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COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
DIREITO INTERNACIONAL
INVENTÁRIO
RESIDÊNCIA HABITUAL
INCONSTITUCIONALIDADE
Sumário
I - Atento o primado do direito comunitário sobre o direito nacional (nº 4 do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa) e o disposto no artigo 4º nº 1 do Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, há que atribuir aos órgãos jurisdicionais alemães a competência internacional para decidir da sucessão de nacional português com última residência habitual na (País europeu ...) e falecido após 17 de agosto de 2015, ainda que todos os bens a partilhar se situem em Portugal. II – A primeira exceção a esta regra encontra-se prevista no artigo 5º do Regulamento e tem como pressuposto que o falecido tenha escolhido a lei da nacionalidade para regular a sucessão e que esta lei seja a de um Estado Membro, o que não foi alegado nem está demonstrado nos autos. III – Outra exceção ao foro da residencial habitual, estabelecida no artigo 7º do Regulamento, tem como pressuposto que o falecido tenha escolhido a lei da nacionalidade para regular a sucessão e que esta lei seja a de um Estado Membro, o que não se verifica no caso. IV - Não suscita adequadamente a inconstitucionalidade a parte que discorda da decisão por esta alegadamente violar princípios constitucionais, sem questionar e pedir a desaplicação da norma (ou aplicação com uma determinada interpretação) que supostamente viola a Constituição. (Sumário elaborado pelo relator)
Texto Integral
Proc. nº 466/23.0T8OLH.E1
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO
Nos presentes autos de inventário por óbito de Nuno Marques Correia Falcão, falecido em 11.04.2022, na (País europeu ...), em que é cabeça de casal AA, e interessados BB (requerente do inventário) e CC, a correrem termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo de Competência Genérica ... - Juiz ..., foi proferida decisão que declarou «a incompetência absoluta deste Tribunal, em face das regras de competência internacional, para apreciar e julgar a presente ação e, em conformidade, absolve-se os interessados da instância».
Inconformado, o interessado BB interpôs recurso de apelação para este Tribunal da Relação, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«1. O Requerente e o seu Pai são portugueses, bem como são as irmã do Requerente e a mãe (cabeça-de-casal) do Requerente também.
2. A Cabeça-de-casal reside também em Portugal, no imóvel que constitui o único bem a partilhar em Portugal, apenas a irmã é que reside na (País europeu ...).
3. A Cabeça-de-casal não se opôs a discutir o inventário em Portugal.
4. O único bem a partilhar é um direito a uma concessão em domínio Público, em Portugal (onde reside atualmente a cabeça-de-casal) e a respetiva edificação lá construída pelo falecido.
O direito a aplicar sobre as obrigações relativamente a esse imóvel será o português – por exemplo, enriquecimento sem causa, créditos, etc;
5. A boa administração da Justiça (primeiro critério) só se fará julgando a causa num tribunal Português, o mais habilitado a discutir esta questão.
6. Também relativamente ao elemento de conexão efetividade da Tutela Processual, também, atenta as razões apontadas, também se alcança sendo a presente causa discutida num tribunal português.
Caso a mesma fosse julgada na (País europeu ...), teriam as partes de invocar e estar a transcrever, a traduzir, a apostilar a Lei Portuguesa; teriam, aliás, os senhores juízes alemães de estar a estudar a nossa lei para que a causa pudesse ser julgada para que se garantisse a referida tutela processual.
7. Relativamente ao elemento de conexão harmonia das decisões sobre um litígio, também por aí se deve entender que o lugar mais adequado para o julgamento da presente causa é um tribunal português, até porque não se vê que um tribunal alemão fosse tomar uma decisão diferente da que tomaria um tribunal Português até porque, para além de uma mera questão de residência, a presente questão nenhum elemento de conexão tem como a lei alemã.
8. Relativamente ao critério do interesse das partes, é bem visível que tanto o Requerente, como a Requerida, cabeça-de-casal que nunca invocou qualquer exceção de incompetência, têm interesse em que a causa seja julgada num tribunal português.
