RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DUPLA CONFORME
MATÉRIA DE FACTO
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
MEDIDA DA PENA
REJEIÇÃO
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I. Tendo o Tribunal da Relação confirmado a decisão do tribunal coletivo da primeira instância só é admissível recurso, in casu, relativamente à medida da pena única de 15 anos em que foi condenado o arguido, dado nenhuma das penas parcelares aplicadas ser superior a 8 anos de prisão, pelo que todas as questões com estas (e com os respetivos crimes) conexas, de natureza processual e substantiva, terão de ficar excluídas.

II. Também a jurisprudência do Supremo Tribunal tem vindo a afirmar, praticamente una voce, que, relativamente aos recursos interpostos para o STJ de acórdãos de Tribunais da Relação, que decidiram já recurso anterior, não podem os vícios previstos nas diferentes alíneas do art. 410.º n.º 2, do C.P.P., servir de fundamento ao recurso, podendo, porém, serem, oficiosamente, conhecidos pelo Supremo, isto é, não a pedido dos recorrentes, mas tendo o STJ a possibilidade de, ex officio, conhecer dos mesmos desde que resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.

III. Relativamente à medida da pena única, que o recorrente considera excessiva, convocando a doutrina e a jurisprudência mais significativas, diremos que a determinação da pena do concurso implica, fundamentalmente, duas operações: em primeiro lugar, o tribunal tem de determinar a pena que concretamente caberia a cada um dos crimes em concurso, seguindo o procedimento normal de determinação da pena; em seguida, construirá a moldura penal do concurso, que é uma verdadeira moldura penal, com o seu limite máximo e o seu limite mínimo, dependendo esta operação da espécie ou das espécies de penas parcelares que tenham sido concretamente determinadas.

Estabelecida a moldura penal do concurso, o tribunal determinará, então, dentro dos limites daquela, da medida da pena conjunta do concurso, que encontrará em função das exigências gerais da culpa e de prevenção. Mas, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 71.º n.º 1, do Cód. Penal, a lei fornece ao tribunal um critério especial: «Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente» (art. 77.º n.º 1, 2.ª parte).

Ora, na situação sub judice, tendo por base uma moldura abstrata que tem como limite mínimo 8 anos de prisão e limite máximo 25 anos de prisão consideramos, em consonância com os critérios legais assinalados e tendo, designadamente, em conta a enorme gravidade dos factos praticados, na sua globalidade (um crime de detenção de arma proibida, 4 crimes de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, um crime de homicídio simples agravado, na forma tentada, um crime de incêndio e explosões e um crime de coação agravado), o elevado grau da ilicitude, a dimensão grave da culpa, a não interiorização da gravidade das condutas levadas a cabo, a postura de vitimização, os danos produzidos, o não arrependimento do arguido, a ausência de antecedentes criminais e sem, naturalmente, se esquecer as fortes exigências de prevenção geral, a pena única de 15 (quinze) anos de prisão, abaixo do ponto médio da moldura em causa, pese embora até alguma benevolência – diga-se -, não é excessiva e desproporcional, mas adequada e justa (art. 77.º n.º 1, do Cód. Penal).

IV. Nestes termos, acorda-se em rejeitar, por inadmissibilidade legal, o recurso do arguido, na parte que diz respeito à impugnação da matéria de facto, bem como aos invocados vícios do art. 410.º n.º 2, do C.P.P., também em relação à parte cível referente aos montantes indemnizatórios fixados a título dos danos patrimoniais e não patrimoniais, bem como relativamente à medida das penas parcelares e da sanção acessória (arts. 420.º n.º 1 b), 432.º n.º 1 b) e 434.º., do C.P.P., e 671.º, n.º 3, do C.P.C.) e julgar, no mais, improcedente o recurso, mantendo-se o acórdão recorrido.

Texto Integral

Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. Na parte que ora releva, foi o arguido AA, com os sinais dos autos, condenado, por acórdão do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de ... -J3, de 17/08/2023 pela prática, como autor material, na forma consumada, e em concurso efetivo, de (Transcrição):

– Um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 86.º, n.º 1, alínea a), 2.º, n.º 5, alínea n) e 3.º, n.os 1 e 2, alínea aa), todos da Lei n.º 5/2006, de 23/02 (cocktails molotov), em concurso aparente com um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c), e e), embora esta alínea apenas em concurso aparente, por referência aos artigos 2.º, n.os 1, alíneas p)-i, s), ad) e ar), 3, alíneas e), j) e p), e 5, alínea g), e 3.º, n.os 1 e 5, alínea c), todos da Lei n.º 5/2006, de 23/02, (caçadeira e respectivas munições), na pena de 4 (quatro) anos de prisão.

– Um crime de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, previsto e punido pelo art.º 272.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.

– Um crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea l), 22.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º, n.º 2 e 73.º, todos do Código Penal e 86.º, n.os 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23/02, vulgo, Regime Jurídico das Armas e suas Munições, na pessoa de BB, na pena de 8 (oito) anos de prisão.

– Um crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.os 1 e 2, alínea l), 22.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º, n.º 2 e 73.º, todos do Código Penal e 86.º, n.os 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23/02, vulgo, Regime Jurídico das Armas e suas Munições, na pessoa de CC, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

– Um crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.os 1 e 2, alínea l), 22.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º, n.º 2 e 73.º, todos do Código Penal e 86.º, n.os 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23/02, vulgo, Regime Jurídico das Armas e suas Munições, na pessoa de DD, na pena de 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão.

– Um crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.os 1 e 2, alínea l), 22.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º, n.º 2 e 73.º, todos do Código Penal e 86.º, n.os 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23/02, vulgo, Regime Jurídico das Armas e suas Munições, na pessoa de EE, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.

– Por convolação do crime de homicídio simples agravado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 22.º, n.os 1 e 2, alíneas a) e b), 23.º, n.º 2 e 73.º, todos do Código Penal e 86.º, n.os 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23/02, em um crime de ofensas à integridade física, agravado, na forma consumada, previsto e punido pelo Art. 143º, nº 1, do Código Penal, e 86.º, n.os 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23/02, vulgo, Regime Jurídico das Armas e suas Munições, na pessoa de FF, na pena de 1 (um) ano de prisão.

– Um crime de coacção agravado, previsto e punido nos termos dos artigos 154.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), com referência ao art.º 131º, todos do Código Penal e 86.º, n.os 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pessoa de GG, na pena de 3 (três) anos de prisão.

B) Em CÚMULO JURÍDICO dessas penas, fixar ao arguido a PENA ÚNICA de 15 anos de prisão pela prática dos referidos crimes, nos termos do disposto no Artigo 77º, nº 1, do Código Penal.

C) Condenar o arguido na PENA ACESSÓRIA de interdição de detenção, uso e porte de armas, pelo período de 10 anos, nos termos do disposto no art.º 90.º, nºs 1, 2 e 3, da Lei n.º 5/2006, de 23/02, vulgo, Regime Jurídico das Armas e suas Munições.

Por seu turno, por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07/02/20241, na parte que também agora interessa, foi julgado improcedente o recurso do referido arguido e mantida, na íntegra, a decisão do tribunal a quo, apenas com a retificação, ao abrigo do disposto no art. 380.º n.ºs 1 b) e 2, do C.P.P., de um lapso de escrita existente no n.º 4 dos factos provados, onde se lê “transitada em julgado a 15.05.2010”, deverá passar a constar transitada em julgado a 14.05.2010.

2. Inconformado, uma vez mais, interpôs o arguido desta última decisão, em 13/03/2024, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando uma muito extensa e confusa motivação, com cerca de 90 (!) Conclusões.

3. Por despacho da Senhora Desembargadora relatora, de 27/03/2024, foi o recurso em questão admitido, com efeito suspensivo.

4. O Ministério Público, junto do tribunal recorrido, respondeu, em 06/05/2024, ao recurso do arguido, no sentido do mesmo, na parte restrita que merece apreciação, ser julgado improcedente e o acórdão proferido mantido integralmente.

5. Na sequência de chamada de atenção do Senhor Procurador-Geral Adjunto, neste Supremo Tribunal, foi decidido pelo Relator do processo, em 28/06/2024, convidar o recorrente, ao abrigo do disposto no art. 417.º n.º 3, do C.P.P., a apresentar, no prazo de 10 dias, novas Conclusões da sua motivação, em que de uma forma clara e concisa resumisse o(s) pedido(s), sob pena do recurso vir a ser rejeitado.

6. Em 10/06/2024, o recorrente apresentou novas Conclusões, parcamente abreviadas, igualmente pouco claras e sem ter também na devida conta os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, para o qual fora avisado, retirando-se, com algum esforço, as seguintes ilações:

I. Vícios decisórios geradores de nulidade, como preterição de diligências probatórias essenciais e indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa, omissão de pronúncia, contradição insanável entre decisão da matéria de facto e subsunção jurídica, bem como com a condenação;

II. Errónea apreciação da matéria de facto, com base na peticionada reapreciação da prova em função da sua contraditoriedade ao decidido, com erro de julgamento;

III. Desacertada subsunção jurídica, maxime ao nível de majoração punitiva pela convocação de circunstâncias agravantes inaplicáveis, in casu, e no campo interpretativo, indevida punição pelos crimes sem preenchimento pleno dos respetivos tipos de ilícito, manifesta majoração da responsabilidade penal assacada, quer ao nível da convocação e punição pela prática agravada de crimes quer da dosimetria penal das penas parcelares e única bem como acessória, pois numa visão global de conjunto será manifestamente disforme à justiça a aplicação ao arguido de tamanha magnitude punitiva (15 anos!); e

IV. Exagerada punição ao nível da condenação cível sem se atentar na globalidade dos factos, gravidade das lesões provocadas e circunstancialismo do próprio.

