terem provado as consequências patrimoniais) foi fixada uma indemnização pela perda da capacidade aquisitiva e uma compensação pelo dano moral correspectivo.
Os dois acórdãos invocados pela ré para este efeito nas alegações do recurso não dizem nada que seja contra isto, antes pelo contrário como resulta dos respectivos sumários como já foi referido.
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Do valor da compensação pelos danos não patrimoniais
Vejam-se os seguintes acórdãos do STJ:
- de 04/03/2008, proc. 08A183: atribuiu a compensação de 224.459,05€ a um autor com quase 59 anos pelos danos não patrimoniais: sofreu uma mudança radical na sua vida social, familiar e pessoal, já que se acha impotente sexualmente e incontinente, jamais podendo fazer a vida que até então fazia, e é hoje uma pessoa cujo modo de vida, física e psicologicamente, é penoso, sofrendo consequências irreversíveis, não sendo ousado afirmar que a sua auto-estima sofreu um abalo fortíssimo. Note-se que os condenados eram pessoas singulares e os factos datavam de 1998 (sendo que o acórdão do STJ esclarece que o valor não foi actualizado).
- de 02/03/2011, 1639/03.8 TBBNV.L1: IV. É justo atribuir uma indemnização de 400.000€ por danos morais à lesada que, com 19 anos de idade, por força do embate de uma árvore na viatura onde seguia, ficou com diversas e muito graves lesões, de entre as quais se salienta a fractura de vértebras, com instalação irreversível de tetraplegia, sofrendo de diminuição acentuada da função respiratória e de incapacidade funcional permanente de 95%, com incapacidade total e permanente para o trabalho; a partir da data do sinistro e durante cerca de um ano, foi alimentada através de um tubo gástrico introduzido pelas narinas e, na sequência de gastrotomia a que teve de ser submetida em resultado de uma fístula esofágica alta que sobreveio a uma intervenção cirúrgica, alimentada através de uma sonda introduzida no corte cirúrgico, na zona do estômago; foi submetida a várias intervenções cirúrgicas e ficou com múltiplas e extensas cicatrizes deformantes; as lesões sofridas, os seus tratamentos e suas sequelas provocaram dores lancinantes; desloca-se em cadeira de rodas e necessita de assistência permanente de pessoa nos actos da vida diária, sendo que, para certos actos (tais como, tomar banho e defecar) carece da ajuda de mais uma pessoa; perdeu todos os movimentos e sensibilidade do pescoço para baixo (com excepção dos ombros), designadamente nos órgãos sexuais, nos esfíncteres, no ânus, no recto, nos intestinos, no estômago, no aparelho urinário, no respiratório e nos membros inferiores e superiores; corre o risco sério de vir a sofrer graves lesões renais; tem a sua expectativa de vida encurtada; não pode ter relações sexuais, nem prazer sexual, nem procriar; vive em permanente estado de amargura, desespero e angústia, inconformada com a sua situação e perdeu a vontade de viver e muitas vezes tem pedido que lhe ponham termo à vida.
- de 30/10/2014, proc. 2313/08.4TVLSB.L1.S1 (só sumário, no sítio do STJ na internet): XVII - Resultando dos factos provados que (i) o autor contava com 36 anos à data dos factos, (ii) ficou paraplégico da cintura para baixo e para sempre dependente de cadeira de rodas, do auxílio de terceira pessoa para as actividades da vida diária, de medicamentos, material e acompanhamento médico, (iii), ficou impotente, (iv) tem uma IPP de 75,5% e uma repercussão permanente nas actividades lúdicas e desportivas, avaliada em 6 numa escala de 7, (v) sofreu o acidente no local de trabalho e no decurso do trabalho (vi) e que a conduta é imputável ao lesante a título de dolo eventual, é ajustada a fixação da indemnização devida a título de danos não patrimoniais em 470.000€ (como se fixou na Relação e não em 520.000€ como se fixou na 1.ª instância).
- de 19/12/2018, proc. 1173/14.OT2AVR.P1.S1: manteve os valores fixados pelo TRP: quanto aos danos patrimoniais relativos à perda da capacidade de ganho/esforço acrescido, de 551.650€; quanto aos danos não patrimoniais, também entrando em linha de conta com o défice funcional permanente de integridade físico-psíquica (na parte em que se repercute na esfera não patrimonial) fixável em 91 pontos, 350.000€.
