I - Provado o estado de demência em período que abrange o ato anulando (art. 2199.º do CC), é de presumir que na data do mesmo ato aquele estado se mantinha sem interrupção.
II - À parte interessa na validade do ato caberá ilidir a presunção, demonstrando que este ocorreu num momento excecional e intermitente de lucidez.
Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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RELATÓRIO
AUTORA: AA, casada, natural de França, residente na Rua ..., freguesia e concelho de Oliveira do Bairro.
RÉ: BB, casada, natural da Freguesia ..., Concelho de Vila Real, residente na Viela ..., Lugar ..., freguesia ..., concelho de Albergaria-a-Velha.
Por via da presente ação declarativa pretende a A. o seguinte:
1. Ser proferida decisão que declare que o testamento outorgado por CC, no dia 27 de março de 2017, no Cartório Notarial de Mira, é nulo por violação da forma legal exigida.
Caso assim não se entenda:
2. Ser proferida decisão que declare que a aposição da impressão digital constante de tal ato notarial não pertence a CC.
3. Ser proferida douta decisão que declare que o testador, à data, não tinha capacidade para querer e entender o alcance desse ato.
4. Caso se entenda que o mesmo não é nulo, o mesmo seja declarado anulado nos temos do disposto no artigo 2199.º, do Código Civil, por falta de consciência na declaração e/ou incapacidade acidental.
Para tanto alegou a A. ter, em 2012, sido instituída herdeira pelo falecido e, bem assim, donatária de metade da herança deixada por óbito da mulher daquele (mãe da Ré), pré-falecida, tendo sido a demandante quem, desde então, tratou e cuidou do de cujus.
Não obstante, em 2017, achando-se o testador internado num lar, a Ré terá conseguido obter testamento deste a seu favor, apesar de com aquele andar desavinda, não pertencendo ao testador a impressão aposta no documento, sendo este falso.
Caso assim não seja, naquela data, o falecido não tinha capacidade para entender o teor e alcance do ato, mercê das suas debilidades psíquicas e da sua idade avançada.
Contestou a Ré, afirmando ter-se a A. apoderado dos bens do falecido padrasto da contestante, impedindo-o do contacto com esta, razão pela qual, a dado momento, aquele sentiu necessidade de entrar em contacto com a Ré de modo a deixar-lhe os bens, o que fez por sua livre e esclarecida vontade.
A A. exerceu contraditório.
Tendo tido lugar o julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 10.1.2024, a qual julgou a ação parcialmente procedente anulando o testamento de 27.3.2017.
Desta sentença recorre a Ré, visando a sua revogação, com a improcedência da ação, assim argumento, em conclusões:
I – Deve o tribunal ad quem alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, o que se requer, passando a constar no facto 19. Da matéria de facto dada como provada que “Dado o declínio das suas capacidades físicas, o Senhor CC foi internado num lar, no ..., “Residencial ...”, a Maio de 2016...”
II – Deve o tribunal ad quem alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, o que se requer, passando a constar naquele facto 22. que “O quadro demencial de que o Senhor CC era portador, levou a que o mesmo tivesse um comportamento agressivo para com terceiros, no dia 16 de maio de 2017.”
III – Deve o tribunal ad quem alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, o que se requer, passando a constar do rol de factos dados como provados que “O Sr. CC foi à consulta de um médico neurologista (Dr. DD), em 24/03/2017, três dias antes de fazer testamento a favor da ré, e o referido médico não considerou existir algum défice do ponto de vista cognitivo.”.
IV – Deve o tribunal ad quem alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, o que se requer, passando a constar do rol de factos dados como provados que “A Sra. notária que presidiu ao testamento de 27/03/2017 teve a percepção que o testador (Sr. CC) estava consciente para a prática daquele acto.”
V – Ao julgar incorrectamente os factos supra assinalados, o tribunal a quo incorreu num erro de julgamento (error in judicando) distorcendo a realidade factual (error facti), violando, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, inculcado no n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, pelo que devem as apontadas decisões sobre a matéria de facto ser alteradas por V.as Ex.as, nos termos supra peticionados.
VI – Alterada a matéria de facto em crise, deve a decisão da douta sentença ser, outrossim, alterada, declarando-se a validade do testamento outorgado em 27/03/2017, improcedendo a acção, o que se requer.
VII – Sem prescindir ou de alguma forma conceder no supra explicitado, a douta decisão ao explicitar que não consegue concluir, dos elementos médicos obtidos, quer por prova documental, quer por prova testemunhal, que o Sr. CC não compreendeu o sentido e alcance da sua declaração testamental, ou que estava, de alguma forma, limitado na sua vontade, e ao, seguidamente, decidir pela anulação do testamento, cometeu um erro de raciocínio lógico. Sendo que a decisão emitida é contrária à que seria imposta pelo fundamento acima descrito e invocado na douta sentença.
VIII – Melhor explicitando, a não conclusão, através dos elementos médicos, que o testador não compreendeu o sentido e alcance da sua declaração testamental, ou que estava, de alguma forma, limitado na sua vontade, conduz necessariamente a uma decisão de sentido oposto à deliberada, ou seja, à validade do testamento e improcedência total da acção.
IX – Deve a decisão ser considerada nula, por violação do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, (error in procedendo), nulidade que expressamente se requer seja por V.as Ex.as declarada, com as devidas consequências, mormente substituído a decisão por outra, que considere a acção totalmente improcedente.
A A. contra-alegou, opondo-se à procedência do recurso.
Objeto do recurso:
- da nulidade decorrente do disposto no art. 615.º, n.º 1 c) do CPC.
- da impugnação da matéria de facto dada como provada e da incapacidade do testador.
