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PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
PRESCRIÇÃO
INFRACÇÃO DISCIPLINAR CONTINUADA
DESPEDIMENTO SEM JUSTA CAUSA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
INDEMNIZAÇÃO
RETRIBUIÇÕES INTERCALARES
Sumário
Impugnação da matéria de facto – Infracção disciplinar continuada – Violação dos deveres de obediência e lealdade – Limite temporal do direito de exercer o poder disciplinar – Princípio da proporcionalidade na aplicação da sanção – Ilicitude do despedimento – Compensação e indemnização devidas pela ilicitude do despedimento – Artigos 97.º, 98.º, 128.º, 329.º, 330.º, 351.º, 381.º, 382.º, 387.º, 389.º, 390.º e 391.º do Código do Trabalho – Artigos 565.º e 805.º do Código Civil (Sumário elaborado pela Relatora)
Texto Integral
Acordam em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
Sentença recorrida
1. Por sentença de 15.2.2024 (referência citius 432951042), o 1.º Juízo do Trabalho de Almada, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, (doravante também Tribunal de primeira instância, Tribunal recorrido ou Tribunal a quo), proferiu a seguinte decisão: “IV. Dispositivo Por tudo quanto se deixa exposto, o Tribunal considera que existe justa causa de despedimento da trabalhadora, pelo que julga lícito o despedimento promovido pela empregadora, determinando consequentemente a improcedência da acção. Quanto ao pedido reconvencional, a empregadora vai condenada no pagamento das remunerações em dívida, no valor global de € 586,57, sendo absolvida dos demais pedidos formulados pela trabalhadora. A tal valor acrescem juros legais, desde a data de vencimento dos montantes em causa até integral pagamento. Valor da causa: € 30.000,01 (artigo 98.º-P, n.º 2, do Código de Processo do Trabalho).” Alegações da recorrente
2. Inconformada com a sentença mencionada no parágrafo anterior, a recorrente (trabalhadora), dela veio interpor o presente recurso, pugnando pela revogação da sentença recorrida (cf. referência citius 38796284 de 14.3.2024).
3. A recorrente conclui a sua motivação de recurso formulando a pretensão que se segue: “38) Nestes termos, mesmo que por alguma razão, que não se descortina,não resultasse [à] saciedade a caducidade do procedimento disciplinar, o que nos parece manifesto, sempre da prova produzida se deveria considerar o despedimento com[o] ilícito por inexistência de justa causa, termos em que deve a decisão recorrida ser revogada e em sua substituição, julgar o despedimento ilícito; 39) E em consequência condenar-se a entidade patronal a pagar à trabalhadora todos os créditos laborais vencidos na pendência da acção indemnização calculada nos termos do artigo 392º, n.º3, por aplicação do artigo 63º, n.º 8, ambas do Código do Trabalho, os créditos laborais reconhecidos na sentença no valor de €596,57, bem como na quantia de 5.000,00 a titulo de indemnização por danos não patrimoniais, a que acrescem juros de mor [à] taxa legal sobre todas as importâncias, desde o respectivo vencimento até integral pagamento. 40) Ao decidir de forma diferente violou a sentença recorrida o normativo contemplado no artigo 351º e artigo 330º e ainda o art.º 392º todos do Código do Trabalho.”
4. Nas suas alegações vertidas nas conclusões, a recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto e de direito, com base em argumentos que o Tribunal a seguir sintetiza: Impugnação da matéria de facto
- Não devem figurar nos factos provados os factos 17, 22 e 27;
- Devem ser aditados aos factos provados os seguintes factos:
a) A prática do registo indevido de pontos nos cartões dos funcionários era conhecida e tolerada pela gerência da empregadora; b) A prática do registo indevido dos pontos nos cartões foi descoberta por uma funcionária que alertou a gerência não só da Ré como de outras farmácias do grupo; c) Esta situação aconteceu em Agosto de 2019. d) Vários outros trabalhadores das farmácias do grupo foram descobertos, falaram com a gerência, pediram desculpa e continuaram ao serviço; e) Na reunião de outubro de 2021, a gerência abordou com os trabalhadores a situação concreta de que se tinha apercebido que alguns funcionários da farmácia utilizavam indevidamente o seu cartão registando no mesmo vendas que eram dos clientes, acumulando assim pontos no cartão, a gerência apelidou tais comportamentos como sendo pontos de indústria; f) Nessa mesma reunião a gerência alertou os funcionários que não iria mais tolerar a continuação desses comportamentos e que estavam todos avisados; g) e que em função desse aviso da gerência a trabalhadora cancelou de imediato o seu cartão de pontos da farmácia h) pelo menos uma funcionária da farmácia, BB, após a reunião de Outubro de 2021 continuou a utilizar o cartão de pontos de forma abusiva; i) Em 25 de Fevereiro a gerência reuniu com as trabalhadoras AA, aqui A. e BB e apresentou a ambas um acordo de cessação do contrato de trabalho já assinado pela gerência, cujo teor se dá por reproduzido; j) A trabalhadora BB assinou o acordo de cessação do contrato de trabalho, ao contrário da trabalhadora AA; k) As farmácias têm um custo com a atribuição dos pontos em função da ratio entre pontos atribuídos e pontos rebatidos, tendo um custo quando atribui mais pontos do que aqueles que rebate, tem um lucro quando rebate mais pontos do que aqueles que atribui; l) A trabalhadora rebatia todos os pontos do seu cartão na farmácia da Ré;
- Meios de prova cuja reapreciação é indicada para fundamentar a discordância:
os depoimentos das testemunhas CC, DD; as mensagens trocadas entre ambas, juntas aos autos; as declarações de parte da recorrente AA e do gerente da recorrida, EE. Impugnação da decisão de direito
- Na óptica da recorrente (cf. conclusões 21 e 22), provando-se que a recorrida (empregadora) teve conhecimento dos factos que fundamentam a decisão de despedimento da recorrente (trabalhadora) há mais de um ano (desde Agosto de 2019), em Março de 2023, quando foi instaurado o processo disciplinar, já tinha caducado o direito de a empregadora iniciar tal processo, à luz do disposto no artigo 329.º do Código do Trabalho (CT); o que tem por consequência a nulidade do despedimento;
- Subsidiariamente (cf. conclusões 31 a 37), para o caso de não proceder a caducidade, na óptica da recorrente não existe justa causa de despedimento porque, em primeiro lugar, não se provaram factos sobre a concreta actuação no tempo e no espaço, imputada à recorrente e, em segundo lugar, não se provou existir qualquer lesão dos interesses da empregadora; o ónus da prova de tais factos impende sobre a recorrida; adicionalmente, não foram ponderados os 17 anos de bons serviços prestados pela trabalhadora à empregadora; enfim, os factos não comprometem irremediavelmente a relação de confiança entre empregadora e trabalhadora e, por isso, a sanção não conservatória do contrato de trabalho é desproporcional, o que infringe o disposto no artigo 330.º n.º 1 do Código do CT. Contra-alegações da recorrida
5. A recorrida (empregadora) contra-alegou (cf. referência citius 39066910 de 12.4.2024), pugnando pela improcedência do recurso, defendendo, em síntese:
- A recorrente não invocou a prescrição da infracção, pelo que essa questão não faz parte do objecto do recurso;
- Quanto à alegada caducidade, só depois do termo do ano de 2022 é que a recorrida tomou conhecimento dos factos com relevo disciplinar, tendo remetido os elementos ao instrutor em 24.2.2023 e a nota de culpa à recorrente em 23.3.2023; pelo que não se verifica a caducidade, já que o procedimento disciplinar teve início nos 60 dias subsequentes à data em que a recorrida teve conhecimento da infracção;
- O Tribunal deve levar em conta a totalidade dos depoimentos e não apenas os excertos apontados pela recorrente, assim como deve apreciar o depoimento da testemunha FF, devendo manter inalterada a decisão sobre a matéria de facto;
- Ponderado o conjunto dos factos, incluindo a gravidade do comportamento, o tempo de serviço e as funções exercidas, a violação do dever de lealdade, pela recorrente, torna inexigível, para a recorrida, a manutenção do contrato de trabalho. Parecer do Ministério Público
6. O digno magistrado do Ministério Público junto ao Tribunal da Relação, emitiu parecer (cf. referência citius 21547150 de 15.5.2024), ao abrigo do disposto no artigo 87.º n.º 3 do Código de Processo do Trabalho (CPT), pugnado pela improcedência do recurso. Defendeu, em síntese:
- Não se verifica a caducidade do procedimento disciplinar porque resulta do facto provado 17 que a recorrida teve conhecimento dos factos com relevo disciplinar em Fevereiro de 2023, tendo instaurado o processo disciplinar em Março de 2023;
- Cabia à recorrente demonstrar que o conhecimento desses factos foi anterior, o que não logrou fazer;
- A conduta da recorrente violou o dever de lealdade e quebrou irremediavelmente a confiança que deve existir entre a empregadora e a trabalhadora, tornando impossível a subsistência do contrato de trabalho;
7. Foi observado o contraditório previsto no artigo 87.º n.º 3 do CPT, não tendo as partes respondido ao parecer mencionado no parágrafo que antecede. Delimitação do âmbito do recurso
8. A título liminar convém recordar que, tal como a foi delimitado o presente recurso (cf. conclusão 39 da motivação da recorrente), fora do seu objecto está a parte da decisão impugnada favorável à recorrente, a saber, a decisão que condenou a recorrida a pagar à recorrente a quantia de 596.57 euros (77,91 euros por abono de falhas + 327,00 euros de remuneração por 9 dias de trabalho do mês de Maio de 2023) + 181,67 euros por horas de formação não prestada) – cf. artigo 635.º n.º 2 e 5 do CPC.
9. Feita esta clarificação, têm relevância para a decisão do recurso as seguintes questões, vertidas nas conclusões:
A. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
B. Extinção do direito de exercer o procedimento disciplinar
C. Inexistência de justa causa de despedimento
D. Consequências do despedimento ilícito Factos
10. Nota preliminar: os factos provados e não provados serão a seguir agrupados, respectivamente, em dois parágrafos, antecedidos da numeração/alíneas, pelas quais foram designados na sentença recorrida. As alterações resultantes do presente recurso serão assinaladas infra.
11. Factos provados:
1. A A. foi admitida ao serviço da R. a 1 de Fevereiro de 2006.
2. Tem presentemente a categoria profissional de Caixeira de 1ª, tendo como funções o atendimento de clientes, venda de produtos de dermocosmética, puericultura, podologia e produtos ortopédicos, deles recebendo valores para pagamento dos produtos, registando as respectivas vendas, dando entrada de encomendas, afixando preços e outras tarefas conexas.
3. Todos os funcionários da R. beneficiam de um desconto de 20% em compras feitas na própria farmácia.
4. Desconto este não cumulável com outros, facto que é do conhecimento de todos os trabalhadores, incluindo da A..
5. O Cartão Saúda – ou cartão das farmácias portuguesas - é um cartão disponibilizado pelas “Farmácias Portuguesas”, uma rede de mais de 2000 estabelecimentos farmacêuticos espalhados por todo o país, da qual a R. é aderente.
6. Este cartão permite que a todas as compras realizadas nas farmácias aderentes de produtos de saúde e bem-estar, ou de medicamentos não sujeitos a receita médica e serviços farmacêuticos, sejam atribuídos pontos.
7. Estes pontos podem ser trocados diretamente por produtos constantes no catálogo de pontos ou podem ser convertidos em vales de dinheiro que podem ser utilizados para pagar a conta da farmácia.
8. Cada um euro gasto pelo cliente nos produtos enunciados anteriormente equivale a um ponto atribuído no Cartão Saúda.
9. Este cartão tem em vista a fidelização do cliente, porque o cliente ganha um ponto pela primeira visita diária à farmácia, desde que o valor da compra seja igual ou superior a 3€.
10. Os pontos podem ser trocados diretamente por produtos ou serviços constantes na revista Saúda.
11. E podem ser igualmente trocados por vales, existindo vales de 2,00€ (50 pontos); 5,00€ (120 pontos); 10,00€ (230 pontos); e 20,00€ (440 pontos), que, por sua vez, podem ser descontados nas compras de produtos ou aquisição de serviços em qualquer das farmácias aderentes.
12. Cada ponto atribuído em cartão é colocado no sistema comum das “farmácias portuguesas”, gerando uma conta corrente.
13. Cada compra ou desconto em aquisição de um produto ou serviço, quando efectivamente usados pelo cliente, gera um custo para a farmácia aderente no valor de cinco cêntimos por cada ponto inserido na conta corrente respectiva.
14. A empregadora, por ocasião da implementação do cartão saúda, comunicou aos trabalhadores – a todos os trabalhadores, e portanto também à trabalhadora, que já trabalhava na farmácia – que o registo de pontos nos cartões individuais dos funcionários decorrentes de compras realizadas por clientes da farmácia era proibido.
15. A autora nunca pediu esclarecimentos sobre a utilização do cartão, ocultando que registava no seu cartão pontos decorrentes de compras feitas por clientes da farmácia.
16. A empregadora solicitou ao sistema Farmácias Portuguesas os extratos de alguns funcionários, nomeadamente o relativo ao cartão da trabalhadora, com o número 70518748.
17. Alterado por via do presente recurso:
Em dia não concretamente apurado do mês de Fevereiro de 2023, mas não anterior a dia 14, a ré tomou conhecimento do extracto do cartão Saúda da autora com base no qual instruiu o processo disciplinar, elaborou a nota de culpa e proferiu a decisão disciplinar, juntos aos autos com as referências citius 36645791 a 36645707, de 26.7.2023.
[17. Redacção anterior constante da sentença recorrida:
Em fevereiro de 2023, na sequência da recepção da informação solicitada (referida em 16), a empregadora tomou efetivo conhecimento de que, entre 01/09/2020 e 19/10/2021 a trabalhadora realizou os registos no seu cartão identificados nos artigos 49.º a 556.º do articulado motivador apresentado pela empregadora, os quais se dão por reproduzidos.]
18. Alterado por via do presente recurso:
Foram processadas pela autora, entre 1.9.2020 e 19.10.2021, as vendas, com os descontos nas percentagens e valores indicados nas facturas recibo e os registos no cartão Saúda 70518748 de que era titular a autora, mencionados das facturas recibo e registos cujo teor se dá por integralmente reproduzido, constantes de fls. 1 a 65 do processo disciplinar, juntos aos presentes autos com as referências citius 36645692, 36645693, 36645694, 36645695, 36645697 e 36645698, de 26.7.2023, de entre os quais, as facturas recibo que mencionam o número fiscal de contribuinte ..., de que é titular a autora, se referem a compras da autora e as que mencionam números fiscais de contribuinte diversos, se referem a compras de terceiros, clientes da ré.
[18. Redacção anterior, constante da sentença recorrida:
Das transações referidas em 17, um número não concretamente apurado reporta-se a transações em que a trabalhadora registou no seu cartão os pontos relativos a compras realizadas por clientes da farmácia, fazendo seus tais pontos.]
19. Por via de correio eletrónico enviado em 23.3.2023 e de correio registado na mesma data, foi remetida à trabalhadora nota de culpa, na qual se dá conta do apurado registo indevido de pontos no seu cartão.
20. Foram realizadas as diligências instrutórias requeridas pela trabalhadora.
21. A empregadora, por decisão de 4.05.2023, comunicada à trabalhadora no dia 9 de maio de 2023, informou a trabalhadora da decisão de despedimento com justa causa.
22. Alterado por via do presente recurso:
Antes de comunicar à autora a suspensão referida no facto provado 28, a ré propôs à autora celebrarem um acordo de cessação do contrato de trabalho, apresentando minuta desse acordo que a autora recusou assinar.
“22. Redacção anterior, constante da sentença recorrida:
Antes do desfecho do processo disciplinar, a empregadora propôs à autor[a] acordo de cessação do contrato de trabalho, apresentando minuta que a trabalhadora recusou assinar. “
23. Em Outubro de 2021, a empregadora reuniu com os trabalhadores, comunicando que não seria possível acumular os pontos dos cartões com os benefícios comerciais que as marcas ofereciam, abordando-se a questão relacionada com os pontos de indústria.
24. Depois da reunião de Outubro de 2021, a trabalhadora deu baixa do seu cartão, não tendo feito qualquer utilização do mesmo desde então.
25. Ao longo dos 17 anos em que a trabalhadora exerceu funções na empregadora nunca sofreu qualquer sanção disciplinar.
26. Em data não concretamente apurada, a trabalhadora e outras colegas fecharam a loja, mantendo no seu interior um assaltante, para que o mesmo fosse detido pela PSP que foi chamada ao local, conseguindo desse modo evitar a consumação do assalto.
27. A trabalhadora, nos últimos anos em que exerceu funções na empregadora, consultava o seu horário semanal ao domingo.
28. A trabalhadora foi suspensa, no âmbito do processo disciplinar, em 25 de fevereiro de 2023.
29. A trabalhadora, na sequência da instauração do processo disciplinar passou a sentir ansiedade, nervosismo, sentimentos de zanga e fúria, apresentando dificuldade em dormir, tendo consultado um psiquiatra.
30. Depois da pandemia, a trabalhadora não recebeu formação profissional da empregadora (ano de 2022).
31. Em Março de 2023, a empregadora descontou € 77,19, relativo a abono para falhas pago a mais em Fevereiro de 2023.
32. Em Maio de 2023, a empregadora pagou à trabalhadora o montante de € 2.288,17, relativo a “compensação global pecuniária”.
33. A trabalhadora auferia, à data do despedimento, o vencimento mensal ilíquido de € 1.090,00.
34. O despenho da trabalhadora na sua profissão era apreciado pelas clientes da farmácia.
35. Foram trocados entre os mandatários os emails que constam dos autos durante o processo disciplinar.
36 Retirado dos factos não provados e aditado aos factos provados com alteração da redacção, por via do presente recurso:
A gerência da ré, em 2019 teve conhecimento de que alguns trabalhadores registavam vendas dos clientes nos respectivos cartões Saúda de que eram titulares esses trabalhadores, tendo alguns deles pedido desculpa e em Junho de 2020, a gerência da ré quis indagar se essa prática se mantinha colocando a hipótese de despedir alguns trabalhadores.
12. Factos não provados:
- Que a empregadora tenha relembrado amiúde os seus funcionários que a atribuição de pontos tem um custo monetário associado para a mesma.
- Que a empregadora tenha recordado em reuniões que era proibido o registo de pontos de clientes da farmácia no cartão individual do funcionário.
- Que os clientes da trabalhadora não utilizassem os respetivos cartões.
- Que a trabalhadora não incentivasse os clientes a utilizar os seus cartões.
- O concreto prejuízo pecuniário causado pela conduta da trabalhadora na esfera da empregadora.
- Que na reunião de Outubro de 2021 se tenha abordado a questão do registo dos pontos dos clientes nos cartões dos funcionários.
Eliminados dos factos não provados e incluídos no facto provado 36 mediante alteração da redacção.
[Redacção anterior, constante da sentença recorrida:
- Que a prática de registo indevido de pontos nos cartões dos funcionários fosse conhecida e tolerada pela gerência da empregadora (muito menos que a trabalhadora tenha de algum modo comunicado à empregadora o uso que dava ao cartão)].
- Que corresponda a um desejo antigo da empregadora despedir os funcionários da farmácia não licenciados.] Quadro legal relevante
13. Para a apreciação do recurso tem relevo, essencialmente, o quadro legal seguinte:
Código do Trabalho ou CT
Artigo 11.º
Noção de contrato de trabalho
Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.
Artigo 97.º
Poder de direcção
Compete ao empregador estabelecer os termos em que o trabalho deve ser prestado, dentro dos limites decorrentes do contrato e das normas que o regem.
Artigo 98.º
Poder disciplinar
O empregador tem poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço, enquanto vigorar o contrato de trabalho.
Artigo 126.º
Deveres gerais das partes
1 - O empregador e o trabalhador devem proceder de boa fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento das respectivas obrigações.
2 - Na execução do contrato de trabalho, as partes devem colaborar na obtenção da maior produtividade, bem como na promoção humana, profissional e social do trabalhador.
Artigo 128.º
Deveres do trabalhador
1 - Sem prejuízo de outras obrigações, o trabalhador deve:
a) Respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as pessoas que se relacionem com a empresa, com urbanidade e probidade;
b) Comparecer ao serviço com assiduidade e pontualidade;
c) Realizar o trabalho com zelo e diligência;
d) Participar de modo diligente em acções de formação profissional que lhe sejam proporcionadas pelo empregador;
e) Cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias aos seus direitos ou garantias;
f) Guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios;
g) Velar pela conservação e boa utilização de bens relacionados com o trabalho que lhe forem confiados pelo empregador;
h) Promover ou executar os actos tendentes à melhoria da produtividade da empresa;
i) Cooperar para a melhoria da segurança e saúde no trabalho, nomeadamente por intermédio dos representantes dos trabalhadores eleitos para esse fim;
j) Cumprir as prescrições sobre segurança e saúde no trabalho que decorram de lei ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.
2 - O dever de obediência respeita tanto a ordens ou instruções do empregador como de superior hierárquico do trabalhador, dentro dos poderes que por aquele lhe forem atribuídos.
Artigo 329.º
Procedimento disciplinar e prescrição
1 - O direito de exercer o poder disciplinar prescreve um ano após a prática da infracção, ou no prazo de prescrição da lei penal se o facto constituir igualmente crime.
2 - O procedimento disciplinar deve iniciar-se nos 60 dias subsequentes àquele em que o empregador, ou o superior hierárquico com competência disciplinar, teve conhecimento da infracção.
3 - O procedimento disciplinar prescreve decorrido um ano contado da data em que é instaurado quando, nesse prazo, o trabalhador não seja notificado da decisão final.
4 - O poder disciplinar pode ser exercido directamente pelo empregador, ou por superior hierárquico do trabalhador, nos termos estabelecidos por aquele.
5 - Iniciado o procedimento disciplinar, o empregador pode suspender o trabalhador se a presença deste se mostrar inconveniente, mantendo o pagamento da retribuição.
6 - A sanção disciplinar não pode ser aplicada sem audiência prévia do trabalhador.
7 - Sem prejuízo do correspondente direito de acção judicial, o trabalhador pode reclamar para o escalão hierarquicamente superior ao que aplicou a sanção, ou recorrer a processo de resolução de litígio quando previsto em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho ou na lei.
8 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto no n.º 6.
Artigo 330.º
Critério de decisão e aplicação de sanção disciplinar
1 - A sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor, não podendo aplicar-se mais de uma pela mesma infracção.
2 - A aplicação da sanção deve ter lugar nos três meses subsequentes à decisão, sob pena de caducidade.
3 - O empregador deve entregar ao serviço responsável pela gestão financeira do orçamento da segurança social o montante de sanção pecuniária aplicada.
4 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto nos n.os 2 ou 3.
Artigo 351.º
Noção de justa causa de despedimento
1 - Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
2 - Constituem, nomeadamente, justa causa de despedimento os seguintes comportamentos do trabalhador:
a) Desobediência ilegítima às ordens dadas por responsáveis hierarquicamente superiores;
b) Violação de direitos e garantias de trabalhadores da empresa;
c) Provocação repetida de conflitos com trabalhadores da empresa;
d) Desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, de obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho a que está afecto;
e) Lesão de interesses patrimoniais sérios da empresa;
f) Falsas declarações relativas à justificação de faltas;
g) Faltas não justificadas ao trabalho que determinem directamente prejuízos ou riscos graves para a empresa, ou cujo número atinja, em cada ano civil, cinco seguidas ou 10 interpoladas, independentemente de prejuízo ou risco;
h) Falta culposa de observância de regras de segurança e saúde no trabalho;
i) Prática, no âmbito da empresa, de violências físicas, injúrias ou outras ofensas punidas por lei sobre trabalhador da empresa, elemento dos corpos sociais ou empregador individual não pertencente a estes, seus delegados ou representantes;
j) Sequestro ou em geral crime contra a liberdade das pessoas referidas na alínea anterior;
l) Incumprimento ou oposição ao cumprimento de decisão judicial ou administrativa;
m) Reduções anormais de produtividade.
3 - Na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.
Artigo 381.º
Fundamentos gerais de ilicitude de despedimento
Sem prejuízo do disposto nos artigos seguintes ou em legislação específica, o despedimento por iniciativa do empregador é ilícito:
a) Se for devido a motivos políticos, ideológicos, étnicos ou religiosos, ainda que com invocação de motivo diverso;
b) Se o motivo justificativo do despedimento for declarado improcedente;
c) Se não for precedido do respectivo procedimento;
d) Em caso de trabalhadora grávida, puérpera ou lactante ou de trabalhador durante o gozo de licença parental inicial, em qualquer das suas modalidades, se não for solicitado o parecer prévio da entidade competente na área da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres.
Artigo 382.º
Ilicitude de despedimento por facto imputável ao trabalhador
1 - O despedimento por facto imputável ao trabalhador é ainda ilícito se tiverem decorrido os prazos estabelecidos nos n.os 1 ou 2 do artigo 329.º, ou se o respectivo procedimento for inválido.
2 - O procedimento é inválido se:
a) Faltar a nota de culpa, ou se esta não for escrita ou não contiver a descrição circunstanciada dos factos imputados ao trabalhador;
b) Faltar a comunicação da intenção de despedimento junta à nota de culpa;
c) Não tiver sido respeitado o direito do trabalhador a consultar o processo ou a responder à nota de culpa ou, ainda, o prazo para resposta à nota de culpa;
d) A comunicação ao trabalhador da decisão de despedimento e dos seus fundamentos não for feita por escrito, ou não esteja elaborada nos termos do n.º 4 do artigo 357.º ou do n.º 2 do artigo 358.º
Artigo 387.º
Apreciação judicial do despedimento
1 - A regularidade e licitude do despedimento só pode ser apreciada por tribunal judicial.
2 - O trabalhador pode opor-se ao despedimento, mediante apresentação de requerimento em formulário próprio, junto do tribunal competente, no prazo de 60 dias, contados a partir da recepção da comunicação de despedimento ou da data de cessação do contrato, se posterior, excepto no caso previsto no artigo seguinte.
3 - Na acção de apreciação judicial do despedimento, o empregador apenas pode invocar factos e fundamentos constantes de decisão de despedimento comunicada ao trabalhador.
4 - Em casos de apreciação judicial de despedimento por facto imputável ao trabalhador, sem prejuízo da apreciação de vícios formais, o tribunal deve sempre pronunciar-se sobre a verificação e procedência dos fundamentos invocados para o despedimento.
Artigo 389.º
Efeitos da ilicitude de despedimento
1 - Sendo o despedimento declarado ilícito, o empregador é condenado:
a) A indemnizar o trabalhador por todos os danos causados, patrimoniais e não patrimoniais;
b) Na reintegração do trabalhador no mesmo estabelecimento da empresa, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, salvo nos casos previstos nos artigos 391.º e 392.º
2 - No caso de mera irregularidade fundada em deficiência de procedimento por omissão das diligências probatórias referidas nos n.os 1 e 3 do artigo 356.º, se forem declarados procedentes os motivos justificativos invocados para o despedimento, o trabalhador tem apenas direito a indemnização correspondente a metade do valor que resultaria da aplicação do n.º 1 do artigo 391.º
3 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto no n.º 1.
Artigo 390.º
Compensação em caso de despedimento ilícito
1 - Sem prejuízo da indemnização prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, o trabalhador tem direito a receber as retribuições que deixar de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento.
2 - Às retribuições referidas no número anterior deduzem-se:
a) As importâncias que o trabalhador aufira com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento;
b) A retribuição relativa ao período decorrido desde o despedimento até 30 dias antes da propositura da acção, se esta não for proposta nos 30 dias subsequentes ao despedimento;
c) O subsídio de desemprego atribuído ao trabalhador no período referido no n.º 1, devendo o empregador entregar essa quantia à segurança social.
Artigo 391.º
Indemnização em substituição de reintegração a pedido do trabalhador
1 - Em substituição da reintegração, o trabalhador pode optar por uma indemnização, até ao termo da discussão em audiência final de julgamento, cabendo ao tribunal determinar o seu montante, entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, atendendo ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude decorrente da ordenação estabelecida no artigo 381.º
2 - Para efeitos do número anterior, o tribunal deve atender ao tempo decorrido desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial.
3 - A indemnização prevista no n.º 1 não pode ser inferior a três meses de retribuição base e diuturnidades.
Código Civil ou CC
ARTIGO 496.º
(Danos não patrimoniais)
1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
3 - Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.
4 - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.
Artigo 565.º
(Indemnização provisória)
Devendo a indemnização ser fixada em liquidação posterior, pode o tribunal condenar desde logo o devedor no pagamento de uma indemnização, dentro do quantitativo que considere já provado.
Artigo 570.º
(Culpa do lesado)
1. Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
2. Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar.
Artigo 804.º
(Princípios gerais)
1. A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.
2. O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido.
Artigo 805.º
(Momento da constituição em mora)
1. O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
2. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:
a) Se a obrigação tiver prazo certo;
b) Se a obrigação provier de facto ilícito;
c) Se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.
3 - Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.
Artigo 806.º
(Obrigações pecuniárias)
1. Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora.
2. Os juros devidos são os juros legais, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal.
3 - Pode, no entanto, o credor provar que a mora lhe causou dano superior aos juros referidos no número anterior e exigir a indemnização suplementar correspondente, quando se trate de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco.
Código de Processo Civil ou CPC
Artigo 609.º
Limites da condenação
1 - A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.
2 - Se não houver elementos para fixar o objeto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.
3 - Se tiver sido requerida a manutenção em lugar da restituição da posse, ou esta em vez daquela, o juiz conhece do pedido correspondente à situação realmente verificada.
Código Penal ou CP
Artigo 118.º
Prazos de prescrição
1 - O procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos:
a) 15 anos, quando se tratar de:
i) Crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for superior a 10 anos;
ii) Crimes previstos nos artigos 335.º, 372.º, 373.º, 374.º, 374.º-A, nos n.os 1 e 3 do artigo 375.º, no n.º 1 do artigo 377.º, no n.º 1 do artigo 379.º e nos artigos 382.º, 383.º e 384.º do Código Penal;
iii) Crimes previstos nos artigos 11.º, 16.º a 20.º, no n.º 1 do artigo 23.º e nos artigos 26.º e 27.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho;
iv) Crimes previstos nos artigos 7.º, 8.º e 9.º da Lei n.º 20/2008, de 21 de abril;
v) Crimes previstos nos artigos 8.º, 9.º, 10.º, 10.º-A, 11.º e 12.º da Lei n.º 50/2007, de 31 de agosto;
vi) Crime previsto no artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro;
vii) Crimes previstos nos artigos 36.º e 37.º do Código de Justiça Militar; ou
viii) Crime previsto no artigo 299.º do Código Penal, contanto que a finalidade ou atividade do grupo, organização ou associação seja dirigida à prática de um ou mais dos crimes previstos nas subalíneas i) a iv), vi) e vii);
b) Dez anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cinco anos, mas que não exceda dez anos;
c) Cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos;
d) Dois anos, nos casos restantes.
2 - Para efeito do disposto no número anterior, na determinação do máximo da pena aplicável a cada crime são tomados em conta os elementos que pertençam ao tipo de crime, mas não as circunstâncias agravantes ou atenuantes.
3 - Se o procedimento criminal respeitar a pessoa colectiva ou entidade equiparada, os prazos previstos no n.º 1 são determinados tendo em conta a pena de prisão, antes de se proceder à conversão prevista nos n.os 1 e 2 do artigo 90-B.º
4 - Quando a lei estabelecer para qualquer crime, em alternativa, pena de prisão ou de multa, só a primeira é considerada para efeito do disposto neste artigo.
5 - Nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, bem como no crime de mutilação genital feminina sendo a vítima menor, o procedimento criminal não se extingue, por efeito da prescrição, antes de o ofendido perfazer 25 anos.
Artigo 119.º
Início do prazo
1 - O prazo de prescrição do procedimento criminal corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.
2 - O prazo de prescrição só corre:
a) Nos crimes permanentes, desde o dia em que cessar a consumação;
b) Nos crimes continuados e nos crimes habituais, desde o dia da prática do último acto;
c) Nos crimes não consumados, desde o dia do último acto de execução.
3 - No caso de cumplicidade atende-se sempre, para efeitos deste artigo, ao facto do autor.
4 - Quando for relevante a verificação de resultado não compreendido no tipo de crime, o prazo de prescrição só corre a partir do dia em que aquele resultado se verificar.
5 - Nos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, o prazo de prescrição só corre desde o dia em que o ofendido atinja a maioridade e, se morrer antes de a atingir, a partir da data da sua morte.
Artigo 205.º
Abuso de confiança
1 - Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel ou animal que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - A tentativa é punível.
3 - O procedimento criminal depende de queixa.
4 - Se a coisa ou o animal referidos no n.º 1 forem:
a) De valor elevado, o agente é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
b) De valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
5 - Se o agente tiver recebido a coisa ou o animal em depósito imposto por lei em razão de ofício, emprego ou profissão, ou na qualidade de tutor, curador ou depositário judicial, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
Artigo 255.º
Definições legais
Para efeito do disposto no presente capítulo considera-se:
a) Documento - a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão, quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa ou animal para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta;
b) Notação técnica - a notação de um valor, de um peso ou de uma medida, de um estado ou do decurso de um acontecimento, feita através de aparelho técnico que actua, total ou parcialmente, de forma automática, que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas os seus resultados e se destina à prova de facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua realização quer posteriormente;
c) Documento de identificação ou de viagem - o cartão de cidadão, o bilhete de identidade, o passaporte, o visto, a autorização ou título de residência, a carta de condução, o boletim de nascimento, a cédula ou outros certificados ou atestados a que a lei atribui força de identificação das pessoas, ou do seu estado ou situação profissional, donde possam resultar direitos ou vantagens, designadamente no que toca a subsistência, aboletamento, deslocação, assistência, saúde ou meios de ganhar a vida ou de melhorar o seu nível;
d) Moeda - o papel moeda, compreendendo as notas de banco, e a moeda metálica, que tenham, esteja legalmente previsto que venham a ter ou tenham tido nos últimos 20 anos curso legal em Portugal ou no estrangeiro.
Lei n.º 109/2009 de 15 de Setembro, Lei do Cibercrime, também apenas Lei 109/2009
Artigo 3.º
Falsidade informática
1 - Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem, é punido com pena de prisão até 5 anos ou multa de 120 a 600 dias.
2 - Quando as ações descritas no número anterior incidirem sobre os dados registados, incorporados ou respeitantes a qualquer dispositivo que permita o acesso a sistema de comunicações ou a serviço de acesso condicionado, a pena é de 1 a 5 anos de prisão.
3 - Quem, atuando com intenção de causar prejuízo a outrem ou de obter um benefício ilegítimo, para si ou para terceiro, usar documento produzido a partir de dados informáticos que foram objeto dos atos referidos no n.º 1 ou dispositivo no qual se encontrem registados, incorporados ou ao qual respeitem os dados objeto dos atos referidos no número anterior, é punido com as penas previstas num e noutro número, respetivamente.
4 - Quem produzir, adquirir, importar, distribuir, vender ou detiver qualquer dispositivo, programa ou outros dados informáticos destinados à prática das ações previstas no n.º 2, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
5 - Se os factos referidos nos números anteriores forem praticados por funcionário no exercício das suas funções, a pena é de prisão de 2 a 5 anos. Jurisprudência e doutrina que o Tribunal leva em conta
14. O Tribunal leva em conta os seguintes elementos que serão mencionados infra na fundamentação:
Jurisprudência disponível em dgsi.pt
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 97S144 de 14.1.1988
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 01S967 de 8.11.2000
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 1321/06.4TTLSB.L1.S1
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 2104/12.8TBALM.L1.S1
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 16995/17.2T8LSB.L2.S1;
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 23748/18.9T8LSB.L1.S1
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo 2/19.3YFLSB
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo 24463/21.1T8LSB.L1-6
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, secção social, processo 2857/22.5T8BRR-A.L1-4
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo 603/05.7TTFAR.E1
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, processo 449/10.0TTVFR.P3
Doutrina
- António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 21.º Edição, Almedina
- Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora 1999
- João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volumes I e II, 4.ª Edição, Almedina
- João Leal Amado, Contrato de Trabalho, 4.ª edição, Almedina
- Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, 9.ª Edição, Almedina
- Salvador da Costa, As Custas Processuais, 9.ª Edição, Almedina Apreciação do recurso
A. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
15. Tendo em conta a argumentação das partes sobre o tema probatório impugnado, o Tribunal reapreciou a prova junta aos autos, nomeadamente:
- os depoimentos das testemunhas FF, DD, CC, BB, GG, HH, II, JJ, KK e LL;
- as declarações de parte da autora AA e do gerente da ré, EE;
- a prova documental junta ao processo disciplinar (cf. referências citius 36645701 a 36645707, 36645791 a 36645700 de 26.7.2023);
- a prova documental junta à contestação-reconvenção da autora (cf. referência citius 36768013 de 14.8.2023);
- a prova documental junta à resposta da ré (cf. referência citius 36870580 de 1.9.2023).
16. Além das regras de direito material probatório, que a seguir serão indicadas a propósito da análise da prova documental pertinente para a análise da presente questão, na apreciação dos depoimentos gravados o Tribunal aplicou a regra da livre apreciação dos depoimentos das testemunhas e das declarações de parte (cf. artigos 396.º do CC e 466.º n.º 3 do CPC). Assim, no seu juízo autónomo, foi a seguinte a convicção do Tribunal da Relação.
17. No que respeita à impugnação dos factos provados 17 e 22, que a recorrente (autora) defende que não devem constar dos factos provados, o Tribunal alterou a redacção desses factos, deferindo parcialmente ao requerido nessa parte e indeferindo no mais a pretensão da recorrente, pelos motivos que a seguir serão explicados.
18. Quanto ao facto provado 27, que a recorrente defende que não deve constar dos factos provados, o mesmo provou-se uma vez que resulta das próprias declarações de parte da recorrente (autora). Pelo que nessa parte é indeferida a pretensão da recorrente.
19. Quanto ao aditamento aos factos provados dos factos enunciados nas alíneas a) a d) acima transcritas no parágrafo 3, o Tribunal defere parcialmente a essa pretensão mediante a alteração da redacção dos factos provados 17 e 22 e da inclusão dos dois factos não provados (assinalados no parágrafo 12), no facto provado 36 (aditado com outra redacção, conforme mencionado no parágrafo 11).
20. Relativamente ao aditamento aos factos provados do facto enunciado na alínea g) acima transcrita no parágrafo 3, o Tribunal julga que, na parte com relevo para a decisão de mérito, tal facto consta já do facto provado 24, indeferindo por isso a pretensão da recorrente na parte que excede o que já está provado.
21. Quanto ao aditamento aos factos provados dos factos enunciados nas alíneas i) a l) acima transcritas no parágrafo 3, na parte com relevo para a decisão de mérito, tal matéria já se encontra nos factos provados 3 a 13, 17, 22 e no facto provado 36 que passou a integrar o acervo dos factos provados por via do recurso, pelo que o Tribunal indefere essa pretensão na parte que excede o que consta dos factos provados acima mencionados.
22. No que respeita aos factos enunciados nas alíneas e) a f) e h) acima transcritas no parágrafo 3, os mesmos não resultam dos elementos de prova acima mencionados no parágrafo 15. Pelo que é indeferida nessa parte a pretensão da recorrente.
23. Ao abrigo do disposto no artigo 662.º n.º 1 do CPC, o Tribunal da Relação alterou ainda a redacção do facto provado 18, pelos motivos que a seguir serão explicados.
24. Com efeito, o juízo autónomo do Tribunal da Relação acima mencionado tem por base, em particular, as razões que se seguem.
25. Quanto à alteração da redacção dos factos provados 17 e 18 importa sublinhar que, por um lado, quanto ao facto provado 17, com base nos depoimentos das testemunhas DD, CC, nas declarações de parte do gerente da ré, EE, e no documento 1 junto à contestação (que serão analisados infra), o Tribunal ficou convicto de que havia vários trabalhadores que na prática registavam vendas feitas aos clientes no cartão Saúda de que eram titulares esses trabalhadores e que isso foi levado ao conhecimento da gerência da ré em 2019. Em Junho de 2020, ou seja, em data anterior à do início dos factos aqui imputados à autora, a gerência da ré quis verificar se essa prática se mantinha por parte de alguns trabalhadores. No início de 2023, o gerente da ré, EE, quis voltar a verificar se havia trabalhadores que mantinham essa prática e foi nesse contexto, que o mesmo referiu nas suas declarações de parte, que solicitou a informação sobre os extractos dos cartões Saúda de alguns trabalhadores, entre os quais a recorrente. Munido dessa informação, o gerente da ré instaurou o processo disciplinar aqui em crise. O próprio gerente da ré reconheceu que no início a ré não percebeu muito bem como funcionava o cartão Saúda.
26. Do conjunto da prova produzida, acima mencionada, resta a dúvida sobre identidade dos trabalhadores envolvidos, nomeadamente se entre eles se encontrava a recorrente, e sobre se a recorrida já sabia que a recorrente incorria em tal prática antes de solicitar os extractos do seu cartão Saúda, juntos aos autos como anexo I ao requerimento com a referência citius 36645699, de 26.7.2023. Na dúvida, o Tribunal decide contra a parte a quem o facto aproveita, neste caso a recorrente que invocou, por via de execepção, que a recorrida tinha conhecimento de que a recorrente mantinha a prática semelhante à que é objecto dos presentes autos, desde 2019 – cf. artigo 414.º do Código de Processo Civil (CPC). Tendo em conta a data de 14.2.2023 aposta nos extractos do cartão Saúda da recorrente, remetidos à recorrida (acima mencionados), o Tribunal ficou convicto de que em Fevereiro de 2023, em data não anterior a dia 14 desse mês, a recorrida tomou conhecimento dos factos objecto do processo disciplinar em crise.
27. Por outro lado, quanto ao facto provado 18, o Tribunal leva em conta que no artigo 26.º da contestação a recorrente impugna, por desconhecimento (alega, em síntese, impossibilidade de se recordar do número de vendas atento o lapso de tempo em causa), os factos constantes dos artigos 26.º a 537.º da nota de culpa, que descrevem as vendas processadas pela autora no período que vai de 1.9.2020 a 19.10.2021, que lhe são imputadas na decisão de despedimento.
28. Nesse contexto, no que respeita aos factos pessoais imputados à recorrente, a saber, que foi a recorrente quem processou as vendas em crise, indicou o número do seu cartão Saúda para nele serem registados os respectivos pontos, indicou, nalguns casos, o número de contribuinte do comprador, noutros não o fez, processou descontos acumulados no seu cartão Saúda e nalguns casos, cumulou esses descontos com outros descontos, eg. do valor de 23% do IVA (Imposto sobre o valor acrescentado), a declaração da recorrente acima mencionada, feita no artigo 26.º da contestação, equivale a confissão de tais factos – cf. artigo 574.º n.º 3 do CPC, ex vi artigo 1.º n.º 1 – a) do Código de Processo do Trabalho (CPT). Pelo que, o Tribunal ficou convicto de que a recorrente processou todas as vendas referidas no facto provado 18, cuja redacção o Tribunal alterou pelos motivos explicados na análise da presente questão.
29. Acresce que, essas vendas, descontos e registos constam das facturas recibo constantes de fls. 1 a 65 do processo disciplinar, juntas aos presentes autos com as referências citius 36645692, 36645693, 36645694, 36645695, 36645697 e 36645698, de 26.7.2023, que são documentos particulares não impugnados. Tais facturas recibo são documentos emitidos em grande número, em que a assinatura da recorrente pode ser, e foi neste caso, substituída pela reprodução mecânica do seu nome (cf. artigo 373.º n.º 2 do CC). Pelo que, à luz do disposto no artigo 376.º n.º 1 e 2 do CC, esses documentos particulares têm força probatória formal plena e, adicionalmente, fazem prova dos factos neles narrados na medida em que tais factos são contrários aos interesses da recorrente, mas a declaração deles constante é indivisível.
30. Nesse contexto, o Tribunal leva ainda em conta que, tal como defende a recorrente no artigo 29.º da contestação, algumas dessas vendas referem-se a compras feitas pela própria recorrente, estando nessas circunstâncias as vendas em cuja factura recibo a recorrente indicou o seu número de identificação fiscal ..., com o qual se identificou ao intentar a presente acção (cf. requerimento de início do processo, junto em 10.5.2023 com a referência citius 35897554). Quanto às vendas processadas pela autora em que ela indicou, nas facturas recibo, números de identificação fiscal diversos do seu, o Tribunal ficou convicto, do contexto profissional em que foram feitas, de que se tratou de vendas a terceiros, clientes da farmácia aqui ré, onde trabalhava a autora. No que respeita às vendas constantes das facturas recibo em que não foi indicado nenhum número de identificação fiscal do comprador, na dúvida sobre se foram compras da recorrente ou de terceiros, o Tribunal julga contra a parte a quem aproveita esse facto, a recorrida e, por isso, não ficou convicto de que essas compras foram feitas por terceiros (cf. artigo 414.º do CPC). Pelo que, o facto 18 traduz apenas os limites do provado.
31. Quanto aos restantes documentos particulares (extractos dos pontos do cartão Saúda da autora), os mesmos não estão assinados. Faltando-lhes esse requisito legal (cf. artigo 373.º n.º 1 do CC), estão sujeitos à livre apreciação do Tribunal (cf. artigos 366.º do CC). Nessa medida, ponderados juntamente com os elementos acima analisados, corroboram a alteração à resposta dada aos factos provados 17 e 18.
32. A alteração da redacção do facto provado 22 resulta da ponderação dos seguintes meios de prova: o documento número 3 junto pela autora à contestação-reconvenção, intitulado “acordo cessação do contrato de trabalho”, no qual são identificadas como contraentes as partes na presente acção, que contém uma assinatura no local destinado à assinatura da recorrida, não está assinado pela recorrente e contém a data de 25.2.2023. Trata-se de um documento particular, não impugnado pela recorrida. Adicionalmente, nos artigos 40º e 42.º da resposta, a recorrida aceita ter proposto à recorrente a celebração desse acordo. Pelo que, o documento em causa tem força probatória formal plena e, de um ponto de vista material, faz prova de que a recorrida fez a proposta negocial dele constante, à recorrente – cf. artigo 376.º n.ºs 1 e 2 do Código Civil (CC).
33. Isso mesmo é corroborado pelas declarações de parte da autora AA, que referiu que a proposta de acordo para cessação do contrato de trabalho lhe foi feita pela recorrida e que, perante a sua recusa em assinar, o gerente da ré lhe disse que ficaria suspensa no âmbito do processo disciplinar. Sobre essa matéria, o Tribunal levou em conta também o depoimento da testemunha BB, que confirmou as circunstâncias de tempo e lugar em que idêntica proposta de acordo de cessação do contrato de trabalho foi feita à testemunha, que a assinou.
34. As declarações de parte da autora e o depoimento da testemunha BB foram objectivos, serenos e, conjugados com o documento 3 junto à contestação, acima mencionado, mereceram credibilidade.
35. A eliminação dos factos não provados que foram aditados aos factos provados como facto 36, cuja redacção foi alterada, tem por base a apreciação dos depoimentos das testemunhas CC (que na altura trabalhava noutra farmácia do mesmo grupo) e DD (que na altura trabalhava na farmácia aqui ré) e o teor das mensagens trocadas entre ambas, juntas à contestação como documento 1, com as quais as testemunhas foram confrontadas. Apesar de a recorrida ter impugnado esse documento, a autoria e teor das mensagens dele constantes foram confirmadas pela testemunha CC e não foram negados pela testemunha DD, que admitiu ter trocado tais mensagens embora o seu depoimento tenha sido vago, evitando dar uma resposta esclarecedora sobre o assunto.
36. As mensagens escritas, referidas no parágrafo anterior, constam de um documento particular não assinado (cf. artigo 373.º n.º 1 do CC), sujeito à livre apreciação do Tribunal (cf. artigos 366.º do CC). No teor dessas mensagens, com datas de 23.6.2020 e 25.6.2020, podem ler-se, além do mais, os excertos a seguir transcritos: “Quer mandar pessoas para a rua. Diz que vai resolver a situação dos pontos” [...] “Quem vai para a rua” [...] “Diz que vai ver a cena dos pontos perguntou se continuavam a fazer eu disse q sim q pelo menos no estado de emergência tinham feito q depois disso tinham deixado de fazer uma vez que nada tinha acontecido” [...] “Os técnicos??? A MM e NN?” [...] HH enganei-me E podem fazer isso? AA e BB?” [...] “Ela diz que consegue contratar gente por menos dinheiro q trabalha mais e q compensa o valor das indemnizações” [...] “Não vai fazer nada esquece” [...] “Claro que não. Nem se despede assim sem justa causa” [...] A inês já falou com ele da cena dos pontos” [...] “E então? Que resultado vai ter?” [...] “Mandou tirar as cenas outra vez Diz que vai à farmácia dia 10 para falar com elas” [...]. Esse documento, conjugado com os depoimentos das testemunhas CC (que foi casada com o actual gerente da ré e partilhou funções de gestão das farmácias do mesmo grupo) e DD (que trabalhava na farmácia aqui ré e tinha por funções, entre outras, coligir a informação que lhe era pedida pela gerência sobre o funcionamento/atribuição/rebate de pontos dos cartões Saúda), levam o Tribunal a ficar convicto da veracidade do facto provado 36.
37. Com efeito, não obstante os litígios de natureza familiar, laboral e criminal que separam a testemunha CC e o gerente da ré, EE – consoante informação prestada por ambos quando inquiridos, quer inicialmente, quer na sequência da contradita – o certo é que, da análise do depoimento dessa testemunha e das declarações de parte do gerente da ré, resulta que resolveram o divórcio, partilhas e questões laborais que os separavam, estando pendentes processos crime que o gerente da ré, EE, disse ter instaurado conta a ex mulher, CC. Não obstante, o depoimento da testemunha CC sobre os factos objecto do litígio foi imparcial, sereno, objectivo, tendo referido que tanto ela como o ex marido, EE, quando, em 2019, souberam, através da testemunha DD, que vários trabalhadores indicavam os números dos respectivos cartões Saúda para registar vendas que faziam aos clientes, ficaram aborrecidos. Na farmácia em que a testemunha CC estava a trabalhar na altura (que era diferente da farmácia recorrida nos presentes autos), os trabalhadores em causa pediram desculpas. A testemunha disse não ter a certeza se a recorrente também pediu desculpas ao ex marido.
38. As testemunhas FF, GG e HH (farmacêuticas que trabalham em farmácias do mesmo grupo da ré) confirmaram que, em regra, os trabalhadores não deviam cumular o desconto do respectivo cartão Saúda com o desconto profissional que lhes era concedido. Dos seus depoimentos conjugados com as declarações de parte do gerente da ré, EE, resulta que existia preocupação por parte da ré, quando percebeu como funcionava o cartão Saúda, em minorar as desvantagens que a utilização do cartão Saúda pelos clientes poderia trazer para a recorrida ou para qualquer outra farmácia aderente ao programa de descontos, que advêm do facto de os pontos adquiridos através de compras numa farmácia poderem ser rebatidos noutra farmácia. Por isso a gerência dava indicação aos trabalhadores de que era preciso que os clientes rebatessem na farmácia recorrida o maior número de pontos possível.
39. As testemunhas II, JJ (clientes da recorrida), KK (amiga da recorrente) e LL (companheiro da recorrente) não revelaram ter conhecimento directo do tema probatório na parte impugnada no presente recurso.
40. Com base na análise dos meios de prova acima enunciados e pelos motivos explicados supra, o Tribunal da Relação não ficou convicto dos restantes factos cuja inclusão nos factos provados é pedida pela recorrente. Pelo que, nessa parte improcede a sua pretensão.
B. Extinção do direito de exercer o procedimento disciplinar
41. A recorrente defende que o direito de a recorrida exercer o poder disciplinar caducou porque a recorrida, desde 2019, tinha conhecimento dos factos. Invoca a aplicação do disposto no artigo 329.º do CT. Por seu lado, a recorrida, nas alegações de recurso defende que os factos imputados à recorrente são susceptíveis de integrar um crime, por isso aplica-se o prazo de prescrição da lei penal. Em particular, no artigo 582.º do articulado de motivação (cf. referência citius 36637304 de 25.7.2023) a recorrida defendeu que os factos praticados pela recorrente são susceptíveis de integrar um crime de abuso de confiança.
42. O Tribunal a quo, antes de proferir sentença, solicitou a informação junta aos presentes autos em 5.2.2024, com a referência citius 432651770, da qual resulta que a recorrente foi constituída arguida no inquérito n.º 3754/23.2T9ALM, que nessa data estava em curso na Procuradoria da República da Comarca de Lisboa, sem decisão de encerramento.
43. Na sentença recorrida o Tribunal a quo apreciou a questão como se segue: “Por outro lado, a trabalhadora invoca a caducidade, nos termos do disposto no artigo 392.º, n.º 2, do Código de Processo do trabalho. Ora, tendo em consideração que a empregadora teve conhecimento dos concretos factos praticados pela trabalhadora em fevereiro de 2023, não ocorreu a caducidade a que se reporta o artigo 392.º, n.º 2, do Código do Trabalho, uma vez que o processo disciplinar foi instaurado em março de 2023. Improcede, portanto, também esta questão suscitada pela trabalhadora. A trabalhadora suscita a prescrição a que alude o artigo 329.º, n.º 1, do Código do Trabalho. Ora, a factualidade apurada enquadra-se, objetivamente, no tipo legal de crime de falsidade informática, previsto pelo artigo 3.º, n.º 1, da Lei 109/2009, de 15 de setembro. Com efeito, nesse preceito consagra-se o seguinte: Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem, é punido com pena de prisão até 5 anos ou multa de 120 a 600 dias. O comportamento da trabalhadora enquadra-se objetivamente nesta conduta típica. Com efeito, a trabalhadora, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas (assumindo pontos a que não tinha direito, fazendo-se passar por quem tem direito aos mesmos) introduziu dados informáticos (inserção dos pontos inerentes às transações) produzindo dados não genuínos (número de pontos de que beneficia) com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes (benefício dos pontos que não são seus). Nessa medida, tem aplicação o prazo prescricional do processo criminal. Improcede também esta questão suscitada pela trabalhadora.”
44. Antes de mais, do contexto transcrito no parágrafo anterior resulta que as referências aí feitas ao artigo 392.º n.º 2 do Código de Processo do Trabalho (diploma que não contém esse número de artigos) e 392.º n.º 2 do Código do Trabalho (preceito que não se refere aos prazos de prescrição ou caducidade analisados na sentença recorrida), se deve a erro de escrita manifesto. Pelo que, em lugar de 392.º n.º 2 deve ler-se 329.º n.º 2 do CT – cf. artigo 249.º do CC.
45. Feita esta rectificação, convém também sublinhar que o Tribunal não está sujeito às alegações das partes no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – cf. artigo 5.º n.º 3 do CPC, ex vi artigo 1.º n.º 2 – a) do CPT.
46. Assim sendo, o Tribunal começa por recordar que o artigo 329.º do CT prevê os seguintes prazos, de prescrição e de caducidade, consoante os casos.
47. Um prazo de prescrição do direito de exercer o poder disciplinar, que é de um ano, salvo se o facto constituir crime, caso em que se aplica a prescrição da lei penal, contado a partir da prática da infracção, independentemente do seu conhecimento pelo empregador – artigo 329.º n.º 1 do CT.
48. Um prazo de caducidade para iniciar o procedimento disciplinar, que se conta a partir do conhecimento da infracção – artigos 329.º n.º 2 do CT e 298.º n.º 2 do CC.
49. Um prazo de prescrição do procedimento disciplinar já instaurado, que é de um ano e se conta a partir da data da instauração desse procedimento, ocorrendo a prescrição se, dentro desse prazo, o trabalhador não for notificado da decisão final – cf. artigo 329.º n.º 3 do CT.
50. Os prazos previstos no artigo 329.º n.ºs 1 e 2 do CT interrompem-se se for iniciado procedimento de inquérito prévio (não existindo prova suficiente de que isso tenha sucedido no presente caso), desde que observados os requisitos temporais previstos no artigo 352.º do CT; tais prazos interrompem-se também mediante a notificação da nota de culpa, nos termos previstos no artigo 353.º n.º 3 do CT, o que se apurou ter ocorrido em 23.3.2023 (cf. facto provado 19).
51. Feito este enquadramento, embora a recorrente qualifique os factos à luz da caducidade, o Tribunal julga que a argumentação da recorrente convoca a aplicação do disposto no artigo 329.º n.ºs 1 (prescrição) e 2 (caducidade) do CT. No primeiro caso (prescrição) o prazo conta-se desde a prática da infracção, independentemente do seu conhecimento pela empregadora. No segundo caso (caducidade) o prazo conta-se desde o conhecimento da infracção pela empregadora.
52. Dos factos provados 17, 19 e 36 resulta que em 2019 a empregadora teve conhecimento de que alguns trabalhadores, cuja identidade o Tribunal não apurou, adoptavam comportamentos semelhantes ao que está em causa nestes autos e em Junho 2020 a empregadora quis verificar se esses comportamentos se mantinham, colocando a hipótese de despedir alguns trabalhadores se fosse o caso. Porém, os factos praticados pela recorrente, que são objecto dos presentes autos, foram praticados posteriormente a essas datas e o que se apurou é a empregadora teve conhecimento deles em Fevereiro de 2023 em dia não concretamente apurado mas não anterior a dia 14 desse mês.
53. Assim, o prazo de caducidade de 60 dias para iniciar o procedimento disciplinar, previsto no artigo 329.º n.º 2 do CT, teve início em Fevereiro de 2023 em dia não anterior a dia 14. Pelo que, ainda que por hipótese a recorrida tenha tido conhecimento dos extractos do cartão da recorrida logo no dia 14.2.2023 (data neles aposta) e o prazo de caducidade tenha tido início em 15.2.2023 (cf. artigos 279.º - b) e 296.º do CC), entre essa data e 23.3.2023, em que foi notificada à recorrida a nota de culpa que interrompeu a contagem do prazo de caducidade (cf. facto provado 19), não tinham ainda decorrido 60 dias. Pelo que não se verifica a alegada caducidade do procedimento disciplinar, prevista no artigo 329.º n.º 2 do CT.
54. Importa agora verificar se a situação invocada pela recorrente se enquadra no regime da prescrição, prevista no artigo 329.º n.º 1 do CT.
55. O prazo de prescrição começa a contar desde a data em que foi praticada a infracção. Para saber quando foi praticada a infracção, há que levar em conta que os factos que motivaram o despedimento foram praticados entre 1.9.2020 e 19.10.2021 (cf. facto provado 18). Trata-se de condutas autónomas resultantes de uma pluralidade de resoluções, com as características de uma infracção disciplinar continuada na medida em que: existe uma circunstância exógena que facilita a repetição da infracção, da qual se aproveita a recorrente (por trabalhar na farmácia a processar as vendas aos clientes e por ser titular do cartão Saúda), o que que diminui a culpa; existe uma certa homogeneidade das condutas da recorrente (registo das compras de terceiros, clientes, no seu Cartão Saúda e utilização dos descontos em seu benefício); a que acresce a relativa proximidade temporal entre as várias condutas repetidas.
56. No sentido de que, em matéria laboral, importa levar em conta se a infracção disciplinar é continuada para efeito de contagem do prazo de prescrição, pronunciou-se a jurisprudência a seguir citada (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo 23748/18.9T8LSB.L1.S1): “Não há dúvida de que a distinção entre infracção instantânea e infracção continuada é relevante para a adequada contagem do prazo prescricional. Na infracção disciplinar continuada a acção ou omissão é constituída, não a partir de um facto (como naquela) e sim, como resulta do artigo 30º nº 2 do Código Penal, de uma série de actos ou omissões autónomos, com resoluções diversas, mas em que, por decorrência da existência de uma execução homogénea, levada a cabo no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminui consideravelmente a culpa do agente. Ou seja, devem ser consideradas como constituindo uma só infracção continuada, uma pluralidade de actos singulares, unificados por circunstâncias exógenas, que determinam a diminuição da culpa do agente.”
57. Sendo o poder disciplinar um ramo do poder punitivo, afigura-se que deve ser convocada a aplicação do disposto no artigo 119.º Código Penal (CP) para determinar a partir de que data se conta o prazo de prescrição da infracção disciplinar aqui em causa – cf. no sentido de ser aplicável o disposto no artigo 119.º do CP, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo 2/19.3YFLSB. Assim, sendo a infracção disciplinar continuada, o prazo de prescrição conta-se a partir do dia em que foi praticado o último acto, neste caso, 19.10.2021 – cf. artigo 119.º n.º 2 – b) do CP.
58. Entre 19.10.2021 (data da prática do último acto) e 23.3.2023 (data em que foi enviada a nota de culpa), decorreu 1 ano, 5 meses e 4 dias ou seja, mais de um ano que é, em regra, o prazo de prescrição da infracção disciplinar laboral (cf. artigo 329.º n.º 1, primeira parte, do CT). Excepcionalmente esse prazo não se aplica, se os factos forem susceptíveis de integrar um crime, caso em que se aplica o prazo de prescrição previsto na lei penal (cf. artigo 329.º n.º 1, segunda parte, do CT).
59. A esse propósito, tal como foi acima explicado nos parágrafos 41 a 43: a recorrida defendeu no articulado motivador que a infracção aqui em causa é susceptível de integrar um crime de abuso de confiança; o Tribunal a quo qualificou os factos como sendo susceptíveis de integrar um crime de falsidade informática; e no inquérito criminal em curso, em que a recorrente foi constituída arguida, ainda não havia decisão a pôr termo ao inquérito, na data do encerramento da discussão da presente causa na primeira instância.
60. O Tribunal recorda que, de acordo com uma jurisprudência constante a pendência de inquérito crime contra a recorrente (conforme informação junta aos autos, mencionada no parágrafo 42) não é motivo para suspender a presente instância (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, secção social, proferido no processo 2857/22.5T8BRR-A.L1-4 e jurisprudência ai citada).
61. Para aplicar o prazo de prescrição previsto na lei penal, basta que os factos objecto da nota de culpa, que estão em causa nos presentes autos, sejam susceptíveis de integrar a prática de um crime. Sobre esta questão, o Tribunal acompanha a seguinte jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que se mantém válida para interpretar o disposto no artigo 329.º n.º 1 do CT, atualmente em vigor (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo 1321/06.4TTLSB.L1.S1): “Como decorre da literalidade do referido normativo, para que o prazo da prescrição penal seja aplicável às infracções disciplinares (desde que, naturalmente, seja superior ao prazo previsto na primeira parte do n.º 2 do art.º 372.º do CT) basta que os respectivos factos também consubstanciem, em abstracto, a prática de um crime. Esteé, realmente, o único requisito previsto no aludido normativo legal, para que o prazo geral da prescrição da infracção disciplinar – que, nos termos da primeira parte daquele normativo legal, é de um ano – seja alargado quando os factos integradores da infracção disciplinar também sejam susceptíveis de constituírem ilícito penal. Para que tal alargamento ocorra, o normativo em causa não exige a verificação de qualquer outro requisito, já que na sua letra não existe a menor referência nesse sentido, nomeadamente no que toca à necessidade de exercício da acção penal e à necessidade de apresentação de queixa-crime por parte do ofendido, quando o exercício daquela esteja dependente de queixa.
62. Dito isto, o crime de abuso de confiança está previsto no artigo 205.º do CP e depende de queixa, circunstância que, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça citada no parágrafo anterior, não é relevante para a aplicação do prazo de prescrição previsto na lei penal. Assim, consoante os casos e a moldura da pena prevista, o prazo de prescrição desse crime pode ser de 5 anos (cf. artigos 118.º n.º 1 – c) e 205.º n.º 1 do CP) ou de 10 anos (cf. artigos 118.º n.º 1 – b) e 205.º n.ºs 4 e 5 do CP).
63. O crime de falsidade informática, está previsto no artigo 3.º da Lei 109/2009 e o prazo de prescrição desse crime é de 10 anos (cf. artigo 118.º n.º 1 – b) do CP).
64. Em qualquer dos crimes acima mencionados, se for de aplicar o prazo de prescrição da infracção penal à infracção disciplinar, o direito de exercer o poder disciplinar aqui em crise não teria prescrito na data em que foi enviada a nota de culpa à recorrente.
65. No entanto, importa sublinhar que, à luz da jurisprudência acima citada no parágrafo 61, cabe a este Tribunal, no âmbito dos presentes autos de natureza laboral, apreciar se os factos constantes da nota de culpa e da decisão disciplinar, aqui em litígio, são susceptíveis de integrar a prática de um crime, independentemente de saber se foi apresentada queixa ou se está pendente inquérito ou processo criminal.
66. Ora, tendo em conta os factos objecto da nota de culpa e da decisão disciplinar aqui em litígio (cf. facto provado 17), é forçoso constatar que deles não resulta a apropriação de coisa móvel confiada à recorrente a título não translativo da propriedade, que é um elemento do tipo objectivo de ilícito previsto no artigo 205.º do CP. Pelo que, os factos objecto do presente litígio laboral não são susceptíveis de integrar um crime de abuso de confiança.
67. Por outro lado, não é objecto da decisão disciplinar nem foi feita prova sobre a existência de um contrato (nomeadamente de um contrato de adesão previsto nos artigos 1.º e 4.º do DL 446/85 de 25 de Outubro), celebrado entre a recorrente, titular do cartão Saúda, e a entidade emissora do cartão Saúda (cuja identidade também não se apurou, uma vez que não consta dos factos provados a que pessoa, colectiva ou singular, pertence a marca “Farmácias Portuguesas”, mencionada no facto provado 5). Acresce que, também não é objecto da decisão disciplinar, nem se provou, o concreto acordo negocial celebrado entre a ré, na qualidade de farmácia aderente, e a entidade emissora do cartão Saúda/gestora dos respectivos pontos. Com efeito, os factos provados 5 a 13 reportam-se ao modo de funcionamento do cartão Saúda, na prática, mas o Tribunal ignora se essa prática corresponde à base negocial em que assenta a emissão, adesão e modo de funcionamento do cartão Saúda, que cláusulas concretas foram acordada e a identidade da contraparte, emissora do cartão Saúda. Ou seja, o Tribunal desconhece porque não foram invocadas, nem constam da decisão de despedimento, quais as cláusulas constantes dos acordos negociais que servem de base à emissão e utilização do cartão Saúda e se, nos termos dessas cláusulas era ou não possível à titular de um cartão Saúda registar no respectivo cartão compras feitas por terceiros, nomeadamente, identificando nesses registos os terceiros compradores mediante indicação dos respectivos números de identificação fiscal, diversos do da titular do cartão Saúda, como sucedeu; ou, nos casos em que a recorrente não indicou qualquer número de identificação fiscal no documento de venda, se os termos negociais acordados exigiam alguma forma de identificação do comprador, para que a venda fosse associada ao cartão Saúda de um determinado titular.
68. Sem que tenham sido indicados na decisão disciplinar os concretos negócios que estão na base na utilização do cartão Saúda, não é possível concluir que a recorrente interferiu no tratamento informático de dados do cartão Saúda produzindo dados não genuínos (eg. a atribuição de pontos e descontos enquanto dados na acepção do artigo 2.º - b) e c) da Lei 109/2009) ou produzindo documentos não genuínos (eg. as facturas recibo, que são documentos na acepção do artigo 255.º - a) do CP, emitidas pela recorrente e registadas no seu cartão Saúda). Ora, tais factos são essenciais para saber se existe falsidade informática, uma vez que se trata de um elemento do tipo objectivo de ilícito previsto no artigo 3.º da Lei 109/2009.
69. Para fundamentar este raciocínio o Tribunal cita a seguinte doutrina sobre o crime de falsificação de documentos que, com as necessárias adaptações, se afigura válida para o crime de falsidade informática, nomeadamente no que respeita à produção de documentos não genuínos prevista no respectivo tipo legal (cf. Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora 1999, página 676): “Constituindo a falsificação de documentos uma falsificação da declaração incorporada no documento cumpre distinguir as diversas formas que o acto de falsificação pode assumir: falsificação material e ideológica. Enquanto na falsificação material o documento não é genuíno, na falsificação ideológica o documento é inverídico: tanto é inverídico o documento que foi objecto de uma falsificação intelectual como no caso de falsidade em documento. Na falsificação intelectual o documento é falsificado na sua substância, na falsificação material o documento é falsificado na sua essência material. Aquando da falsificação material ocorre uma alteração, modificação total ou parcial do documento. Neste caso o agente apenas pode falsificar o documento imitando ou alterando algo que está feito segundo uma certa forma; quer imitando quer alterando o agente tem sempre uma certa preocupação: dar a aparência de que o documento é genuíno e autêntico. Na falsificação intelectual integram-se todos aqueles casos em que o documento incorpora uma declaração falsa, uma declaração escrita, integrada no documento, distinta da declaração prestada. Por seu turno, na falsidade em documento integram-se os casos em que se presta uma declaração de facto falso juridicamente relevante; trata-se, pois, de uma narração de facto falso (...).”
70. À luz da doutrina mencionada no parágrafo anterior, não tendo sido alegado nem constando da decisão disciplinar, que a recorrente tenha alterado os documentos de venda (facturas recibo mencionadas no facto provado 18) ou neles narrado factos falsos, nem sendo objecto da decisão disciplinar a alegação e prova de que as condições negociais que regem a utilização do cartão Saúda limitam o registo e atribuição de pontos e descontos a compras feitas pelo próprio titular do cartão e/ou impõem requisitos para identificação do comprador não observados pela recorrente, afigura-se que os factos objecto dos presentes autos não são susceptíveis de integrar o crime previsto no artigo 3.º da Lei 109/2009.
71. Nesse contexto, o Tribunal leva ainda em conta as seguintes regras sobre o ónus da prova. Impende sobre a recorrente a prova dos factos extintivos do direito de a recorrida exercer o poder disciplinar, a saber, no caso da prescrição aqui em análise, a data em que ocorreram os factos que servem de fundamento ao exercício do poder disciplinar (cf. artigo 342.º n.º 2 do CC). Porém, apurado tal facto, a invocação, pela recorrida, de que a infracção constitui simultaneamente um crime, funciona como uma contra excepção, que cabe à recorrida provar (cf. artigo 342.º n.º 2 do CC). Ainda que assim não fosse, quod non, restaria a dúvida sobre se os elementos da infracção penal são factos constitutivos do direito de exercer o poder disciplinar para além do limite temporal de um ano, previsto no artigo 329.º n.º 1 primeira parte do CT e sobre quem recai o ónus da prova desses factos. Perante tais dúvidas, o Tribunal deve decidir que esses factos são constitutivos do direito de exercer o poder disciplinar (cf. artigo 342.º n.º 3 do CC) e que o ónus da prova recai sobre a recorrida, a quem aproveitam, por determinarem a aplicação de prazo de prescrição mais longo (cf. artigo 414.º do CPC).
72. Assim, não tendo a recorrida imputado à recorrente factos susceptíveis de preencher o tipo objectivo de ilicito, seja do crime de abuso de confiança, seja do crime de falsidade informática (cf. nota de culpa e decisão disciplinar referidas no facto provado 17), o Tribunal opta por aplicar à infracção disciplinar aqui em causa o prazo de prescrição de um ano previsto no artigo 329.º n.º 1 do CT.
73. Em consequência, embora em resultado de uma qualificação jurídica diferente da que foi alegada, procede este segmento da argumentação da recorrente e, por isso, o Tribunal julga ter prescrito o direito de a recorrida exercer o poder disciplinar. O que torna o despedimento da recorrente ilícito nos termos previstos no artigo 382.º n.º 1 do CT.
74. Ainda que assim não fosse, quod non, afigura-se que a sanção disciplinar de despedimento foi desproporcional por não ter respeitado o critério previsto no artigo 330.º do CT, como será explicado na análise da questão C.
C. Inexistência de justa causa de despedimento
75. Estando em causa, nos presentes autos, a impugnação de um despedimento disciplinar, o artigo 387.º n.º 4 do CT exige que o Tribunal se pronuncie sempre sobre o fundamento substantivo do despedimento, ainda que haja vícios formais.
76. Assim, no que respeita às causas do despedimento, a recorrente defende que, ainda que se provem os factos que lhe foram imputados, à luz do disposto no artigo 330.º do CT a sanção disciplinar de despedimento foi desproporcional.
77. Para apreciar esta questão o Tribunal começa por levar em conta, em primeiro lugar, que, entre a recorrida, na qualidade de empregadora, e a recorrente, na qualidade de trabalhadora, foi celebrado um contrato de trabalho em 1.2.2006, tendo a recorrente a categoria profissional de caixeira de 1.ª e por funções o atendimento e venda de produtos na farmácia aqui ré e tarefas conexas (factos provados 1 e 2) – cf. artigo 11.º do CT.
78. A recorrente foi despedida mediante decisão de 4.5.2023 que lhe foi comunicada em 9.5.2023 (cf. facto provado 21), ou seja, à data do despedimento, 9.5.2023, tinha uma antiguidade de 17 anos, 3 meses e 9 dias.
79. Em segundo lugar o Tribunal recorda que, nos termos do artigo 387.º n.º 3 do CT, a recorrida, nesta acção apenas pode invocar factos e fundamentos constantes da decisão de despedimento comunicada ao trabalhador – cf. nota de culpa e decisão disciplinar dadas por reproduzidas no facto provado 17. De entre esses fundamentos, os que estão em crise no presente recurso são, em síntese, os seguintes: a recorrente (trabalhadora) registou no seu cartão Saúda compras feitas por terceiros, clientes da recorrida (empregadora) e beneficiou dos pontos e descontos respectivos; a recorrente cumulou o desconto profissional de 20% concedido pela recorrida aos trabalhadores, com outros descontos e pontos provenientes do cartão Saúda; em ambos os casos, a recorrente agiu contrariamente às ordens que lhe haviam sido transmitidas pela recorrida e infringiu o dever de lealdade, o que, na óptica da recorrida, constituiu justa causa de despedimento, nos termos do artigo 351.º n.º 2 – d) do CT.
80. Da análise dos elementos que antecedem resulta que, o que está em causa na decisão disciplinar impugnada é saber se com a sua conduta a recorrente infringiu os deveres de obediência e lealdade previstos no artigo 128.º n.º 1 – e) e f) do CT e, por via disso, se existe justa causa de despedimento à luz do disposto no artigo 351.º n.º 2 – d) do CT, como defende a recorrida, ou se, como defende a recorrente, a sanção disciplinar não conservatória do contrato é desproporcional, à luz do disposto no artigo 330.º do CT.
81. Feito este enquadramento, o Tribunal sublinha que tendo em conta os factos provados 3, 4, 18, 23 e 24, não se provou quando é que a recorrida deu instruções à recorrente de que não podia acumular pontos/descontos do cartão Saúda com o desconto de 20% concedido pela recorrida aos seus trabalhadores (cf. facto provado 4). Ou seja, o Tribunal ignora se essa instrução foi dada pela recorrida à recorrente na ocasião da implementação do cartão Saúda, antes de a recorrente cancelar o seu cartão Saúda. Ora, cabia à recorrida provar que transmitiu essa instrução à recorrente antes de 19.10.2021, data da última conduta praticada pela recorrente, invocada para motivar o despedimento (cf. artigo 342.º n.º 1 do CC).
82. Assim, nem se provou que a recorrente tenha acumulado pontos do cartão Saúda com o desconto de 20% concedido pela recorrente, posteriormente a 19 de Outubro de 2021, nem se provou que a instrução dada pela recorrida quanto à proibição de acumular o desconto de 20% com outros descontos, mencionada no facto provado 4, fosse anterior à data em que, por sua iniciativa, a recorrente cancelou o cartão Saúda. O que se apurou foi apenas que, posteriormente à reunião de Outubro de 2021, em que a empregadora transmitiu aos trabalhadores que não podiam acumular determinados descontos concedidos pelas marcas e provenientes de pontos de indústria (facto provado 23), a recorrente cancelou o seu cartão Saúda e desde então não usou mais os pontos e descontos dele constantes.
83. Adicionalmente, pelos motivos acima expostos no parágrafo 67, não se apurou a existência de nenhuma outra fonte contratual dessa proibição de acumulação de descontos, além do exercício do poder directivo da empregadora (cf. artigo 97.º do CT) que, com excepção da reunião de Outubro de 2021, o Tribunal ignora em que data teve lugar no que respeita, especificamente, à acumulação do desconto de 20% com os pontos/descontos do cartão Saúda. Pelo que, como as últimas compras a que se refere o facto provado 18 são de 19 Outubro de 2021 e, embora não se tenha apurado em que dia teve lugar a reunião de Outubro de 2021 mencionada no facto provado 23, resulta do facto provado 24 que a partir da data dessa reunião, a recorrente não usou mais o seu cartão Saúda, não é possível concluir que a acumulação de pontos com descontos, constante de algumas facturas recibo a que se refere o facto provado 18, constitua uma violação dos deveres de obediência ou lealdade por parte da recorrente. Pelo que, não existe fundamento para o despedimento com base em tais condutas.
84. No que respeita ao registo das compras de terceiros, clientes da ré, no cartão Saúda da recorrente, resulta dos factos provados 14, 15 e 18 que a recorrente praticou tais factos apesar de lhe ter sido transmitida pela recorrida, na altura da implementação do cartão Saúda, a indicação de que não devia fazê-lo. O que constitui uma violação do dever de obediência previsto no artigo 128.º n.º 1 – e) do CT. Com efeito, o registo das compras dos clientes da recorrida no cartão Saúda da recorrente, ocorreu no âmbito da organização empresarial em que se encontrava inserida a recorrente e do exercício da autoridade da recorrida, a que estava sujeita a recorrente (cf. artigo 11.º do CT). A este propósito, o Tribunal acompanha a seguinte doutrina (cf. António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 21.º Edição, Almedina, página 351): “A subordinação implica um dever de obediência para o trabalhador. O artigo 128.º/1-e) CT, que expressamente o consagra, completa pois a definição do contrato de trabalho, contida no artigo 11.º. A primeira nota que o enunciado legal sugere é a de que o trabalhador não fica, pelo contrato, simplesmente obrigado a respeitar e cumprir as ordens e instruções do empregador quanto ao modo de executar o trabalho. As ideias de “autoridade” e de “organização” que a definição do artigo 11.º acolhe indicam que o dever de obediência não é meramente instrumental para a execução do trabalho – refere-se a uma variedade de comportamentos requeridos pelo empregador, tendo em vista a coesão e a funcionalidade da própria organização em que o trabalho se insere.”
85. Ainda que não se tenha apurado, nos presentes autos, que houve violação de alguma cláusula contratual relativa à utilização do cartão Saúda que vinculasse a recorrente (como já foi explicado no parágrafo 67), o certo é que, dos factos provados 5 a 13 relativos às vantagens e desvantagens provenientes do uso do cartão Saúda, extrai-se que o funcionamento desse cartão gerava imprevisibilidade, por parte de cada farmácia aderente, quanto à relação custo benefício de cada farmácia. Ora, nesse contexto, uma vez que a recorrente se aproveitou da circunstância de ser trabalhadora da ré para registar no seu cartão Saúda um elevado número de compras de clientes da farmácia recorrida (cf. facto provado 18), gerou uma situação de conflito de interesses entre a empregadora (recorrida) e a trabalhadora (recorrente), no que respeita à atribuição e rebate de um número de pontos muito mais elevado do que seria previsível para a recorrida e possível por parte de outro cliente singular, titular do cartão Saúda. O que, aliado ao número de vezes em que a conduta foi praticada (cf. facto provado 18) excede objetivamente os limites impostos pela boa fé e pelo fim económico a que se destinava o cartão Saúda, que resulta dos factos provados 5 a 13 (cf. artigo 334.º do CC).
86. Pelo que, afigura-se que nessa parte, a conduta da recorrente, além de infringir o dever de obediência às instruções que lhe foram dadas, também infringiu o dever de lealdade previsto no artigo 128.º n.º 1 – f) do CT, na vertente da boa fé. Isto, na medida em que ao agir da forma descrita no parágrafo anterior, a recorrente não procedeu de boa fé na execução do contrato de trabalho, contrariamente ao que impõe o artigo 126.º do CT. Sobre esta questão, o Tribunal acompanha a seguinte doutrina (cf. António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 21.º Edição, Almedina, páginas 358 a 359): “Encarado de um outro ângulo, o dever de lealdade apresenta também uma faceta objectiva, que se reconduz à necessidade de ajustamento da conduta do trabalhador ao já referido princípio da boa-fé no cumprimento das obrigações (...). É o que, em geral, resulta do artigo 126.º/1CT: o empregador e o trabalhador, na execução do contrato, “devem proceder de boa-fé. Desta exigência promana, no que especialmente respeita ao trabalhador, o imperativo de uma certa adequação funcional ou correcção da sua conduta em vista da realização do interesse do empregador, na medida em que esse interesse esteja no “contrato”, isto é, tenha a sua satisfação dependente do cumprimento (e do modo do cumprimento) da obrigação assumida pela contraparte. (...) Como se observou, o dever de lealdade tem, nas relações de trabalho subordinado, manifestações muito variadas e insusceptíveis de previsão exaustiva.”
87. Dito isto, é forçoso reconhecer que, com base nos contornos fácticos mencionados no parágrafo 85, existiu violação dos deveres que resultam para a recorrente do disposto no artigo 128.º n.º 1 – e) e f) do CT, o que constitui fundamento para o exercício do poder disciplinar da recorrida, nos termos previstos no artigo 98.º do CT, desde que o exercício de tal poder ocorresse dentro dos limites temporais já acima mencionados na análise da questão B, o que não sucedeu.
88. Importa agora apreciar a questão, suscitada pela recorrente, de saber se a sanção aplicada foi proporcional, à luz do disposto no artigo 330.º do CT. A resposta que o Tribunal dá a essa questão é negativa, pelos motivos que a seguir serão explicados.
89. A escolha da sanção disciplinar, de entre as previstas no artigo 328.º do CT, deve ser proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor – cf. artigo 330.º n.º 1 do CT.
90. A situação em análise nos presentes autos convoca a aplicação do disposto no artigo 328.º n.º 1 do CT. Do elenco das sanções disciplinares previstas no artigo 328.º n.º 1 do CT constam a repreensão, a repreensão registada, a sanção pecuniária, a perda de dias de férias, a suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade e o despedimento sem indemnização ou compensação. Com excepção do despedimento, que é a sanção disciplinar mais grave, as restantes sanções previstsa no artigo 328.º n.º 1 do CT, embora com graus de gravidade diferentes, são todas elas conservatórias do contrato de trabalho.
91. Com efeito, para que o empregador possa optar pela aplicação da sanção mais grave, o despedimento, o artigo 351.º n.º 1 do CT exige que, adicionalmente à existência de uma violação dos deveres impostos ao trabalhador, o comportamento do trabalhador: (i) seja culposo e que (ii) pela sua gravidade e consequências (iii) torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
92. Acresce que, no âmbito do despedimento, o artigo 351.º n.º 3 do CT concretiza o princípio da proporcionalidade previsto no artigo 330.º do CT, estabelecendo que na apreciação da infracção disciplinar devem ser tidos em conta os seguintes elementos, no âmbito da empresa: (i) o grau de lesão dos interesses do empregador, (ii) as suas relações com o trabalhador, (iii) as relações entre o trabalhador e os colegas, (iv) e as demais circunstâncias relevantes no caso.
93. Por fim, importa levar em conta que, não obstante a objectivação do poder disciplinar resultante do princípio da proporcionalidade, no exercício do poder disciplinar e na valoração da infracção cometida pela recorrente, a recorrida goza de uma considerável margem de discricionariedade que, porém, não é arbitrariedade (cf. Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, 9.ª Edição, Almedina, páginas 720 a 722).
94. Assim, será à luz dos factores acima enunciados que o Tribunal apreciará os factos relevantes, disponíveis nos presentes autos, para decidir se a sanção aplicada foi proporcional.
95. Para esse efeito o Tribunal leva em conta que a recorrente: agiu dolosamente, de forma repetida e ao longo de cerca de 1 ano e 2 meses; a infracção tem as características de uma só infracção continuada o que diminui a sua culpa; não se apurou que tenha causado prejuízo à empregadora (recorrida); não foi a única a praticar a infracção em causa, na qual já tinham incorrido outros trabalhadores, o que gerou um sentimento de impunidade/tolerância da empregadora; não tem antecedentes disciplinares; o seu trabalho é apreciado pelos clientes da recorrida; demonstrou espirito de equipa e empenho em defender os interesses da empresa numa tentativa de furto à farmácia, perpetrada por um terceiro, que conseguiu evitar em cooperação com outros colegas de trabalho; cessou a prática da infracção aqui em causa, por sua iniciativa, mais de um ano antes de a empregadora tomar conhecimento dessa infracção, o que demonstra arrependimento espontâneo e vontade de repor a validade do dever infringido; desde a data em que foi praticada a última conduta que integra a infracção, até à instauração do procedimento disciplinar aqui em causa, decorreu mais de um ano, o que neutraliza a finalidade da sanção; à data do despedimento, trabalhava na empresa há mais de 17 anos – cf. factos provados 1, 2, 23, 24, 25, 26, 34 e 36.
96. Da análise que antecede resulta que não estão preenchidos os pressupostos da justa causa de despedimento previstos no artigo 351.º n.ºs 1 e 3 do CT, porque: em primeiro lugar, não se apurou que a infracção praticada pela recorrente tivesse consequências graves para a recorrida; em segundo lugar, apesar da violação dos deveres de obediência e lealdade, o arrependimento da recorrente, ao pôr termo à infracção espontaneamente, antes de a mesma ser conhecida pela recorrida, revela que a relação de confiança entre a empregadora e a trabalhadora não está irremediavelmente comprometida; em terceiro lugar, independentemente de ser aplicável o prazo de prescrição de 1 ano, pelo qual optou o Tribunal na análise da questão B, ou o prazo de prescrição da lei penal, o certo é que se apurou um distanciamento de mais de um ano entre a infracção e a sanção, o que não se adequa ao carácter e aos fins, essencialmente preventivos e não retributivos, da sanção disciplinar.
97. Em consequência, o Tribunal julga improcedente o motivo justificativo do despedimento e, também por tal motivo, declara ilícito o despedimento da recorrente – cf. artigo 381.º - b) do CT.
D. Consequências do despedimento ilícito
98. A título liminar Tribunal recorda que, na contestação, a recorrente formulou os seguintes pedidos (cf. referência citius 36768013, de 14.8.2023), qualificados pelo artigo 98.º L do CPT, como dedução de reconvenção: “a) Ser julgada improcedente, por não provada, a presente ação e, consequentemente, ser declarada a inexistência de motivo justificativo para despedimento da trabalhadora e, dessa forma, declarado ilegal o despedimento da Autora; b) Ser a A entidade patronal, aqui Ré, condenada a pagar à Autora, em alternativa à reintegração, a indemnização calculada nos termos do artigo 392.º n.º 3, por aplicação do artigo 63.º n.º 8, ambas as normas do Código de Trabalho; c) Ser a Ré condenada a pagar a quantia de € 1.258,00 de horas de formação em falta, bem como todo e qualquer outro crédito que assista à Ré em virtude da inexistência de motivo justificativo para o despedimento por justa causa, como sejam férias não gozadas, proporcionais de férias e subsídio de férias e de natal que se venceram após 30 de Abril de 2023, e cuj[o] valor só pode se apurado em sentença final. c) Ser a Ré condenada a pagar à Autora as retribuições que esta deixou de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento. d) Ser a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de € 5.000,00 euros a título de indemnização por danos não patrimoniais.” e) todas estas importâncias devem ser acrescidas de juros de mora à taxa legal, desde o respectivo vencimento e até integral pagamento”.
99. Tal como já foi referido supra no parágrafo 8, de entre os pedidos enunciados no parágrafo anterior, o Tribunal da Relação apreciará aqueles que, tendo ficado prejudicados pela decisão recorrida, fazem parte do objecto recurso, a saber, o pagamento das retribuições, da indemnização em substituição da reintegração e da indemnização por danos morais, a que aludem as conclusões 38 a 40 da motivação de recurso.
100. Com efeito, em virtude da regra da substituição, prevista no artigo 665.º n.º 2 do CPC, sendo revogada a decisão recorrida que julgou lícito o despedimento, o Tribunal da Relação deve apreciar as questões cujo conhecimento ficou prejudicado e que façam parte do objecto do recurso.
101. A esse propósito convém também sublinhar que não há lugar ao cumprimento do disposto no artigo 665.º n.º 3 do CPC, pelas seguintes razões: a motivação de recurso (cf. conclusões 38 a 40) incide sobre as consequências do despedimento ilícito; foi exercida pela recorrida a faculdade de contra-alegar e portanto de, querendo, pronunciar-se sobre tais questões; pelo que, não há decisão surpresa, que é o resultado que o artigo 665.º n.º 3 do CPC pretende evitar; isto porque tais questões já foram objecto das alagações e puderam ser debatidas entre as partes na fase do recurso (cf. neste sentido acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido processo 24463/21.1T8LSB.L1-6).
102. Enfim, no âmbito da análise da presente questão é oportuno voltar a sublinhar que o Tribunal não está sujeito às alegações das partes no que respeita à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – cf. artigo 5.º nº 3 do CPC.
103. Dito isto, tendo em conta os factos provados e os articulados juntos em primeira instância (cf. articulados juntos com as referências citius 36637304/motivação do despedimento, 36768013/contestação e 36870580/resposta), afigura-se que a situação em litígio, descrita pela recorrente, não se enquadra no disposto nos artigos 63.º n.º 8 e 392.º do CT, cuja aplicação a recorrente defende, nem isso foi invocado pela recorrida no articulado a que alude o artigo 98.º J .nº 2 do CPT.
104. Afigura-se que, em consequência do despedimento ilícito, a recorrente (trabalhadora) tem direito a receber a indemnização pelos danos causados pelo despedimento, mediante a prova dos respectivos pressupostos e, a seu pedido, a indemnização em substituição da reintegração. Porém, no caso em análise, tais quantias são fixadas à luz do disposto nos artigos 389.º e 391.º do CT. Além disso, a trabalhadora/recorrente tem direito a receber as retribuições intercalares, ou seja, as que receberia se não fosse o despedimento – cf. artigo 390.º do CT.
105. À luz do disposto nos artigos 53.º da Constituição da República Portuguesa e 339.º do CT, o regime previsto nos artigos 389.º e 391.º do CT, sobre as consequências do despedimento ilícito, é inderrogável (cf. António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 21.º Edição, Almedina, página 712). Dito isto, tendo em conta os pedidos acima enunciados nos parágrafos 98 e 99, segue-se a apreciação das consequências do despedimento ilícito, que o Tribunal subdivide em: Retribuições intercalares devidas pelo despedimento ilícito; Indemnização em substituição da reintegração; Indemnização por danos não patrimoniais; Indemnização pela mora. Retribuições intercalares devidas pelo despedimento ilícito
106. Dos factos provados resulta que o despedimento ocorreu em 9.5.2023 (cf. facto provado 21). A sentença recorrida já condenou a recorrida a pagar o valor da retribuição em falta, devida até essa data, decisão que, nessa parte não foi impugnada. Resulta igualmente dos factos provados que os restantes componentes da retribuição devidos até 9.5.2023 foram pagos à recorrente (cf. facto provado 32).
107. Assim, se o contrato tivesse estado em execução, a teria recebido a retribuição devida pelo trabalho prestado entre 10.5. 2023 e 3.7.2024 (data da prolação do presente acórdão) assim como a retribuição correspondente aos dias restantes desse mês e aos meses seguintes, até ao transito em julgado do presente acórdão, calculada da seguinte forma.
108. O valor da retribuição a ter em conta corresponde à retribuição base e às diuturnidades calculadas nos termos previstos no artigo 262.º n.º 2 do CT – cf. artigo 391.º n.º 1 do CT.
109. O Tribunal leva em conta, para calcular a compensação devida pelo despedimento, prevista no artigo 390.º do CT, o valor de 1 090,00 euros do vencimento mensal ilíquido da recorrente (cf. facto provado 33).
110. Não se apurou a existência de diuturnidades.
111. Quanto ao abono para falhas, aplica-se o disposto no artigo 260.º n.º 1 – a) e n.º 2 do CT que estabelece a presunção legal, ilidível, de que tal valor não se inclui retribuição. Só assim não seria se, e na medida em que, se provasse que o abono para falhas excedia um montante considerado normal ou quando, pelo contrato ou pelos usos, fosse tido como elemento integrante da retribuição, circunstâncias que aqui não se provaram – cf. António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 21.ª Edição, Almedina, página 412. Pelo que, o abono para falhas não será incluído no cálculo da compensação por despedimento.
112. Os valores proporcionais do subsídio de Natal (cf. artigo 263.º n.º 1 e 2 do CT) e do subsídio de férias (cf. artigo 264.º n.º 2 do CT), são prestações pecuniárias de periodicidade anual com fundamento directo no contrato, pelo que são consideradas de natureza retributiva para efeitos de cálculo da compensação devida por despedimento (cf. Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, parte II, 9.ª Edição, Almedina, página 615).
113. Do acima exposto resulta que, o valor das retribuições intercalares inclui o valor da retribuição de base composta pelo vencimento mensal, a que acresce o valor dos subsídios de férias e de Natal, como se segue: (1 090,00 x 14 meses) / 12 = 1 271, 67.
114. Como a recorrente já recebeu as quantias devidas até 9.5.2023, no que respeita ao mês de Maio de 2023, falta pagar o valor correspondente a 21 dias, calculado como se segue: 1 271, 67/30 = 42,39 | 42,39 x 21 = 890,17.
115. A recorrida deve pagar à recorrente a quantia de 890,17 euros correspondente à retribuição intercalar de Maio de 2023 e a quantia mensal de 1 271,67 euros desde Junho de 2023 até ao trânsito em julgado do presente acórdão; no caso de o transito não ocorrer no final do mês, será devido o valor diário 42,39 euros calculado no parágrafo anterior, por cada um dos dias desse mês. Valores que, até à data da prolação do presente acórdão, totalizam 16 277, 38 euros, calculados assim: 890,17 + (1 271,67 x 12) + (42,39 x 3) = 16 277,38 (cf. artigo 272.º do CT).
116. Nada se provou quanto a férias não gozadas.
117. Não há lugar à dedução prevista no artigo 390.º n.º 2 – b) do CT uma vez que a acção foi proposta em 10.5.2023, ou seja, nos 30 dias subsequentes ao despedimento que ocorreu em 9.5.2023 – cf. requerimento de início do processo com a referência citius 35897554 de 10.5.2023 e facto provado 21. Acresce que não foi pedida a dedução das importâncias previstas no artigo 390.º n.º 2 -a) do CT, pelo que a mesma não será ordenada.
118. Relativamente às importâncias recebidas a título de subsídio de desemprego, o Tribunal leva em conta, ao abrigo do disposto no artigo 607.º n.º 4 segunda parte e 663.º n.º 2 do CPC, que se encontra admitido por acordo das partes que a recorrente recebeu as seguintes quantias de subsídio de desemprego: 396,07 euros correspondentes ao período entre 15.5.2023 e 31.5.2023; e 742,62 euros mensais, durante os 6 meses seguintes, entre Junho de 2023 e Novembro de 2023 – cf. documentos particulares juntos aos autos pela recorrente em 27.11.2023, com a referência citius 37715397, emitidos electrónicamente pela segurança social, não impugnados pela recorrida. O que totaliza 4 851,79 euros.
119. Nos termos do artigo 390.º n.º 2 – c) do CT, o subsídio de desemprego atribuído à recorrente entre a data do despedimento, 9.5.2023, e data do trânsito em julgado do presente acórdão, deve ser deduzido do valor das retribuições intercalares e entregue pela recorrida à segurança social.
120. Assim, pelo despedimento ilícito, a recorrida deve pagar à recorrente as seguintes retribuições intercalares, como se o contrato não tivesse cessado: 890,17 euros correspondentes à prestação do mês de Maio de 2023 e 1 271,67 euros mensais, devidos, respectivamente, por cada um dos meses seguintes, desde Junho de 2023 até ao trânsito em julgado do presente acórdão. A estas quantias a recorrida deve deduzir e entregar à segurança social, o subsídio de desemprego atribuído à recorrente, no valor de 4 871, 79 euros e o que vier liquidar-se em execução de sentença, atribuído à recorrente até à data do trânsito em julgado do presente acórdão. Indemnização em substituição da reintegração
121. Além da compensação pelo despedimento ilícito, prevista no artigo 390.º do CT, a recorrente tem direito à indemnização em substituição da reintegração, calculada nos termos do artigo 391.º do CT. Das circunstâncias apuradas resulta que o grau de ilicitude do despedimento é pequeno pelos motivos já acima enunciados na análise da questão C. Ou seja, embora o motivo justificativo do despedimento tenha sido declarado improcedente (cf. artigo 381.º - b) do CT), isso deveu-se à desproporcionalidade da sanção e ao decurso do tempo, pois provou-se que a recorrente violou os deveres de obediência e lealdade. O contrato de trabalho teve início em 1.2.2006 (facto provado 1). A retribuição base mensal a que se refere o artigo 391.º n.º 1 do CT, calculada nos termos do artigo 262.º n.º 2 – a) do CT, é de 1 090,00 euros, não se tendo apurado diuturnidades. Não se trata de uma retribuição mensal elevada. O valor da indemnização varia na razão inversa do valor da retribuição e na razão directa do grau de ilicitude do despedimento, sendo preponderante, na sua determinação, o critério da ilicitude do despedimento (cf. António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 21.º Edição, Almedina, página 721).
122. À luz deste factores, que o Tribunal pondera nos termos previstos no artigo 391.º do CT, afigura-se que deve ser fixada uma indemnização correspondente a 20 dias de retribuição base por cada ano completo ou fracção de antiguidade, que não pode ser inferior a três meses de retribuição base. Nos termos artigos 565.º do CC e 609.º n.º 2 do CPC, o Tribunal condena desde já no quantitativo da indemnização em substituição da reintegração que considera provado, relegando para liquidação posterior a fixação da restante parte dessa indemnização uma vez que, até ao trânsito em julgado, pode vir a decorrer um lapso de tempo que represente o acréscimo de um ano ou fracção de antiguidade aos já aqui levados em conta.
123. Assim, até ao presente, decorreram 18 anos de antiguidade (de 1.2.2006 a 31.1.2024) e uma fracção de antiguidade (de 1.2.2024 a 3.7.2024). Pelo que, parte da indemnização devida pela recorrida à recorrente, em substituição da reintegração, liquida-se em 13 806,73 euros, sendo calculada como se segue: (1090,00/30) x 20 = 726,67 | 726,67 x 19 = 13 806,73. Uma vez que deve levada em conta a totalidade do tempo decorrido desde o despedimento até ao trânsito em julgado do presente acórdão, nos termos do artigo 391.º n.º 2 do CT, o Tribunal relega para momento posterior a liquidação da restante parte da indemnização a que haja lugar, devida por cada ano ou fracção de antiguidade que, até ao trânsito em julgado do presente acórdão, devam acrescer aos acima indicados, à razão de 20 dias de retribuição base ou 726,67 euros, por cada ano ou fracção de antiguidade acrescidos. Indemnização por danos não patrimoniais
124. Por fim, a recorrente pede uma indemnização por danos não patrimoniais (cf. artigo 389.º n.º 1 – a) do CT). A este propósito, se o trabalhador provar que, da cessação do contrato de trabalho resultaram danos não patrimoniais, tais prejuízos devem ser ressarcidos nos termos gerais da responsabilidade civil, desde que se verifiquem os respectivos pressupostos.
125. Com efeito, resulta do facto provado 29 que, em consequência da instauração do procedimento disciplinar pela recorrida, a recorrente sentiu ansiedade, nervosismo, teve dificuldade em dormir e consultou um psiquiatra. Trata-se de danos morais.
126. A esse propósito, no caso em análise verificam-se os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, a saber: o facto (despedimento), a ilicitude do despedimento (pelos motivos indicados nos artigos 381.º - b) e 382.º n.º 1 do CT), o dano (ansiedade, nervosismo, dificuldade em dormir, recurso a consulta de psiquiatra), o nexo causal entre o facto e o dano (foi em consequência da instauração do procedimento disciplinar) e a imputação do facto à recorrida, que despediu intencionalmente a recorrente (cf. artigos 483.º, 487.º e 563.º do CC).
127. O problema que se coloca é o de saber se, tratando-se de danos morais, os danos apurados no facto provado 29, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito como exige o artigo 496.º n.º 1 do CC para que sejam indemnizáveis.
128. De acordo com a doutrina (cf. João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume I, 4.ª Edição, Almedina, páginas 532): “A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada)[...]. Por outro lado, a gravidade apreciar-se-á em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.”
129. O dano não patrimonial merece a tutela do direito quando, por exemplo, o despedimento ilícito tenha sido levado a cabo com a exclusiva finalidade de atingir a esfera pessoal do trabalhador. Nesse contexto, se se demonstrarem danos morais razoáveis os mesmos devem ser indemnizados por força do artigo 496.º n.º 1 do Código CC (cf. Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Volume II, 9.ª Edição, Almedina, página 1046 e João Leal Amado, Contrato de Trabalho, 4.ª edição, Almedina, página 417).
130. À luz da doutrina que antecede, os danos morais sofridos pela recorrente, mencionados no facto provado 29, pela sua gravidade, poderiam justificar a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária.
131. Porém, resulta do conjunto das circunstâncias ponderadas na análise da questão C que o grau de ilicitude do despedimento não é elevado e que, embora a sanção aplicada seja desproporcional e tenha decorrido um lapso de tempo superior a um ano entre a infracção e a sanção, o certo é que a recorrente concorreu com o seu comportamento culposo, para a verificação do dano e isso justifica a exclusão da indemnização pelos danos não patrimoniais que reclama (cf. artigo 570.º do CC).
132. Motivos pelos quais improcede o pedido de indemnização por danos não patrimoniais. Indemnização pela mora
133. A recorrente pede a condenação nos juros legais devidos pela mora no cumprimento das obrigações, que impendem sobre a recorrida, de pagar os salários intercalares e a indemnização em substituição da integração, em consequência do despedimento ilícito.
134. Coloca-se a questão de saber desde quando se vencem os juros de mora sobre tais quantias: desde a citação, nos termos previstos para a obrigação de indemnização por factos ilícitos (cf. artigo 805.º n.º 2 – b) e nº 3 do CC); desde o trânsito em julgado do presente acórdão, por ser o momento temporal previsto nos artigos 390.º 1 e 391.º n.º 2, do CT, respectivamente, para o cálculo dos salários intercalares e da indemnização em substituição da reintegração; desde o vencimento de cada uma das componentes retributivas que integram a compensação prevista no artigo 390.º do CT, por se tratar de obrigações contratuais; desde a data do presente acórdão; ou, desde a data em que ocorrer a liquidação da obrigação de indemnização. A jurisprudência nacional sobre a questão não é unânime e tem oscilado entre as várias posições acima enunciadas (eg. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, nos processos 97S144 de 14.1.1988, 01S967 de 8.11.2000 e 16995/17.2T8LSB.L2.S1; acórdão do Tribunal da Relação de Évora, no processo 603/05.7TTFAR.E1; acórdão do Tribunal da Relação do Porto 449/10.0TTVFR.P3).
135. Para resolver o problema, no caso concreto em litígio, o Tribunal começa por levar em conta a seguinte doutrina (António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 21.º Edição, Almedina, páginas 710 a 711): “Uma primeira dessas tendências decisórias vai no sentido de que a compensação dos salários intercalares deve ser adicionada de juros de mora contados desde o vencimento das componentes retributivas que integram a respectiva prestação. A argumentação deduzida (...) [p]ode sintetizar-se deste modo: “a R. tem forma de conhecer e liquidar os quantitativos peticionados e já vencidos (...), pelo que se encontra em mora desde o vencimento das componentes que integram a compensação”. Ora não parece que tal asserção tenha apoio legal. Se esse fosse o entendimento da lei, haveria sempre juros de mora a acrescentar ao valor das retribuições intercalares, sendo de esperar que o art. 390.º o explicitasse. A lei nada diz sobre o ponto. Por outro lado, esse artigo refere-se (somente no título, é certo) a uma “compensação” que, como tal, parece ser uma prestação ressarcitória unitária, resultante de um somatório de várias parcelas, mas cujo apuramento (liquidação) só pode fazer-se justamente após a declaração de ilicitude do despedimento, sendo função do tempo (muito variável) que demore o percurso judicial da questão. Basta ter em conta que poderá haver deduções a fazer, por aplicação do art. 390.º/2 e que os valores a pagar dependem, no seu montante, do tempo que leve a atingir-se a decisão final. Por outro lado, o despedimento – se não for suspenso – é uma declaração eficaz nesse período intercalar: a cessação dos débitos retributivos é a sua consequência adequada e natural. Os correspondentes valores não são, pois, juridicamente exigíveis enquanto não surgir a declaração judicial de ilicitude do despedimento. O não pagamento dos salários, neste contexto, não é o equivalente ao incumprimento de uma obrigação. Essa obrigação morreu com o despedimento e só renasce retroactivamente com a declaração da ilicitude deste. É com esta declaração judicial que emerge a exigibilidade do pagamento dos referidos valores.”
136. À luz da doutrina que antecede, o Tribunal opta aqui por aplicar o regime previsto para a mora da obrigação de indemnização fundada na prática de um facto ilícito (o despedimento ilícito), quer no caso da obrigação de pagar os salários intercalares aos quais devem ser subtraídos os valores do subsídio de desemprego recebidos pela recorrente até ao trânsito em julgado, quer no caso da obrigação de indemnização em substituição da reintegração, que, sendo uma contrapartida pela antiguidade da trabalhadora, tem unicamente dois pressupostos: a ilicitude do despedimento e a inexistência de reintegração (cf. António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 21.º Edição, Almedina, página 719).
137. Nesse contexto, o Tribunal considera que, pelo facto de as indemnizações arbitradas no presente acórdão assentarem na prática de um facto ilícito (o despedimento ilícito), a recorrida se constitui em mora desde a citação para a presente acção, nos termos dos artigos 804.º, 805.º n.º 3 e 806.º do CC (cf. em sentido idêntico quanto aos danos morais provenientes do despedimento ilícito, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça no processo 01S967 de 8.11.2000).
138. Porém, há que conjugar o disposto no artigo 805.º n.º 2 – b) do CC com o n.º 3 do mesmo preceito legal (cf. João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume II, 4.ª Edição, Almedina, páginas 114 e 115). Assim, relativamente à parte da indemnização em substituição da reintegração que já é possível liquidar, os juros de mora à taxa legal vencem-se desde a data da citação; relativamente à parte da indemnização em substituição da reintegração cuja liquidação ainda não pode ter lugar mas que pode ocorrer se o lapso de tempo até ao trânsito em julgado implicar a adição de um ano ou fracção suplementar de antiguidade aos já calculados supra, os juros de mora vencem-se a partir do trânsito em julgado, uma vez que nessa data a liquidação de tal valor é possível em resultado de meras operações aritméticas; relativamente ao valor das retribuições intercalares, devidas entre a data do despedimento e o trânsito em julgado, ao qual deve ser deduzido o valor dos subsídios de desemprego recebidos pela recorrente no mesmo período, ignorando o Tribunal em que momento virão a ser pagos os subsídios relativos a todo esse período, os juros de mora vencem-se a partir da data da liquidação dessa quantia (cf. João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume II, 4.ª Edição, Almedina, página 115 e, no mesmo sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Évora, processo 603/05.7TTFAR.E1). Em síntese
139. Procede parcialmente a impugnação da matéria de facto, que foi alterada nos termos acima mencionados no presente acórdão, pelos motivos explicados na análise da questão A.
140. O Tribunal opta por aplicar à infracção disciplinar aqui em causa o prazo de prescrição de um ano, previsto na primeira parte do artigo 329.º n.º 1 do CT, porque a recorrida não invocou/descreveu na decisão disciplinar factos, praticados pela recorrente, susceptíveis de preencher o tipo objectivo de ilicito, seja do crime de abuso de confiança, seja do crime de falsidade informática.
141. Em consequência, prescreveu o direito de a recorrida exercer o poder disciplinar, o que torna ilícito o despedimento da recorrente, nos termos previstos no artigo 382.º n.º 1 do CT.
142. A conduta da recorrente, ao registar repetidamente, no seu cartão Saúda, pontos provenientes de compras feitas por clientes da recorrida, aproveitando-se da circunstância de estar inserida na organização empresarial da recorrida e contrariando as instruções que lhe haviam sido dadas pela empregadora, constitui uma infracção continuada aos deveres de obediência e lealdade previstos no artigo 128.º - e) e f) do CT.
143. Porém, não estão preenchidos os pressupostos da justa causa de despedimento previstos no artigo 351.º n.ºs 1 e 3 do CT, porque: em primeiro lugar, não se apurou que a infracção praticada pela recorrente tivesse consequências graves para a recorrida; em segundo lugar, a recorrente demonstrou arrependimento ao pôr termo à infracção espontaneamente, antes de a mesma ser conhecida pela recorrida, o que revela que a relação de confiança entre a empregadora e a trabalhadora não está irremediavelmente comprometida; em terceiro lugar, independentemente do prazo de prescrição do exercício do poder disciplinar, o certo é que se apurou um distanciamento de mais de um ano entre a infracção e a sanção, o que não se adequa ao carácter e aos fins, essencialmente preventivos e não retributivos, da sanção disciplinar.
144. Em consequência, é ilícito o despedimento da recorrente por ser improcedente o motivo justificativo desse despedimento – cf. artigo 381.º - b) do CT.
145. Pelo despedimento ilícito, a recorrida deve pagar à recorrente as retribuições intercalares, como se o contrato não tivesse cessado, nos seguintes valores: 890,17 euros correspondentes à prestação do mês de Maio de 2023 e 1 271,67 euros mensais, devidos, respectivamente, por cada um dos meses seguintes, desde Junho de 2023 até ao trânsito em julgado do presente acórdão. A estas quantias a recorrida deve deduzir e entregar à segurança social, o subsídio de desemprego atribuído à recorrente nesse período.
146. Adicionalmente, pelo despedimento ilícito, a recorrida deve pagar à recorrente a indemnização devida em substituição da reintegração, que o Tribunal fixa em 20 dias de retribuição base (ou 726,67 euros) por cada ano completo ou fracção de antiguidade. Tendo em conta que, até à data do presente acórdão, decorreram 18 anos de antiguidade (de 1.2.2006 a 31.1.2024) e uma fracção de antiguidade (de 1.2.2024 a 3.7.2024), o Tribunal condena a recorrida a pagar à recorrente 13 806,73 euros correspondentes à parte dessa indemnização que já é líquida (cf. artigos 565.º do CC e 609.º do CPC) e relega para o momento posterior a liquidação da restante parte da indemnização devida por cada ano ou fracção de antiguidade, que venham a acrescer aos acima indicados até ao trânsito em julgado do presente acórdão (cf. artigo 391.º n.º 2 do CT).
147. Aos valores devidos, previstos nos artigos 390.º e 391.º do CT, acrescem juros de mora à taxa legal, vencidos desde a citação, sobre os valores já líquidos, e desde a data em que ocorrer a liquidação (que, consoante os casos, coincide com a data do trânsito ou poderá ser posterior como foi explicado supra), sobre os restantes valores – cf. artigos 804.º, 805.º n.º 2 -b) e n.º 3 e 806.º n.ºs 1 e 2 do CC.
148. