REQUERIMENTO DE ABERTURA DA INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
INADMISSIBILIDADE LEGAL
Sumário

- Um requerimento de abertura de instrução bem estruturado, e em obediência a todo o nº 2 do artº 287º do C.P.P., deve (em casos como o destes autos) conter uma primeira parte com as razões relativas à discordância quanto ao arquivamento, com os atos de instrução que se pretendem levar a cabo, com os meios de prova e com a indicação dos factos que com eles se pretendem provar; e uma segunda parte com uma verdadeira acusação que servirá de vinculação temática para o tribunal e será indispensável para o exercício de verdadeiro contraditório por parte do arguido.
- A relevância de uma clara narração dos factos é também evidente face ao que dispõe o artº 309º, nº 1, do C.P.P., o qual dispõe que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos (…) no requerimento para abertura da instrução.
- Quanto ao elemento subjetivo, não é necessário que se utilizem as palavras “habituais”, mas com essas ou outras com o mesmo significado, têm que ser alegados os factos que consubstanciam tal elemento, sabendo-se que não deve haver “presunções de dolo”.

Texto Integral

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

Após despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, o assistente AA, requereu a abertura de instrução.

Sobre esse requerimento recaiu o seguinte despacho:

“Nos presentes autos, AA requereu a abertura de instrução na sequência da prolação do despacho final de arquivamento por se ter entendido que os factos em crise não integram os elementos constitutivos da tipicidade de qualquer crime.

No requerimento de abertura de instrução, o assistente concluiu pela existência de indícios suficientes relativamente ao crime de ofensa à integridade física por negligência, p .e p pelo artº 148º nº 1 ou pelo crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p.e p. pelo nº 2 do artº 150º, todos do Código Penal, pugnando a prolação do consequente despacho de pronúncia.

Cumpre apreciar e decidir.

De harmonia com as disposições conjugadas dos arts. 287.º, n.º2, in fine, e 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) ambos do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução deve conter a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, como também, a indicação das disposições legais aplicáveis;

Na apresentação do R.A.I. por parte do assistente, a Lei exige que o assistente proceda em termos idênticos àqueles que caberiam ao Ministério Público, na prolação de uma acusação, e em que a descrição factual dos elementos objectivos e subjectivos do tipo ou tipos, pelos quais o arguido deverá ser pronunciado, funcionam como a fixação do objecto do processo, i.e., do seu thema probandum. Com efeito, “ (…) Integrando o requerimento de instrução razões de perseguilidade penal, aquele requerimento contém um a verdadeira acusação; não há lugar a uma nova acusação; o requerimento funciona como acusação em alternativa, respeitando-se, assim, «formal e materialmente a acusatoriedade do processo», delimitando e condicionado a actividade de investigação do juiz e a decisão de pronúncia ou não pronúncia. (…)” - in Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol III, p. 125, apud Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005.

Por outro lado, a jurisprudência tem-se pronunciado no sentido de que o objecto da instrução seja rigorosamente fixado pelo requerimento de abertura de instrução, não podendo ser considerados quaisquer outros factos para efeitos de juízo de indiciação, “I – O requerimento para abertura da instrução equivalerá em tudo a uma acusação, condicionando e limitando, nos mesmos termos que a acusação formal, seja pública, seja particular, a actividade de investigação do juiz e a própria decisão final, instrutória. É que, tal como acontece na acusação, também, no caso, o requerimento de abertura de instrução tem em vista delimitar o thema probandum da actividade desta fase processual. (…) II – O objecto da instrução tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa e essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis, dito de uma forma simplista, os factos narrados como integrantes da conduta ilícita do agente têm de “caber” nos elementos objectivos e nos elementos subjectivos do tipo legal em causa (do respectivo preceito).” – in Acórdão da Relação de Lisboa de 27 de Maio de 2010 - processo n.º 1948/07.7PBAMD- A.L1-9, disponível em www.dgsi.pt.

A própria jurisprudência do Tribunal Constitucional igualmente já se havia pronunciado no sentido de “A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.” – in Acórdão do TC n.º 358/2004, de 19 de Maio, publicado na 2.ª série do D.R. n.º 150, de 28 de Junho de 2004.

Ora, analisado o requerimento de abertura de instrução constata-se que não foi dado cumprimento ao imperativo legal supra enunciado, porquanto neste não consta a descrição da factualidade conjunta de todos os elementos que, provados, pudessem integrar-se nos elementos objectivos e subjectivos dos tipos de ilícito pelo quais se pretende a prolação do despacho de pronúncia (crime de ofensa à integridade física por negligencia, p .e p pelo artº 148º nº 1 ou crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos).

Com efeito, o requerimento de abertura de instrução apresentado é totalmente omisso relativamente aos factos respeitantes à descrição típica dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos criminais em causa.

Da leitura do requerimento de abertura de instrução é possível inferir que o mesmo corresponde a uma impugnação ao despacho de arquivamento elaborado pelo Digno Magistrado do Ministério Público, uma vez que o assistente se insurge com o modo como a investigação foi levada a cabo e vem requerer diligências de prova que alega que deveriam ter sido realizadas no inquérito. Todavia, o requerimento de abertura de instrução não se subsume só a isso, para tal existe a reclamação hierárquica.

O requerimento de abertura da instrução formulado pelo assistente, na sequência de um despacho de arquivamento do Ministério Público, é mais que uma forma de impugnar o despacho de arquivamento do Ministério Público, uma vez que consubstancia, uma verdadeira acusação.

Sem a descrição de factos concretos situados no espaço e no tempo que consubstanciem uma conduta penalmente punível, a identificação do seu agente e a indicação do ilícito pelo qual se pretende ver aquele pronunciado, a instrução não tem objecto, ou seja não pode haver instrução.

Sem instrução, o debate e a decisão instrutória constituem uma impossibilidade jurídica e os actos instrutórios actos inúteis, sendo que ainda que fossem apurados factos concretos e a data da sua ocorrência, se tal viesse a constar da decisão instrutória esta seria nula, por violação do disposto no artº 309º, conforme supra referimos.

De facto, é o requerimento de abertura da instrução que vai delimitar o objecto da fase de instrução, sendo que o arguido tem de estar identificado e conhecer todos os factos situados no espaço e no tempo que em concreto lhe são imputados para que se possa defender, bem como a indicação do ilícito pelo qual se pretende a sua pronúncia.

Conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24 de Outubro de 2017, proc. n.º 321/15.8PAPTM.E1, disponível in www.dgsi.pt, “[o requerimento de abertura de instrução] tem mesmo que ser uma “acusação”. Tem que ser apresentada com autonomia factual. Tem que “contar uma história” apenas com factos essenciais a integrar os tipos penais pretendidos integrar – e todos eles, objectivos e subjectivos – sem adjectivações e/ou considerados probatórios ou de qualificações jurídicas de permeio.»

Ora, vem sendo entendimento jurisprudencial uniforme que, quando a leitura dos factos narrados pelo Assistente em sede de abertura de instrução, sem recurso a qualquer outro elemento, permita concluir que os mesmos nunca poderiam levar à aplicação de uma pena, haverá lugar à inadmissibilidade legal desta fase processual, por conjugação dos art.ºs 287.º, n.º 3 e 311.º, n.º 3, alínea d), ambos do Cód. Proc. Penal – neste sentido veja-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/03/2009, proc. n.º 08P3168, disponível in www.dgsi.pt.

As falhas supra descritas subsumíveis à falta de descrição factual com a virtualidade de fundamentar a aplicação de uma pena ou medida de segurança, não poderão ser supridas, sendo este o entendimento do Acórdão de fixação de jurisprudência do S.T.J. n.º 7/2005, de 12 de maio de 2005, segundo o qual, “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”

Deste modo, em face do exposto, rejeita-se o requerimento de abertura de instrução, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 286.º, n.º1, 287.º, n.ºs 2, a contrario sensu, e 3 do Código de Processo Penal.”

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Inconformado com tal despacho, dele recorreu o assistente, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“A. Recorre-se do douto despacho proferido pela MMa. Juiz do Juízo de Instrução Criminal de … – Juiz …, nos autos do Processo n.º 3553/19.6T9FAR que rejeitou, por entender ser inadmissível, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente.

B. Refere o despacho ora recorrido que o RAI apresentado pelo assistente é totalmente omisso relativamente aos factos respeitantes à descrição típica dos elementos objetivos e subjetivos dos tipos criminais em causa.

C. Ora, com o devido respeito, o assistente não pode concordar com tal entendimento.

D. Com efeito, pois o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente cumpre todos os requisitos legais.

E. Os factos foram narrados indicando o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o arguido neles teve, conforme melhor descrito no requerimento de abertura de instrução.

F. Onde também foram indicadas as disposições legais aplicáveis, bem como as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação.

G. O assistente indicou os atos de instrução que pretende que o Juiz leve a cabo, dos meios de prova, nomeadamente, a resposta pelo Conselho Médico Legal do INMLCF aos quesitos que apresentou, a identificação e audição dos elementos da equipe médica que realizou a cirurgia em 16-01-2018, e ainda, a tomada de declarações ao assistente.

H. Ora, conforme previsto no n.º 3 do artigo 287.º do CPP, o requerimento de abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais e só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

I. No caso concreto não se verifica nenhuma dessas situações, pois o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente contém todos os requisitos legais, pelo que não se pode concordar o entendimento vertido pelo Tribunal a quo no despacho ora recorrido.

J. Pelo exposto, o despacho recorrido violou as seguintes disposições legais:

• Artigo 69.º, n.º 2, alínea a) do CPP

• Artigos 286.º e 287.º n.º 2 e n.º 3, ambos do CPP

• Artigo 20.º da CRP

Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido substituindo-se por outro que declare aberta a instrução, tudo, com as demais legais consequências, fazendo-se, assim, a tão costumada JUSTIÇA!”

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O Ministério Público respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“1 – Insurgem-se o recorrente contra a decisão instrutória que rejeitou a abertura de instrução por inadmissibilidade legal perante a falta de descrição dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crime convocados.

2 – Constitui “Crime”, nos termos do artigo 1.º, alínea a) do Código de Processo Penal, “o conjunto de pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais”, o que compreende uma acção (ou omissão) típica, ilícita e culposa (e punível) e, segundo o artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, é aplicável, ao requerimento de abertura de instrução do assistente, entre o mais, o disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do mesmo diploma legal, que impõe que, da acusação, conste a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, ou seja, de factos que constituam crime.

3 – Estando em falta tais elementos, a instrução é legalmente inadmissível porque fica inviabilizada a pronúncia por crimes, sendo que o objecto da instrução é fixado estritamente pelo requerimento de abertura de tal fase processual.

4 – Por outro lado, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005 de 12 de Maio de 2005, fixou jurisprudência no sentido de que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.”, interpretação que já mereceu acolhimento por parte do Tribunal Constitucional, pelo menos, nos acórdãos n.º 807/2003, 310/2005 e 636/2011.

5 – Assim, o requerimento de abertura de instrução por assistente tem de conter a narração dos factos que constituem crime, nas suas dimensões objectiva e subjectiva, pois apenas estas exigências se compatibilizam com as garantias do direito de defesa de arguidos/as e com a estrutura acusatória do processo penal português – neste sentido, vide o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 636/2011 https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110636.html.

6 – Ora, analisado o requerimento de abertura de instrução apresentado nestes autos, verifica-se que não obedece aos requisitos legalmente impostos, pelo que bem andou o Tribunal a quo em rejeitar a abertura de instrução por inadmissibilidade legal.

7 – O recurso limita-se a afirmar que o RAI obedece aos requisitos legais, mas tal não corresponde à verdade – não existe no RAI a descrição de qualquer elemento objectivo e subjectivo dos tipos de crime pelos quais pretendia a pronúncia.

8 – E assim sendo, manifestamente não lhe assiste razão, devendo o recurso improceder.”

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Também o arguido BB respondeu ao recurso, tendo terminado a resposta com as seguintes conclusões:

“1. O Presente recurso não se encontra fundamentado, atento que o Assistente Recorrente apenas tece generalidades conclusivas, limitando-se a informar que o requerimento de abertura de instrução observa todos os requisitos e que não devia ter sido rejeitado, sem mais, pelo que não deverá obter provimento por infundado.