9. Relativamente ao elemento da Proteção das partes mais fracas, pensamos que esse elemento aqui nem tem campo de aplicação, uma vez que ambas as partes são vulneráveis e sem quaisquer meios económicos para se estarem a deslocar para outro país para efeitos de partilhar um bem e um direito que se encontram em Portugal.
10. Relativamente ao elemento de conexão Proximidade de litígio, também se vê nitidamente que, estando as partes em território nacional, bem como o único bem e o único direito a partilhar também em território português, logicamente se conclui que o litígio tem i seu centro total em Portugal e nenhuma proximidade de um tribunal estrangeiro.
11. Já o autor Augusto Lopes Cardoso, na sua obra “PARTILHAS LITIGIOSAS”, VOLUME I, da editora Almedina do ano de 2018, nas páginas 258 e seguintes refere que.
“É a Lei de Processo que fixa os fatores de que depende a competência internacional dos Tribunais judiciais; nesta conformidade, o princípio dominante da competência internacional é o que manda fazê-la coincidir com a competência territorial [CPCiv., arts. 61.º e 65.º - 1-a)].”
12. E em rodapé, o autor afirma (nota 700):
“(…) O princípio da territorialidade que está na base da competência afirma-se como reflexo da soberania dos Estados, enquanto por via dele se afirma que dentro do território de um Estado só os seus tribunais podem administrar a justiça, desde que haja qualquer elemento de conexão pertinente, e isto prescindindo da nacionalidade dos que pretendem ver declarados ou executados os direitos que reclamam. (…)”
13. O Autor em causa refere (pág. 263 da citada obra) que
“(…) ao reportar-se ao «último domicilio» a lei civil tem em vista o último domicílio no país.”
Refere o Autor em causa que já era assim geralmente entendido antes de 1966 e afirma ser seguro que tanto o Código Civil vigente, como a Lei adjetiva anterior do mesmo modo o inculcavam.
Refere o Autor (páginas 266 e seguintes) que,
“(…) é competente territorialmente competente para o inventário o tribunal da situação dos imóveis ou a maior parte deles [CPCiv., art. 77.º - 2-a)] (…)”.
Refere o Autor citado que o juízo da situação dos bens era, pois, sucedâneo do domicílio, pelo que só atuava na falta deste.
14. Refere o Autor em causa (página 287) que:
“A solução deve encontrar-se no Plano do Princípio geral de Direito Internacional Privado que provém do art. 62.º CCiv., e por integração de lacuna a que a analogia faz apelo (CCiv., art. 10.º). Deste modo, tal como a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da herança ao tempo do falecimento desde, lei essa que inclui a definição dos poderes do administrador da herança e do executor testamentário, não pode deixar de ser essa «Lei Pessoal» aquela que confere aos Cartórios Notariais Portugueses competência para a partilha por inventário. E «A Lei Pessoal é a da nacionalidade do individuo» (CCiv. Art. 31.º - 1).”
15. Também os autores João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, em “Manual de Processo Civil.” Volume I, da editora AAFDL EDITORA, Lisboa, ano 2022, nas páginas 278 e seguintes, os mesmos referem:
“Por força do critério da causalidade, a competência dos tribunais portugueses resulta de ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação ou algum dos factos que integram a essa causa pretendi (art. 62.º, al.b) a causa de pedir é o ato ou facto jurídico que individualiza a pretensão material ou o direito potestativo alegado pelo autor, pelo que, para que os tribunais portugueses sejam competentes segundo o critério da causalidade, é necessário que, pelo menos, um dos factos que integram a causa de pedir tenha sido praticado em Portugal. A prática em Portugal de um facto complementar ou concretizador não chega para atribuir competência aos tribunais portugueses. Assim, por exemplo, basta que o contrato de seguro tenha sido celebrado em Portugal, para atribuir competência internacional aos tribunais portugueses para a apreciação da ação proposta pelo segurado contra a seguradora. Do mesmo modo, se um moçambicano pretender de outro moçambicano, ambos domiciliados no Maputo, o cumprimento de uma obrigação emergente de um mútuo que devesse ser realizada no Maputo, os tribunais portugueses são competentes para a ação se o mútuo tiver sido celebrado em Portugal.”