- de 10/09/2019, proc. 5699/11.0TBMAI.P1.S1 (só sumário no sítio do STJ na internet): VIII - Tendo o autor, que à data do acidente de viação tinha sete anos de idade, ficado definitivamente incapaz para o exercício de qualquer profissão e dependente de ajudas de terceiros na execução das actividades da vida diária, é adequada a fixação em 450.000€ a indemnização do correspondente dano patrimonial. IX - Tendo o mesmo autor sofrido graves danos físicos e psíquicos e ficado afectado de uma IPG de 90 pontos, é adequado estabelecer em 250.000€ a valoração do correspondente dano não patrimonial.)
- de 06/04/2021, proc. 2908/18.8T8PNF.P1.S1: […] XI. Tendo o autor, à data do acidente com 6 anos, ficado a padecer de um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 50 pontos, com repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de grau 7 de uma escala de 7 de gravidade crescente, não estando impossibilitado de vir a ter uma vida profissional normal mas tendo sido provado que as sequelas de que ficou portador exigem esforços suplementares no exercício daquela actividade profissional futura (impossibilitado de exercer actividade profissional que exija andar, correr, saltar ou permanecer largos períodos em pé) a indemnização pelo dano biológico, com recurso à equidade, atenta a comparação com outras situações judicialmente decididas, não se afasta delas ao fixar o valor indemnizatório em 300.000€ (e confirmou a compensação atribuída pelo TRP, de 200.000€ pelos danos morais, em que se teve em conta a incapacidade geral; no acórdão do TRP escreve-se: Note-se que o défice funcional de que o apelante ficou portador já foi indemnizado autonomamente como dano de natureza patrimonial; mas englobámos o mesmo no elenco dos factos relevantes para a fixação da indemnização por danos de natureza não patrimonial, não para o considerar em si mesmo, mas na perspectiva do sofrimento que causa ao apelante ver-se portador de tal défice. Não há, por isso, duplicação de indemnizações).
Posto isto,
A situação, no caso dos autos, é, grosso modo, 4 vezes mais grave do que aquela que está em causa no acórdão do STJ de 2008 (que só teve de considerar o sofrimento inerente à lesão sofrida, sendo que no caso dos autos há muitos outros danos não patrimoniais descriminados na sentença recorrida), pelo que, tendo-o em conta, se justificaria perfeitamente o valor de 1.000.000€.
O acórdão de 2011 reporta-se a factos ocorridos em 2000 e, apesar da quase igualdade numérica das incapacidades em causa, nota-se que se refere a um caso bem menos grave. Fazendo-se a simples actualização de valores com base no IPC, até fins de 2023, aproveitando a ferramenta fornecida pelo Instituto Nacional de Estatística, o resultado, para um caso igual, seria de 641.765,76€. Ao caso dos autos seria atribuível pelo menos a de 750.000€.
A compensação atribuída pelo acórdão de 2014, tendo em conta que corresponde a uma situação ¾ menos grave do que a destes autos, levaria a que se atribuísse, no caso, uma de 626.000€, que, com uma simples actualização de valores apenas com base no IPC, já que se reporta a um caso de, pelo menos, 2008, daria 793.067,93€.
A compensação do acórdão de 19/12/2018, um caso de pelo menos 2014, de 91%, permitiria, para o caso dos autos, e já com a simples actualização, uma compensação de apenas 443.000€. A do acórdão de 2019 apenas permitiria, nos mesmos termos, uma compensação de cerca de 330.000€.  A do acórdão de 2021 (caso pelo menos de 2018) permitiria uma compensação de apenas 460.000€. O ac. do STJ de 2022, 1633/18.4T8GMR.G1.S1, citado pela sentença recorrida, para um caso significativamente menos grave que a dos autos (embora com 94 pontos, a vítima estava, por exemplo, “apenas” com simples dificuldades de erecção, pelo que continuava a ter vida sexual), atribuiu 500.000€, pelo que permitiria, pelo menos, uma compensação de cerca de 600.000€.
Assim, com simples actualizações com base no IPC, aplicando-se a jurisprudência entre 2008 e 2014, teríamos uma compensação fixável entre 750.000€ e 1.000.000€; aplicando a jurisprudência entre 2018 e 2021 teríamos uma compensação fixável entre 330.000€ e 460.000€. A de 2022 já permitiria um aumento para 600.000€.