FUNDAMENTAÇÃO
Matéria de facto dada como provada em primeira instância
1 - No dia 17 (dezassete) de maio de 2012 (dois mil e doze), CC, então viúvo, outorgou no Cartório Notarial de Águeda da Notária um Testamento Público a favor da Autora, lavrado de fls. 50 a fls. 50-verso, do Livro de Notas Para Testamentos Públicos e para Escrituras de Revogação de Testamentos Número ..., na qual, além do mais, declarou: «…Que não tem descendentes nem equiparados, nem ascendentes vivos e por isso faz o seu testamento da seguinte forma:
Que institui sua única e universal herdeira AA, casada, natural de França, residente na Rua ..., lugar de ..., freguesia e Concelho de Oliveira de Bairro, com o encargo de esta prestar todos os cuidados e a assistência de que ele, outorgante, necessite, até à sua morte;
Que revoga todos os testamentos que tenha outorgado até ao dia de hoje, em qualquer Cartório Notarial, nomeadamente um testamento que foi por si outorgado no dia vinte e quatro de Março de dois mil e quatro, no extinto Cartório Notarial de Ílhavo, iniciado a folhas noventa e quatro, do Livro ...…»
2 - No dia 26 (vinte e seis) de outubro de 2012 (dois mil e doze), o mesmo CC outorgou no Cartório Notarial de Águeda da Notária EE uma escritura de doação de quinhão hereditário a favor da Autora, lavrada de fls. 70 a fls. 70-verso, do Livro de Notas Para Escrituras Diversas n.º ..., na qual, além do mais, declarou:
«…Que é herdeiro de sua mulher FF, nos termos da escritura de habilitação de herdeiros, lavrada em vinte e dois de Junho de dois mil e doze, no Cartório Notarial da Notária GG, sito cidade de Ílhavo, iniciada a folhas cento e vinte e quatro, do Livro de Notas para Escrituras Diversas número ..., lavrada por óbito da indicada FF, falecida no dia dez de Março de dois mil e doze …., no estado de casada com o primeiro outorgante, sob o regime imperativo da separação de bens.
Que a referida FF fez testamento público … no qual instituiu herdeiro da quota disponível de seus bens, o indicado marido … CC, tendo deixado como herdeiros legítimos o seu indicado marido e a sua filha BB…
Que, conforme resulta do exposto, é dono de dois terços da herança;
Que desta herança fazem parte bens móveis e ainda:
O prédio urbano sito na freguesia ..., concelho de Albergaria-a-Velha, inscrito na matriz urbana sob o artigo ...;
O prédio misto sito na freguesia ..., concelho de Oliveira do Bairro, inscrito na matriz urbana sob o artigo ... e na matriz rústica sob o artigo ...;
Que, pela presente escritura, doa à segunda outorgante – AA metade do direito à herança da referida FF de que é dono – isto é, uma terça parte da totalidade da herança…»
3 - No dia 18 (dezoito) de fevereiro de 2014, o mesmo CC constitui a ora Autora sua Procuradora.
4 - Atenta a idade do senhor CC e seu estado de saúde, a Autora prestou-lhe cuidados de saúde, higiene e de alimentação.
5 - O que fez desde abril de 2012 até ao dia em que ocorreu o óbito do senhor CC, ou seja, até ao dia 17 de julho de 2018.
6 - Na data do seu óbito o senhor CC tinha 89 anos, tendo nascido a ../../1928.
7- Os cuidados e assistência que a Autora prestou ao senhor CC ocorreram até maio de 2016, na residência do Sr. CC, confecionando as refeições, limpando e cuidando da habitação, tratando-lhe da roupa, o que fazia por si própria e com a ajuda da sua empregada doméstica.
8 - Bem como o levava ao médico e às consultas tidas por necessárias, aviava o receituário médico, ministrava a medicação.
9 - O senhor CC esteve internado na A... de ... no período compreendido entre 13 (treze) de janeiro de 2016 (dois mil e dezasseis) e 20 (vinte) de janeiro de 2016 (dois mil e dezasseis), altura em que foi acompanhado pela Autora.
10 - A Autora levou por inúmeras vezes o senhor CC a passear, a almoçar e lanchar em diversos restaurantes e cafés, à praia, a apanhar pinhas, ao cemitério de ... para este visitar a campa da sua falecida mulher.
11 - A Autora procedeu ao pagamento dos IMIS dos prédios pertencentes à herança da esposa do falecido CC relativos aos anos de 2012 a 2018.
12 - A Autora acompanhou o senhor CC por duas vezes ao Cartório Notarial de Ílhavo, o que fez no seu (dela) veículo automóvel.
13 -A Autora diligenciou e despendeu o seu tempo com as formalidades tidas por necessárias e convenientes com vista à admissão do senhor CC como sócio dos Bombeiros Voluntários ... e respetivos pagamentos.
14 - Como também foi a Autora que diligenciou e despendeu o seu tempo com as formalidades tidas por necessárias e convenientes com vista à admissão do senhor CC no Centro Social ....
15 - Como também foi a Autora que diligenciou, despendeu o seu tempo e acompanhou o senhor CC ao Serviço de Finanças de Oliveira do Bairro, quando este efetuou a participação do imposto do selo.
16 - Relativamente ao internamento que ocorreu entre o dia 13 de janeiro de 2016 e ../../2016, foi a filha da Autora que emitiu o cheque número ..., sacado sobre o Banco 1..., no montante de Euros: 1.042,93, para pagamento de tal internamento.
17 - Foi a ora Autora que tratou da concessão da sepultura, do assento de óbito e das despesas do funeral do senhor CC.
18 - Desde 2015, o falecido CC começou a apresentar um quadro demencial. Assim:
- No dia 08 de julho de 2015, o Sr. CC no contexto de avaliação de incapacidade apresentava-se como “um doente com limitações físicas na marcha e psíquica (algum grau de demência)”
- Em 12 de janeiro de 2016, na sequência de queda, o senhor CC foi assistido no Hospital, assistência a que se refere o episódio de urgência n.º .... Foi sujeito a TC CE apresentando “...sinais de leucoencefalopatia isquémica”.
- Em novembro de 2016, na sequência de informação clínica que indicava “alteração de comportamento” foi efectuada TAC ao senhor CC,” que revela que o mesmo apresenta “…moderada acentuação da fisiológica hipodensidade da substância branca peri-ventricular, em relação com fenómenos de hipoperfusão cerebral crónica que deverão ser integrados clinicamente. Atrofia global e difusa de predomino cortical frontotemporal bilateralmente e envolvendo o cerebelo…”
- No dia 29 de maio de 2017, o Sr. CC, no contexto de avaliação de incapacidade, apresentava-se com “alterações do comportamento (esquizofrenia?) com limitação … e necessidade de apoio por terceiros”.