Em consequência, solicita o recorrente a revogação da decisão do Tribunal da Relação, com reenvio do processo para novo julgamento.

7. Em 27/06/2024, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu, em 27/0672024, desenvolvido e muito douto parecer, alertando, desde logo, para o facto de o recorrente não ter aproveitado devidamente o convite que lhe fora formulado, mas, apesar de tudo, devendo o seu recurso ser presente a conferência, para, em síntese, ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, na parte referente às penas parcelares (abrangendo todas as questões conexas, de natureza substantiva ou processual a elas respeitantes) e ser negado provimento na parte relativa ao quantum da pena única (única parte a apreciar em sede deste recurso), confirmando-se inteiramente o acórdão recorrido.

8. Observado o contraditório, o recorrente veio, em 12/07/2024, através de um requerimento, mais uma vez muito prolixo, manifestar a sua discordância relativamente ao parecer do Ministério Público e reiterar tudo o que alegou na motivação do seu recurso, terminando com a frase A Justiça é liberdade em acção! (sic).

9. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso

Embora com dificuldade, atendendo à forma como foram deduzidas as Conclusões, depreende-se, a custo, que o recorrente pretende levantar as seguintes questões:

- Nulidade da decisão, com particular destaque para a omissão de pronúncia e falta de fundamentação;

- Impugnação da matéria de facto;

- Contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão;

- Deficiente qualificação jurídica dos factos, devendo ser alterada a dos crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, para crimes de ofensa à integridade física qualificada, na forma consumada;

- A detenção de arma proibida está consumida pelo crime de incêndio, explosões e outras condutas especialmente perigosas;

- Não verificação das circunstâncias agravantes no crime de coação;

- Dosimetria muito elevada das penas e da sanção acessória; e

- Quantum indemnizatório fixado a título de danos patrimoniais e não patrimoniais exagerado.

III. Fundamentação

1. Com interesse para a decisão do presente recurso, o acórdão recorrido é do seguinte teor (Transcrição):

(…)

1. OS FACTOS

1.1. Factos relativos à culpabilidade

1.1.1. Factos provados

Com interesse e relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:

A) DA ACUSAÇÃO

1.º

O arguido foi casado, em regime de comunhão de adquiridos, com HH, tendo adquirido, em data não concretamente apurada, o prédio rústico inscrito sob a matriz n.º ..75 na Conservatória do Registo Predial de ....

2.º

Ao longo dos anos, e ainda no decurso do casamento, o arguido foi construindo do referido prédio rústico estruturas fixas, em alvenaria, destinadas à habitação própria do casal, anexos de apoio à residência, concretamente uma dependência contígua que utilizava como garagem e serralharia, e uma adega com espaço de arrumações construída maioritariamente a um nível subterrâneo, pois acima do solo a mesma apenas tem a descoberto pouco mais do que a altura de dois blocos e a placa de betão pré-esforçado que lhes assenta.

3.º

Esta adega/arrecadação subterrânea possui, como único acesso, uma rampa rodoviária, no final da qual está colocado um portão metálico de abertura manual.

Como pontos de entrada de luz natural e circulação de ar possui, na parte superior das paredes, junto ao tecto, dois janelos/postigos, de abertura basculante, um virado para a entrada da propriedade e o outro para o espaço usado como garagem/serralharia.

4.º

O casamento do arguido com HH foi dissolvido por divórcio decretado, por sentença proferida a .../.../2010, no âmbito do Processo n.º 3133/09.4..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte - ... – Juízo de Família e Menores, J2, transitada em julgado a 14/05/2010.

5.º

A esse processo foi apenso o processo de inventário/partilha, que tomou a letra A, no âmbito do qual, por decisão datada de .../.../2018, foi homologado o mapa de partilha e adjudicado aos interessados os respectivos quinhões, sendo que o quinhão do arguido era composto, além do mais, pelo prédio rústico inscrito sob a matriz n.º ..75 na Conservatória do Registo Predial de ..., propriedade do ex-casal, ficando a ex-mulher do arguido, além do mais, com o direito de receber tornas no valor de 10.633,55€, as quais o arguido não pagou.

6.º

Por via disso, o Tribunal, por decisão de 19/02/2018, determinou a venda do referido prédio e que fosse nomeado Agente de Execução para proceder a tal venda, do que o arguido teve conhecimento.

7.º

Nesse contexto, em 2018, GG, foi nomeado, na qualidade de Agente de Execução, para proceder à venda do dito prédio.

8.º

Após tal nomeação, em data não concretamente apurada, mas anterior e próxima ao dia .../12/2018, GG foi alertado, pelo advogado da ex-mulher do arguido, para o facto de o arguido ser uma pessoa violenta e que, por isso, não iria facilitar as diligências.

9.º

No dia .../12/2018, GG, no exercício das suas funções de Agente de Execução, deslocou-se, na companhia de seu pai, II, o que fez por ter sido previamente alertado que o arguido era pessoa violenta, a ..., com o propósito de verificar o estado do prédio a vender, fazer a descrição exacta do mesmo, realizar o correspondente registo fotográfico e constituir o arguido como fiel depositário do prédio, diligências essas preparatórias para a subsequente venda, conforme fez constar em auto manuscrito que remeteu ao acima referido processo n.º 3133/09.4...-A, do Tribunal Judicial da Comarca de ... Norte - Loures – Juízo de Família e Menores, J2.

10.º

Na referida data, GG não logrou encontrar o arguido, mas confirmou, junto de vizinhos deste, que abordou, que aquela era efectivamente a residência habitual do arguido e que este era uma pessoa conflituosa, violenta e perigosa.

11.º

Tendo em conta tal caracterização do arguido, GG, no exercício das suas funções de Agente de Execução, remeteu, a .../03/2019, ao já referido Processo n.º 3133/09.4...-A, um requerimento a solicitar autorização judicial para o arrombamento das portas do imóvel e a intervenção da força pública de segurança, com fundamento, que fez constar no referido requerimento de que “no passado dia .../12/2018, desloquei-me ao imóvel a fim de tomar posse, colher fotografias e verificar o estado do imóvel para proceder à sua venda, o que se revelou impossível. Falei com várias pessoas na aldeia que me relataram que o Sr. AA é uma pessoa de feitio difícil, conflituoso e até violento. É expectável que o Sr. AA se venha a opor à tomada de posse do imóvel, afigurando-se ao signatário que seja necessária a presença das forças policiais de modo a que seja mantida a ordem pública durante a diligência”.

12.º

GG agendou a diligência que pretendia fazer tendo, para o efeito, com data de ... de janeiro de 2022, enviado notificação postal ao arguido, notificando-o para no dia ... de fevereiro de 2022, às 15h, comparecer no imóvel sito na Quinta ..., ..., ..., a fim de se realizar diligência judicial de recolha de fotografias, constatação do estado do imóvel e constituição do arguido como fiel depositário.

13.º

O arguido, porque nunca concordou com a decisão judicial das partilhas, nem com a venda do referido imóvel, em data não concretamente apurada, mas pelo menos desde Fevereiro de 2018, altura em que tomou conhecimento de que o Tribunal havia determinado a venda do referido prédio rústico para que fossem pagas as tornas a que a sua ex-mulher tinha direito, formulou o propósito de destruir todos os bens e construções existentes naquele prédio, pondo-lhes fogo, de molde a nada restar, além do próprio terreno, para vender.

14.º

Com a tomada de conhecimento da referida notificação por parte do Agente de Execução, o arguido decidiu que no próprio dia .../02/2022 iria concretizar a sua decisão de destruir, pela acção do fogo, todos os bens e construções e, dessa forma, não só impedir que o Agente de Execução levasse a cabo a diligência de tomada de posse dos bens, mas também e sobretudo, que os mesmos fossem vendidos e que o valor da venda revertesse, pelo menos em parte, para a sua ex-mulher.

15.º

Na concretização do propósito por si formulado de dar origem a um incêndio, o arguido, em momento pouco anterior às 15h00 do dia ... de fevereiro de 2022, data em que sabia que o Agente Execução deslocar-se-ia ao imóvel, dirigiu-se ao local destinado a garagem/serralharia, anexa à habitação, no interior da qual guardava uma panóplia de equipamento e materiais que bem sabia constituírem matéria combustível altamente inflamável e propícia ao desencadear de um violento e perigoso incêndio, o que pretendia, como sejam, dois veículos automóveis: um de marca Ford, modelo Fiesta, com a matrícula ..., um de marca Fiat, modelo Stillo, um tractor agrícola, um motociclo, de marca Yamaha, com a matrícula ..-..-PF, três garrafas de gás [duas de 11/13kg e uma Pluma], várias garrafas de gás acetileno, maçaricos, compressor de grandes dimensões, recipientes de diluente e de tintas, madeiras e, aí chegado, perfurou o depósito de combustível do Ford Fiesta, tendo utilizado, para o efeito, um ponteiro de aço, e provocou desse modo, como era sua intenção, o derramamento para o chão da gasolina que aquele possuía, em quantidade não concretamente determinada, e espalhou gasolina por cima dos referidos veículos.