Desde 1994/1995 (há mais de 30 anos…), a jurisprudência tem chamado a atenção para a necessidade de as indemnizações começarem a ser aumentadas pouco a pouco, reconhecendo-se o carácter miserabilista das que eram então fixadas. Supunha-se, pois, um aumento gradual das compensações, não baseado apenas na inflação/índice de preços no consumidor. 15 anos depois, no entanto, o acórdão do STJ de 2011, ainda continuava a dizer: “É certo que, como também já salientámos inúmeras vezes, deve agir-se cautelosamente neste domínio, sem embargo de estar definitivamente ultrapassado o tempo das indemnizações irrisórias, miserabilistas. E o STJ, sobretudo, tem aqui uma responsabilidade acrescida, dada a função que lhe está cometida de contribuir para a uniformização da jurisprudência. Não é conveniente, por isso, alterar de forma brusca os critérios de valoração dos prejuízos. Há que não perder de vista a realidade económica e social do país. E é vantajoso que o trajecto no sentido duma progressiva actualização das indemnizações se faça de forma gradual, sem rupturas e sem desconsiderar (muito pelo contrário) as decisões precedentes acerca de casos semelhantes.”
Como dizem Menezes Cordeiro e Barreto Menezes Cordeiro, CC comentado, II, CIDP/Almedina, 2021, pág. 582, sob o tema ‘dignificação das indemnizações’, “como tem sido repetidamente defendido, os nossos tribunais devem ponderar seriamente uma majoração clara das indemnizações, designadamente nos casos de danos biológicos e de danos morais. Todos os dispositivos legais apontam nesse sentido.” E referindo-se ao facto de a jurisprudência se apoiar na “prática habitual”, dizem que isso “[p]arece razoável, desde que […] não congele uma evolução que deve ser incentivada: pondo termo a indemnizações miserabilistas, que não compensem minimamente os danos” (a discussão do problema é feita de forma impressiva, por exemplo, na obra Direito dos Seguros, Almedina, 2013, páginas 837 a 847, e também no Tratado, II, direito das Obrigações, tomo III, Almedina, 2010, págs. 747 a 756; ou nas anotações 28 a 37 ao art.º 496 do CC, no Comentário de 2021, onde também se faz a descrição do problema das séries negras).
Repare-se que mesmo os valores mínimos obrigatoriamente seguros têm sido actualizados, numa medida que ultrapassa a inflação em Portugal:
O art.º 12 do DL 297/2007, de 21/08, tem a seguinte redacção: 1 - O capital mínimo obrigatoriamente seguro, nos termos e para os efeitos das alíneas (a) e 8c) do n.º 1 do artigo anterior é de 1.200.000€ por acidente para os danos corporais e de 600.000€ por acidente para os danos materiais. 2 - Para todos os efeitos, nomeadamente os indemnizatórios e de determinação do prémio do contrato, a partir de 01/12/2009, os montantes previstos no número anterior são, respectivamente, de 2.500.000 por acidente e de 750.000 por acidente, e a partir de 1 de Junho de 2012 são, respectivamente, 5.000.000€ por acidente e 1.000.000€ por acidente. 3 - A partir de 01/06/2012, os montantes previstos na parte final do número anterior são revistos de cinco em cinco anos, sob proposta da Comissão Europeia, em função do índice europeu de preços no consumidor, nos termos do Regulamento (CE) n.º 2494/95, do Conselho da União Europeia, de 23/10, relativo aos índices harmonizados de preços no consumidor. 4 - Os montantes revistos nos termos do número anterior são publicados no Jornal Oficial da União Europeia e entram imediatamente em vigor.
A 10/05/2016 foi publicado o documento 52016DC0246 que é uma Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho: Adaptação, em função da inflação, dos montantes mínimos previstos pela Directiva 2009/103/CE relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, COM/2016/0246 final: Relativamente a danos pessoais, o montante mínimo de cobertura é aumentado para 1.220.000 EUR por vítima ou para 6.070.000 EUR por sinistro, independentemente do número de vítimas; Relativamente a danos materiais, o montante mínimo é aumentado para 1.220.000 EUR por sinistro, independentemente do número de vítimas.