16. Ora, estando ambas as partes em Portugal, e nenhuma delas ter levantado essa questão, é lógico que terem de ir para a (País europeu ...) discutir um direito a ocupação, bem como o direito a uma edificação em território português, é um fator de impossibilidade prática, senão também jurídica!
17. “O alinhamento entre o regime europeu e o regime interno é tanto mais desejável quanto o Reg. 650/12 afasta por completo (ou melhor, quase por completo: cf. arts.º 19.º e 75.º Reg. 650/12) as regras internas sobre a competência internacional em matéria sucessória. Quer dizer: para qualquer pessoa que faleça em Portugal (seja cidadão português, seja cidadão de um Estado-Membro, seja ainda cidadão de um Estado Terceiro), a competência internacional dos tribunais portugueses é exclusivamente aferida pelo estabelecido no Reg. 650/12, em especial pelo disposto nos seus arts.º 4.º (regra geral) e 5.º (acordo de eleição do foro). Note-se que, em certas circunstâncias, o Reg. 650/12 é aplicável mesmo que o de cujus não tenha residência habitual em nenhum Estado-Membro (cf. arts.º 10.º (competências residuais) e 11.º (forum necessitatis) Reg. 650/12)).”
18. Portanto, por todo este conjunto de razões se entende que o tribunal português é o competente para a presente ação.
19. Caso seja decidido que este juízo é incompetente para decidir a presente questão, entende-se que tal decisão será inconstitucional, por violação dos números 4 e 5 do artigo 20.º da Constituição da Republica Portuguesa, uma vez que o Requerente, bem como os outros herdeiros estão a ver os seus direitos coartados, pois está a ser-lhes vedado o seu acesso à Justiça, uma que nenhum deles tem recursos para se deslocar à (País europeu ...) para decidir sobre direitos sobre coisas e situações que se encontram em território nacional; inconstitucionalidade que se invoca para todos os efeitos legais.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir consubstancia-se em saber se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar o presente inventário, por óbito de nacional português falecido com última residência habitual na (País europeu ...).
Haverá ainda que apreciar a invocada inconstitucionalidade da “decisão” recorrida.
III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS
A factualidade a considerar para a decisão do recurso é a que consta do relatório que antecede.
O DIREITO
Sempre que o litígio que é submetido a juízo apresenta elementos de estraneidade relativamente à ordem jurídica portuguesa, isto é, contém algum elemento objetivo ou subjetivo que o põe em contacto com outra ordem jurídica, que não a portuguesa, põe-se uma questão de competência internacional dos tribunais portugueses.
As regras sobre a competência internacional permitem apenas determinar se os tribunais portugueses são, no seu conjunto, competentes para decidir o litígio; mas já não definem qual o tribunal concretamente competente, no interior da jurisdição nacional, para apreciar a questão. Essa é a função das regras da competência interna.
Os tribunais judiciais portugueses aferem a sua competência internacional de acordo com as regras do direito interno e, também, das regras de direito internacional que obriguem o Estado português.
Assim, o art.º 59.º do CPC, sob a epigrafe “Competência internacional”, estipula que “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”
Daqui resulta que quando algum destes instrumentos seja aplicável, é pelas regras nele estabelecidas que deve aferir-se a competência dos tribunais portugueses. E resulta também que se for aplicável algum desses instrumentos e dele não resultar a competência dos tribunais portugueses, também não poderá tal competência resultar da aplicação das regras internas.
O nº 1 do art. 8º da Constituição da República Portuguesa [CRP] estabelece um regime de receção automática das normas e princípios de direito internacional geral, que fazem parte integrante do direito português.