16.º

Ainda na concretização daquele seu propósito, o arguido encheu com gasolina duas garrafas de vidro verde da marca “Água das Pedras”, colocou nos respectivos gargalos mechas de tecido, que dessa forma ficaram embebidas na gasolina que aquelas continham, desse modo fabricando dois artefactos incendiários improvisados, vulgarmente designados por cocktails molotov.

17.º

Sempre na concretização do propósito por si formulado, de provocar um incêndio em todos os bens e construções existentes na propriedade, o arguido tamponou a lareira da cozinha com mantas e outras peças têxteis por forma a impedir que através dela saísse para o exterior o gás de botija que ia sendo expelido pelos bicos do fogão que abriu para o efeito, com a intenção de que tal gás, com a ajuda do fogo que pretendia atear, provocasse uma explosão e um incêndio daquele espaço e posterior explosão, por acção do fogo, de duas botijas com gás que o arguido sabia ali se encontrarem.

18.º

De seguida, sempre na concretização daquele seu propósito, porque admitiu que quando alguém tivesse conhecimento do incêndio, concretamente os bombeiros voluntários, providenciaria pela sua extinção, mas porque estava determinado a que tal não acontecesse, pois queria que tudo ficasse destruído, por forma a impedir tal extinção, concretamente por parte dos bombeiros que acorressem ao local, o arguido retirou do quarto de dormir da sua residência a espingarda-caçadeira de calibre 12 que lá guardava, da marca “FABARM”, do tipo “pump-action”, com o nº .....23, a que corresponde o Livrete N...69 emitido pela PSP e titulado pelo arguido, a qual se encontrava em boas condições de funcionamento, o que o arguido bem sabia, bem como a totalidade dos cartuchos do mesmo calibre que estavam na cartucheira que deixou vazia naquela divisão, num total de, pelo menos, 13 cartuchos, [10 da marca “Winchester – Brenneck 70mm 34gr”; 1 da marca “Federal – Sabot Slug” e 2 da marca “Melhor – Super Gt Plus 28”], próprios para municiar a referida espingarda caçadeira, os quais se encontravam em boas condições de funcionamento, o que o arguido também bem sabia, dos quais se muniu.

19.º

Na posse da referida arma e cartuchos e dos artefactos incendiários que havia fabricado, e antes de se ter encaminhado, apeado, para a divisão subterrânea que se destinava a adega/arrecadação, situado na área central da propriedade, com o intuito de aí se esconder para não ser atingido pelo incêndio e de daí conseguir, sem que fosse descoberto, impedir não só que o Agente de Execução levasse a cabo a diligência que o arguido sabia que este pretendia fazer, bem como impedir que terceiros pudessem extinguir o incêndio e, dessa forma impedissem a destruição dos bens e das construções, o arguido arremessou, após ter acendido a mecha, um dos cocktails molotov que havia previamente fabricado através da abertura que deixou do lado direito da garagem/serralharia, o qual, como era seu propósito, se partiu e as chamas de imediato se propagaram à gasolina e aos demais bens inflamáveis que se encontravam no interior daquele local, que logo ficaram a arder em combustão auto-sustentada, do que o arguido se certificou.

20.º

Após ter ateado este incêndio, o arguido, com o propósito de também provocar incêndio na parte destinada à habitação, onde na cozinha se ia acumulando o gás expelido pelos bicos abertos do fogão, de seguida, e após ter acendido a respectiva mecha, arremessou o outro cocktail molotov que havia fabricado momentos antes, contra a janela existente no alçado posterior desta.

21.º

Contudo, por razões alheias ao arguido, designadamente por menor pontaria ou maior resistência do vidro da janela em questão, ou da própria garrafa, este artefacto não se partiu nem partiu o vidro da janela nem entrou para a parte destinada à habitação, e caiu intacto sobre uma grelha metálica existente ao nível do chão, pelo que o incêndio e explosão a que o arguido pretendia dar azo naquele local não logrou ocorrer.

22.º

O incêndio ainda assim provocado pelo arguido [na oficina/garagem], e como era sua intenção, levou a que se produzissem várias explosões, resultado que o arguido bem sabia que iria acontecer como consequência da sua actuação e que queria.

23.º

Após atear o incêndio, o arguido foi-se esconder na adega/arrecadação com intenção de não ser atingido pelo incêndio e de impedir, sem que a sua presença fosse notada, que terceiros extinguissem o incêndio.

24.º

Por volta das 15h05, chegou ao local GG, acompanhado pelo seu pai, a testemunha II, tendo o arguido, logo que se apercebeu da presença dos mesmos, e sabendo que um dos indivíduos era o Agente de Execução que ali se encontrava para levar a cabo as diligências de que havia sido notificado, e com o propósito, conseguido, de provocar medo no Agente de Execução e dessa forma o impedir de concretizar as diligências, efectuou pelo menos dois disparos, com a referida arma de fogo, a partir do interior da adega/garagem, os quais foram ouvidos pelo Agente de Execução e pelo pai deste, que logo os identificou como sendo disparos de caçadeira, pelo que avisou o filho e sugeriu-lhe que retirasse o veículo do local onde o havia estacionado e se afastassem da entrada da propriedade.

25.º

O arguido efectuou os referidos disparos com o propósito de intimidar GG e de o impedir que ele levasse a cabo as diligências a que se propunha, não obstante soubesse que tais diligências estavam a coberto do poder judicial.

26.º

Perante a atitude do arguido, GG, com receio de que aquele atentasse contra a sua vida e/ou integridade física, retirou o veículo do local onde o havia estacionado e não levou a cabo a diligência que pretendia realizar.

27.º

O arguido bem sabia que o seu comportamento era adequado a impedir o referido Agente de Execução de levar a cabo, no exercício das suas funções, a referida diligência, por receio de que a sua vida e/ou integridade física fossem postas em causa, como aliás, quis e conseguiu.

28.º

Uma vez que já era notório que a garagem/armazém estava a arder, sendo visível o fumo a sair do local, foram chamados ao local os Bombeiros Voluntários de ... a fim de extinguirem o incêndio.

29.º

O ofendido BB, Comandante Interino da Corporação de Bombeiros Voluntários de ..., logo após ter tomado conhecimento do incêndio, mobilizou para o local três viaturas, uma de combate ao incêndio [VUCI], na qual seguiu, juntamente com os bombeiros JJ; KK; LL e DD, uma outra de abastecimento [VTTU], tripulada pelos bombeiros MM e NN, e uma ambulância tripulada pelas bombeiras OO e PP.

30.º

BB, por bem conhecer as dificuldades de acesso de meios pesados ao local do incêndio, instruiu as equipas para imobilizarem as viaturas na estrada principal que atravessa a localidade de ..., e para estabelecerem a partir dali linhas de água, esticando as mangueiras em linha recta pelos terrenos agrícolas em direcção ao local do incêndio, o que foi feito.

31.º

Chegados ao local, pouco após as 15h, BB aproximou-se para melhor avaliar a dimensão e características do incêndio, altura em que constatou que o mesmo deflagrava na estrutura anexa à habitação do arguido, por ele utilizada como garagem, oficina e serralharia, estando a mesma toda tomada pelas chamas.

32.º

Os ofendidos KK, LL e DD, cujas funções consistiam no combate directo às chamas, receberam instruções para esticarem as linhas de água ao longo da propriedade e se posicionarem na esquina de uma pequena edificação em pedra, e para de lá projectarem água com a agulheta para dentro do anexo, através da abertura que o portão da direita apresentava, o que fizeram.

33.º

Entretanto, chegou ao local o ofendido CC, bombeiro, que pese embora não estivesse escalado de serviço, deslocou-se ao local para prestar ajuda aos colegas no combate ao incêndio.

34.º

Imediatamente após terem chegado ao local, os bombeiros logo começaram a ouvir uma sucessão de estrondos e explosões, alguns provocados pelas garrafas de gás, substâncias inflamáveis e por objectos contendo ar comprimido que se encontravam no local onde se desenvolvia o incêndio, e visualizaram que um veículo, que se encontrava no interior do local, também estava a arder, pelo que se equiparam com ARICA – Aparelho Respiratório Isolante de Circuito Aberto.

35.º

Entretanto, porque através de comunicação efectuada para o Posto Territorial da GNR de ..., às 15h11, foi dado conhecimento da ocorrência do incêndio, a patrulha às ocorrências, constituída pelos Guardas Principais QQ, QQ e RR, em exercício de funções no aludido Posto e devidamente fardados, de pronto se deslocou para o local do incêndio.

36.º

O arguido, que se encontrava escondido na adega/arrecadação subterrânea da propriedade, logo que se apercebeu da chegada, ao local, dos Bombeiros Voluntários e dos elementos da GNR, na concretização do seu propósito criminoso de destruir todos os bens e as instalações da propriedade, que já se encontravam a arder, e por ter consciência de que pelo menos aqueles indivíduos ali estavam para extinguir o incêndio a que tinha dado azo, com o propósito de os impedir, munido da espingarda-caçadeira e dos cartuchos que tinha levado consigo para o referido local, subiu para um escadote de alumínio que se encontrava no interior do referido local para aceder ao postigo basculante que permitia visibilidade e linha de tiro para a zona da entrada da propriedade e estrada de terra que lhe facultava o acesso, onde sabia que estavam bombeiros, elementos da GNR, estes no desempenho das suas funções, e alguns populares, e iniciou uma sucessão de disparos na direcção do local onde sabia que aqueles se encontravam, com intenção de os atingir por forma a impedi-los de combaterem o incêndio.

37.º

O arguido, de cuja presença no local nem os elementos dos Bombeiros nem os elementos da GNR nem nenhum popular se apercebeu, bem sabia que os disparos que efectuou, nas circunstâncias descritas, atenta a distância e a direcção dos mesmos e o tipo de munição que utilizou, eram adequados a causar a morte dos bombeiros, dos elementos da GNR e de outros indivíduos que se encontravam no local do incêndio, tendo representado a morte dos visados como consequência necessária da sua conduta. O que só não aconteceu por circunstâncias alheias à sua vontade, designadamente porque os ofendidos que visou e que foram atingidos pelos seus disparos foram prontamente assistidos no local e no hospital para onde, de imediato, foram transportados, ou apenas foram atingidos em zonas e órgãos não vitais.

38.º

Como consequência directa e necessária da conduta do arguido, LL [bombeiro], um dos bombeiros que combatiam directamente o incêndio, foi projectado para o chão na sequência de uma violenta explosão, a qual lhe causou dores, atordoamento e zumbido no ouvido esquerdo pelo que, com vista a que o mesmo não voltasse a ser atingido, foi resgatado pelos bombeiros KK e DD para uma zona mais segura.

39.º

Como consequência directa e necessária de um dos disparos efectuado pelo arguido, CC [bombeiro], que se encontrava posicionado junto ao pilar do portão, foi atingido por um disparo de projéctil único [bala] de cartucho de caça, que o arguido efectuou na sua direcção, que lhe provocou dores e as lesões melhor descritas e examinadas no relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 712 a 715 e 1010 a 1012 [ex 984 a 986], cujo teor aqui se dá por integralmente por reproduzido, nomeadamente: ferida transfixiva desde a face anterior até à face posterior da coxa direita; lesões essas que ainda não se encontram curadas e com pelo menos duas semanas com afectação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional, e deixaram-lhe as seguintes sequelas: Membro inferior direito: Cicatriz de morfologia circunferencial, centralmente deprimida, nacarada e acastanhada, no terço médio da face posterior da coxa, medindo 3 centímetros de diâmetro. O bordo inferior da cicatriz atrás descrita distava 15 centímetros da região poplítea e 60 centímetros da planta do pé, ao nível da região calcaneana; Complexo cicatricial rosado e acastanhado disposto de forma transversal, de bordos irregulares, indolor à palpação, no terço médio da face anterior da coxa, medindo 12cmx2cm. O seu bordo inferior distava 13 centímetros do pólo superior da patela e 62 centímetros da planta do pé ao nível da região calcaneana; Edema acentuado da coxa e perna; Hipostesia ao longo do bordo medial e dorso do pé, com anestesia na região calcaneana.

40.º

O ofendido CC foi sujeito a intervenção cirúrgica de urgência, com vista à exploração da ferida, realização de hemóstase por laqueação de pequenos vasos musculares, remoção de corpos estranhos, desbridamento dos bordos das feridas e encerramento cirúrgico, e colocação de dreno multilobular.

41.º

BB [bombeiro], que estava a poucos metros à frente de CC, reparou, já na fase de recuo da operação de combate ao incêndio que ordenara aos efectivos por motivos de segurança, que CC estava prostrado no chão, muito pálido, a vomitar e a sangrar abundantemente da perna esquerda.

42.º

Quando sobre ele se debruçava para o avaliar, BB foi atingido no abdómen, por um disparo de projéctil único [bala] de cartucho de caça, efectuado pelo arguido na sua direcção, ficando, em consequência directa e necessária da conduta do arguido, também ele prostrado junto ao portão da entrada da propriedade.

43.º

Como consequência directa e necessária de tal disparo, sofreu BB dores e as lesões melhor descritas e examinadas no relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 608 a 612 e 1022 a 1026 [ex 996 a 1000], cujo teor aqui se dá por integralmente por reproduzido, nomeadamente: ferida penetrante com duas portas [uma de entrada e outra de saída], uma na fossa ilíaca direita, com evisceração de ansa de delegado, e outra paraumbilical esquerda, com evisceração do apêndice epiploico, ferimentos que pela sua gravidade determinaram o socorro o ofendido logo no local e o seu imediato transporte para o CHTV, onde foi operado de emergência, tendo sido submetido a laparatomia exploradora, foi feita enteroctomia segmentar com encerramento dos topos, confeção de laparostomia com drenagem e encerramento dos orifícios de entrada e saída do projéctil para obter vácuo na laparostomia, tendo permanecido internado na UCIP várias semanas, onde foi operado várias vezes.

44.º

Tais lesões puseram em perigo a vida do ofendido BB e determinaram um período de, pelo menos, 177 dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional, e deixaram-lhe as seguintes sequelas: Abdómen: presença de colostomia funcionante no flanco lateral esquerdo; cicatriz cirúrgica, rosada, ligeiramente hipertrófica, estendendo-se desde apêndice xifóide até a região púbica, contornando umbigo pela esquerda, medindo 36cm de comprimento e 0.7cm de maior largura; cicatriz nacarada, com vestígios de pontos de sutura, ligeiramente hipertrófica, oblíqua infero-lateralmente, sobre grelha costal direita, medindo 25cm de comprimento por 1cm de maior largura; outra, linear, no terço medial da grelha costal esquerda com Y7cm de comprimento; cicatriz deprimida, rosada, oblíqua infero-medialmente, estendendo se desde terço distal da face lateral do hemitórax direito até a fossa ilíaca homolateral, medindo 25cm de comprimento; vários vestígios cicatriciais em forma de cruz, centimétricos, dispersos pelo abdómen; cicatriz ovalada, paraumbilical esquerda, deprimida, rosada, medindo 3xmx2cm; várias zonas cicatriciais irregulares, nacaradas, algumas com bordos mais rosados e outros com acastanhadas, ocupando uma área que se estendia desde terço distal da face antero-lateral do hemitórax esquerdo, pelo flanco lateral e hipocôndrio homolaterais e terminando na fossa ilíaca esquerda, medindo 25cm de maior eixo longitudinal e 21 cm de transversal, sendo maior no flanco esquerdo, com 10cm de maior eixo longitudinal e 4em de transversal; duas hérnias abdominais, ambas em correspondência com cicatrizes, nomeadamente na linha branca e na fossa ilíaca direita; membro superior [inferior] esquerdo: limitação dolorosa da coxofemoral, conseguindo activamente cerca de 90º de flexão (passivamente 100º).

45.º

Na sequência de outro disparo de projéctil único [bala] de cartucho de caça efectuado pelo arguido, este efectuado na direcção do ofendido DD [bombeiro], que se encontrava posicionado na esquina da barraca de arrumações, com a agulheta a projectar água em direcção às chamas, DD foi atingido no terço distal do antebraço direito, região do corpo que tinha mais exposta, com o que causou, como consequência directa e necessária da sua conduta, dores e as lesões melhor descritas no Relatório de Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal de fls. 628 a 631 e 999 a 1001 [ex 973 a 975], cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, nomeadamente: ferida contusa no terço distal do antebraço direito, com pequena hemorragia incontrolável e com perda de substância cutânea, lesões essas que lhe demandaram, adequadamente, até delas se curar, pelo menos 65 dias de doença, todos com afetação da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional e lhe deixaram as seguintes sequelas: membro superior direito: cicatriz ovalar, deprimida, com evidente falta de tecido mole subdérmico, apresentando derme nacarada e friável, com contorno rosado, com bordos ligeiramente hipertróficos, no terço distal da face posteromedial do antebraço, medindo 4.3cmx3cm de maiores eixos; membro inferior direito: área cicatricial rosada, sensivelmente retangular, no terço proximal da face anterior da coxa, medindo 8cm de maior eixo longitudinal e 2cm de transversal, compatível com colheita de autoenxerto cutâneo.

46.º

Também na sequência dos disparos levados a cabo pelo arguido, pelo menos um efectuado na direcção do ofendido EE [militar da GNR], e do barulho das explosões, o ofendido EE, quando se encontrava próximo da entrada da propriedade no desempenho das suas funções, a cuidar pela manutenção de cordão de segurança que impedisse a aproximação das pessoas ao local, foi atingido por um bago de chumbo na face lateral da coxa esquerda, com o que o arguido causou, como consequência directa e necessária da sua conduta, dores e as lesões melhor descritas nos Relatórios de Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal de fls. 622 a 624 e 1004 a 1007 [ex 978 a 981], cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, nomeadamente: crânio: diminuição de acuidade auditiva à esquerda – hipoacusia e acufeno à esquerda; membro inferior esquerdo: dois vestígios de escoriação, rosados, no terço médio da face lateral da coxa, medindo 5 mm de diâmetro cada.

47.º

Ainda na sequência de tais disparos, e como consequência directa e necessária da conduta do arguido, a ofendida FF [vizinha] quando estava junto à sua palheira, acompanhada pelo marido, SS, por GG e por TT, foi atingida por um bago de chumbo de um disparo que o arguido efectuou na direcção do local onde a mesma se encontrava, e sofreu dores e as lesões melhor descritas nos Relatórios de Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Penal de fls. 634 a 636 e 1054 a 1056, cujo teor aqui se dá integralmente por reproduzido, nomeadamente Face: vestígio cicatricial rosado, ligeiramente deprimido, na região malar direita, medindo 5mm de diâmetro, com um período de doença de 10 dias, com afectação da capacidade de trabalho geral.

48.º

Bem sabia o arguido que ao atear o incêndio, que assumiu grandes dimensões como pretendia, e ao causar as explosões pela forma descrita, nas condições e local mencionados, punha em risco a integridade física e a vida de terceiros, como pôs, designadamente de quem se deslocasse ao local e de quem combatesse o incêndio.