2. O requerimento de abertura de instrução apenas informa que foi apresentada queixa, que foi proferido despacho de arquivamento, explanando-se, em seguida, sobre os atos instrutórios que não foram realizados.

3. O requerimento em causa contém uma expressão de discordância do arquivamento dos autos, concluindo que deveria ter sido deduzida acusação, mas não contém uma verdadeira acusação alternativa como lhe era devido, nos termos e em violação das disposições conjugadas dos arts. 287.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, alíneas b) e c), ambos do CPP.

4. O requerimento de abertura de instrução é totalmente omisso quanto à indicação do lugar, do tempo e motivação da prática, o grau de participação do agente, bem como de outras circunstâncias relevantes para a determinação da sanção a ser aplicada.

5. Este é um caso que conta com entendimento jurisprudencial uniforme, no sentido de que existe inadmissibilidade legal do requerimento de instrução quando não se verifica a descrição factual dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime pelo qual o arguido deveria ser pronunciado na tese do Assistente, bem como no sentido de que tal omissão não pode ser suprida (cfr. Acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 12 de maio).

6. O Despacho recorrido não deve ser beliscado e foi proferido na esteira da melhor jurisprudência, não violando as disposições legais invocadas pelo Assistente Recorrente, a saber, as contidas na alínea a) do n.º 2 do art. 69.º, no art. 286.º e nos n.ºs 2 e 3 do art. 287.º, todos do CPP, bem como no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos, e nos demais de direito que doutamente se suprirão, deve o presente recurso ser considerado improcedente e, em consequência, manter-se o douto Despacho recorrida nos seus exatos termos, assim se fazendo a tão costumada JUSTIÇA.”

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Neste tribunal da relação, a Exmª P.G.A. emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e, cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., o recorrente ofereceu resposta manifestando discordância com o parecer.

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APRECIAÇÃO

O que importa apreciar no presente recurso é apenas saber se o r.a.i. preenche, ou não, os requisitos necessários para ser declarada aberta a instrução.

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Tal r.a.i. é do seguinte teor:

“AA, assistente, no âmbito do processo à margem referenciado, em que é arguido Dr. BB, identificado nos presentes autos, notificada do despacho de arquivamento parcial, vem requerer junto de V. Exa. nos termos do artigo 287.º n.º 1 b) do C.P.P, a sua

ABERTURA DE INSTRUÇÃO

o que o faz nos termos, e com os fundamentos seguintes:

1.

Os presentes autos tiveram início com a queixa apresentada pelo assistente contra o arguido BB (Fls. 138), alegando que este, para além do mais, provocou danos no assistente porquanto não tomou as medidas exigíveis na cirurgia realizada no dia 16.01.2018, conformes à “lex artis”, o que integra um crime Ofensas à integridade física por negligência, p. e p. no art. 148º n. 1 do Código Penal ou um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo n. 2 do art. 150º do Código Penal, nos termos e moldes melhor descritos a fls. 3 a 18.

2.

Entendeu o Excelentíssimo Procurador-Adjunto que os elementos probatórios carreados para os autos, não permitiram recolher indícios suficientes para que seja deduzida acusação pela prática dos crimes em apreço (ou de qualquer outro), pelo que determinou o arquivamento dos autos.

3.

O Ministério Público não inquiriu qualquer testemunha, tendo procedido apenas à inquirição do Assistente (que confirmou o teor da queixa) e do Arguido, que no seu interrogatório nada acrescentou, remetendo os esclarecimentos para a documentação enviada pelo CH….

4.

Entendeu o Excelentíssimo Procurador da República basear a sua convicção, apenas e somente, no Parecer pedido ao Conselho Superior de Medicina Legal que em síntese conclui que, com base no historial clínico do Assistente, “a realização quer da primeira, quer da segunda cirurgia não resultaram de um comportamento (ou de um erro) médico anterior inadequado.” acrescentando ainda que “a hérnia da parede abdominal desenvolvida pelo assistente, não resultou da primeira cirurgia.” pelo que “não poderiam ou deveriam cada um dos intervenientes no seu processo ter atuado de forma diversa.”

5.

Por esse motivo determinou o arquivamento do presente inquérito nesta parte.

6.

Ora, o assistente não pode concordar com o arquivamento proferido, entendendo que não foram realizadas todas as diligências necessárias para a conclusão supra, sendo que, smo, existem nos autos elementos suficientes para que seja deduzida acusação contra o arguido.

Senão vejamos,

7.

O assistente quando apresentou queixa requereu que fosse notificado o Centro Hospitalar … para identificação dos elementos da equipa médica que realizaram a cirurgia de 16.01.2018, e consequentemente, a sua audição.

8.

Em momento algum os intervenientes da equipa médica que assistiu o assistente no dia 16.01.2018 foi notificada ou inquirida.

9.

Aliás, os únicos elementos que existem no processo dessa identificação é o email junto pelo Centro Hospitalar com a listagem dos profissionais (fls. 206 e 207).

10.

Contudo, resulta do relatório da instituição (fls. 22 e seguintes) que interagiram nos procedimentos realizados naquele dia o Dr. CC (cirurgia), Dra DD (cirurgia), Dr. EE (cirurgia), Dr. FF (Medicina Geral e Familiar), sendo que nenhum foi sequer inquirido em fase de instrução por forma a esclarecer os procedimentos que foram optados.

11.

Tal como não foram inquiridos os elementos da equipa do arguido identificados a fls. 60.

12.

Sendo que, tendo o assistente sido notificado para apresentar quesitos a serem realizados para a realização da perícia a apresentar ao Conselho Medico Legal do INMLCF (refª 129597086) em 29 de setembro de 2023, o mesmo veio aos autos em 09.10.2023, indicar como sendo pertinentes as seguintes questões:

1. Os procedimentos e terapêuticas utilizados desde a entrada do Ofendido na Unidade Hospitalar, pré e pós-operatório, foram as adequadas à situação em causa?

2. Um médico colocado na mesma situação e com os mesmos conhecimentos tinha o dever de agir de outra forma no pré e pós-operatório?

3. Os exames complementares de diagnostico foram requeridos e tiveram resposta atempada?

4. Existindo falhas no procedimento e/ ou terapêuticas, o que deveria ter sido adotado e não foi?

5. De acordo com a informação que dispunham, o quadro clinico e a sintomatologia apresentada pelo doente, poderiam ou deveriam, os intervenientes no processo clinico ter atuado de forma diferente?

