A indemnização em processo penal deve ser sempre fundamentada na prática de um crime, nos termos das disposições conjugadas do artigo 129.º do Cód. Penal e artigos 71.º e seguintes do Cód. de Processo Penal.
Porém, a absolvição penal não acarreta necessariamente a improcedência do pedido de indemnização civil, contanto que fundado em responsabilidade extracontratual por facto ilícito ou pelo risco, tal como deriva do artigo 377.º, n.º 1, do Cód. de Processo Penal.
Cumpre, pois, conhecer se existe ilícito civil e, na afirmativa, se os arguidos devem ser condenados na indemnização civil reclamada pela assistente e demandante, cujos pressupostos de atribuição e fixação do respetivo quantitativo obedecem aos comandos normativos da lei civil (cfr. art. 483.º do Cód. Civil).
São pressupostos da responsabilidade extracontratual os seguintes: (i) a prática de um facto voluntário controlável pela vontade humana, seja sob a forma de ação ou omissão; (ii) a ilicitude desse facto; (iii) o nexo de imputação subjetiva do facto ao lesante sob a forma de culpa; (iv) a existência de danos e (v) a existência de nexo causal entre o facto praticado pelo lesante e os danos, em termos de causalidade adequada.
Perpassando da factualidade provada o cometimento de um furto, mas não a autoria da prática do facto pelos arguidos, fica, assim, patente a não verificação do primeiro e fundamental pressuposto da responsabilidade civil aquiliana: a prática de um facto ilícito pelo agente.
Termos em que, há que concluir pela improcedência do pedido de indemnização civil e pela consequente absolvição dos arguidos.
- São aplicáveis às custas cíveis as regras do Cód. de Processo Civil (cfr. art. 523.º do Cód. de Processo Penal).
A responsabilidade pelo pagamento das custas recai sobre a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, sobre a parte que do processo tirou proveito, entendendo-se que dá causa às custas do processo a parte que tenha ficado vencida a final (cfr. art. 527.º, n.º 1 e 2, do Cód. de Processo Civil).
Face ao total decaimento da pretensão da demandante civil (também assistente), devem as custas do pedido de indemnização civil ficar a cargo da assistente.
1. Nos presentes autos com o nº 176/17.8GBPSR, do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo de Competência Genérica de …, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, por sentença de 12/03/2024, foi decidido:
- Absolver os arguidos AA e BB da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º e 204º, nº 2, alínea a), com referência ao artigo 202º, alínea b), do Código Penal, de que se encontravam acusados.
- Absolver os arguidos/demandados AA e BB do pedido de indemnização civil contra eles deduzido por “CC”.
- Condenar a demandante “CC” no pagamento das custas relativas ao pedido de indemnização civil formulado, cuja valor foi fixado em 18.570,79 euros.
- Determinar a entrega pela assistente “CC”, nomeada fiel depositária do lote de 4.460Kgs de cortiça, já objecto de transformação por aquela, da quantia de 7.433,25 euros à sociedade “DD”.
2. A assistente/demandante civil “CC”, não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1. O presente recurso tem como objeto a sentença proferida nos presentes autos, depositada a 12.03.2024, na parte em que esta decidiu absolver os Arguidos AA e BB do pedido de indemnização cível contra eles deduzido, no valor de €18.570,79; condenar a Assistente/Demandante Civil no pagamento das custas pelo pedido de indemnização cível; e determinar a entrega pela Assistente, nomeada fiel depositária, da quantia de €7.433,25 à sociedade DD, no âmbito da apreensão do lote de 4460Kgs e sua ulterior transformação;
2. A douta sentença de que ora se recorre conclui que ocorreu um furto aquando da exploração da Herdade … pela Assistente.
3. Quanto à legítima aquisição (ou seja, propriedade ou posse) da cortiça, a douta decisão de que ora se recorre refere “(…) não ser crível que perante a desconfiança de que estava a ser alvo [o Arguido BB] não tivesse procurado obter prontamente tais faturas e/ou contactado qualquer um dos vendedores (…)” (sic).
4. Sendo a responsabilidade civil emergente de crime, analisada a propósito do processo penal, em adesão, regulada nos termos da lei civil, há que ter em conta o regime do artigo 483.º do CC.
5. Tal artigo enumera os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, a que a douta sentença também faz referência: facto voluntário; ilicitude; culpa; dano; e nexo causal entre facto e dano.
6. No caso concreto, há que ter em conta que o quadro dado como provado na douta sentença é que o arguido BB deteve cortiça, cuja licitude de proveniência não provou, nem diligenciou assegurar-se de tal.
7. Tal detenção configura, pelo menos, um ilícito negligente, tendo em conta que o Arguido BB deveria ter agido diligentemente na verificação da propriedade da cortiça.
8. Tratando-se de alguém que trabalha com cortiça diariamente, não parece legítimo que não reconhecesse a qualidade superior e diferenciada das pranchas que adquirira.
9. Aliás, o Arguido BB não procurou informar-se sobre a origem dos lotes de cortiça junto dos respetivos vendedores, nem após o início do procedimento criminal.
10. A causa de pedir do pedido de indemnização civil filia-se na desapropriação de bens da Assistente, por furto, ato ilícito que se deu como provado.
11. Provado que está que os lotes de cortiça de 8340Kgs e 1960Kgs eram, inequivocamente, propriedade da Assistente, que da sua disponibilidade ficou privada, por ato que está causalmente ligado ao facto ilícito de furto e a subsequente detenção negligente dos bens pelo Arguido BB e dando-se também como provado que a apreensão desses lotes de cortiça importou uma perda de rentabilidade avaliada em €10.556,09, sendo a cortiça um bem perecível, haveria, pois, que decretar a procedência do pedido de indemnização cível, ainda que apenas no valor de €10.556,09, solidariamente suportado pelos dois Arguidos sob pena de erro na interpretação e aplicação dos artigos 129.º do CP e 483.º, 562.º, 563.º e 564.º do CC.
12. Por outro lado, nenhuma prova há de que o lote de 4460Kgs de que a Assistente foi constituída fiel depositária, fosse propriedade da DD.