- Em 23 de dezembro de 2017, na Declaração Informativa relativa ao senhor CC, o Sr. Dr. HH prestou, além do mais, a seguinte informação médica:
“alterações comportamentais com pobreza de resolução de problemas e episódios de desorientação temporo espacial de etiologia vascular isquémica/demência cognitiva/episódios esquizofrenoides (…) seu quadro demencial tem-se vindo a agravar.”
(…) “é um doente completamente dependente de terceiros para as suas AVD´s necessitando de andarilho ou cadeira de rodas para se deslocar”.
- Em 09 de janeiro de 2018, o Sr. Dr. II prestou, além do mais, a seguinte informação médica:
“…é um doente com diagnóstico de Quadro Psicótico Orgânico Senil …encontra-se mais desorientado, descompensado e agitado, apesar da medicação”.
- Em fevereiro de 2018, na sequência de informação clínica que indicava “alterações de comportamento. Para reavaliação” foi efetuada novo TAC ao senhor CC,” que revela um quadro de atrofia global de partes do cérebro.
- Em 26 de maio de 2018, foi prestada a informação clínica relativa ao senhor CC pelo Dr. HH, na qual refere diminuição e lentificação dos recursos cognitivos, QI clinicamente abaixo do esperado, pobreza, lentificação e desorganização na estratégia de resolução dos problemas, conteúdo do pensamento irregular, traços de personalidade adaptativa, redução da amplitude afetiva, alterações psicomotoras, desorganização pessoal, discurso pobre e não espontâneo, pouco fluente e em tom baixo, humor depressivo, hipovolição e hipohedonia;
- Em 19 de dezembro de 2017, foi emitido o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso relativo ao senhor CC e do qual consta um grau de incapacidade de 74%, referindo-se que tal incapacidade se refere ao capítulo da psiquiatria e neurologia.
19 - Dado o declínio das suas capacidades, físicas e intelectuais, o senhor CC foi internado num lar, no ..., “Residencial ...”, em maio de 2016, tendo posteriormente sido internado, em maio de 2018, no Lar em ..., de modo a que lhe fosse prestado a atenção e vigilância que o seu estado de dependência e de demência requeria.
20 - Foi a Autora quem diligenciou pelo internamento do senhor CC nos dois lares.
21 – O falecido CC sabia assinar o seu nome, mas em janeiro de 2018, procedeu à renovação do seu cartão de cidadão e dele passou a constar que não pode assinar.
22 - O quadro demencial de que o senhor CC era portador levou a que o mesmo tivesse, por vezes, comportamentos agressivos para com terceiros, como ocorreu, por exemplo a 16 de maio de 2017.
23 - Em razão do óbito de FF, cônjuge do senhor CC, correu termos no Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, Juiz 1, Comarca de Aveiro o processo de Inventário (Herança) --- Processo N.º 14/13.0T2ALB.
24 - No referido processo de inventário, o senhor CC era patrocinado pela senhora Dr.ª JJ.
25 - E a ora Ré e então requerente do inventário patrocinada pelo senhor Dr. KK.
26 - Tal inventário terminou por desistência da instância da requerente, a 02 de maio de 2018, desistência que foi aceite pela mandatária do cabeça-de-casal CC, sem poderes especiais para o ato.
27 - Tentada a notificação, nos termos do art. 291.º n.º 3 do CPC, não se logrou a mesma por força do posterior falecimento de CC.
28 - No dia 09 de dezembro de 2014, o senhor CC apresentou uma queixa crime contra o filho da ora Ré, tendo, tal queixa, sido arquivada.
29 - No dia 16 de agosto de 2012, o senhor CC remeteu ao Banco 2... e Banco 3... duas cartas a informar que não se responsabilizava por qualquer dívida contraída pela ora Ré.
30 - Correu termos no Juízo de Competência Genérica de Oliveira do Bairro, Juiz 1 Comarca de Aveiro o processo de Interdição do Senhor CC --- Processo n.º 100/18.0T8OBR.
31 - Nesse processo não se logrou a citação do requerido, tentada a 21 de março de 2018, por a funcionária judicial ter constatado que este não sabia ler nem escrever, não conseguia precisar o dia ou o ano em que se encontrava, pelo que se lhe suscitaram dúvidas se o mesmo consegue perceber o conteúdo da citação solicitada.
32 –Tal processo foi declarado extinto por impossibilidade superveniente da lide face ao óbito do requerido, ocorrido na pendência da ação e antes da realização do exame pericial.
33 - Em 27 de março de 2017, o Sr. CC outorgou a favor da ora Ré um testamento no Cartório Notarial de Mira, não constando do mesmo qualquer encargo para esta.
34 - De tal documento não consta a identificação pessoal - cartão de cidadão e de identificação fiscal - do senhor CC.
35 - Do aludido documento constam como abonadores e testemunhas o Senhor Dr. LL e a senhora D. MM.
36 - O Senhor Dr. LL é licenciado em direito.
37 - A senhora D. MM era, na altura, funcionária forense do escritório do Dr. KK.
38 - No dia 24 de março de 2017, o senhor CC foi a uma consulta de Neurologia, do Sr. Dr. DD.
39 - Nesta consulta, foram prescritos ao senhor CC quatro medicamentos, cujas substâncias ativas são: Escitalopram, Bromazepan, Trimetazidina e Trazodona,
40 - O Escitalopram e a Trazadona são antidepressivos, o Bromezepan é um ansiolítico e a Trimetazidina é um medicamento no tratamento da angina de peito, em doentes adultos.
41 - Durante alguns anos, o Sr. CC não quis ser contactado pela sua família, nomeadamente pela ré e pelos seus filhos, com quem estava incompatibilizado.
42 - Em momento não determinado de 2016/2017, a Ré e familiares contactaram o falecido CC no Lar ... onde residia.
43 - O Sr. CC chegou a deslocar-se várias vezes à sua casa na ..., nomeadamente aos fins-de-semana, sendo levado pelos proprietários ou funcionários do lar de idosos onde estava, tendo nessas alturas contacto com a ré.
44 - Quanto ao lar de idosos no ..., não era permitido o acesso da Ré ao Sr. CC, alegadamente por ordens da autora, que não permitia que aquele contactasse com a Ré e sua família.