6. Em caso afirmativo: qual interveniente e qual o comportamento que deveria ter sido adotado.

7. Qual a probabilidade do procedimento de telescopia, quando executado de acordo com a legis artis perfurar a membrana intraabdominal que protege o intestino e as partes internas da barriga.

8. De acordo com as TACs e ecografias realizados em momento anterior à telescopia havia necessidade de o assistente ter sido submetido a uma intervenção cirúrgica daquela natureza?

9. De acordo, e apenas com a leitura dos referidos exames, releva-se a existência de algum problema que levasse à necessidade de intervenção cirúrgica para sua resolução?

10. Pode-se concluir que a infeção por uma bactéria hospitalar que o Assistente apanhou em sede de internamento pós-operatório se deveu ao facto de a cirurgia ter sido realizada de forma não higiénica?

11. O procedimento de alta dada ao Assistente sem que a infeção bactéria estivesse debelada, padecendo de dor, é um procedimento habitual?

12. Em caso negativo: qual o procedimento correto?

13. Da cirurgia realizada era expectável melhorias na qualidade de vida do Assistente, quer níveis de dores, inchaço e funcionamento intestinal?

14. Atendendo ao procedimento tomado existe alguma razão plausível para os sintomas piorarem?

15. Era espectável que da cirurgia realizada, com um corte de 30 cms acima do umbigo, o Assistente ficasse com uma cicatriz em forma de “S” e o seu umbigo completamente desfeito?

16. As dores que o Assistente padeceu depois da cirurgia inicial eram expectáveis ao nível de impedirem o Assistente de retornar a sua rotina familiar e social?

17. Os sintomas após a intervenção, nomeadamente dores na zona abdominal, acompanhado de náuseas e vómitos constantes, perda de apetite e um mal-estar físico geral eram expectáveis para o tipo de cirurgia realizada?

18. Verifica-se algum nexo de causalidade entre a cirurgia a que o Assistente foi submetido e o facto de a partir dessa data ter ficado impedido de retomar a sua vida com normalidade, nomeadamente a rotina desportista – atendendo a que praticava artes marciais, corrida, natação, musculação, entre outras modalidades que sempre praticou – e por consequência ter perdido muita da sua massa muscular?

19. Era expectável que da cirurgia a que o Assistente foi submetido ficasse a aparentar uma deformidade da parede abdominal e a queixar-se de desconforto abdominal permanente que se agrava quando ingere qualquer tipo de alimentos, ou faz qualquer tipo de movimentos?

20. Caso tivessem sido colocadas próteses, nomeadamente tela, no ato cirúrgico e na zona da cicatriz, tal poderia ter permitido que os músculos abdominais não se separassem, permitindo ao Assistente fazer esforços moderados no seu dia-a-dia?

21. O afastamento dos músculos retos abdominais, atingindo a manobra de valsalva, poderão ser considerados indícios de herniação da parede abdominal, adjacente à cicatriz cirúrgica?

22. Era expectável que o Assistente ficasse com um afastamento dos músculos retos abdominais, desde a região epigástrica até abaixo das cristas ilíacas, com parcial preenchimento do espaço entre os retos abdominais por conteúdo epiplocio e ansas, coexistindo inclusive ao nível da cicatriz umbilical uma assimetria dos planos musculares, com ligeira irregularidade do lado direito?

23. O facto de não ter sido foi colocada a prótese necessária na cirurgia inicial fez com que o Assistente corresse algum perigo de vida, nomeadamente por a zona onde foi efetuado o corte ter podido abrir a qualquer momento, uma vez que os músculos da barriga ficaram fracos?

24. O surgimento de uma hérnia pode ser considerado como consequência da cirurgia inicial, existindo o perigo de levar a que os intestinos serem estrangulados em qualquer momento?

13.

Ora, o requerimento apresentado pelo assistente não consta dos autos tal como não consta do parecer junto a fl. 224 qualquer resposta às questões indicadas pelo assistente, referindo o mesmo apenas e somente “Quesitos formulados pelo Ministério Público”.

14.

Por que motivo se desvalorizou os quesitos apresentados pelo assistente?

15.

Por que motivo foi desconsiderada a prova requerida pelo assistente?

16.

Por que motivo não foram inquiridos os restantes intervenientes do processo clínico do assistente?

17.

O assistente pretende com a presente instrução que sejam realizados os atos requeridos, entre eles a resposta aos quesitos apresentados em 09.10.2023 por considerar que tais são fundamentais para a comprovação judicial relativamente aos por si denunciados crimes de Ofensas à integridade física por negligencia, p. e p. no art. 148º n. 1 do Código Penal e crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo n. 2 do art. 150º do Código Penal, nos termos e moldes melhor descritos a fls. 3 a 18.

18.

Dúvidas não há que o assistente ficou com os danos exteriores indicados a fls. 79 a 85 e danos interiores indicados nos relatórios da instituição juntos aos autos, tal como dúvidas não há que a herniação da parede abdominal adjacente à cicatriz cirúrgica adveio da(s) cirurgia(s), tal como a omissão de umbigo no corpo do assistente.

19.

O assistente após cirurgia continuou a sentir dores abdominais, náuseas, dores no peito, cfr. relatado nos autos da instituição a fls. 60.

20.

A versão do assistente é corroborada pelos relatórios médicos junto aos autos, sendo o aí apresentado, compatível com os danos que reportou, sendo a resposta aos quesitos indicados pelo Assistente fundamentais para a constatação dos (maus) procedimentos que ocorreram no corpo do assistente.

Termos em que, se requer de Vª. Exa., se digne ordenar a abertura de instrução e no decurso desta se realizem os seguintes atos de instrução:

1) Sejam respondidos os quesitos apresentados pelo Assistente:

2) Os procedimentos e terapêuticas utilizados desde a entrada do Ofendido na Unidade Hospitalar, pré e pós-operatório, foram as adequadas à situação em causa?

3) Um médico colocado na mesma situação e com os mesmos conhecimentos tinha o dever de agir de outra forma no pré e pós-operatório?