13. O levantamento da apreensão, e consequente restituição imediata, de tal lote à Assistente foi determinado por despacho (com a referência n.º …, de 17.06.2021), e como nele se realça, mesmo tendo sido notificados sobre essa restituição à Assistente, nenhum dos Arguidos se opôs a tal restituição, fosse como proprietário, possuidor ou usufrutuário.
14. A apreensão, enquanto garantia processual da perda de vantagens tem em vista a finalidade processual penal de realização de justiça: assim foi que a Assistente requereu o levantamento da apreensão e consequente restituição da cortiça alegando que se tratava de um material perecível, de fácil depreciação, e que a prova relativamente à mesma já tinha sido assegurada, devendo a mesma ser restituída “a quem de direito” (cfr. artigo 186.º n.º 1 do CPP).
15. Consagrando a lei que as coisas apreendidas devem ser restituídas “a quem de direito” (artigo 186.º n.º 1 do CPP), fica por perceber como se concluiu que a sociedade DD tinha direito a tal cortiça.
16. Conseguiu tal sociedade comprovar a sua propriedade ou posse de boa fé da cortiça, considerando as dúvidas que perpassem na douta sentença, que afirmou não ser crível que, perante o processo-crime, o Arguido não tivesse procurado obter faturas ou contactado quem lhe vendeu a cortiça, e tendo em conta a não oposição aquando do requerimento para levantamento da apreensão da cortiça, e consequente restituição da mesma?
17. Pelo contrário, a Assistente exibe, quanto ao lote de cortiça de 4460Kgs, uma posse legítima e de boa fé, decorrente do disposto no 1268.º do CC, sendo inclusive “reinvestida” de tal posse aquando do despacho que ordenou a restituição dos lotes de cortiça à Assistente.
18. A obrigação da Assistente de entregar à sociedade DD a quantia de €7.433,25, carece, pois, de suporte fáctico quanto à univocidade da propriedade, ou, sequer, posse de boa fé da mesma sobre o lote de cortiça de 4460Kgs, violando assim o regime legal resultante do artigo 186.º n.º 1 do CP.
19. A procedência do pedido de indemnização cível e revogação da decisão de obrigação de entrega da Assistente à DD, da quantia de €7.433,25, nos termos peticionados, implicarão a reforma da douta sentença quanto a custas.
Nestes termos, e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e, por via disso,
a) revogada a sentença recorrida
i) na parte em que decidiu absolver os Arguidos do pedido de indemnização cível contra eles deduzido;
ii) na parte em que determinou a entrega pela Assistente, nomeada fiel depositária, da quantia de €7.433,25 à sociedade DD; e
iii) na parte em que decidiu condenar a Assistente no pagamento de custas,
b) substituindo-se por outra decisão que:
i) determine o procedimento do pedido de indemnização cível formulado pela Assistente, pelo menos na montante de €10.556,09, a ser solidariamente suportada pelos Arguidos, e que:
ii) promova a reforma da sentença quanto a custas.
assim se fazendo J U S T I Ç A.
3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
4. A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, concluindo nos seguintes termos:
1. Não obstante tenham sido furtados da Herdade …, em …, lotes de cortiça com os pesos de 8340 Kg e 1960 Kg e mercadoria com idêntico peso tenha sido encontrada em instalações da sociedade DD não foram apuradas as concretas circunstâncias em que a referida mercadoria foi retirada do local onde se encontrava, não tendo sido identificados o(s) autor(es) do furto, pelo que nenhum ilícito lhe foi assacado.
2. O facto de nunca ter exibido documentos que titulassem a propriedade da referida cortiça, assim como igualmente de um lote de 4460 Kg que lhe foi apreendido na mesma ocasião em instalações igualmente suas, não impede que a mesma não deixe de ser considerada uma detentora de boa-fé.
3. A referida mercadoria apreendida e removida para instalações da Recorrente, a fim de ser pesada, foi por ela conservada a título de depositária judicial, até que lhe fosse atribuído um destino e, tratando-se de um material perecível, a diligência promovida pela Recorrente de restituição «a quem de direito» a fim de ser comercializada foi justificada, pois visou minimizar os prejuízos resultantes da sua previsível depreciação comercial.
4. Tendo sido dado como provado uma perda de rentabilidade dos lotes de cortiça com os pesos de 8340 Kg e 1960 Kg. no valor de 10 556,09 €, o facto do de não ter sido dado como provado o cometimento de qualquer ilícito pelo arguido BB, isenta-o da responsabilidade pela depreciação de valor.
5. Atenta a natureza da mercadoria, da qual era fiel depositária, e enquanto principal interessada, o prejuízo sofrido pela Recorrente poderia ter sido evitado com a antecipação da diligência por si requerida em 15.07.2020, assim se obviando a esse prejuízo.
6. Os 4460 Kg de cortiça de que a Recorrente foi igualmente fiel depositária não resultou provado que em algum momento pertencessem ou lhe tivessem pertencido, conforme resulta das declarações prestadas pelo seu administrador de que não tinha dúvidas em afirmar que as pranchas que integravam o lote de 4460 Kg não tinham origem naquela herdade, pelo que o mero depósito judicial não configura uma posse pacífica e de boa-fé, sendo certo que relativamente à mesma houve uma apresentação de faturas por parte da Recorrida
7. O facto de BB não se ter oposto à autorização de processamento da cortiça apreendida, incluindo os 4460 Kg, não permite que a expressão «… a quem de direito.» a que se refere o n.º 1 do artigo 186.º do CPP arvore a Recorrente numa posse titulada pelo direito
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, deve o Recurso interposto improceder e, consequentemente, manter-se na íntegra a decisão recorrida.
No entanto, Vossas Excelências melhor decidirão, fazendo como sempre a costumada justiça!
5. Também o arguido AA respondeu à motivação de recurso, aderindo ao aduzido pelo Ministério Público.
6. Resposta igualmente apresentou o arguido BB, com as conclusões que se transcrevem:
A) Para além do que se extrai, de forma objectiva, dos factos provados 5 e 6, ou seja, que os dois lotes de cortiça com os pesos de 8340 Kg e 1960Kg foram apreendidos no estaleiro do arguido BB, inexiste qualquer outro facto que permita estabelecer uma qualquer relação dos referidos lotes de cortiça com o arguido, que permitam imputar ao mesmo prática de um qualquer ilícito criminal ou civil, seja a título doloso ou meramente negligente, ou que permitam aquilatar de um qualquer nexo de causalidade com os eventuais danos sofridos pela Demandante.