49.º

O arguido bem sabia que a sua descrita conduta, ao utilizar, nos disparos que efectuou, maioritariamente cartuchos de projéctil único [bala], os quais sabia que têm um potencial destruidor cartuchos de múltiplos projécteis muito significativo, e ao usar também alguns, os quais sabia que originam bagadas de ampla dispersão e mais facilmente atingem o alvo visado, e ao apontar e disparar, por várias vezes, uma arma municiada nas circunstâncias descritas, para a zona onde se encontravam diversas pessoas, principalmente operacionais dos bombeiros e da GNR, em pleno exercício das suas funções, mas também populares, era adequada a produzir-lhes a morte, o que, como forma de as impedir de combater e extinguir o incêndio, quis pelo menos relativamente às pessoas que atingiu com os disparos que efectuou, sendo que admitiu ainda como possível que da sua conduta global viessem a resultar ferimentos graves ou mesmo a morte de quem estivesse no local, bem sabendo que a sua conduta era idónea a provocar tal desfecho, e, não obstante, prosseguiu com a sua mesma.

50.º

Mortes que só não aconteceram por circunstâncias alheias à sua vontade, designadamente porque os ofendidos que visou e que foram atingidos pelos seus disparos foram prontamente assistidos no local e no hospital para onde alguns, de imediato, foram transportados, ou apenas foram atingidos em zonas e órgãos não vitais ou, pelo menos, lesões muito graves.

51.º

Com a sua conduta, livre, deliberada, consciente e ponderada, o arguido fabricou dois artefactos incendiários que utilizou com o propósito conseguido de deflagrar um incêndio capaz de destruir totalmente todos os bens e estruturas que estavam na propriedade, e desenvolveu um conjunto de operações para maximizar o potencial destruidor, como seja a explosão da cozinha, que pretendia, ao deixar os bicos do fogão abertos e as aberturas para o exterior tamponadas, colocando desse modo em perigo a vida, a integridade física e os bens patrimoniais de terceiros que se encontrassem nas imediações.

52.º

Bem sabia o arguido que ao atear o fogo pela forma descrita, nas condições e local mencionados, causaria um incêndio de grandes dimensões e violento e diversas explosões e punha em risco a integridade física e a vida de terceiros, designadamente de quem combatesse o incêndio e de quem circulasse ou comparecesse naquele local e ainda património alheio de valor elevado, mormente de eventuais meios de combate a incêndios que fossem levados para o local.

53.º

Por outro lado, bem sabia o arguido que o efeito inevitável da deflagração do incêndio seria o alerta para os bombeiros e a presença dos mesmos no local, bem assim como de elementos das forças de segurança, e ainda de populares, designadamente de vizinhos.

54.º

A espingarda-caçadeira utilizada pelo arguido encontra-se registada em seu nome, mas o arguido não possui qualquer licença válida de uso e porte de armas que lhe permitisse deter e utilizar tal arma e as respectivas munições. [tinha tido licença de uso e porta e arma desportiva, mas estava caducada]

55.º

O arguido conhecia as potencialidades letais da arma e das munições que utilizou e com as quais disparou, por várias vezes, sobre os ofendidos e utilizou-as sabendo que as mesmas se encontravam em boas condições de funcionamento e que eram meios idóneos a provocar no corpo dos ofendidos lesões capazes de acarretar a morte.

56.º

O arguido conhecia as características da arma com que efectuou os disparos e das munições que utilizou, bem sabendo que para as deter, guardar, usar ou trazer consigo era necessário obter previamente a respectiva licença, que sabia não ter.

57.º

O arguido sabia que não lhe era permitido fabricar, deter e utilizar os dois engenhos incendiários que construiu – “cocktails Molotov” – e que depois utilizou para atear o incêndio, e conhecia as respectivas características e perigosidade.

58.º

O arguido sabia que a sua descrita conduta, ao efectuar pelo menos dois disparos com arma de fogo quando o Agente de Execução GG se preparava para dar início às diligências a que se propunha no âmbito do processo de execução, dada a forma como o fez, atento o seu carácter intimidatório, era adequada a fazer crer a GG, como fez, que poderia efectuar mais disparos na sua direcção e assim o matar ou, pelo menos, o ferir com gravidade, caso continuasse a diligência a que se propunha, e assim constranger GG a praticar uma omissão que não era da sua vontade.

59.º

Pretendia, pois, coarctá-lo na sua liberdade de determinação, o que logrou alcançar.

(…)

64.º

O arguido sabia que CC, BB e DD eram bombeiros, que EE era elemento da Guarda Nacional Republicana e que GG era Agente de Execução e que estavam todos presentes no cumprimento das suas funções.

65.º

O arguido sabia que a sua conduta era especialmente censurável, porquanto sabia que utilizava repetidamente uma arma de fogo a partir de uma posição protegida e escondida, para disparar sobre pessoas desprevenidas e distraídas com toda a confusão gerada pelo incêndio e explosões a que havia dado origem e que se encontravam apenas no local no cumprimento das suas funções, as quais conhecia e quis impedir por todas as formas, inclusivamente tirando-lhes a vida, sendo motivado pelo interesse mesquinho de destruir tudo o que o conseguisse para impedir que uma decisão do Tribunal fosse cumprida

66.º

O arguido agiu em todas as circunstâncias acima descritas sempre de forma livre, deliberada, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crimes.

(…)

7.

Medida concreta das penas e da sanção acessória

Fixados que estão, em definitivo, os factos provados, e a respectiva subsunção jurídica, importa ainda apreciar a questão suscitada pelo recorrente e que passa por saber se as penas parcelares, única e a pena acessória que lhe foram aplicadas são “excessivas” – cf. alíneas AAA) a MMM) das conclusões de recurso.

Vejamos, então, se lhe assiste razão.

A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa, aferindo-se por esta, o patamar máximo da pena concreta a aplicar - artigo 40º do Código Penal.

A determinação da medida concreta da pena deve ser efectuada com recurso aos critérios gerais estabelecidos nos artigos 70º e 71º, do Código Penal, isto é, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.

E sufragamos o entendimento que só em caso de desproporcionalidade manifesta na sua fixação ou necessidade de correcção dos critérios de determinação da pena concreta, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, deverá intervir o Tribunal de 2ª Instância alterando o quantum da pena concreta ou o modo de execução da mesma.

Caso contrário, isto é, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir corrigindo/alterando o que não padece de qualquer vício.

De tal resulta que, se a pena fixada na decisão recorrida, em todas as suas componentes, ainda se revelar proporcionada e se mostrar determinada no quadro dos princípios e normas legais e constitucionais aplicáveis, não deverá ser objecto de qualquer correcção por parte do Tribunal de Recurso.

Para essa apreciação, revisitemos algumas das considerações do Tribunal a quo no que se refere à determinação da medida concreta da pena aplicada.

“(…)27

2.1.5. Medida concreta das penas

A ilicitude dos factos, dentro dos respectivos tipos de crime, é acima da média, tendo causado enorme alarme social. No que concerne ao crime de incêndio, é de salientar que só por sorte não ocorreu uma explosão fortíssima na cozinha (que se encontrava tamponada e com os bicos de gás do fogão abertos - qualquer faúlha ou faísca detonaria uma explosão com efeitos catastróficos.

O arguido, como se referiu, agiu com dolo necessário na prática dos crimes de homicídio na forma tentada e com dolo directo relativamente aos restantes crimes. Sendo esse dolo intenso e sendo elevado o grau da sua culpa (não obstante a sua notória descompensação, pelos motivos que constam do relatório de psicologia forense (e também aflorados no relatório social).

Quanto às causas e circunstâncias dos crimes, são as que constam da própria acusação, que circunstanciadamente as aborda - a questão da partilha dos bens comuns na sequência do divórcio.

Quanto às condições pessoais do arguido, são as que acima constam, das quais resulta que se encontra socialmente integrado, não tendo, sequer, antecedentes criminais. Tendo o seu bom comportamento social sido abonado pelas testemunhas que arrolou.

Quanto à conduta anterior aos factos, não tem antecedentes criminais.

Quanto à conduta posterior aos factos, nada se apurou (o arguido ficou a aguardar julgamento em prisão preventiva).

Em matéria de prevenção geral quanto a estes tipos de crime, as exigências são elevadas, obrigando a que as penas, tendo sempre como limite a culpa do arguido, sejam fixadas de forma a não defraudar as expectativas da comunidade, fazendo-a continuar a acreditar na eficácia do ordenamento jurídico.

As exigências de prevenção especial têm de se considerar médias, uma vez que o arguido não tem antecedentes criminais. Todavia, não se podem considerar serem baixas, quer devido à gravidade e quantidade de crimes cometidos e quantidade de ofendidos que ficaram afectados para toda a vida (com lesões corporais que deixaram sequelas físicas, psicológicas e emocionais), mas também porque o arguido não manifestou arrependimento, nem a sua postura traduz qualquer sinal de que se tenha arrependido.

Assim, considerando as molduras abstractas das penas para cada um dos crimes, a culpa do arguido, os graus da ilicitude e a intensidade do dolo relativamente a cada um dos crimes, as condições pessoais do arguido, a sua conduta anterior aos factos, a natureza dos crimes em causa e as necessidades de prevenção geral e especial, é justo e adequado fixar-lhe as seguintes penas:

– O crime de detenção de arma proibida: 4 (quatro) anos de prisão.