4) Os exames complementares de diagnostico foram requeridos e tiveram resposta atempada?

5) Existindo falhas no procedimento e/ ou terapêuticas, o que deveria ter sido adotado e não foi?

6) De acordo com a informação que dispunham, o quadro clinico e a sintomatologia apresentada pelo doente, poderiam ou deveriam, os intervenientes no processo clinico ter atuado de forma diferente?

7) Em caso afirmativo: qual interveniente e qual o comportamento que deveria ter sido adotado.

8) Qual a probabilidade do procedimento de telescopia, quando executado de acordo com a legis artis perfurar a membrana intraabdominal que protege o intestino e as partes internas da barriga.

9) De acordo com as TACs e ecografias realizados em momento anterior à telescopia havia necessidade de o assistente ter sido submetido a uma intervenção cirúrgica daquela natureza?

10) De acordo, e apenas com a leitura dos referidos exames, releva-se a existência de algum problema que levasse à necessidade de intervenção cirúrgica para sua resolução?

11) Pode-se concluir que a infeção por uma bactéria hospitalar que o Assistente apanhou em sede de internamento pós-operatório se deveu ao facto de a cirurgia ter sido realizada de forma não higiénica?

12) O procedimento de alta dada ao Assistente sem que a infeção bactéria estivesse debelada, padecendo de dor, é um procedimento habitual?

13) Em caso negativo: qual o procedimento correto?

14) Da cirurgia realizada era expectável melhorias na qualidade de vida do Assistente, quer níveis de dores, inchaço e funcionamento intestinal?

15) Atendendo ao procedimento tomado existe alguma razão plausível para os sintomas piorarem?

16) Era espectável que da cirurgia realizada, com um corte de 30 cms acima do umbigo, o Assistente ficasse com uma cicatriz em forma de “S” e o seu umbigo completamente desfeito?

17) As dores que o Assistente padeceu depois da cirurgia inicial eram expectáveis ao nível de impedirem o Assistente de retornar a sua rotina familiar e social?

18) Os sintomas após a intervenção, nomeadamente dores na zona abdominal, acompanhado de náuseas e vómitos constantes, perda de apetite e um mal-estar físico geral eram expectáveis para o tipo de cirurgia realizada?

19) Verifica-se algum nexo de causalidade entre a cirurgia a que o Assistente foi submetido e o facto de a partir dessa data ter ficado impedido de retomar a sua vida com normalidade, nomeadamente a rotina desportista – atendendo a que praticava artes marciais, corrida, natação, musculação, entre outras modalidades que sempre praticou – e por consequência ter perdido muita da sua massa muscular?

20) Era expectável que da cirurgia a que o Assistente foi submetido ficasse a aparentar uma deformidade da parede abdominal e a queixar-se de desconforto abdominal permanente que se agrava quando ingere qualquer tipo de alimentos, ou faz qualquer tipo de movimentos?

21) Caso tivessem sido colocadas próteses, nomeadamente tela, no ato cirúrgico e na zona da cicatriz, tal poderia ter permitido que os músculos abdominais não se separassem, permitindo ao Assistente fazer esforços moderados no seu dia-a-dia?

22) O afastamento dos músculos retos abdominais, atingindo a manobra de valsalva, poderão ser considerados indícios de herniação da parede abdominal, adjacente à cicatriz cirúrgica?

23) Era expectável que o Assistente ficasse com um afastamento dos músculos retos abdominais, desde a região epigástrica até abaixo das cristas ilíacas, com parcial preenchimento do espaço entre os retos abdominais por conteúdo epiplocio e ansas, coexistindo inclusive ao nível da cicatriz umbilical uma assimetria dos planos musculares, com ligeira irregularidade do lado direito?

24) O facto de não ter sido foi colocada a prótese necessária na cirurgia inicial fez com que o Assistente corresse algum perigo de vida, nomeadamente por a zona onde foi efetuado o corte ter podido abrir a qualquer momento, uma vez que os músculos da barriga ficaram fracos?

25) O surgimento de uma hérnia pode ser considerado como consequência da cirurgia inicial, existindo o perigo de levar a que os intestinos serem estrangulados em qualquer momento?

Mais se requer que finda a instrução se digne V.ª Ex.ª, ordenar o respetivo despacho de pronúncia do arguido BB, pela prática de um crime Ofensas à integridade física por negligencia, p. e p. no art. 148º n. 1 do Código Penal ou um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, p. e p. pelo n. 2 do art. 150º do Código Penal.

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Actos Instrutórios:

Para prova da matéria de facto vertida na denúncia apresentada pelo Assistente, requer-se, muito respeitosamente, a V. Exa. se digne a oficiar Conselho Medico Legal do INMLCF para que responda aos quesitos apresentados pelo Assistente.

Que seja oficiado o Centro Hospitalar … para identificação dos elementos da equipa médica que realizaram a cirurgia de 16.01.2018, e consequentemente, a sua audição.

Mais requer a V. Exa. que sejam tomadas declarações ao assistente AA a fim de esclarecer detalhadamente os danos advindos da cirurgia da equipa do Dr. BB e os procedimentos tomados em pré- e pós-operatório, bem como os subsequentes internamentos e sua relação com os danos causados pelo arguido”

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O despacho de arquivamento prévio ao r.a.i. é do seguinte teor:

“Os presentes autos iniciaram-se com a queixa apresentada por AA, na qual relata, em síntese, a ocorrência dos seguintes factos:

- No dia 15 de Janeiro de 2018, o assistente apresentava dores agudas, com o abdómen muito inchado, tendo-se dirigido às urgências do Centro Hospitalar do …, sito em ….

- Em virtude de os serviços hospitalares entenderem que não havia necessidade de internamento, mandaram-no para o seu domicílio na manhã do dia seguinte.

- Como não apresentou melhorias, regressou ao referido Hospital ainda nesse dia, tendo o médico que o atendeu decidido efectuar uma “telescopia”, o que perfurou a membrana intra-abdominal que protege o intestino das partes internas;

- Foi internado no Serviço de Urgência do referido Hospital, com o diagnóstico de abdómen agudo, tendo sido submetido nesse dia a uma cirurgia por via laparoscópica, a cargo do arguido Dr. BB.