B) Da matéria de facto provada não se consegue extrair um qualquer pressuposto da responsabilidade civil por facto ilícito que pudesse imputar-se ao Recorrido BB, pelo que bem andou o tribunal a absolvê-lo do pedido de indemnização civil formulado pela ora Recorrente.
C) Sendo certo que o Recorrido BB, tendo sido absolvido da prática do crime de furto, pois não foi o seu autor, nunca teria qualquer responsabilidade na perda da rentabilidade da cortiça reclamada pela Recorrente, nem na sua depreciação, nomeadamente no tempo que mediou entre a apreensão da cortiça e o levantamento da apreensão.
D) Quanto ao lote de cortiça com o peso de 4460Kg, uma coisa é certa: a Recorrente não é nem nunca foi proprietária do referido lote de cortiça, como aliás decorre da matéria provada, do relatório de avaliação de fls 52 e das inequívocas declarações do seu representante legal, Eng. EE, em sede de julgamento.
E) O que a Recorrente fez foi aproveitar-se do erro constante da acusação (que considerou o referido lote de cortiça como sendo da Recorrente) para se tentar aproveitar (como aproveitou) desse lote de cortiça que bem sabia não lhe pertencer, requerendo logo que foi notificada do despacho de acusação o levantamento da apreensão (também) desse lote de cortiça.
F) A sociedade DD, reclamou tal cortiça nos autos, requerendo em 27/07/2017 o levantamento da apreensão desse lote de cortiça, juntando prova desse facto, sendo certo que nenhum dos arguidos reclamou a propriedade da cortiça, inexistindo qualquer conflito nesta parte.
G) Bem andou, assim, o tribunal a condenar a Recorrente na restituição à aludida sociedade DD, do valor dessa cortiça, de acordo, aliás, com o valor que a própria Recorrente atribuiu a esse lote de cortiça no relatório de avaliação de fls 52.
Nestes termos, e porque só assim se fará justiça, deve ser negado provimento ao recurso.
7. Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de o recurso não merecer provimento.
8. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.
9. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:
Verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar pelos arguidos/demandados AA e BB/condenação nas custas relativas ao pedido de indemnização civil.
Admissibilidade legal da condenação na entrega pela Assistente da quantia de 7.433,25 euros à sociedade “DD”.
2. A Decisão Recorrida
O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):
1) Entre o dia 15 de junho de 2017 e 17 de julho de 2017 as sociedades FF. e GG realizaram trabalhos de extração de cortiça por conta da sociedade CC, remunerados consoante as quantidades extraídas.
2) A cortiça extraída encontrava-se armazenada na Herdade …, em …, concelho de ….
3) O arguido AA trabalhava no local por conta da sociedade CC, cabendo-lhe guardar a cortiça ali armazenada.
4) Em datas não concretamente apuradas, mas situadas entre os dias 15.06.2017 e 04.07.2017, foi carregada, contra a vontade da sociedade CC, quantidade não concretamente apurada de cortiça que ali fora armazenada.
5) No dia 04.07.2017, pelas 16:00, no estaleiro de lenha do arguido BB, sito em …, em …, foram apreendidas suas cargas de cortiça com os pesos de 8340kg e 4460kg.
6) No dia 04.07.2017, pelas 16:00, no estaleiro do arguido BB, sito em …, em …, foi apreendido o veículo de matrícula …, os objetos que se encontravam no seu interior e uma carga de cortiça com 1960kg.
7) O valor da cortiça subtraída da Herdade …, então explorada da sociedade CC, com os pesos de 8340kg e 1960kg, ascende ao montante de € 27.466,40.
Pedido de Indemnização Civil
8) Por despacho de 17.06.2021, foi determinado o levantamento da apreensão dos lotes de cortiça e a imediata restituição dos lotes com os pesos de 8340Kgs, 4460kg e 1960Kgs à Demandante.
9) Em resultado da apreensão dos lotes de cortiça com os pesos de 8340Kgs e 1960Kgs, a Demandante ficou impedida de tirar proveito da transformação desta matéria prima durante o período correspondente.
10) A cortiça é um material perecível.
11) A apreensão dos lotes de cortiça com o peso de 8340Kgs e 1960Kgs importou uma perda de rentabilidade avaliada em € 10,556,09 [€ 10.110,00 + € 446,09].
Outros factos com relevo para a causa
12) O valor da cortiça com o peso de 4460Kgs ascende ao valor de € 7.433,25.
13) O lote de cortiça com o peso de 4460Kgs foi objeto de transformação pela fiel depositária.
Mais se apurou relativamente ao arguido AA
14) O arguido AA não regista antecedentes criminais.
15) Tem a 3.ª classe antiga.
16) Vive sozinho.
17) Dedica-se ao tratamento de animais em troca do que recebe ajuda alimentar.
18) Não tem despesas fixas mensais.
Mais se apurou relativamente ao arguido BB
19) O arguido BB não regista antecedentes criminais.
20) Tem o 6.º ano de escolaridade.
21) Os custos fixos inerentes à casa de habitação onde reside são suportados pela empresa que gere.
22) Vive com a companheira.
23) Tem 2 filhos, com … e … anos de idade.
24) Paga pensão de alimentos € 100,00 por cada filho.
Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição):
a) No dia 28 de junho de 2017, pelas 03h00, os arguidos AA e BB, atuando em conjugação de esforços e de vontades, dirigiram-se à Herdade …, em …, concelho de …, com intenção de fazer sua a cortiça que aí se encontrasse, contra a vontade da respetiva proprietária, a sociedade CC.
b) Aí chegados, na concretização do plano que haviam delineado, os arguidos AA, HH e BB carregaram quantidade não concretamente apurada de cortiça para o veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula …, e após a carga se encontrar completa abandonaram o local.
c) Alguns dias depois, no dia 04 de Julho de 2017, pelas 01:00, atuando novamente em conjugação de esforços e vontades, na concretização do plano por si delineado, os arguidos AA, HH e BB voltaram à referida Herdade e carregaram novamente quantidade não apurada de cortiça para o veículo ligeiro de mercadorias, com a matrícula …, e após a carga se encontrar completa abandonaram o local.
d) Os arguidos AA, HH e BB, atuaram em comunhão de esforços e vontades, na concretização do plano que haviam delineado, com o propósito de fazerem sua a cortiça propriedade da sociedade CC, o que efetivamente sucedeu.
e) Mais sabiam que a referida cortiça não lhes pertencia e que ao retirá-la da Herdade …, atuavam contra a vontade, sem a autorização e em prejuízo da sua legítima proprietária, a sociedade CC.
f) Os arguidos agiram sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei.
Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
Partindo para a apreciação crítica da prova, o Tribunal estribou a sua convicção na análise crítica das declarações do arguido BB, das declarações do legal representante da assistente, da prova testemunhal e da prova documental constante dos autos, analisando todos os elementos probatórios em confronto entre si e à luz do princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127.º do Cód. de Processo Penal e nos termos do qual, ressalvados os casos de prova tarifada, o tribunal decide de acordo com as regras da experiência e a livre convicção.
Livre apreciação que, embora não sujeita a regras legais que pré-determinem o valor das provas, haverá que traduzir-se numa “valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão” (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1165/96). Para prova dos factos em 1) a 3), ancorou-se o Tribunal nas declarações de EE, administrador da assistente (cfr. certidão permanente de fls. 424 a 436), que explicou, de forma serena, circunstanciada e objetiva, que a sua representada tinha celebrado um contrato para a extração de cortiça na Herdade …, situada em … (cfr. caderneta predial de fls. 443 a 466), cujos trabalhos foram adjudicados às sociedades GG, e FF, a primeira representada por II e a segunda por JJ, que tinham começado a trabalhar no local no dia 15 de junho de 2017, mais esclarecendo que estes prestadores de serviços contavam com dois grupos de tiradores de cortiça (“ranchos”), cada um com um número de homens (“machados”) que não conseguiu precisar com exatidão, mas que, no caso, variaria entre 10 a 14, considerando o histórico dos carregamentos anteriores à data da prática dos factos imputados aos arguidos e a previsão diária estimada para o local com base no número de “machados” acordado de antemão com os mesmos prestadores de serviços, mais concretizando que a quantidade média diária de cortiça extraída naquele local oscilaria entre 500 a 600 arrobas por rancho, tendo em conta que costumavam enviar dois camiões diariamente ao local para tratarem do carregamento e subsequente transporte da cortiça extraída até à unidade fabril da assistente em …. Explicou também que, após a tiragem, as pranchas de cortiça eram recolhidas e empilhadas diariamente em montes para serem carregadas no dia seguinte para os camiões, o que fazia com que necessitassem de contratar alguém para vigiar a cortiça extraída durante a noite e que os levou a contratar o arguido AA que reconheceu em juízo e com quem costumavam trabalhar há cerca de 9 anos. Tais declarações não nos mereceram qualquer reserva, por ancoradas numa razão de ciência direta e objetivável e terem sido prestadas de forma natural e isenta, além de se mostrarem corroboradas pelas testemunhas II e JJ na parte atinente à aludida prestação de serviços e, no caso da testemunha JJ, à contratação do arguido AA para o cargo de vigia.
Para prova dos factos descritos sob os pontos 7) e 8) estribou o tribunal a sua convicção no depoimento das testemunhas KK, LL, MM, NN, OO e PP, todos militares da GNR em exercício de funções no Posto Territorial de … e que relataram ter participado na realização das buscas encetadas nos estaleiros de … (testemunhas KK e LL e da … (testemunhas MM, NN, OO e PP, após o que seguiram para as instalações da assistente para pesagem da cortiça apreendida, uma parte transportada pelo próprio arguido BB (1960Kgs) e outra pela assistente (8340Kgs e 4460Kgs), declarações que, por terem sido confirmadas pelo arguido BB e encontrarem respaldo no registo fotográfico de fls. 49 a 50 e 55 a 58, nos autos de apreensão a fls. 33 a 35 e 42 a 44, nos autos de exame direto de fls. 48 e 51 e nos talões de pesagem a fls. 37, 38, 39, 40, 46 e 47, não suscitam a mínima dúvida quanto à veracidade das suas declarações.
Passemos agora à questão de saber se resultou provada a autoria dos arguidos da prática dos factos que lhes são imputados.
Contrariamente ao arguido AA que, no uso da prerrogativa que lhe assiste, exerceu o direito a não prestar declarações, o arguido BB começou por negar a prática dos factos que lhe são imputados na acusação, afirmando que, apesar de ser o proprietário dos estaleiros da … e …, e do veículo de mercadorias melhor identificado no libelo acusatório, nunca foi à Herdade … e, bem assim, que a cortiça que lhe foi apreendida foi por si adquirida junto de vários proprietários nas localidades de …, …, …, entre outros locais da zona, como … e …, tudo em quantidades pequenas, remetendo para as faturas que juntou aos autos, identificando os vendedores da cortiça que adquiriu em … e … e esclarecendo que, na altura dos factos, estava a vender cortiça para fábricas na …, que não identificou, a € 32,50 cada arroba (i.e. 15Kgs).
Questionado sobre como se certificava da proveniência legítima da cortiça que adquiria, respondeu que a cortiça de … foi comprada na árvore e quanto à adquirida em pranchas “acho que não, nunca suspeitei que seja furtada (…)”, mas concluindo que, na realidade, não há como saber. Sobre a prática dos factos resultou, por sua vez, das declarações do administrador da assistente que nada presenciou e que nada o alertou para qualquer situação de desvio de cortiça, muito embora, numa das suas idas à Herdade, tivesse reparado que as pranchas de melhor qualidade estavam separadas das demais, situação que o levou a questionar o arguido AA sobre o porquê dessa separação, ao que lhe foi respondido que era para ajudar o pessoal a carregar os camiões, justificação que, na altura, tomou como plausível por ser da sua experiência que as pranchas de maiores dimensões são utilizadas no capeamento da carga. Esclareceu, ainda, que a testemunha JJ não lhe reportou qualquer situação anómala e que apenas tomou conhecimento da situação aqui em discussão porque foi alertado pela GNR de que estaria a ser desviada cortiça da Herdade …, por virtude do que, depois de ter falado com alguém do Posto da GNR de … e sob o falso pretexto “de que era para lhe pagar o salário”, se fez acompanhar do arguido AA até àquele Posto com o fito deste aí prestar declarações e onde acabou por apresentar queixa (cfr. fls. 3 a 5). Relativamente à origem da cortiça apreendida nos autos, respondeu que “foi a Guarda quem confirmou que tinha sido retirada de lá” – referindo-se à Herdade de … e à carga de 1960Kgs – já quanto aos outros dois lotes com 8340Kgs e 4460Kgs disse ter sido levado pela GNR ao local onde estes lotes se encontravam para identificar a cortiça.