45 - No dia 29 de dezembro de 2017, NN, filho da Ré, tentou visitar o Sr. CC, mas foi impedido pela autora,
46 - A Ré apresentou queixa criminal contra a Autora, na qual acusava esta de não deixar o Sr. CC contactar com ela e familiares e de não deixar o mesmo ausentar-se do lar.
47 - No dia 27 de março de 2017, o Sr. CC saiu do lar de idosos do ... para se deslocar ao Cartório Notarial de Mira, onde apôs a sua impressão digital no testamento efetuado.
Factos não provados em primeira instância:
a) - Ao longo de mais de 06 (seis) anos, a Autora comprasse para o senhor CC a roupa que o mesmo necessitava --- camisas, camisolas, pijamas, fatos de treino, chinelos e sapatos.
b) - No dia 29 de abril de 2014, a Autora acompanhasse o senhor CC ao consultório do Dr. OO e Gala para que o mesmo efetuasse uma TAC ao crânio, ecografia abdominal, renal e vesical;
c) - Em 21 de maio de 2014, o Sr. CC efetuasse um ecocardiograma no qual a Autora o acompanhasse.
d) - Em 29 de fevereiro de 2018, transportasse e acompanhasse o Senhor CC para que o mesmo efetuasse uma TAC ao crânio.
e) - Acompanhasse o senhor CC por diversas vezes ao oftalmologista --- Dr. PP.
f) - Acompanhasse o senhor CC por diversas vezes à B... para que o mesmo realizasse exames médicos.
g) - Acompanhasse o senhor CC por diversas à A... de ... e de ... para que o mesmo fosse observado em diversas consultas da especialidade.
h) - Acompanhou o senhor CC por diversas vezes --- nomeadamente, em 24 de abril de 2015, 18 de maio de 2015 e 13 de junho de 2015 --- nas consultas à dentista Dr.ª QQ em ....
i) No período referido em 9 dos factos provados a Autora visitasse o senhor CC todos os dias à tarde.
j) E, quando à noite não o podia visitar, era o marido da Autora que o visitava na A....
k) Enquanto o mesmo se encontrava internado, levasse por sua (dela) iniciativa o barbeiro “RR” a tal clínica para o mesmo desfazer a barba ao senhor CC.
l) Acompanhasse o senhor CC por diversas vezes ao podologista Dr. SS, na C..., Oliveira do Bairro.
m) Quando a Autora se deslocava a Coimbra para comprar tecidos, levasse consigo o senhor CC o qual ficava num café situado ao lado da loja.
n) Tal como o levasse às compras no D... de ....
o) Aí a Autora comprava sempre uma tablete de chocolate ao senhor CC, bem como para os restantes elementos do seu (dela) agregado familiar.
p) Quando caía e se magoava, o que ocorria com alguma frequência, era a Autora e sua nora que lhe efetuavam os curativos.
q) Por diversas vezes, fosse com o senhor CC lanchar à Pastelaria E... sita na ....
r) Por inúmeras vezes, acompanhasse o senhor CC à feira da ... que se realiza nos dias 12 e 29 de cada mês.
s) Também, e por diversas vezes, a Autora levasse o senhor CC a lanchar numa pastelaria/café, sita no F... de ....
t) A Autora, desde abril de 2012 e até novembro de 2017, fosse todos os meses e anos com o senhor CC ao cemitério de ....
u) Quando, no ano de 2016, o senhor CC teve alta do internamento a que havia sido sujeito na A..., a Autora efetuasse todas as diligências com vista à substituição da instalação elétrica do corredor da casa do senhor CC, de modo a que as luzes se ligassem de forma automática sempre que o mesmo permanecesse em tal espaço.
v) Quando o senhor CC esteve internado, no período compreendido entre o dia 25 de junho de 2018 e o dia 2 de julho de 2018, no hospital ..., por insuficiência respiratória, a Autora, nos períodos de almoço e de jantar, fosse a pessoa que lhe dava na boca as respetivas refeições.
w) Quando o senhor CC foi para o Lar, a Autora, depois de obter a devida autorização dos responsáveis de tal Lar, levasse a roupa de cama e almofada do senhor CC conforme por este solicitado.
x) A Autora suportasse todos os custos de deslocações e demais despesas supra identificadas utilizando para o efeito o seu veículo automóvel.
y) Fosse a Autora que diligenciasse e despendesse o seu tempo com o pagamento do Imposto de Circulação, inspeções obrigatórias do veículo automóvel e compra de uma bateria.
z) Na consulta do dia 24 de março de 2017 referida no ponto 38 dos factos provados fosse diagnosticado ao Sr. CC uma insuficiência cardíaca, pulmonar e cerebral.
aa) Os medicamentos referidos no ponto 39 dos factos provados tenham, no mesmo dia, sido administrados ao senhor CC, nomeadamente, fosse administrada Trazodona na noite de dia 24 de março, duas vezes no dia 25 de março, duas vezes no dia 26 de março e na manhã do dia 27 de março.
bb) O senhor CC, até janeiro de 2018, sempre assinasse todos os documentos.
cc) A 27 de março de 2017, o Sr. CC pudesse e soubesse assinar.
dd) Durante o período em que o senhor CC se encontrava no Lar do ... e, depois, de ..., jamais utilizasse o telemóvel ou outro meio de comunicação e, muito menos, se deslocasse, para onde quer que fosse, sozinho, ou acompanhado, sem que a Autora fosse previamente avisada.
ee) O Senhor Dr. LL e a senhora D. MM não conhecessem o senhor CC e jamais com o mesmo tivessem qualquer contacto e/ou qualquer relação pessoal e/ou profissional.
ff) O senhor CC, no dia 27 de março de 2017, não se ausentasse do Lar.
gg) Atento o seu estado de saúde, não soubesse o nome completo da ora Ré, a freguesia onde a mesma havia nascido, o concelho a que pertencia, a rua e número de porta da residência e o lugar.
hh) À data do testamento, andasse desavindo com a ora Ré.
ii) A impressão digital constante do alegado testamento não pertença ao Senhor CC, o qual nada outorgasse.
jj) - O senhor CC fosse regularmente medicado com fármacos que se destinavam a atuar no sistema nervoso.