- Porém, segundo as TACs e as ecografias que foram realizadas em momento anterior à “telescopia”, não havia necessidade de o assistente ter sido submetido a uma intervenção cirúrgica daquela natureza;

- Pelo contrário, em vez de ter realizado aquela cirurgia, o arguido deveria ter encetado esforços no sentido de remoção do ar acumulado na barriga, o que poderia ter sido feito por outro tipo de intervenção mais simples.

- A necessidade cirúrgica deveu-se ao facto de ter sido realizada a “telescopia” numa tentativa de encontrar o problema que estava na origem dos sintomas apresentados pelo assistente, ter sido rompida a membrana intra-abdominal;

- Em consequência, viu-se o arguido forçado à realização daquela cirurgia para correção do erro inicial;

- O assistente ficou internado após a cirurgia, sendo que, durante o internamento foi infectado por uma bactéria hospitalar, o que apenas permite concluir que a cirurgia foi realizada de forma não higiénica;

- Foi dada alta ao assistente sem que a infecção bacteriana estivesse debelada, padecendo de dor abdominal;

- Em consequência, após a alta Hospitalar, o assistente teve necessidade de recorrer todos os dias ao Centro de Saúde de … para fazer o penso, uma vez que a quantidade de pus que saía da sutura era muito elevada;

- A sutura apenas fechou no dia 26 de Fevereiro de 2018, deixando então de produzir pus;

- Depois da cirurgia, o assistente, ao contrário do expectável, não obteve melhorias na sua qualidade de vida, nem tão pouco os níveis de dores, inchaço e funcionamento intestinal melhoraram, pelo contrário pioraram drasticamente;

- Ao realizar a cirurgia, foi feito um corte de 30 cms acima do umbigo, e também este não foi bem feito, sendo que o assistente veio a apresentar uma cicatriz em forma de “S” e o seu umbigo ficou completamente desfeito;

- Perante as dores agonizantes que padeceu após a cirurgia inicial, não mais o assistente conseguiu retomar a sua rotina familiar e social e não mais pôde retomar a sua vida com normalidade;

- Desde então o assistente passou a recorrer quase diariamente ao Serviço de urgência, por forma a amenizar as dores e o mal estar constante, resultantes dos actos médicos praticados pelo arguido em clara violação das legis artis;

- Apesar de tudo isso o arguido sempre desconsiderou as queixas apresentadas pelo assistente;

- O assistente teve conhecimento que, apesar da extensão do corte da parede abdominal a que foi submetido, não foram colocadas quaisquer próteses, nomeadamente tela, para permitir que os músculos abdominais não se separassem, permitindo ao assistente fazer esforços moderados no seu dia-a-dia.

- Em 31 de Março de 2018, o assistente foi internado de urgência no Centro Hospitalar …, por apresentar dor torácica, náuseas ansiedade e dor abdominal.

- Porque não melhorou, em 15 de Maio de 2018, o assistente fez uma ecografia às partes moles da parede abdominal, em 4 de Junho de 2018, tendo sido detectado “ um afastamento dos músculos retos abdominais, desde a região epigástrica até abaixo das cristas ilíacas, com parcial preenchimento do espaço entre os retos abdominais por conteúdo epiplocio e ansas, coexistindo inclusive ao nível da cicatriz umbilical uma assimetria dos planos musculares, com ligeira irregularidade do lado direito, achado este difícil compreensão e provavelmente relacionado ao próprio historial cirúrgico do paciente”

- Perante tais resultados a médica de família do assistente, em 19 de Junho de 2018, remeteu um pedido de cirurgia ao Hospital de …, por “volumosa e extensa hérnia da parede abdominal com gorgolejo jacente a cicatriz cirúrgica efectuada em 16/01/2018”

- Apesar de ter sido indicado para cirurgia urgente, o assistente manteve-se nessa situação durante um ano se sete meses;

- Após vicissitudes várias, a segunda cirurgia foi realizada em 10/07/2019, já por outra equipa médica, sendo que, a partir de tal momento a saúde do assistente começou a apresentar ligeiras melhorias

- A laparoscopia realizada inicialmente não foi autorizada pelo assistente, a telescopia foi mal realizada, o que gerou a necessidade da cirurgia inicial;

- Por sua vez a cirurgia realizada pelo arguido também não foi realizada correctamente, violando as legis artis, tendo obrigado a uma segunda cirurgia;

- No tempo que mediou entre a primeira e segunda cirurgia, não obstante as várias vezes que se deslocou ao hospital as várias reclamações que apresentou, nunca recebeu qualquer resposta, pelo que se viu totalmente abandonado, tendo, inclusive o arguido cancelado as consultas que tinha com ele agendadas, ignorando por completo os seus sintomas de dor e doença;

- Todo o comportamento do arguido quanto à saúde e intervenções (mal) realizadas no corpo do assistente demonstram clara violação das legis artis, criando desse modo um perigo de grave ofensa para a saúde e mesmo para a vida, bem como danos efectivos no corpo e na saúde do mesmo;

- O arguido estava obrigado a acompanhar o assistente no pós-operatório, prestando-lhe todos os cuidados que o seu estado o exigisse, o que não se verificou;

- Assim, o arguido poderia e deveria ter agido de forma diferente

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Os factos supra descritos poderão, em abstracto, ser susceptíveis de integrar a prática de um crime p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal ou de um crime p. e p. pelo 150.º, n.º 2, do Código Penal.

Para que possa ser imputada a alguém a prática de um crime, tem de poder afirmar-se que o facto praticado pelo agente preenche simultaneamente um tipo-de-ilícito, um tipo-de-culpa e é punível (Sobre a doutrina geral do crime, ver, por todos, nos autores portugueses, Figueiredo Dias e Costa Andrade, Direito Penal, Questões Fundamentais; A doutrina Geral do Crime, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1996).

O tipo-de-ilícito traduz-se no “específico sentido de desvalor jurídico-penal que atinge um concreto comportamento humano numa concreta situação” (Figueiredo Dias e Costa Andrade, obra citada, p. 262).

São elementos subjectivos do tipo-de-ilícito nos crimes negligentes o facto de o agente querer agir de certa forma (elemento positivo), sem que quisesse, no entanto, cometer o facto punível, pressupondo a previsibilidade do preenchimento do tipo (elemento negativo) - neste sentido, Santiago Mir Puig, in Derecho Penal, parte general, PPU, p. 230.