Perante estas declarações, vejamos então detalhadamente o que resultou do depoimento das testemunhas da GNR.
As testemunhas KK e LL afirmaram que participaram nas diligências de apreensão no estaleiro de …, confirmando a presença do arguido no local e a apreensão de duas pilhas de cortiça que ali se encontravam por existirem suspeitas de furto de cortiça que foram depois transportadas até à fábrica da assistente para pesagem, mais declarando não se recordarem se, por ocasião dessa diligência, lhes foi exibido algum documento que legitimasse a posse da cortiça ali apreendida pelo arguido BB.
As testemunhas QQ e RR relataram que, no âmbito das diligências de investigação de que tinham sido incumbidos por existirem suspeitas de que o arguido BB se preparava para furtar cortiça, se deslocaram ao estaleiro de … com o intuito de fiscalizarem o arguido se este chegasse ao local para descarregar alguma carga, mas que acabaram por abandonar o local depois de terem sido abordados pelo próprio arguido que lhes perguntou se estava tudo bem e se precisavam de ajuda, mais acrescentando a testemunha QQ que passou pelo estaleiro da … onde, passada a meia noite, observou o veículo melhor identificado nos autos carregado de cortiça.
As testemunhas MM, NN, e OO afirmaram que participaram nas diligências de busca ao estaleiro da … onde foi apreendido o veículo melhor identificado nos autos e a cortiça que se encontrava na caixa de mercadorias desse veículo que foi depois conduzido pelo arguido até à fábrica da assistente onde foi levada a cabo a pesagem dessa cortiça, mais respondendo as testemunhas MM e NN que o arguido BB não lhes apresentou nenhum documento ou indicou a pessoa a quem tinha comprado essa cortiça e a testemunha OO que, muito embora não tivesse disso memória, estava seguro que se tivesse sido apresentado qualquer documento não teriam feito a apreensão da cortiça e do veículo e, ainda, que o arguido nunca podia circular com aquela quantidade de cortiça sem registo da sua aquisição sob pena de suspeita de furto.
A testemunha PP, além de ter estado presente nas diligências de busca realizadas no estaleiro da …, relatou que se deslocou, em dia que não soube precisar, aos dois estaleiros do arguido BB no sentido de verificar se encontravam a carrinha deste nalgum desses locais ou se conseguiam observar a chegada de algum carregamento de cortiça, confirmando que ter visto a carrinha numa segunda passagem, mas sem que se recordasse em qual desses estaleiros.
A testemunha SS em nada interveio, limitando-se a relatar ao Comandante de Posto a conversa que ouviu num café da … sobre a prática do furto de cortiça pelos arguidos.
A testemunha TT, comandante do Posto Territorial de …, corroborou, na parte em que é possível valorar o seu depoimento, as versões apresentadas pelos seus camaradas e a iniciativa de chamar o legal representante da assistente e o arguido AA ao Posto Territorial de ….
Perpassando estes depoimentos é manifesto que nenhum dos militares visualizou ou presenciou qualquer operação de carga e/ou descarga de cortiça senão aquando das respetivas diligências de busca e apreensão.
Como as testemunhas UU (Diretor de Investigação e Desenvolvimento ao serviço da assistente desde 2010) e VV (Diretor de Operações ao serviço da assistente há 12 anos) também nada viram, deparamo-nos com a inexistência nos autos de prova direta da autoria do furto ou mesmo da ocorrência deste.
A ausência de meios de prova direta não significa, porém, que o tribunal não possa chegar à prova da prática do furto e respetiva autoria por recurso à prova indireta ou indiciária, de resto perfeitamente legítima em processo penal.
Com efeito, se atentarmos no disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal concluiremos sem esforço que admite a chamada prova indireta ou por presunção quando preceitua que a prova é apreciada segundo a livre convicção do julgador e as regras da experiência.
E são precisamente as regras da experiência que permitem extrair ilações dos factos diretamente percecionados e conhecidos, chegando por essa via ao conhecimento de outros factos com o necessário grau de certeza.
Com efeito, não é decisivo para se concluir pela realidade da acusação movida a um qualquer arguido, que haja provas diretas e cabais do seu envolvimento nos factos, maxime que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticar os factos, ou que o arguido os assuma expressamente.
Condição necessária, mas também suficiente é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa dentro do que é lógico e normal, de que as coisas sucederam como a acusação as define. Importa, porém, ter presente que os indícios na base da inferência devem ser plurais, independentes, relevantes e concordantes, assim como as inferências extraídas convergentes e adequadas às regras da lógica e às máximas da experiência, cuja aplicação, por sua vez, “está dependente da inexistência de contraindícios, ou seja, de factos que afastem aquela regra da experiência por apontarem noutra direção ou permitirem outra presunção e que, por isso, afetem a eficácia probatória da prova indiciária” (cfr. Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva, Volume IV, Prova indireta e dever acrescida de fundamentação da sentença penal, Susana Aires de Sousa, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2020, págs. 2763 e 2764).
Regressando ao caso concreto, resultou das declarações do legal representante da assistente que não lhe foi comunicado qualquer desvio de cortiça pelos seus prestadores de serviços e que, não obstante visitar o local da extração 2 ou 3 vezes por semana, também não se apercebeu de nada nesse sentido até ser contactado pela GNR nos moldes que acima se assinalaram.
Relato que reforça a isenção e credibilidade das suas declarações, mas que nos leva inevitavelmente à questão de saber se ocorreu algum furto na dita propriedade.