O nº 4 do mesmo preceito constitucional, introduzido pela Lei Constitucional nº 1/2004, de 24-07 (Sexta Revisão Constitucional) estatui que «[a]s disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.»
Este normativo constitucional reflete o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, enquanto princípio estruturante do próprio ordenamento comunitário, tal como tem vindo a ser sustentado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.
Escreveu-se a este propósito no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.11.2018[1]:
«O TJ, com início no acórdão de 15 de Julho de 1964, Costa v. ENEL – precisamente no quadro do reenvio prejudicial [atual art. 19º, nº 3, alínea b), do TUE] – e, reiteradamente, em sucessivos acórdãos, veio estabelecer o princípio do primado do direito comunitário sobre o direito nacional, enquanto princípio estruturante do próprio ordenamento comunitário. No quadro da assinatura do Tratado de Lisboa, na declaração nº 17 anexa à ata final, sobre o primado do direito comunitário, «A Conferência lembra que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o direito adotado pela União com base nos Tratados p11rimam sobre o direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência». Primado do direito comunitário sobre o direito nacional reconhecido no nº 4 do art. 8º da Constituição: uma das dimensões de tal primado consiste, precisamente, em «afastar as normas de direito ordinário internas preexistentes e em tornar inválidas, ou pelo menos ineficazes e inaplicáveis, as normas subsequentes que o contrariem. Em caso de conflito, os tribunais nacionais devem considerar inaplicáveis as normas anteriores incompatíveis com as normas de direito da UE e devem desaplicar as normas posteriores, por violação da regra da primazia» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., 2014, anotação XXIII ao art. 8º, pág. 271; realce acresc.). Os tratados, ao conformarem o sistema judicial da União, à luz do princípio da subsidiariedade (art. 5º, nºs. 1 e 3 do TUE), não instituíram um sistema autónomo com tribunais próprios; deixando apenas reservadas ao Tribunal de Justiça as competências insuscetíveis de serem atribuídas aos tribunais dos Estados-Membros, convocaram estes como tribunais comuns da União e, nesta qualidade, encontram-se aqueles investidos, designadamente, com competência para desaplicarem o direito nacional contrário ao direito da União (acórdãos do TJ, de 9 de março de 1978, Simmenthal, 106 e de 19 de maio de 1990, Factortame, C-213/89). Do mesmo modo, relativamente ao ordenamento jurídico interno, no caso de Portugal, nos termos do art. 204º da Constituição, no quadro de divisão de poderes, incumbe aos tribunais assegurar a prevalência ou primazia da Constituição (…).»
No âmbito do fenómeno sucessório, foi aprovado o Regulamento (EU) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 04.07.2014[2], publicado no Jornal Oficial da União Europeia de 27.07.2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, tendo entrado em vigor em 16.08.2012, no vigésimo dia seguinte à sua publicação (artigo 84º, 1º parágrafo).
Este Regulamento é aplicável em todos os Estados-Membros da União Europeia, com exceção do Reino Unido, da Irlanda e da Dinamarca, mas apenas rege as sucessões abertas a partir de 17.08.2015 (cf. artigo 83º), com salvaguarda transitória da escolha de lei feita pelo de cujus ou da validade formal e material de disposições por morte feitas antes dessa data.
Assim, uma vez que o inventariado Nuno Marques Correia Falcão faleceu em 11.04.2022, o Regulamento é, quanto ao elemento temporal, aplicável. In casu, ocorre o facto de a morte do inventariado ter ocorrido na (País europeu ...) e de pelo menos um dos sucessíveis, neste caso a filha, residir na (País europeu ...). Está em causa um direito de ocupação de uma parcela de terreno situada na Ilha ..., em Portugal, e a respetiva edificação lá construída pelo inventariado, onde reside atualmente a cabeça de casal. O interessado, requerente do inventário e ora recorrente, filho do inventariado, reside em Portugal.
Assim, o caráter transfronteiriço da sucessão também ocorre para o efeito de aplicação do Regulamento, pelo que se coloca a questão de saber se o tribunal português é ou não competente para o julgamento do presente inventário.