kk) Os filhos da Ré sempre se consideraram netos do Sr. CC e nutriam por ele grande afeição.
ll) Em determinada altura, a filha da ré, TT, fosse informada de que o seu “avô da ...” queria falar com ela e fosse por isso que fosse ao lar de idosos “Residencial ...”, no ....
mm) O Sr. CC que lhe confidenciasse que desconfiava que a autora se havia apoderado de todos os seus bens, sendo certo que não tinha qualquer domínio sobre os seus dinheiros, contas bancárias, pensão de reforma, etc., e que precisava da ajuda da sua família.
nn) O Sr. CC comunicasse à ré que queria fazer um testamento a seu favor, pois já não confiava na autora e sabia agora que ela só queria o dinheiro dele.
oo) A 2 de novembro de 2017, a ré levasse o Sr. CC ao cemitério para visitar a campa da sua falecida mulher, mãe desta, uma vez que a autora já o havia deixado de fazer há muito.
pp) A 7 de novembro de 2017, e no âmbito de uma diligência do processo de inventário, a autora, perante todos os que ali se encontravam, autorizasse a ré e os seus filhos a visitarem o Sr. CC no lar de idosos do ..., dizendo com toda a alegria que não haveria qualquer impedimento a tais visitas.
qq) No dia 18 de dezembro de 2017, o filho da ré, NN, fosse visitar o Sr. CC no lar de idosos, tendo este solicitado àquele que o levasse aos bancos para confirmar as suas contas bancárias, pedindo-lhe também que o levasse ao cemitério para visitar a campa da sua falecida mulher.
rr) Nessa mesma altura, surgisse a autora, que impedisse o Sr. CC de sair do lar, contra a vontade manifestada pelo mesmo, mais lhe dizendo que estava proibido de ver os seus familiares.
ss) Perante tal discurso, o Sr. CC perguntasse à autora o que era feito de determinados bens pessoais dele, assim como da sua pensão de reforma, pedindo ainda para ver os seus extratos bancários, tendo aquela sempre evitado dar uma resposta.
tt) No momento referido em 49, o Sr. CC pusesse a impressão digital no documento por já não ter a destreza física para assinar qualquer documento.
uu) O Sr. CC não exibiu os seus documentos de identificação pois não se fazia acompanhar dos mesmos, apenas fotocópia, pois aqueles estavam na posse da autora.
vv) Nos contactos que teve com a Ré, o Sr. CC sempre se apresentasse perfeitamente lúcido, com consciência do mundo que o rodeava e sem qualquer mágoa ou rancor para consigo ou com a sua família
ww) No dia do testamento, a 27 de março de 2017, e ainda antes dessa data, em todos os contactos que a ré teve com o Sr. CC o mesmo não apresentasse qualquer limitação psíquica – muito pelo contrário, se encontrando bastante lúcido, tendo partido dele a intenção de outorgar o testamento.
xx) O episódio de agressividade relatado no art. 156 da p.i acontecesse no seguimento de o Sr. CC ter confrontado a autora sobre o paradeiro dos seus bens e ter acusado a mesma de se ter apropriado deles, afastando-o simultaneamente da sua família.
Por razões de lógica processual, a exposição inicia-se pela apreciação do vício repontado à estrutura interna da sentença.
Diz a recorrente ser a decisão nula por contrariedade entre os fundamentos, invocando o disposto no art. 615.º, n.º 1 c) do CPC.
Considera que, tendo o tribunal entendido que os documentos médicos não atestam a incapacidade do falecido, ao tempo do testamento, também lhe estava vedado conclui-lo com recurso a outros factos – como o fez – porque destes factos não pode extrair-se conclusão nesse sentido.
O que assim se expõe, a propósito de uma putativa nulidade da decisão, extravasa amplamente os vícios a que se reporta o art. 615.º do CPC.
Neste normativo estão elencadas situações das quais deflui a imprestabilidade da sentença para constituir um ato decisório, seja porque, desde logo, dela não resulte provir de agente decisor (falta de assinatura do juiz), seja porque se acha errada do ponto de vista da estrutura ou atenta contra o que devem ser os seus limites.
No caso da al. c), invocada em recurso, seria a estrutura a ter sido feita perigar mediante um raciocínio que, na ótica da recorrente, cairia numa inultrapassável contradição entre os fundamentos e a decisão.
Todavia, mesmo a recorrente, ao invocar o vício aqui em causa, teve de ir mais adiante, entrando na discussão sobre se argumentos invocados pelo tribunal para considerar verificada a previsão do art. 2199.º[1] CC – normativo que ali se erigiu como fundamento da invalidade decretada para o negócio unilateral trazido a juízo – poderiam ou não, afinal, lograr arrimo naquele quadro legal.
Ora, a este respeito referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[2]: «Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade».
Trata esta alínea de uma violação do silogismo judiciário[3].
Todavia, o que aponta a recorrente são razões de discordância com a posição exprimida em primeira instancia relativamente à concatenação dos factos relativos aos dados médicos com outros factos que se apuraram e dos quais resultaria a contextualização desta situação sob a égide daquele normativo.
Sendo assim, não está em causa um vício formal, estrutural ou intrínseco do ato decisório, mas a discussão sobre a forma como foi efetuado o julgamento dos factos apurados, à luz do direito aplicável.
A nulidade é, pois, de improceder.
Ao contrário do que afirma a recorrida, pela recorrente foram absolutamente cumpridas as formalidades previstas nos arts. 639.º, 640.º e 662.º do CPC, mostrando-se o corpo alegatório e as conclusões de recurso perfeitamente claros, com individualização dos factos impugnados, indicação do sentido da decisão que a recorrente entende dever ser proferida e prova em que se ancora a impugnação, com enunciação dos preceitos legais que se entendeu terem sido violados.
Cabe, pois, proceder à avaliação, em segunda instância, da factualidade impugnada pela recorrente.
Entende a Ré que, em 19, não deve dar-se como provado que, ao tempo da entrada do testador no Lar – maio de 2016 – o mesmo apresentava declínio das suas capacidades físicas e psíquicas, mas apenas das suas capacidades físicas, estando bem psiquicamente.