A este propósito, sabemos que a média de extração diária na dita Herdade era de 1200 arrobas (i.e. 18000Kgs), a revelar que a quantidade de cortiça apreendida não podia ter sido desviada num só dia sob pena de imediatamente detetada e que ajuda a explicar o facto de não ter sido reportada qualquer situação de furto até ao momento em que o legal representante da assistente foi contactado pelas autoridades policiais.
Sobre a identificação dos três lotes de cortiça apreendidos ao arguido BB, resultou das declarações do administrador da assistente, em concatenação com os autos de apreensão de fls. 33 a 35 e 42 a 44 e os autos de reconhecimento de fls. 53 a 54, que, muito embora não tivesse realizado uma análise a cada uma das pranchas individualmente consideradas, não tinha dúvidas em identificar a cortiça de dois desses lotes como se tratando de cortiça amadia da melhor qualidade, condizente com a análise prévia que fizeram aos sobreiros da Herdade … antes de contratualizarem a sua exploração para extração de cortiça, tal como não tinha dúvidas em afirmar que as pranchas que integravam o lote de 4460Kgs não tinham origem naquela Herdade porque o tipo e cor de cortiça eram muito diferentes, aparentando ser de zona mais húmida, por ser visível a existência nessas pranchas de musgo e heras.
A somar a isto, explicou também que identificou no lote com 8340Kgs “uma prancha que se notava de facto que faltava o quadrado da cortiça”, a partir da qual conseguiu chegar à amostra respetiva (tirada previamente à celebração do contrato de exploração) que encaixava nessa prancha e a partir daí a um dos 10 sobreiros georreferenciados na Herdade, declarações que, por encontrarem respaldo no relatório pericial a fls. 390 a 394, mereceram a credibilidade do tribunal.
Evidência que, aliada aos sinais de extração recente e às características que identificou nas pranchas dos lotes com 8340Kgs e 1960Kgs – em concreto o tipo de massa da cortiça, os poros mais finos, a cor mais clara da costa da cortiça, o próprio tamanho das pranchas e a existência de pranchas queimadas que disse encontrarem justificação num incêndio que deflagrou em parte da herdade, mais precisando que, apesar de já terem extraído cortiça em 2008, “quando se tira a prancha na base no sobreiro fica o chamado calço e esse bocadinho de cortiça era queimado da tiragem anterior” – e que a junção das faturas de fls. 272 a 277 não é de molde a afastar, nos leva a concluir pela ocorrência de furto aquando da exploração da Herdade … pela assistente.
Não olvidamos que o arguido BB colocou em causa que a prancha que serviu de base ao exame pericial pudesse encontrar-se entre os lotes apreendidos, ou mesmo a existência de pranchas queimadas nalgum desses lotes, afirmando que todas as pranchas passaram pelas suas mãos e que tais características não lhe teriam passado despercebidas, acrescentando, ainda, que se houvesse uma prancha sem aquele quadrado que se tinha partido e que os calços dos sobreiros só muito excecionalmente ficam para a tiragem seguinte, além de que existindo uma prancha queimada “é difícil manter-se inteira durante o processo todo porque fica com uma fraqueza e essa prancha parte-se”.
Todavia, esta explicação não se nos afigurou de molde a afastar a conclusão alcançada sobre a proveniência dos dois lotes acima identificados.
Primeiro porque, não sendo conhecida qualquer relação entre o arguido BB e a assistente e/ou os militares que participaram nas duas operações de busca e apreensão, não conseguimos alvitrar a existência de qualquer razão para que o legal representante e/ou algum daqueles militares pudessem querer deturpar a origem da prancha utilizada na perícia e, por via disso, incriminar o arguido.
Segundo porque, de acordo com as declarações do legal representante da assistente em linha com o relatório de diligência externa a fls. 380 a 383, além de ter sido salvaguardado o isolamento dos lotes apreendidos da demais cortiça extraída pela assistente, a prancha utilizada na perícia apenas foi retirada da pilha de pranchas apreendidas na presença do órgão de polícia criminal.
Terceiro porque, como o arguido fez questão de assinalar, a cortiça amadia é carregada à mão, circunstância que, por si só, diminui a probabilidade de quebra.
E, finalmente, porque, depois da resposta que o administrador da assistente imediata e prontamente lhe deu sobre a preservação dos calços do sobreiro entre duas tiragens – “Basta a tiragem anterior ter sido feita de uma forma diferente que quando se tira a prancha o calço queimado vem agarrado à prancha que se tira agora” – nada acrescentou que nos fizesse valorar as suas declarações em detrimento das declarações prestadas por aquele.
Aqui chegados, será que a cortiça encontrada na posse do arguido BB e o exercício do cargo de vigia pelo arguido AA são suficientes para conduzir à conclusão de que os arguidos praticaram, em conjugação de esforços, os factos que lhes são imputados na acusação?
Estamos em crer que não e passamos a explicar porquê.
Pese embora configure um indício na base da dedução da acusação, a mera constatação de que a carrinha utilizada pelo arguido BB se mostrava carregada de cortiça nas madrugadas dos dias 3 e 4 de julho, respetivamente, nos estaleiros de … e da … – conforme resultou do depoimento das testemunhas QQ e TT ancorado no registo fotográfico de fls. 14 e 15 –, é claramente insuficiente para se poder concluir que estamos perante a viatura utilizada na deslocação à Herdade …, mormente quando nos deparamos com a ausência de prova sobre o avistamento do arguido ou dessa viatura junto àquela propriedade, sobre a localização, horário e intervenientes envolvidos nesses carregamentos e quando se desconhece o exato dia e hora de extração da cortiça apreendido, tudo circunstâncias que adensam a dúvida sobre se tal viatura foi utilizada para transportar o produto do furto ou numa recolha ilícita desse produto junto de terceiros, cenário que sempre importaria uma alteração substancial dos factos da acusação para permitir a convolação do crime de furto para o de receptação, mas que não encontra arrimo na prova produzida em julgamento.
Pese embora a não exibição pelo arguido de qualquer comprovativo de aquisição e/ou guia de transporte aquando da apreensão da cortiça encontrada na sua posse e a resposta que deu no sentido de que não voltou ao contacto com os vendedores dessa cortiça não se coadunem com os critérios da normalidade do acontecer por não ser crível que perante a desconfiança de que estava a ser alvo não tivesse procurado obter prontamente tais faturas e/ou contactado qualquer um daqueles vendedores, a verdade é que nem assim é possível afastar a hipótese de tal cortiça ter ingressado na posse deste arguido sem que o mesmo tivesse participado na prática do ilícito na sua origem, hipótese tão plausível quanto a prática em coautoria que lhe é assacada e que as faturas juntas pelo arguido BB a fls. 272 a 277 também não afastam.