O critério geral escolhido pelo Regulamento para decidir da questão da competência internacional dos órgãos jurisdicionais foi o da residência habitual do falecido: determina o artigo 4º que «são competentes para decidir do conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito».
Este critério coincide tendencialmente com o da lei substantiva a aplicar à sucessão.
Com efeito, nos termos do art. 21º, nº 1, do Regulamento, «[s]alvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito».
A opção por este critério, em detrimento do da nacionalidade do de cujus, que prevalece no direito interno de muitos países, é justificada no considerando nº 23 do Regulamento, pela tomada de consciência da mobilidade crescente dos cidadãos e a ideia de que assim melhor se assegurará a boa administração da justiça, assegurando-se uma conexão real entre a sucessão e o Estado-Membro em que a competência é exercida.
Como veremos infra, são muito pouco abrangentes as exceções ao critério da residência habitual, a não ser que a pessoa falecida tenha escolhido a lei da nacionalidade para regular toda a sua sucessão, por declaração que revista a forma de uma disposição por morte ou resulte dos termos dessa disposição (artigo 22º do Regulamento).
É certo que na definição do que se deve considerar residência habitual do falecido existe algum âmbito de liberdade, esclarecendo-se no considerando 23 que «[a] fim de determinar a residência habitual, a autoridade que trata da sucessão deverá proceder a uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões dessa permanência. A residência habitual assim determinada deverá revelar uma relação estreita e estável com o Estado em causa tendo em conta os objetivos específicos do presente regulamento.»
E no considerando 24 assume-se que esta determinação pode ser complexa, aceitando-se que um falecido que, por razões profissionais ou económicas, tenha ido viver para o estrangeiro a fim de aí trabalhar, por vezes por um longo período, mas tenha mantido uma relação estreita e estável com o seu Estado de origem possa não ter perdido a residência habitual no seu estado de origem, «no qual se situavam o centro de interesses da sua família e a sua vida social». In casu, como se viu, encontra-se definida a residência habitual do inventariado na (País europeu ...), a qual coincide, aliás, com a residência habitual da sua filha CC, que segundo o recorrente prestou assistência ao pai nos seus últimos dois anos de vida (cfr. art. 22º da petição inicial aperfeiçoada).
Importa, pois, verificar se a situação dos autos é abrangida por alguma das exceções à regra da determinação do tribunal competente pela residência habitual do falecido no momento do óbito.
A primeira exceção a esta regra encontra-se prevista no artigo 5º do Regulamento e tem como pressuposto que o falecido tenha escolhido a lei da nacionalidade para regular a sucessão e que esta lei seja a de um Estado Membro.
Ora, não foi alegado nem demonstrado que o inventariado tenha feito alguma declaração de escolha da lei da nacionalidade para regular a sua sucessão, pelo que a situação em apreço não cabe nessa exceção à competência dos tribunais do foro da residência habitual.
Também a exceção ao foro da residencial habitual estabelecida no artigo 7º do Regulamento tem como pressuposto que o falecido tenha escolhido a lei da nacionalidade para regular a sucessão e que esta lei seja a de um Estado Membro, o que não se verifica no caso.
Outrossim o artigo 9º do Regulamento, que alarga a competência do tribunal da nacionalidade com base na comparência e não contestação da competência do órgão jurisdicional tem como pressuposto que o falecido tenha escolhido a lei da nacionalidade para regular a sucessão e que esta lei seja a de um Estado Membro, ao remeter para o artigo 7º do Regulamento.
O artigo 10º do Regulamento tem já em consideração o local onde se situam os bens da herança, se coincidir com um Estado-Membro, mas tem como pressuposto que a residência habitual do falecido no momento do óbito não esteja situada num Estado-Membro, o que se não verifica no caso em apreço.