Quanto a este ponto, revela-se incompreensível a pretensão da recorrente.
É que se bem atentarmos na demais matéria dada como provada, verificamos que dela resulta que, mesmo antes dessa data, já o falecido apresentava diminuídas as suas faculdades mentais e cognitivas.
Com efeito, não contando já com o facto de ter nascido em ../../1928 e, por isso, ter atingido, em maio de 2016, quase os 88 anos de idade, o que, naturalmente, objetiva suspeitas sobre o quadro demencial associado à idade avançada, a verdade é que, deu-se como provado em 18 que tal quadro demencial se apresentava, desde 2015, isto é, desde dois anos antes da outorga do testamento a favor da Ré.
Na verdade, a 8.6.2015, já se dava conta de “algum grau de demência”; em janeiro de 2016, apresentava sinais de leucoenfelopatia isquémica, ou seja, de lesão da substância branca cerebral; em novembro seguinte, evidenciava atrofia global e difusa de predomínio frontotemporal bilateral, envolvendo o cerebelo.
Face a este quadro, é possível afirmar com honestidade que, em maio de 2016, o testador se achava perfeitamente bem do ponto de vista psíquico?
A resposta é, obviamente, negativa!
Perante a prova documental que coonestou o facto provado em 18, prova essa descrita de forma profusa na sentença, não vemos como dar como não provado que, em maio de 2016, as capacidades mentais do falecido se encontravam em declínio.
Por outra parte – enfatize-se -, sendo o testador pessoa muito idosa e debilitada (ao invés de assinar, já apenas após a impressão digital), estando institucionalizado e mostrando a história anterior incompatibilidades entre si e a Ré (cfr. factos 28, 29 e 41), encontrando-se esta coadjuvada por técnicos de direito, como resulta dos factos provados em 35 a 27, não se compreende que, concomitantemente ao testamento, não se tivesse feito precaver de avaliação médico-psiquiátrica que atestasse a plena capacidade do testador.
No tocante ao ponto 22, pretende a recorrente seja suprimida a expressão por vezes, entendendo que apenas na situação ali descrita (16.5.2017), o falecido demonstrou comportamento agressivo.
Desde já se salienta a irrelevância desta pretensão. Na verdade, o que importa apurar – e, cremos, estar manifestamente evidente – é se o falecido não dispunha de condições psíquicas para querer e entender o testamento de março de 2017, sendo inconsequente que tenha, nesta ou noutra situação, exibida atitudes de agressividade.
Porém, cotejando a prova em que se apoiou o tribunal – docs. de fls. 134 a 138 e 424 v.º, ou seja, doc. 66 junto com a pi (auto de ocorrência elaborado pela GNR relativamente aos factos de 16.5.2017, cerca de mês e meio após a outorga de testamento a favor da Ré) – verificamos que, no primeiro, já é descrito o falecido como “homem com problemas de demência”, sendo que, acompanhando o auto policial, se acha uma declaração subscrita pela cuidadora do Lar, UU, no qual esta afirma expressamente ter o falecido intensificado o seu comportamento agressivo ao longo do fim de semana (donde não se tratar de um episódio esporádico), aludindo a comportamentos verbais agressivos para com o colega de quarto e, bem assim, antes disso, para com um menino de três anos, por alegados ciúmes de uma funcionária.
Por seu turno, no diário clínico elaborado nesse mesmo dia, no serviço de urgência de psiquiatria, onde o falecido deu entrada, imediatamente após o episódio descrito no auto de notícia (doc. junto com a cópia da petição de interdição apresentada pelo MP - docs. juntos nestes autos a 29.10.2019), escreveu-se o seguinte: “Histórico de alterações do comportamento desde há cerca de 2 meses”, acrescentado apresentar o testador “ideação delirante persecutória centrada no colega de quarto”.
Resulta daqui que o episódio que deu origem à intervenção da GNR no Lar, por desacatos causados pelo testador, no dia 16.5.2017, surgiu na sequência de alterações de comportamento, no sentido da agressividade, já anteriormente manifestados.
Termos em que improcede a pretendida alteração do ponto 22, apenas se impondo, por uma questão de rigor para com a prova, a menção nesse ponto de facto ao que consta do diário clínico relativo à assistência médica a que teve de ser submetido o falecido, mercê do episódio descrito em 22.
Este ponto de facto passa, assim, a ter a seguinte redação:
22 - O quadro demencial de que o senhor CC era portador levou a que o mesmo tivesse, por vezes, comportamentos agressivos para com terceiros, como ocorreu, por exemplo a 16 de maio de 2017, situação que obrigou a que tivesse de ser assistido em episódio de urgência médica, constando do diário clínico elaborado nesse mesmo dia, no serviço de urgência de psiquiatria, onde o falecido deu entrada, imediatamente, o seguinte: “Histórico de alterações do comportamento desde há cerca de 2 meses”, acrescentado apresentar o testador “ideação delirante persecutória centrada no colega de quarto”.
No mais, a pretensão da recorrente é que se deem como provados não propriamente factos relativos à reunião ou ausência de incapacidade mental e psíquica do testador, mas fundamentos desses factos, isto é, matéria que, a ser considerada, permitira ou não concluir pela existência, ou não, de tal (in) capacidade.
Assim, pretende se dê como provado que, em consulta de 24.3.2017 (três dias antes do testamento), o neurologista que o consultou (Dr. DD) não considerou existir défice cognitivo e que a notária que presidiu ao negócio unilateral do testamento teve a perceção de que o testador estava consciente para a sua prática (se tivesse notado, obviamente, não se teria colocado a questão da invalidade do testamento – ao notário impõe-se que recuse o ato, nestas situações (art. 173.º, n.º 1 al. c) do Cód. Do Notariado), sendo por demais sabido que, nas inúmeras impugnações judiciais destes negócios unilaterais, a posição destes profissionais é, naturalmente, a de que o testador se achava na plenitude das suas faculdades, caso contrário o testamento não teria sido elaborado, de modo que se a perceção do notário fosse determinante, nenhum testamento ou outro ato notarial poderia nunca ser questionado com este fundamento[4]).