– O crime de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas: 5 (cinco) anos de prisão.

– O crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, na pessoa de BB: 8 (oito) anos de prisão.

– O crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, na pessoa de CC: 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.

– O crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, na pessoa de DD: 5 (cinco) anos e 10 (dez) meses de prisão.

– O crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada, na pessoa de EE: 5 (cinco) anos de prisão.

– O crime de ofensas à integridade física, agravado, na forma consumada na pessoa de FF (por convolação do crime de homicídio simples agravado, na forma tentada): 1 (um) ano de prisão.

– O crime de coacção agravado, na pessoa de GG: 3 (três) anos de prisão.

2.1.6. Cúmulo jurídico das penas

“ (…)

No caso dos autos, a pena única a aplicar ao arguido tem como limite máximo de 25 anos de prisão (por a soma das penas aplicadas a cada um dos crimes exceder esse limite) e como limite mínimo 8 anos de prisão (pena mais elevada que foi aplicada a um dos crimes).

Quanto aos factos em causa, é de ter em consideração a natureza dos crimes em causa, bem como a conduta globalmente considerada (conduta unitária). É também de atender às exigências de prevenção geral acima mencionadas, no sentido da defesa da ordem jurídica (protecção dos bens jurídicos), bem como as exigências de prevenção especial, acima referidas.

Quanto à personalidade do arguido, há que atender aos factos supra-referidos a propósito da medida concreta das respectivas penas, tendo essencialmente em consideração as suas condições pessoais.

Em face do exposto, ponderando em conjunto os factos e a personalidade do arguido (designadamente a manifestada no cometimento dos factos), atendendo à sua culpa e às necessidades de prevenção geral e especial, é justo e adequado, atenta a moldura do concurso (de 8 anos até 25 anos de prisão), fixar-lhe a pena única de 15 anos de prisão.

Pena essa que não admite a aplicação de qualquer pena de substituição.

2.1.7. A pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas

(…)

Como se viu, as armas, designadamente a espingarda-caçadeira de calibre 12, foi usada pelo arguido para cometer vários crimes, designadamente homicídios dolosos na forma tentada. Tendo constituído um meio de agressão sem o qual o arguido não poderia ter causado os danos (corporais) que causou.

Pelo que se justifica a aplicação ao arguido da pena acessória prevista no preceito legal citado.

No caso dos autos, atendendo ao limite superior da moldura penal do crime mais grave cometido (com arma) pelo arguido, às consequências que o uso da arma pelo arguido causou aos ofendidos e atendendo à idade do arguido, considera-se justo, adequado e proporcional, fixar no período de 10 anos a duração na pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas, nos termos do disposto no art.º 90.º, nºs 1, 2 e 3, da Lei n.º 5/2006, de 23/02, vulgo, Regime Jurídico das Armas e suas Munições.

(…)”

Considera o recorrente que o Tribunal a quo “fixou todas as penas parcelares em quantum muito distante dos limites mínimos quando o arguido não tem antecedentes criminais e actuou num único quadro de um único (…) de descarga emocional (…) não matou ninguém e quase tudo quanto ficou destruído era de sua pertença (…)”, que Contrariamente ao afirmado pelo Tribunal a quo o arguido manifestou arrependimento, desde logo na missiva enviada para o posto da GNR de ..., datada de 16 de Junho de 2022 (quatro meses após os factos!) … a manifestar desejo que os militares que saíram feridos se mostrassem recuperados, enderençando pedido de sinceras desculpas, expondo que nunca havia sido sua intenção que alguém saísse ferido (…)” - cf. alíneas AAA) a CCC) das conclusões de recurso.

Nas suas conclusões de recurso alega, ainda, que o Tribunal a quo não tomou em consideração a sua conduta posterior aos factos, o seu arrependimento, e as suas condições de saúde – cf. alíneas DDD e FFF).

Na verdade, ao contrário do afirmado pelo recorrente, o Tribunal a quo foi criterioso e equilibrado na ponderação da determinação das medidas concretas das penas parcelares — 4 anos de prisão para o crime de detenção de arma proibida; 5 anos de prisão para o crime de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas; 8 anos de prisão, 6 anos e seis meses de prisão, 5 anos e 10 meses de prisão, 5 anos de prisão pela prática dos crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, nas pessoas de BB, CC, DD, e EE, respectivamente; 1 ano de prisão pelo crime de ofensa à integridade física, agravado, na forma consumada, na pessoa de FF, 3 anos de prisão pelo crime de coacção agravado, na pessoa de GG — e também da pena única que fixou – 15 anos de prisão.

Também se revela adequada e proporcional a medida concreta da pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas aplicada ao recorrente, no caso 10 anos, atendendo à natureza e perigosidade inerente à arma utilizada [espingarda – caçadeira de calibre 12[, ao tipo de crimes cometidos [homicídios qualificados, na forma tentada, e 1 crime de ofensas à integridade física, agravado, na forma consumada], ao número de vitimas atingidas [5], e aos danos corporais causados aos ofendidos.

Com efeito, como cuidou de explicitar a decisão recorrida, a ilicitude dos factos praticados pelo arguido eleva-se a um patamar acima da média, os crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, foram cometidos com dolo necessário e os restantes com dolo directo, sendo elevado o grau da sua culpa, pese embora se tenha ponderado a sua descompensação de saúde [ referidas no relatório psicológico forense e afloradas relatório social], ponderou-se, ainda, a ausência de antecedentes criminais, as exigências elevadas de prevenção geral, não podendo negligenciar-se o alarme social potenciado pelos comportamentos do arguido (“motivado por interesse mesquinho” – cf. nº 65 dos factos provados), as exigências de prevenção especial medianas, pois embora não tenha antecedentes criminais, tomou-se em consideração a gravidade, o número de crimes cometidos, o números de vítimas atingidas, as lesões físicas que sofreram, e as sequelas para as suas vidas.

Inclusive razões de prevenção geral estão muito presentes na pena aplicada ao arguido, pois importa alertar os potenciais delinquentes para as penas e tentar evitar que pratiquem crimes desta natureza que claramente afectam a tranquilidade e ordem pública da comunidade e, frequentemente, colocam em causa valores de particular relevo.

Na verdade, dados os bens jurídicos violados, os sentimentos de indiferença pelas consequências manifestadas no cometimento do crime, as razões de prevenção geral, decorrentes dos frequentes conflitos subsequentes a divórcios, impedem a aplicação de uma pena menor ao arguido.

Insurge-se, também, o recorrente quanto ao facto de o Tribunal a quo não ter tido em consideração a sua conduta posterior aos factos e o seu arrependimento, pois, “desde logo na missiva enviada para o posto da GNR de ..., datada de 16 de Junho de 2022 (quatro meses após os factos!) … a manifestar desejo que os militares que saíram feridos se mostrassem recuperados, enderençando pedido de sinceras desculpas, expondo que nunca havia sido sua intenção que alguém saísse ferido (…)”.

Ora, compulsada a decisão recorrida, verifica-se que o tribunal a quo teve em conta, de facto, o teor das declarações prestadas pelo arguido, ainda que delas não tenha extraído qualquer pendor atenuativo, como pretende o recorrente.

Escreveu-se na decisão recorrida, a propósito das declarações prestadas pelo arguido em audiência, “No tocante ao que se passou no dia dos factos, o arguido declarou que não tinha intenção de matar ninguém e que não disparou na direcção dos atingidos. Apontou para um murete (quando disparou através do postigo da parte da cave que tem frente para o caminho) e para a linha de água. O certo é que não negou que os ofendidos foram atingidos pelos disparos que efectuou, não tendo dado nenhuma explicação para esse facto, que é contraditório com o que declarou no sentido de não ter disparado na direcção das pessoas. De resto, se não quisesse disparar para as pessoas, teria disparado para o ar, como fez quando chegou o Agente de Execução.”

E bem andou o tribunal em assim concluir, designadamente, que “o arguido não manifestou arrependimento, nem a sua postura traduz qualquer sinal de que se tenha arrependido” – cf. fls. 87 do acórdão.

Ademais, isso mesmo também se extrai dos factos provados sob o ponto 1.2.1.- B, alínea b), para facilmente se concluir pela sua “postura de vitimização”.

Aliás a ausência de interiorização por parte do arguido da gravidade da sua actuação é, verdade seja dita, reiterada em sede de recurso ao argumentar que “não matou ninguém e quase tudo o que ficou destruído era sua pertença” [cf. alínea BBB) das conclusões de recurso].

Também nada vale declarar numa carta pedir desculpas às vítimas pelo sucedido [alega que escreveu uma carta à GNR, mas não alega que tenha escrito aos Bombeiros].

E isto porque, pertencendo o arrependimento ao mundo interior do agente, a sua demonstração para ser visível e ponderada pelo tribunal tem de ser exteriorizada em actos concretos que evidenciem essa postura, ou seja, que convençam o tribunal no sentido de que o mesmo não voltará a delinquir, que em situações idênticas arrepiará caminho, ou seja, de que interiorizou o mal praticado.

Também não procedeu à reparação dos danos ou de parte deles, comportamento que vem sendo considerado pela maioria da jurisprudência como o mais evidenciador de arrependimento.

Em suma, bem andou o Tribunal a quo em não extrair da carta do arguido qualquer atitude de arrependimento com valor atenuativo.

Ora, em face de toda a factualidade provada, a medida das penas parcelares e da pena única, incluindo a pena acessória, aplicadas ao arguido são adequadas se não padecem de excessos.