No Regulamento estabelece-se ainda uma possível limitação à jurisdição, no âmbito de determinada ação: Caso a herança do falecido inclua bens situados num Estado não-membro, o órgão jurisdicional chamado a decidir da sucessão pode, a pedido de uma das partes, decidir não se pronunciar sobre um ou mais desses bens se for expectável que a sua decisão relativamente a tais bens não será reconhecida nem, se for caso disso, declarada executória nesse Estado terceiro.
Esta previsão não tem aqui aplicação, uma vez que o único bem conhecido se situa, conforme alegado pelo recorrente, em Portugal.
No artigo 11º estipula-se o Forum necessitatis:
«Caso nenhum órgão jurisdicional de um Estado-Membro seja competente por força do disposto no presente regulamento, os órgãos jurisdicionais de um Estado-Membro podem, em casos excecionais, decidir da sucessão se uma ação não puder ser razoavelmente intentada ou conduzida ou se revelar impossível num Estado terceiro com o qual esteja estreitamente relacionada.
O processo deve apresentar uma conexão suficiente com o Estado-Membro do órgão jurisdicional em que foi instaurado.»
O caso em apreço não cabe em nenhuma destas circunstâncias excecionais, porquanto o falecido/inventariado tinha residência à data do óbito num Estado Membro ((País europeu ...)) e não efetuou a escolha da lei aplicável à sua sucessão.
É certo que o artigo 21º, nº 2, do Regulamento permite que, a título excecional, se aplique a lei do Estado com o qual o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita, mas esta norma não abrange a competência dos tribunais, mas sim a lei aplicável à sucessão. A excecionalidade desta aplicação é salientada no próprio preceito que, além disso, exige que tal relação resulte claramente do conjunto das circunstâncias do caso: não basta um conjunto de elementos que conectem o falecido a um outro estado que não o da sua residência habitual, é necessário que tal conexão seja muito superior à que resulta da residência.
Ora, a questão aqui em apreço é de competência, pelo que mais não há que concluir pelo bem fundado do decidido, o qual, aliás, foi precedido do respetivo contraditório com vista a assegurar as expetativas dos interessados.
De todo o exposto se conclui que por haver que dar o primado ao Direito Comunitário, a decisão recorrida não incorreu em qualquer violação dos fatores de atribuição da competência internacional estabelecidos no artigo 62º do Código de Processo Civil, porquanto o artigo 59º do mesmo diploma condiciona a sua aplicação ao que se «encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais». Por seu turno, os artigos relativos à competência em razão do território relativos à matéria sucessória só poderão ter aplicação após ter sido determinada a competência internacional dos tribunais portugueses.[3]
Por último, prevê o Regulamento, à semelhança do direito nacional, que a incompetência internacional deve ser oficiosamente declarada (artigo 15º do Regulamento e 96.º, al. a), 97.º, n.º 1, 98.º, 99.º, n.º, 1, todos do Código de Processo Civil).
Da alegada inconstitucionalidade da “decisão recorrida”
Diz o recorrente na conclusão 19 que «[c]aso seja decidido que este juízo é incompetente para decidir a presente questão, entende-se que tal decisão será inconstitucional, por violação dos números 4 e 5 do artigo 20.º da Constituição da Republica Portuguesa, uma vez que o Requerente, bem como os outros herdeiros estão a ver os seus direitos coartados, pois está a ser-lhes vedado o seu acesso à Justiça, uma que nenhum deles tem recursos para se deslocar à (País europeu ...) para decidir sobre direitos sobre coisas e situações que se encontram em território nacional»[4].
Está na disponibilidade das partes invocar a inconstitucionalidade de uma norma cuja desaplicação se pretenda - art. 280º, nº 1, al. b), da CRP. Devem, aliás, fazê-lo, caso pretendam recorrer para o Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta, porque só assim o recurso será admissível[5] - arts. 70º, 72º e 75-A, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional (doravante LOTC), Lei nº 28/82, de 15 de novembro.
Contudo, a questão da inconstitucionalidade tem de ser arguida «…de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» - art. 72º, nº 2, da LOTC.
A doutrina e jurisprudências são unânimes em considerar que o objeto do recurso é sempre a (in)constitucionalidade de uma norma e não de uma decisão judicial. O juízo incide apenas sobre a norma aplicada ou não-aplicada no processo (art. 79º-C, nº 1, da LOTC). O que é uma decorrência da prejudicialidade da questão (o objeto do processo não é esse, a inconstitucionalidade é instrumental) e do princípio processual do pedido[6].
Suscitar a questão da inconstitucionalidade não equivale a sindicar a decisão impugnada ou os seus fundamentos.
Com efeito, a parte tem o dever de: (i) identificar e pedir a desaplicação da norma ordinária que considera inconstitucional e (ii) indicar o princípio constitucional violado[7].
«O Tribunal Constitucional apenas pode conhecer da inconstitucionalidade de “normas jurídicas” ou de “interpretações normativas” (art. 277.º, n.º 1, da CRP), não se encontrando instituído um sistema de fiscalização das próprias decisões jurisdicionais.»[8].
O recorrente não suscitou qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, limitando-se a manifestar a sua divergência com a decisão recorrida no mero plano da aplicação da lei. As diversas questões jurídicas que suscita são sempre referidas ao modo como o direito ordinário foi aplicado. Em suma, o que o recorrente defende é que, na decisão recorrida, não se respeitou nem a lei ordinária, nem a Constituição.
Poderia o recorrente entender que o tribunal a quo aplicou uma norma que, interpretada em certo sentido, viola normas constitucionais. Mas, para isso teria de suscitar expressamente a inconstitucionalidade da norma aplicada, o que não fez.
Tanto basta para não se tomar conhecimento da alegada inconstitucionalidade.
Sem prejuízo, sempre se dirá que a interpretação das normas do Regulamento feita na decisão recorrida, é totalmente conforme à Constituição que, no seu artigo 8º, nº 4, reconhece o primado do direito comunitário sobre o direito nacional, não fazendo qualquer sentido dizer-se que está a ser vedado o acesso dos interessados à justiça, porque «nenhum deles tem recursos para se deslocar à (País europeu ...) para decidir sobre direitos sobre coisas e situações que se encontram em território nacional», sabendo-se, ademais, que a interessada CC reside na (País europeu ...).
Por conseguinte, o recurso improcede.
Vencido no recurso suportará o interessado/recorrente as custas respetivas (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
*
Évora, 27 de junho de 2024
Manuel Bargado (Relator)
Mário Branco Coelho
Maria João Sousa e Faro
(documento com assinaturas eletrónicas)
__________________________________________________
[1] Proc. 46/13.9TBGLG.E1.S1, in www.dgsi.pt.
[2] Doravante designado apenas por Regulamento.
[3] Cfr. acórdão da Relação de Guimarães de 20.01.2022, proc. 511/21.4T8FAF.G1, in www.dgsi.pt, também citado na decisão recorrida, que aqui vimos seguindo de perto.
[4] Esta alegação, já constante da pronúncia do recorrente no seguimento do despacho que convidou as partes a pronunciarem-se «sobre a eventual (in)competência internacional deste tribunal», tem de entender-se como reportada à decisão recorrida, e não ao presente acórdão, como se afigura evidente.
[5] Artigo 280º (Fiscalização concreta da constitucionalidade e da legalidade):
“1. Cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais: a) Que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade; b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo…
[6] Jorge Miranda, O Regime de Fiscalização Concreta da Constitucionalidade em Portugal, CJP, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, p. 10, in https://www.icjp.pt; acórdão do Tribunal Constitucional de 10.03.2010, proc. 11/10.
[7] Cfr. acórdão da Relação de Guimarães de 07.10.2021, proc. 1782/20.9T8BRG.G1, in www.dgsi.pt.
[8] Cfr. acórdão do STJ de 02.02.2022, proc. 1734/11.0TBVIS-A.S1, in www.dgsi.pt.