Mesmo que se pudesse conceber a probabilidade desta hipótese como de grau reduzido, tal como pertinentemente se faz notar Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 12.01.2022, Proc. n.º 285/18.6GAARC.P1, Relator Nuno Pires Salpico: “[n]os casos limite, em que a hipótese divergente é plausível em grau reduzido, mas com relevo suficiente para firmar a dúvida judiciária, esta deve prevalecer quando, segundo as regras da experiência comum e da lógica, mesmo com probabilidades reduzidas, é perturbada a consciência do julgador, que no plano constitucional está vinculada ao “standart” da prova em processo penal, só podendo julgar provados os factos da acusação, quando isso implique o afastamento das hipóteses divergentes, afirmando-se a hipótese da acusação como a única exclusiva que explique os factos.” (realce nosso).
Passando ao arguido AA, se nenhuma dúvida se suscita quanto ao desempenho do cargo de vigia pelo mesmo ou quanto à localização cortiça vigiada, a verdade é que nada se logrou apurar sobre se abandonou o perímetro da zona vigiada e/ou em que circunstâncias, aspetos que não são de somenos importância se ponderarmos que, de acordo com as declarações do legal representante da assistente, não existia qualquer vedação na propriedade em causa e os montes da cortiça objeto de vigia ficavam a 300 metros da estrada.
Um último apontamento apenas para referir que não se valorou o depoimento da testemunha TT, relativamente à “conversa informal” a que fez alusão, por não reunir as condições exigidas por lei para poder ser valorada como prova em julgamento, mormente quando, atentando no teor das suas declarações, fica sem se perceber o porquê de AA ter começado por ser ouvido na qualidade de testemunha, ao invés de ter sido logo constituído arguido e interrogado nessa qualidade (cfr. arts. 58.º, n.º 1, al. a), 125.º e 357.º, todos do Cód. de Processo Penal). Tal como não se valoraram as declarações do legal representante da assistente na parte em que reproduziu aquilo que lhe foi dito por militar da GNR no seguimento da inquirição do arguido AA e a troca de palavras entre ambos após tal inquirição, por assentarem em prova proibida por lei nos termos ressalvados pelo artigo 356.º, n.º 7, aplicável ex vi do n.º 3 do artigo 357.º, ambos do Cód. de Processo Penal). Assim, como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.03.2009, Proc. 09P0395, Relator Santos Cabral, com inteira aplicação ao caso dos autos, “num hipotético conflito entre a convicção em consciência do julgador no sentido da culpabilidade do arguido e uma valoração da prova que não é capaz de fundamentar tal convicção, será esta que terá de prevalecer. Para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do crime nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspetiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. Significa o exposto que não basta a certeza moral, mas é necessária a certeza fundada numa sólida produção de prova”.
Porque a participação dos arguidos no imputado crime de furto qualificado não pode ter-se como certa para além de toda a dúvida razoável e na ausência de elementos probatórios que suportem semelhante ilação, teremos, necessariamente, de dar como não provada a respetiva autoria.
O valor comercial dos lotes de cortiça com 8340kgs e 1960Kgs, indicado sob o ponto 7) dos factos provados, resultou da valoração conjunta das declarações do legal representante da assistente com a avaliação da cortiça a fls. 52.
A prova relativa ao levantamento da apreensão referida em 8) e período por que perdurou resulta dos próprios autos (cfr. termos de entrega de fls. 36 e 45, requerimento de 20.07.2020 e despacho de 17.06.2021).
A prova sobre os factos vertidos sob os pontos 9) a 11) resultou das declarações do legal representante da assistente, avaliadas à luz das regras da experiência comum e em conjugação com os mapas de rentabilidade juntos aos autos (que contemplam os valores de margem bruta, mas não os custos operacionais) e o depoimento das testemunhas UU e VV, a propósito da degradação qualitativa da cortiça apreendida à ordem dos presentes autos, aos timings de armazenamento e processamento da cortiça para transformação, ao controlo de qualidade efetuado e aplicação final conseguida.
Sobre o valor concretamente apurado, porque não resultou provada a ilicitude da proveniência do lote com o peso de 4460Kgs, consideraram-se os valores constantes dos mapas de rentabilidade juntos a fls. 581 e 581v, este último na respetiva proporção (ou seja, as quantidades de 9937Kgs e 363Kgs, a totalizar os 10300Kgs). Os factos provados sob os pontos 12) e 13) resultaram das declarações do legal representante da assistente, também nomeada fiel depositária, em conjugação com a avaliação de fls. 52, que se tem por justa e adequada à diferença de qualidade entre o lote em questão e os lotes de 8340kg e 1960Kgs e à média de valores apresentados pela assistente e pela sociedade então denominada XX.
No que se reporta às condições familiares, económicas e sociais dos arguidos, tomaram-se em consideração as declarações dos próprios que não mereceram qualquer reserva ao Tribunal.
Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos, o Tribunal valorou o teor dos certificados do registo criminal junto aos autos.
Apreciemos.
Verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar pelos arguidos/demandados AA e BB/condenação nas custas relativas ao pedido de indemnização civil.
Insurge-se a assistente/demandante contra a absolvição dos arguidos/demandados AA e BB do pedido de indemnização civil que formulou, pugnando por deverem ser condenados, solidariamente, no montante de 10.556,09 euros, a esse título.
A propósito, diz-se na decisão revidenda:
A assistente peticiona a condenação solidária dos arguidos no pagamento da quantia de € € 18.570,79, a título de indemnização pelos danos patrimoniais que sofreu por ter ficado privada de comercializar, em resultado da atuação dos arguidos e durante o período compreendido entre 04.07.2017 até 13.11.2021, a cortiça que lhe pertencia.
A indemnização em processo penal deve ser sempre fundamentada na prática de um crime, nos termos das disposições conjugadas do artigo 129.º do Cód. Penal e artigos 71.º e seguintes do Cód. de Processo Penal.