A 19/10/2021 foi publicado no JOUE o documento 52021XC1019(01), Aviso relativo à adaptação, de acordo com a inflação, dos montantes mínimos de cobertura estabelecidos na Directiva 2009/103/CE relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade 2021/C 423/11, PUB/2021/788, JO C 423 de 19.10.2021, p. 24–24 (2021/C 423/11): Os montantes em euros resultantes desta revisão são em seguida indicados. Em caso de danos corporais, o montante mínimo de cobertura é aumentado para 1.300.000 EUR por vítima ou para 6.450.000 EUR por sinistro, independentemente do número de vítimas; em caso de danos materiais, o montante mínimo de cobertura é aumentado para 1.300.000 EUR por sinistro, independentemente do número de vítimas.
Portanto, conforme a Circular n.º 2/2022, DE 15/03, da ASF, a partir de 01/06/2022, o capital mínimo obrigatoriamente seguro, nos termos e para os efeitos das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08, é de 6.450.000€ por acidente para os danos corporais e de 1.300.000€ para os danos materiais.
Assim temos: a partir de 22/10/2007 (art.º 65 do DL, entrada em vigor): 1.200.000€ por acidente para os danos corporais e de 600.000€ por acidente para os danos materiais.
A partir de 01/12/2009: 2.500.000€ por acidente para os danos corporais e de 750.000€ por acidente para os danos materiais.
A partir de 01/06/2012: 5.000.000€ por acidente para os danos corporais e de 1.000.000€ por acidente para os danos materiais.
A partir de 01/06/2017: é de 6.070.000€ por acidente para os danos corporais e de 1.220.000€ para os danos materiais.
A partir de 01/06/2022: é de 6.450.000€ por acidente para os danos corporais e de 1.300.000€ para os danos materiais.
Ou seja, entre o período de 22/10/2007 e 01/06/2022, os limites mínimos para os danos corporais, também para efeitos dos prémios dos contratos a pagar às seguradoras, subiu de 1.200.000€ para 6.450.000€, o que dá uma subida de mais de 5,375 vezes.
Apesar disto tudo, e como se viu, a jurisprudência não tem feito nenhum aumento gradual das compensações desde há muitos anos, nem sequer um que seja adaptado à inflação. Pelo contrário, o que se tem verificado é uma regressão dos valores, por força do congelamento delas nos valores anteriores a 2008.
Aumento gradual em montante muito superior ao da inflação que devia ter sido feito, para que fossem afastadas as compensações com natureza miserabilista que continuam a ser atribuídas, para mais tendo em conta que, para efeitos de prémios de seguros, os limites mínimos de 2007 a 2022, foram aumentados 5,375 vezes.
Assim sendo, considera-se, que a decisão recorrida, embora com uma divisão que não se acompanha de 50% para o dano não patrimonial dito biológico e 50% para os outros danos não patrimoniais, atribuiu um valor global adequado à compensação de todos os danos não patrimoniais sofridos pelo autor, incluindo o sofrimento psíquico pelo estado em que ficou, correspondente ao grau de incapacidade geral e permanente, valor que aliás se pode dizer estar na linha do acórdão do STJ de 2008 e actualizar (com um aumento gradual não dependente do valor da inflação) correctamente os valores dos acórdãos do STJ de 2011 e 2014.
Repare-se que tal valor atribuído pela sentença recorrida ainda se pode justificar por outros dois modos:
Se se compensassem todos os dias que o autor já ficou preso e ainda vai ficar preso no seu corpo para o resto da sua vida, cerca de 50 anos ou 18250 dias, com o valor diário que a jurisprudência tem atribuído a cada dia de detenção em casa (que é, ainda assim, menos grave que a detenção dentro de um corpo em cima de uma cama ou de uma cadeira dentro de uma casa), ou seja, 72,5€/dia (ac. do STJ de 12/10/2023, proc. 571/22.0T8GRD.C1.S1: 276 dias => 20.000€), teríamos o valor de 1.323.125€, só para este sofrimento.
Isto para não falar do valor diário que se tem atribuído a outros casos de privação ilegal da liberdade:  acórdãos do STJ de 27/11/2007, revista n.º 3359/07 (só sumário - 30.000€ por 120 dias = 250€/dia); de 02/12/2013, revista 730/10.9TVLSB.L1.S1 (só sumário, no sítio do STJ - 17.500€ por 70 dias = 250€/dia); de 02/07/2015, proc. 1963/09.6TVPRT.P1.S2 (59.700€ por 51 dias = 1170€/dia); 12/06/2017, proc. 3346/14.7TBALM.L1.S2 (30.000€ por 67 dias = 447,76€/dia).