São elementos objectivos do tipo-de-ilícito dos crimes negligentes a violação de um dever objectivo de cuidado e a produção do resultado típico (nos crimes de resultado), surgindo o resultado como consequência da criação ou potenciação pelo agente de um risco proibido de ocorrência do resultado.

Na negligência consciente o agente representa o resultado danoso como possível, mas actua sem se conformar com a sua realização. Na negligência inconsciente o agente não representa sequer as possíveis consequências da sua conduta (assim, Eugenio Cuello Calón, Derecho Penal, tomo I, Parte General, volumen primero, 18ª Ediciòn, Barcelona, p. 470).

O dever objectivo de cuidado constitui um imperativo social, condição da vida em sociedade, o qual é objectivado em regras de conduta.

O desrespeito e violação dos deveres e regras de conduta estabelecidas, constitui indício de violação do dever de cuidado (assim, Paulo Ribeiro de Faria, no Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 261).

A medida do dever de cuidado exigível é a necessária para evitar a ocorrência do resultado típico.

No entanto, se a medida do cuidado e a possibilidade de prever o resultado lesivo devem ser avaliadas por um critério objectivo, este terá sempre de ser corrigido por um critério subjectivo, que tenha em consideração as características pessoais (personalidade e aptidões) de cada agente em concreto.

O resultado tem de constituir um facto subsumível a um tipo legal de crime, e tem de ser imputável, segundo as regras da imputação do resultado à conduta (teoria da causalidade adequada ou da adequação), à violação do dever de cuidado pelo agente.

É ainda necessário que a actuação do agente seja culposa, ou que preencha um tipo-de-culpa. A culpa, em sentido jurídico-penal, é o ter que responder pela personalidade que fundamenta um facto ilícito-típico (Neste sentido, Figueiredo Dias, sumários de Direito Penal).

A culpa negligente consiste numa atitude pessoal descuidada ou leviana face à violação do bem jurídico protegido, quando o agente tinha capacidade e lhe era exigível que tivesse um comportamento conforme à Ordem Jurídica (Figueiredo Dias e Costa Andrade, Direito Penal, Questões Fundamentais; A doutrina Geral do Crime, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1996).

Não existem diferentes graus de culpa consoante o agente preveja ou não a possibilidade da ocorrência do resultado, pois também na negligência inconsciente existe uma deficiente atitude interna que se traduz na falta de atenção devida e possível para evitar a lesão do bem jurídico.

No caso dos actos médicos, a responsabilidade médica supõe culpa por não ter sido usado o instrumental de conhecimentos e o esforço técnico que se pode esperar de qualquer médico numa certa época e lugar.

Porém no que concerne ao ilícito tipificado no artigo 150.º, n.º2, d C. Penal, trata-se de um crime doloso (conhecimento e vontade de realização do tipo), devendo o dolo revestir qualquer uma das suas modalidades.

Ou seja, para que se mostre preenchido este tipo de crime, o médico terá de, pelo menos, admitir como possível que o tratamento ou a intervenção por si voluntariamente realizado poderá violar as legis artis e bem assim que dessa violação poderá resultar perigo para a saúde ou para a vida do paciente, conformando-se com essas possibilidades. Na verdade, o dolo terá de abranger todos os elementos do tipo objectivo.

Aqui chegados impõe-se analisar os elementos probatórios recolhidos e averiguar se os mesmos são suficientes para se poder afirmar, indiciariamente, o cometimento por parte do arguido de algum dos crimes supra apontados (ou de qualquer outro).

Em face da denúncia, solicitamos ao Centro Hospitalar … e ao Centro de Saúde de …, o envio de todos os registos clínicos referentes à assistência médica prestada ao assistente.

Foi inquirido o assistente que confirmou o teor da queixa.

Por sua vez, o arguido, no seu interrogatório, nada acrescentou, remetendo para os esclarecimentos para os elementos enviados pelo CH….

Em face da prova recolhida, com vista a averiguar se a eventual violação das legis artis por parte do arguido, ou de qualquer outro interveniente no processo clínico do assistente, solicitámos ao Conselho Médico-Legal uma consulta técnico-científica, enviando todo o historial clínico do assistente.

Em resposta, o Conselho Superior de Medicina Legal informou, para além do mais, que a realização quer da primeira, quer da segunda cirurgias não resultaram de um comportamento (ou de um erro) médico anterior inadequado.

Mais consta do referido parecer que a hérnia da parede abdominal desenvolvida pelo assistente, não resultou da realização da primeira cirurgia.

Acrescenta o parecer citado que, tendo em conta a informação de que dispunham, o quadro clínico e a sintomatologia apresentada pelo assistente, não poderiam ou deveriam cada um dos intervenientes no seu processo clínico ter actuado de forma diversa.

Em suma, concluiu o Conselho Médico-Legal que, “…não existiu violação das legis artis no tratamento de AA”.

Aqui chegados e em face dos elementos clínicos juntos autos e, fundamentalmente, da consulta técnico-científica, somos forçados a concluir que os indícios recolhidos não são suficientes para que seja deduzida acusação pela prática dos crimes em apreço (ou de qualquer outro).

Na verdade, de acordo com o parecer técnico-científico junto aos autos, toda a assistência médica prestada ao assistente em momento algum violou as legis artis , logo, impossível se torna concluir pela verificação de qualquer um dos crimes citados, uma vez que radica naquela violação um dos seus elementos fundamentais.

Pelo exposto, e tendo em conta que “.... toda a valoração – preliminar ou subsequente – que o magistrado do Ministério Público faz do objecto material do processo e que determina a sua conduta, quer na fase de inquérito quer na fase de julgamento, obedece rigorosamente aos mesmos princípios exigidos para a função jurisdicional do Juiz” (António Cluny, Pensar o Ministério público Hoje, pág. 66) e não se vislumbrando a realização de quaisquer outras diligências úteis, ao abrigo do disposto, no art. 277.º n.º 2 do CPP, determino o arquivamento dos presentes autos.”

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Tem sido uniformemente afirmado pela jurisprudência que quando o r.a.i. é apresentado pelo assistente, o mesmo deve conter todos os elementos de uma acusação, descrevendo de forma completa os factos da vida real imputados ao arguido e os factos que constituem o elemento subjectivo do crime respectivo.