Porém, a absolvição penal não acarreta necessariamente a improcedência do pedido de indemnização civil, contanto que fundado em responsabilidade extracontratual por facto ilícito ou pelo risco, tal como deriva do artigo 377.º, n.º 1, do Cód. de Processo Penal.
Cumpre, pois, conhecer se existe ilícito civil e, na afirmativa, se os arguidos devem ser condenados na indemnização civil reclamada pela assistente e demandante, cujos pressupostos de atribuição e fixação do respetivo quantitativo obedecem aos comandos normativos da lei civil (cfr. art. 483.º do Cód. Civil).
São pressupostos da responsabilidade extracontratual os seguintes: (i) a prática de um facto voluntário controlável pela vontade humana, seja sob a forma de ação ou omissão; (ii) a ilicitude desse facto; (iii) o nexo de imputação subjetiva do facto ao lesante sob a forma de culpa; (iv) a existência de danos e (v) a existência de nexo causal entre o facto praticado pelo lesante e os danos, em termos de causalidade adequada.
Perpassando a factualidade provada, resultou demonstrado o furto da cortiça extraída pela assistente, mas não a autoria da prática do facto pelos arguidos.
Fica, assim, patente a não verificação do primeiro e fundamental pressuposto da responsabilidade civil aquiliana: a prática de um facto ilícito pelo agente.
Termos em que, havemos de concluir pela total improcedência do pedido de indemnização civil e pela consequente absolvição dos arguidos.
Este entendimento mostra-se perfeitamente correcto, não merecendo censura.
E, diga-se ainda, a construção argumentativa apresentada pela demandante de que “o arguido BB deteve cortiça, cuja licitude de proveniência não provou, nem diligenciou assegurar-se de tal. Tal detenção configura, pelo menos, um ilícito negligente, tendo em conta que o Arguido BB deveria ter agido diligentemente na verificação da propriedade da cortiça”, não tem apoio algum nos factos dados como provados, que, cumpre se diga, a demandante não impugnou.
Quanto à condenação nas custas resultante da dita absolvição, como acertadamente se afirma na sentença alvo da censura:
São aplicáveis às custas cíveis as regras do Cód. de Processo Civil (cfr. art. 523.º do Cód. de Processo Penal).
A responsabilidade pelo pagamento das custas recai sobre a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, sobre a parte que do processo tirou proveito, entendendo-se que dá causa às custas do processo a parte que tenha ficado vencida a final (cfr. art. 527.º, n.º 1 e 2, do Cód. de Processo Civil).
Face ao total decaimento da pretensão da demandante civil (também assistente), devem as custas do pedido de indemnização civil ficar a cargo da assistente.
Destarte, cumpre negar provimento ao recurso nesta parte.
Admissibilidade legal da condenação na entrega pela Assistente da quantia de 7.433,25 euros à sociedade “DD.”
Determinou-se na decisão recorrida, a entrega pela assistente “CC”, nomeada fiel depositária do lote de 4.460Kgs de cortiça, já objecto de transformação por aquela, da quantia de 7.433,25 euros à sociedade “DD”.
E, fundamentou o tribunal a quo esta decisão como se transcreve:
Tendo sido determinado o levantamento da apreensão dos três lotes de cortiça melhor identificados nos autos e a sua entrega à assistente sem que tivesse resultado provada a ilicitude da proveniência do lote de cortiça com o peso de 4460Kgs, equivalente a 297,33 arrobas, entretanto já objeto de transformação pela assistente, importa restituir o valor respetivo à sociedade DD, outrora designada XX, o que se determina, à razão de € 25,00 por arroba – cfr. factos em 12) e 13) – que se tem por justo e adequado atendendo quer à diferença de qualidade entre o lote em questão e os lotes de 8340kg e 1960Kgs, quer à média de valores apresentados pela assistente e por aquela sociedade).
Pois bem.
De acordo com o estabelecido no artigo 379º, nº 1, alínea a), do CPP, a sentença é nula quando não contiver as menções referidas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do artigo 374º.
E, consagra-se no aludido nº 2, que “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
Ora, de acordo com o ponto 8 dos fundamentos de facto da decisão revidenda, por despacho de 17.06.2021, foi determinado o levantamento da apreensão dos lotes de cortiça e a imediata restituição dos lotes com os pesos de 8340Kg, 4460Kg e 1960Kgs à Demandante.
E, efectivamente, nos termos desse despacho (subscrito pela Digna Procuradora da República) foi determinado “o levantamento da apreensão efetuada e a restituição imediata da cortiça apreendida à ofendida CC, invocando-se o estabelecido no artigo 186º, nº 1, do CPP, não se vendo (até porque do despacho não consta) que tenha esta permanecido como fiel depositária, tanto mais que, nos termos da referenciada disposição legal, “as coisas ou os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito”.
Daí que, por não constarem de segmento algum da sentença recorrida os motivos de direito que fundamentam a decisão de entrega pela assistente da quantia de 7.433,25 euros à sociedade “DD”, a sentença é nula, nesta parte, por falta de fundamentação.
Fica prejudicado o conhecimento da questão da admissibilidade legal da condenação na entrega pela Assistente da quantia de 7.433,25 euros à sociedade “DD”.
III - DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em julgar:
A) Improcedente o recurso pela assistente “CC.” interposto, quanto às questões da verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar pelos arguidos/demandados AA e BB e condenação nas custas relativas ao pedido de indemnização civil;
B) Declaram parcialmente nula a sentença recorrida, por inobservância do disposto no artigo 374º, nº 2, atento o estabelecido no artigo 379º, nº 1, alínea a), ambos do CPP, a qual deve ser reformulada pelo mesmo tribunal, sendo proferida nova decisão onde se supra a apontada nulidade;
C) Não conhecem da restante questão suscitada pela recorrente, por se mostrar prejudicada, sendo que, proferida que seja nova sentença, pretendendo a recorrente que essa questão (e/ou outras relativas a esta nova peça e neste acórdão não decididas) seja apreciada, terá de ser interposto o pertinente recurso.
Sem tributação.
Évora, 11 de Julho de 2024
(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)
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(Artur Vargues)
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(Anabela Simões Cardoso)
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(Jorge Antunes)