A primeira questão que cabe colocar é se estas circunstâncias – que não são factos que integrem a defesa, pois que esta consiste na alegação de que o testador dispunha de capacidade psíquica para o efeito e não que quem com ele privou de nada teve perceção – detêm virtualidade para abalar a demais prova clínica e médica dos autos, mormente a que ficou subjacente aos factos dados como provados em 18,19 e 22, da qual resulta de forma inequívoca a descrição das patologias psiquiátricas de que padecia e o comportamento descompensado que evidenciava.
Assim, ainda que se dê como provada esta matéria – que, nitidamente, se insere em sede de motivação dos factos que interessam demonstrar (a capacidade ou a incapacidade) - nem por isso daí se poderia concluir estar o testador provido das devidas faculdades mentais ao subscrever o testamento.
É que, face à demais prova apurada, da invocada falta de perceção do médico e da notária sobre a incapacidade do testador não resulta a demonstração da plena capacidade deste, uma vez que a sua história clínica, anterior e subsequente, aponta exatamente em sentido oposto.
Depois, este médico, Sr. Dr. DD, médico neurologista, subscreveu a declaração que se acha junta aos autos (junção datada de 18.11.2019), na qual disse não ter encontrado os registos clínicos deste paciente nos seus ficheiros (afirmou que devem ter-se perdido), confirmando depois ter observado o falecido naquele dia 24.3.2017, mas não deixando de aludir a um quadro depressivo post falecimento da esposa, ocorrido cinco anos antes, acrescendo não ter o doente voltado à consulta, pelo que “não posso fazer um diagnóstico de certeza ou pronunciar-me sobre a evolução do quadro”.
Inquirido em audiência, este médico sequer se recordava concretamente do doente em causa, mesmo quando confrontado com o doc. 62 junto com a pi (recibo da consulta de neurologia de 24.3.2017), não se tendo sequer comprometido com resposta positiva quando questionado sobre se, nesse dia, se lhe fosse solicitado, emitiria a favor do paciente declaração atestando a plenitude das respetivas faculdades mentais.
Pelo exposto, julga-se improcedente a totalidade da impugnação da decisão de facto, salvo a clarificação do ponto 22.
Fundamentação de direito
Em causa encontra-se o disposto no art. 2199.º do CC, segundo o qual é anulável o testamento feito por quem:
- se encontrava incapacitado de entender o sentido da declaração;
ou
- não tinha o livre exercício da sua vontade, por qualquer causa.
Considera a lei que, sendo o testamento um negócio unilateral que se destina a produzir efeitos depois da morte do seu autor (arts. 2179.º e 2182.º CC), é necessário garantir que a pessoa tem discernimento para a prática daquele ato e compreende os seus efeitos.
Há, por isso, uma proteção unilateral da vontade do testador, de tal modo que, em caso de dúvida, ao contrário do que sucede para os demais negócios jurídicos (onde vale o sentido objetivo do escrito negocial – art. 236.º CC), a interpretação dos testamentos é feita de acordo com a vontade do testador (art. 2187.º CC).
A questão coloca-se ao nível da prova da situação de incapacidade ou da falta de liberdade de exercício da vontade de testar, atividade (a da prova e sua avaliação) tanto mais premente quanto é certo ser cada vez maior a expetativa de vida e, assim, mais tardias as disposições de última vontade com tudo o que isso implica de patologias associadas, senilidade, fraqueza de ânimo e de vontade, dependência perante terceiros (e correspondente ausência ou diminuição da liberdade), enfraquecimento da consciência do testador.
Este estado de facto impõe que se acautelem os testadores e a validade das suas disposições de última vontade, mormente fazendo preceder o ato de adequada consulta clínica que ateste aquelas capacidade e liberdade de vontade e ação.
Aliás, nem se compreende que em situações de idade avançada do testador, ainda para mais quando, como aqui ocorre, o mesmo se mostre de tal forma débil que nem consiga assinar, a lei não impunha ao documentador do ato a presença de facultativo ou facultativos que certifiquem a reunião das faculdades exigíveis, em ordem a garantir que é cumprida a intenção e vontade de quem assim dispõe do património de uma vida.
No caso, não suscita dúvida o facto de caber à A. o ónus da prova da incapacidade do testador, em conformidade com as regras legais de distribuição daquele (art. 342.º, n.º 1 CC).
Todavia, também aqui, como noutros capítulos jurídicos, são admissíveis as presunções hominis.
Por isso, a respeito destas ações de anulação, escreveu-se no ac. STJ, de 20.6.2023 (Proc. 1235/18.5T8VFR.P1.S1): Pode dizer-se que, em caso de enfermidade típica, permanente e habitual, a incapacidade se presume. A partir do “facto conhecido” da incapacidade do testador anterior e subsequente à feitura do testamento, é possível inferir o “facto desconhecido”, mais provável do que não, segundo o id quod plerumque accidit, da incapacidade do testador também intermédia. Nesse, caso a prova de que o testamento foi elaborado durante um intervalo lúcido cabe aos interessados na sua validade.
E, em ac. desta Relação, de 19.11.2020 (Proc. 5271/18.3T8MTS.P1), observou-se: Recai sobre o interessado na anulação do testamento o ónus da prova da situação de incapacidade de facto do testador. Porém, se estiver demonstrado que o testador se encontrava num estado de saúde mental em que a incapacidade era a consequência mais provável, cabe ao beneficiário do testamento o ónus de demonstrar que apesar disso, no momento da celebração do testamento, o testador se encontrava com aptidão natural para entender o sentido da declaração e exercer livremente o poder de dispor dos seus bens.
Citou-se neste último aresto Galvão Teles, in Revista dos Tribunais, ano 72, pág. 268, segundo o qual «provado o estado de demência em período que abrange o acto anulando, é de presumir, sem necessidade de mais, que na data do mesmo acto aquele estado se mantinha sem interrupção. Corresponde ao id quod plerum accidit; está em conformidade com as regras da experiência. À outra parte caberá ilidir a presunção demonstrando (se puder fazê-lo) que o acto recaiu num momento excepcional e intermitente de lucidez.»