É isso mesmo que resulta da remissão para a al. b) do nº 3 do artº 283º do C.P.P., feita na última parte do nº 2 do artº 287º do mesmo Código.

Nos termos daquela al. b), o r.a.i. deve conter “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neste teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.

Um r.a.i. bem estruturado, e em obediência a todo o nº 2 do artº 287º do C.P.P., deve (em casos como o destes autos) conter uma primeira parte com as razões relativas à discordância quanto ao arquivamento, com os actos de instrução que se pretendem levar a cabo, com os meios de prova e com a indicação dos factos que com eles se pretendem provar; e uma segunda parte com uma verdadeira acusação que servirá de vinculação temática para o tribunal e será indispensável para o exercício de verdadeiro contraditório por parte do arguido. (a este propósito, entre muitos outros, ac. da rel. de Lisboa de 4/6/2013).

A não exigência de formalidades especiais prevista logo no início do nº 2 do artº 287º do C.P.P., nada tem que ver com a necessidade da alegação de todos os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, sejam eles integradores do elemento objectivo, sejam do elemento subjectivo, do tipo de crime em causa, sendo certo que a verificação destes últimos também é condição de aplicação de uma pena.

A relevância de uma clara narração dos factos é também evidente face ao que dispõe o artº 309º, nº 1, do C.P.P., o qual dispõe que a decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos (…) no requerimento para abertura da instrução.

Quanto ao elemento subjectivo, não é necessário que se utilizem as palavras “habituais”, mas com essas ou outras com o mesmo significado, têm que ser alegados os factos que consubstanciam tal elemento, sabendo-se que não deve haver “presunções de dolo”.

Como refere o Prof. Figueiredo Dias “… a ideia de um “dolus in re ipsa”, que sem mais resultaria da simples materialidade da infracção é hoje indefensável no direito penal. A moderna tendência para a personalização do direito penal não se compadece com uma estrita indagação da culpa dentro dos férreos moldes das antigas presunções de dolo” – [cf. R.L.J., 105, pág. 142].

Se o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente, após abstenção do MºPº em deduzir acusação, não é legalmente apelidado de acusação, substancialmente é isso que ele deve ser e daí a remissão do artº 287º, nº 2, para o artº 283º, nº 3, als. b) e c), ambos do C.P.P. (neste sentido: Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 167).

É que a não ser assim, teria que ser o juiz de instrução a substituir-se ao assistente, na pesquisa dos factos potencialmente criminosos, o que seria clara violação do princípio do acusatório, constitucional e legalmente previsto. O juiz de instrução investiga autonomamente os factos (artºs 289º e 291º, nº 1, do C.P.P.), mas sempre dentro dos limites definidos no requerimento de abertura de instrução.

“Uma instrução concebida como suplemento investigatório seria absolutamente incongruente com a repartição de funções entre a magistratura do Ministério Público e a magistratura judicial que constituiu a pedra de toque do modelo processual no Código de 1987 e do mesmo passo constituiria um desvio incompreensível à dimensão material da estrutura acusatória de que o mesmo reveste, em observância do preceituado no nº 5 do artº 32º da Constituição” - Nuno Brandão, A Reforma do Direito Processual Penal Português em Perspetival Teórico-prática, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, pág. 229 e 230.

Como referem Vital Moreira e Gomes Canotilho, C.R.P.Anot., 4ª edição, vol. I, pág. 522, “a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulação orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também órgão de acusação.”

A “acusação” que o requerimento para abertura da instrução deve conter tem que ser auto-suficiente, não sendo admissível (tal como não é para a acusação formulada pelo MºPº) a remissão, ou qualquer outra forma de referência, feita para outra peça processual ou para documentos. Estes servem para provar os factos que se alegam e não para suprir a obrigação de os alegar. E é preciso distinguir bem os factos das provas que os sustentam.

A reforma operada ao C.P.P. pela L. 48/07 de 29/8, em nada alterou qualquer dos preceitos legais pertinentes, designadamente o nº 2 do artº 287º do C.P.P..

Por último, refira-se que o T.C. já rejeitou a inconstitucionalidade do nº 2 do artº 287º, quando exige, sob pena de rejeição, que o requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente, contenha os elementos referidos no artº 283º, nº3, als. b) e c), ambos do C.P.P. (Ac. do T.C. nº 358/04, D.R. IIª série de 28/6/04).

Ora, se há casos em que pode ser duvidoso se o r.a.i. contém todos os factos necessários para ser possível declarar aberta a instrução, designadamente no que diz respeito ao elemento subjectivo, no caso em apreço não há qualquer dúvida de que o r.a.i. não contém quaisquer factos, sejam eles relativos ao elemento objectivo, sejam eles relativos os elementos subjectivo, seja de que crime for.

O r.a.i. limita-se a tecer considerações acerca das diligências de prova que deveriam ter sido levadas a cabo no inquérito e não foram. Nada mais.

É completamente omisso quanto à acima referida segunda parte que todos os r.a.i. devem conter: a imputação de factos, objectiva e subjectivamente falando, como se de uma verdadeira acusação se tratasse, de modo a que se fixasse o objecto do processo e se possibilitasse o cabal exercício do direito de defesa.

Nada, absolutamente nada, consta no r.a.i., pretendendo o recorrente apenas a “continuação” do inquérito com diligências de prova que em seu entender deveriam ter sido efectuadas, transformando, assim, o j.i.c. em entidade investigatória e, a final, “acusatória”, violando os acima referidos princípios.

Trata-se, pois, de uma instrução sem verdadeiro objecto, o que consubstancia uma inadmissibilidade legal da realização da mesma.

É, pois, manifesto que o presente recurso não pode proceder, sendo certo que nos termos do Ac. de Fixação de Jurisprudência nº 7/05, D.R. de 4/11/05, “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artº 287º, nº 2, do C.P.P., quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso improcedente.

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Deverá o recorrente suportar o pagamento de 4 UCs de taxa de justiça (artº 515º, nº 1, al. b), do C.P.P.).

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Évora, 11 de Julho de 2024

Nuno Garcia

Laura Goulart Maurício

Anabela Simões Cardoso