Assim, sopesadas todas as circunstâncias enunciadas e vista a moldura penal abstractamente prevista para os crimes em questão, impõe-se concluir que quer a medida das penas parcelares, quer a pena única, incluído a pena acessória, fixada ao arguido, são adequadas, necessárias e proporcionais, não se justificando, por conseguinte, qualquer intervenção correctiva deste Tribunal ad quem - não se alcança qualquer razão válida para justificar uma reação penal mais branda perante os actos do recorrente.

Improcede, pois, o recurso, também, quanto à questão da redução da medida das penas aplicadas.

8.

Do quantum indemnizatório fixado a título de danos patrimoniais e não patrimoniais

O recorrente contesta o valor da indemnização fixada pelo tribunal a quo relativos aos danos patrimoniais e não patrimoniais atribuídos ao demandante CC e EE e, ainda, quanto aos danos não patrimoniais atribuídos ao BB e KK.

Argumenta que “os danos patrimoniais reclamados pelos demandante CC e EE, a título de lucros cessantes pela perda de salário, por força da situação de incapacidade julga-se ser notório (art. 412ºCPC),que tal salário terá sido necessariamente pago ou pela Segurança Social ou pela seguradora (…) ” e que “ Sendo o subsídio de refeição pago mensalmente ao trabalhador, num montante pré-fixado, o mesmo corresponderá a uma “prestação certa e regular” relacionada com a prestação efetiva de trabalho, integrando-se, deste modo, no conceito de retribuição atendível para efeitos de cálculo das pensões e indemnizações previstas pelo que, pelo menos, deve o demandado ser absolvido do pagamento da quantia de € 4.828,50 relativa ao demandante CC e € 1.230,52 relativo ao demandante EE “ – cf. alínea NNN) e OOO) das conclusões de recurso.

Por sua vez, entende que em relação aos “danos não patrimoniais (…) pecam por excesso, tendo os ofendidos voltado aos respectivos trabalhos e farão uma vida mais ou menos normal, ainda que com as condicionantes dos factos ilícitos, sem perda definitiva de qualquer membro, órgão ou lesão deveras incapacitante para todo o sempre e, sendo credores de indemnização, terá de ser adequada e justa, não se podendo olvidar também as condições económico-financeiras do lesante (…)” – cf. alínea PPP) das conclusões de recurso.

Conclui que os montantes fixados devem ser atenuados para “os seguintes: € 37.500,00 (BB), € 12.500,00 (CC, por força de cumulativamente ter pedido indemnização pelo dano biológico e não poder haver duplicação!), € 13.500,00 (EE) e € 16.000,00, (DD, devendo ter-se em consideração, no que concerne ao dano biológico, que não será justo que a indemnização do demandante CC seja superior à atribuída ao demandante BB (mas tal justiça não pode ser feita á custa da majoração e em prejuízo do demandado!) pelo que deve haver equidade e justiça, sendo tal indemnização reduzida para € 20.000,00”– cf. alínea QQQ) das conclusões de recurso.

Face ao disposto no artigo 129º do Código Penal, “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”, tanto no que se refere ao respectivo quantitativo como aos seus pressupostos, uma vez que processualmente vigoram os princípios da investigação e da livre apreciação da prova.

O direito que os demandantes cíveis fizeram valer neste processo inscreve-se no domínio da responsabilidade civil extra-contratual em que a imposição da obrigação de indemnização depende da verificação dos pressupostos enunciados no artigo 483º do Código Civil.

Estabelece o artigo 483º, n.º 1 do Código Civil: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem, ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

O recorrente não questiona os danos sofridos pelos ofendidos, colocando apenas em causa alguns dos montantes fixados.

Ora, ao contrário do pretendido pelo recorrente, estando adequadamente fixada a matéria de facto, e não tendo sido introduzida na mesma qualquer alteração que tenha impacto na determinação dos danos que foram considerados provados na 1ª instância, a argumentação do recorrente não tem a virtualidade de produzir o efeito alcançado.

Com efeito, em relação aos danos patrimoniais sofridos pelos demandantes, provou que o CC, para além dos danos não questionados pelo recorrente, à data dos factos auferia o salário mensal ilíquido de €810,00 14 vezes por ano, acrescido de subsídio de refeição diário de €6,40, que deixou de receber enquanto esteve temporariamente incapacitado para o trabalho (até 30/06/2022); e que o EE sofreu perda, até 30.09.2022, dos subsídios de patrulha no valor liquido mensal de 59,13 euros e de refeição no valor liquido mensal de 104,94 – cf. factos provados, descritos sob o ponto B-2 e B-3.

Em relação ao danos não patrimoniais [sofridos pelos ofendidos BB, CC, EE e KK] e, bem assim, ao dano biológico sofrido pelo CC, importa atender ao vasto núcleo de factos assentes [cf. factos provados, sob os pontos B-1 a B-4], tendo presente , como sustenta o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 22.02.201728, que: “como temos entendido reiteradamente (cf. por ex. o Ac. de 20/5/10, proferido no P. 103/2002.L1.S1) – não poderá deixar de ter-se em consideração que tal «juízo de equidade» das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adoptados, numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados, e, em última análise, o princípio da igualdade.”

Cumpre ter presente que, na fixação da indemnização por danos não patrimoniais, releva a gravidade do dano causado, o grau de culpa do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

É necessário considerar, desde logo, que estes elementos têm, no seu todo, uma dupla finalidade: a da reparação dos danos causados e a da sanção ou reprovação do agente no plano civilístico, com os meios adequados do direito privado.

Alega o recorrente que o Tribunal a quo não tomou em conta “as condições económico-financeiras do lesante”.

Ora, no que tange às condições económicas do recorrente, para além do que resulta da factualidade provada, cumpre dizer que não obstante a norma remissiva do artigo 496º, nº1 do Código Civil [estabelece parâmetros previstos na norma remetida - artigo 494], as condições económicas do recorrente (lesante) é uma variável pouco expressiva não podendo tal circunstância obstar à obrigação de indemnizar condignamente os lesados, em virtude da prática dos crimes perpetrados pelo mesmo.

Por outro lado, na fixação equitativa do valor da indemnização deve ter-se sempre presente que os montantes não devem ser tão escassos que possam ser vistos como miserabilistas, nem tão elevados que possam assumir-se como enriquecimento indevido.

Na fixação do montante da indemnização em análise deve o tribunal orientar-se por um critério de equidade, que não pode fazer corresponder a indemnização a um enriquecimento despropositado do lesado, nem a uma simples esmola, a um valor meramente simbólico.

Nesta perspetiva, tem existido uma acentuada tendência para a elevação das indemnizações a arbitrar em casos como o dos autos, de maneira a ultrapassar uma certa timidez que se tinha instalado na prática dos nossos tribunais e a acompanhar a evolução positiva dos padrões económicos da nossa sociedade, geradora de maiores hábitos de consumo por parte das famílias, pretendendo-se que o lesado atinja prazeres e bem-estar que de algum modo lhe façam esquecer ou mitigar o sofrimento causado pela lesão – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20.12.201831.

Devem incluir-se entre os danos não patrimoniais indemnizáveis as dores físicas e psíquicas, a perturbação da pessoa, os sofrimentos morais, e os prejuízos na vida e relação sociais.

Como escreve DARIO MARTINS DE ALMEIDA, “quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa. A equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias) em oposição à justiça meramente formal. Por isso se entende que a equidade é sempre uma forma de justiça. A equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo”.

Do exposto decorre que o tribunal, para a fixação dos danos não patrimoniais, no cumprimento da disposição legal supracitada que determina que se julgue de acordo com a equidade, deverá atender aos elementos expressamente previstos na lei e, bem assim, a outras circunstâncias que derivam da matéria de facto provada. Isto com a finalidade de, após a adequada ponderação, poder concluir sobre o valor pecuniário que no caso concreto se mostra justo e adequado.

Ora, vista, por um lado, a gravidade dos ferimentos, lesões, sequelas, tratamentos, cirurgias, o grau em que cada um deles se sentiu afectado e, por outro lado, tendo em devida conta todos os demais circunstancialismos que a matéria provada nos aporta, temos como justo e adequado o quantum indemnizatório fixado pelo tribunal a quo, afigurando-se-nos que o mesmo é consentâneo com a apreciação global e complexiva de todos os elementos relevantes para o efeito.

Por último, alega o recorrente que em relação ao demandante CC “não pode haver uma duplicação” da indemnização fixada pelos danos não patrimoniais e pelo dano biológico – cf. alínea QQQ) das conclusões de recurso.

Contudo, mais uma vez, sem acerto.

Como se explana no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.201833, “A doutrina e a jurisprudência vêm considerando como integrantes do dano biológico diversas vertentes, parâmetros ou modos de expressão” , assim (…)Quer se considere o dano biológico como dano patrimonial – consoante vem sendo o nosso entendimento – ou dano não patrimonial, ou até mesmo como “tertium genus” ou ainda como uma entidade híbrida participando de uma e outra de tais dicotómicas modalidades, no cômputo dos danos sofridos não podem deixar de acrescer os danos mencionados (…) desde que efectivamente comprovados, em conformidade com o estatuído nos arts. 494.º, 496.º e 566.º do CC”.

Ora, como se exarou no acórdão recorrido, “tendo em conta os critérios jurisprudenciais que têm sido seguidos para a quantificação deste dano, mas sempre com recurso à equidade, atendendo à idade do demandante CC à data da lesão, a esperança média de vida, a natureza das sequelas e a sua profissão, considera-se justo e adequado fixar no montante de €30.000,00 a título de indemnização pelo dano biológico por si sofrido”.