No mesmo sentido, o ac. do STJ, de 20.6.2023, Proc. 5142/21.6T8CBR.C1.S1, onde se lê: Estando em causa uma situação de doença com afetação das faculdades mentais – demência, alzheimer - compete ao interessado na anulação do testamento provar que o testador sofria de doença, que no plano clínico, é comprovada e cientificamente suscetível de afetar a sua capacidade de perceção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer ato de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente. Como doença que clinicamente se reflete na degenerescência evolutiva das condições de perceção, compreensão, raciocínio, gestão dos atos quotidianos e da sua vivência existencial, aptidões de pensamento abstrato e concreto, discernimento das opções comportamentais básicas e fatores de funcionamento das relações interpessoais e sociais, o interessado na anulabilidade do testamento realizado por uma pessoa portadora deste quadro patológico apenas está obrigado a provar o estado de incapacidade de que o declarante padece por ser previsível, à luz da ciência e da experiência comum, que este tipo de situações não se compatibilizam com períodos de lucidez ou compreensão (normal) das situações vivenciais.
Ora, no caso que nos ocupa, temos um testamento outorgado em março de 2017.
Temos, ainda, demonstrado que o testador contava, àquela data, quase 89 anos de idade e foi também dado como provado que começou a apresentar um quadro demencial em 2015, com leucoencefalopatia isquémica e atrofia de predomínio cortical frontotemporal (em 2018, alude-se a atrofia global de partes do cérebro), envolvendo o cerebelo, estes documentados em 2016.
De modo que, antes de março de 2017, está suficientemente demonstrada a evolução de um quadro demencial significativo com atrofia do cérebro.
Depois do testamento, esse quadro manteve-se, com a descrita situação de comportamento agressivo em maio de 2017, motivada por ideação de perseguição relativamente ao colega de quarto na instituição onde o idoso se achava acolhido; e, em março de 2018, tentada a sua citação para processo de maior acompanhado, não foi a mesma possível porque à funcionária judicial se suscitaram dúvidas sobre a sua capacidade para entender tal ato; em maio desse ano, alude-se a diminuição e lentificação dos recursos cognitivos, QI clinicamente abaixo do esperado, pobreza, lentificação e desorganização na estratégia de resolução dos problemas, conteúdo do pensamento irregular, alterações psicomotoras, desorganização pessoal, discurso pobre e não espontâneo, pouco fluente e em tom baixo, humor depressivo. Acresce ter-lhe sido fixada incapacidade elevada, de 74%, decorrente exatamente de patologias psiquiátricas e neurológicas.
De tudo isto resulta que, antes e depois do testamento, o testador estava afetado de patologias psíquicas e neurológicas que, com toda a probabilidade, fazem presumir a sua incapacidade para querer e entender o testamento realizado em março de 2017.
Aqui chegados, tendo a A. efetuado esta demonstração, cabia à Ré provar que, não obstante aquela incapacidade, evidenciada antes e depois do negócio jurídico unilateral, o ato em causa foi praticado num momento de excecional e intermitente lucidez.
Porém, essa prova não foi feita, como vimos.
Aliás, o que parece resultar dos demais factos provados e do contexto geral da vida do testador é a instrumentalização da pessoa do falecido que, anos antes, em 2012, celebrara vários negócios jurídicos tendentes a beneficiar a A. (efetuou-lhe testamento, doou-lhe quota hereditária e outorgou procuração a ser favor), como contrapartida de esta se encarregar de si tomar conta, o que a mesma foi fazendo ao longo dos anos (factos 4, 5, 6 a 17, 20), vislumbrando-se, em contrapartida, uma animosidade do testador relativamente à Ré, sua enteada, e família desta (factos 28, 29 e 41).
De modo que, surgindo como uma revogação de tudo quanto, em 2012, constituiu a manifestação de vontade do testador, em ordem a ver-se protegido pela A. na sua velhice e face ao que foi a sua degradação psíquica e neurológica, a partir de 2015, o testamento de 2017 não corresponde senão a um exercício não livre e não autónomo da vontade de testar.
O ato em causa é, pois, inválido (anulável), conforme decretado em primeira instância.
Dispositivo
Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e manter a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Porto, 10.7.2024
Fernanda Almeida
Eugénia Cunha
José Eusébio Almeida
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[1] É anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória.
[2] Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 4.ª Ed., p. 736-737.
[3] Ac. RL, de 9.7.2014, Proc. 1021/09.3T2AMD.L1.1: A nulidade referida no artº 615º nº 1, al. c) do Código de Processo Civil (é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível) está relacionada, por um lado, com a obrigação imposta pelos artºs. 154º e 607º nºs. 3 e 4, de o Juiz fundamentar os despachos e as sentenças e, por outro, pelo facto de a Sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico, em que a decisão deverá ser a conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor), não ocorrendo essa nulidade se o julgador errou na subsunção que fez dos factos à norma jurídica aplicável, ou se errou na indagação de tal norma ou da sua interpretação.
[4] A questão de saber se o facto de o testamento ter sido outorgado perante notário constitui presunção legal e suficiente de como aquele ato é dotado de validade e eficácia, na medida em que […] “aquele garante em primeira linha a capacidade do testador aquando da outorga do testamento”, tem sido apreciada na jurisprudência do STJ, no sentido que encontramos consignado, entre outros, no acórdão de 8 de Março de 2018 (proc. 2170/13.9TVLSB.L1.S1 […]: Relativamente à questão da alegada força probatória plena do testamento quanto à capacidade da testadora no momento da sua outorga por ter sido lavrado por notária, dispõe o n.º 1 do art. 37.1º do CC: “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”. Interpretando esta regra, é entendimento pacífico que “Não é sempre a mesma a força material de um documento autêntico: depende da razão de ciência invocada. Assim, ficam plenamente provados os factos que nele se referem como tendo sido praticados pela entidade documentadora, autora do documento (que conferiu a identidade das partes, ou que lhes leu o documento…), ou que nele são atestados com base nas suas percepções (por ex., as declarações que ouviu ou os actos que viu serem praticados); mas os meros juízos pessoais do documentador (que a parte se encontrava no pleno uso das faculdades mentais ou semelhante) ficam sujeitos à regra da livre apreciação pelo julgador.” (Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, anotação ao artigo 371º, da autoria de Maria dos Prazeres Pizarro Beleza) [apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-09-2019, proc. n.º 1146/17.1T8BGC.G1.S2, Maria Graça Trigo, in www.dgsi.pt].