Por outro lado, se considerássemos que a perda da vida devia ser compensada com 1.000.000€, como é defendido, há mais de 15 anos, por Menezes Cordeiro (Tratado do Direito Civil, II, Tomo III, Almedina, 2010, págs. 755) e Diogo Leite Campos (Os danos causados pela morte e a sua indemnização, Comemorações dos 35 anos do CC e dos 25 anos da reforma de 1977, vol. III Direito das Obrigações, Coimbra Editora, 2007, pág. 137), a compensação atribuída no caso dos autos estava justificada sem mais, pois que o autor perdeu 97,375% da vida que tinha e vai sentir isso nos 50 anos que previsivelmente lhe restam em tal situação.
Em suma: não merece procedência o recurso da seguradora contra a sentença recorrida; e improcede também o recurso do autor visto que, como resulta do que antecede, embora se conseguisse atingir, com alguma fundamentação, um valor de perto de 1.300.000€ (mesmo só para o sofrimento pela incapacidade), aí já se estaria a sair fora de valores que ainda têm algum suporte na jurisprudência (de 2008 a 2014) e na doutrina e o tribunal não pode deixar de ter em conta a jurisprudência para casos paralelos (art.º 8/3 do CC).
*
Custas
Quanto à acção, procede-se, em substituição do tribunal recorrido, à decisão do pedido de dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça (art.º 614/3 do CPC). O autor tem dispensa do pagamento e por isso a questão não o afecta. A seguradora não tem apoio judiciário…. A acção tem o valor de 34.324.205€. O pedido que está em causa neste recurso só diz respeito a 25.000.000€. Quanto aos outros 9.324.205€ a acção chegou ao fim, por acordo, sem necessidade de julgamento. Em relação aos 25.000.000€ a condenação da ré foi só em 1.000.000€, isto é, 4% do valor. As custas foram fixadas na proporção do decaimento, pelo que, em relação a 25.000.000€ a ré só pagaria 4% das custas. 96% deste pedido, sem qualquer suporte jurisprudencial ou doutrinário, representa um óbvio exagero do autor, que beneficia de apoio judiciário. Pelo que, dele, só se deveria aproveitar o valor de 1.000.000€ para efeitos de custas. Os 9.324.205€ representam, em relação a 34.324.205€, 26,17%, e, dado o acordo, deram origem a, grosso modo, metade do trabalho normal, pelo que só devem ser aproveitados 13,08%. Dos restantes 73,83%, já se viu, só devem ser aproveitados 4%, ou seja, 2,95%. Assim, é como se acção só tivesse o valor de 16,03%. Pelo que, ao abrigo do art.º 6/7 do RCP, se vai dispensar 84% do remanescente da taxa de justiça, sendo que a secretaria deverá ter em conta o disposto no art.º 14/9 do RCP, tal como entendido pelos acórdãos deste TRL de 24/11/2022, proc. 939/16.1T8LSB-H.L1-2, e do STJ de 1561/19.6T8PDL-A.L2.S1, isto é, de que “II - O n.º 9 do art.º 14 do RCP, na redacção da Lei 27/2019, de 28/03, deve aplicar-se aos casos em que haja uma condenação parcial do responsável pelo impulso processual.” Pelo que a secretaria só deverá notificar a ré para efectuar o pagamento da taxa remanescente não dispensada, apenas na parte proporcional ao decaimento da ré.
O recurso da ré só versa o pedido de 1.000.000€ pelo que é este o valor do recurso para efeitos de custas. Em relação ao recurso não há razão para dispensar o remanescente da taxa de justiça (art.º 6/7 do RCP, dado que a tramitação do recurso correspondeu à normalidade das coisas, nada tendo de excepcional, nem para mais nem para menos).
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Pelo exposto, julgam-se os recursos improcedentes.
Custas, na vertente de custas de parte, do recurso da ré pela ré.
Valor do recurso da ré para efeitos de custas: 1.000.000€.
Sem custas o recurso do autor porque seria responsável por todas elas e está dispensado delas por ter lhe ter sido concedido o respectivo apoio judiciário.
Quanto à acção: dispensa-se a ré de 84% do remanescente da taxa de justiça (art.º 6/7 do RCP), sendo que a secretaria só deve notificar a ré para pagar a parte não dispensada do remanescente (16%) na parte proporcional ao seu decaimento (art.º 14/9 do RCP), considerando o valor total da acção.

Lisboa, 12/09/2024
Pedro Martins
Paulo Fernandes da Silva
Rute Sobral