A redução dos montantes indemnizatórios fixados a título de danos não patrimoniais e dano biológico para valor inferior aos fixados, arriscar-se-ia a tornar irrelevante a reparação dos danos.

O recurso é, assim, de improceder também nesta parte.

(…)

2. Como bem assinalam os ilustres Magistrados do Ministério Público - quer o Senhor PGA junto do tribunal recorrido, na sua Resposta ao recurso, quer o Senhor PGA, neste Supremo Tribunal, no Parecer que emitiu -, só é admissível recurso, in casu, relativamente à medida da pena única de 15 anos em que foi condenado o arguido, dado que nenhuma das penas parcelares aplicadas é superior a 8 anos de prisão, pelo que todas as questões com estas (e com os respetivos crimes) conexas, de natureza processual e substantiva, terão de ficar de fora2.

É claro que para o recorrente AA o Supremo Tribunal de Justiça pode conhecer de tudo, incluindo matéria de facto, dadas as alusões, completamente deslocadas, que faz a este respeito e qualquer que tenha sido a medida concreta das penas que tenham sido aplicadas, mesmo em caso de dupla conforme! Vale tudo!

Mas, como é óbvio, tal é ignorar não só o regime legal dos recursos em processo penal e os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, como também a jurisprudência consolidada deste Tribunal3, nesta matéria.

Importa, a propósito, recordar ao recorrente que tendo o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra confirmado o acórdão do tribunal coletivo da primeira instância se observa uma situação de dupla conformidade, com as consequências legais previstas na nossa lei processual.

Já sobre a alegada verificação dos vícios previstos no art. 410.º n.º 2 a) e c), do C.P.P., no acórdão recorrido, limitar-nos-emos a repetir o que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a afirmar, praticamente una voce, a este respeito, que, relativamente aos recursos interpostos para o STJ de acórdãos de Tribunais da Relação, que decidiram recursos anteriores, não podem os vícios previstos nas diferentes alíneas do citado art. 410.º n.º 2 servir de fundamento ao recurso, podendo, porém, serem, oficiosamente, conhecidos pelo Supremo4.

Isto é, não a pedido dos recorrentes, mas tendo o STJ a possibilidade de, ex officio, conhecer dos mesmos desde que resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.

Em todo o caso, sempre se dirá que analisada, em toda a sua extensão, a decisão recorrida não detetamos do respetivo texto qualquer dos mencionados vícios, nomeadamente, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão invocada pelo recorrente.

Pelo contrário, é patente a clareza de todo o seu texto e do sentido da decisão, transparência que resulta da criteriosa análise de toda a prova especificada no recurso da matéria de facto, a que minuciosamente se procedeu, não existindo a mais leve contradição no que reporta à fundamentação da decisão.

Trata-se de um texto lógico, bem estruturado e devidamente fundamentado, cumprindo, na íntegra, os imperativos legais e constitucionais.

Pronunciou-se também sobre todas as questões que foram colocadas, não se detetando qualquer irregularidade ou nulidade, designadamente a omissão de pronúncia.

No que concerne à parte cível, está igualmente vedado a este Supremo Tribunal o respetivo conhecimento, uma vez que o acórdão do Tribunal da Relação confirmou, por unanimidade, o acórdão da primeira instância, com uma fundamentação idêntica, conforme se pode constatar da decisão recorrida, pelo que a dupla conformidade impede que o Supremo se possa pronunciar também, nesta parte5 (Cfr. art. 771.º n.º 3, do C.P.C.).

Por fim, relativamente à única questão que este Tribunal pode efetivamente conhecer, convocando a doutrina6 e a jurisprudência7 mais relevantes, diremos que a determinação da pena do concurso implica, fundamentalmente, duas operações: em primeiro lugar, o tribunal tem de determinar a pena que concretamente caberia a cada um dos crimes em concurso, seguindo o procedimento normal de determinação da pena; em seguida, construirá a moldura penal do concurso, que é uma verdadeira moldura penal, com o seu limite máximo e o seu limite mínimo, dependendo esta operação da espécie ou das espécies de penas parcelares que tenham sido concretamente determinadas.

Estabelecida a moldura penal do concurso, o tribunal determinará, então, dentro dos limites daquela, da medida da pena conjunta do concurso, que encontrará em função das exigências gerais da culpa e de prevenção. Mas, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 71.º n.º 1, do Cód. Penal, a lei fornece ao tribunal um critério especial: «Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente» (art. 77.º n.º 1, 2.ª parte).

Como salienta o Professor Figueiredo Dias8, tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado. Na avaliação da personalidade do agente, revelará, sobretudo, a questão de se saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência ou mesmo a uma “carreira” criminosa ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade. De grande relevo, será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

Ora, na situação concreta, tendo por base uma moldura abstrata que tem como limite mínimo 8 anos de prisão e limite máximo 25 anos de prisão9 consideramos que, em consonância com os critérios legais referenciados e tendo, nomeadamente, em conta a enorme gravidade dos factos praticados, na sua globalidade, o elevado grau da ilicitude, a dimensão grave da culpa, a não interiorização da gravidade da conduta levada a cabo, a postura de vitimização, os danos produzidos, o não arrependimento do arguido, a ausência de antecedentes criminais e sem, naturalmente, se esquecer as fortes exigências de prevenção geral, a pena única de 15 (quinze) anos de prisão, abaixo do ponto médio da moldura em causa, pese embora até alguma benevolência – diga-se -, não é excessiva e desproporcional, mas adequada e justa (art. 77.º n.º 1, do Cód. Penal).

Saliente-se, por último, que as instâncias tiveram o cuidado de fundamentar bem a determinação, quer da medida das penas parcelares quer do quantum da pena única, não tendo sido violados quaisquer preceitos, mormente os de natureza constitucional indicados.

Nesta conformidade, não se justifica, neste âmbito, qualquer intervenção corretiva por parte do Supremo Tribunal de Justiça.

IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em:

a) rejeitar, por inadmissibilidade legal, o recurso do arguido AA, na parte que diz respeito à impugnação da matéria de facto, bem como aos invocados vícios do art. 410.º n.º 2, do C.P.P., em relação também à parte cível referente aos montantes indemnizatórios fixados a título dos danos patrimoniais e não patrimoniais, bem como relativamente à medida das penas parcelares e da sanção acessória (arts. 420.º n.º 1 b), 432.º n.º 1 b) e 434.º., do C.P.P., e 671.º, n.º 3, do C.P.C.); e

b) julgar, no mais, improcedente o recurso do arguido., mantendo-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC.

Lisboa, 11 de setembro de 2024

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Antero Luís (Adjunto)

Maria do Carmo Silva Dias (Adjunta)

_______


1. Tirado por unanimidade.

2. Refira-se também que um tal entendimento tem vindo a ser reiteradamente sustentado pelo Tribunal Constitucional no sentido da sua conformidade constitucional, desde o acórdão do Plenário n.º 186/2013, de 4/4/2013.

3. Cfr., entre muitos, os acórdãos de 4/6/2024, relator o Senhor Conselheiro António Latas, Proc. n.º 1423/17.1PKLSB.L1.S1, 10/1/2023, relatora a Senhora Conselheira Ana Barata Brito, Proc. n.º 4153/16.8JAPRT.G3.S1, e 20/10/2023, relator o Senhor Conselheiro Orlando Gonçalves, Proc. n.º 1991/18.0GLSNT.L1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

4. Vide, por todos, os acórdãos de 17/4/2024, relatora a Senhora Conselheira Maria do Carmo Silva Dias, Proc. n.º 266/22.5GLSB.L1.S1, 23/11/2023, Senhor Conselheiro António Latas, Proc. n.º 419/21.3PCLSB.L1.S1, e 15/2/2023, Senhora Conselheira Ana Barata Brito, Proc. n.º 7528/13.0TDLSB.L3.S1, no sítio indicado..

5. Ver, nesse sentido, os acórdãos do STJ de 4/7/2024, relator o Senhor Conselheiro João Rato, Proc. n.º 432/20.8JAVRL.G1.S1, e de 15/5/2024, Pedro Branquinho Dias, Proc. n.º 24/09.2TELSB.L1.S1, no mesmo sítio.

6. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, Aequitas Editorial Notícias, pg. 283 e ss., Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2.ª ed., Almedina, pg. 71 e ss., Anabela Mirando Rodrigues, A determinação da medida da pena privativa de liberdade, 1995, Coimbra Editora, pg. 520 e ss., e Artur Rodrigues da Costa, O Cúmulo jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ, JULGAR n.º 21, Setembro-Dezembro de 2013, pg. 172 e ss.

7. Entre outros, os acórdãos do STJ de 11/10/2023, relator o Senhor Conselheiro Ernesto Vaz Pereira, Proc. n.º 3673/22.0T8PNF.P1.S1, de 11/7/2023, relatora a Senhora Conselheira Maria do Carmo Silva Dias, Proc. n.º 5310/19.0JAPRT.G1.S1, de 18/5/2022, relatora a Senhora Conselheira Helena Fazenda, Proc. n.º 388/20.7GDSTB.S1 e de 16/5/2019, relator o Senhor Conselheiro Nuno Gonçalves, Proc. n.º 765/15.5T9LAG.E1.S1, todos disponíveis no sítio já indicado.

8. Ob.cit., pgs. 291 e 292.

9. Art. 77.º n.º 2, do Cód. Penal.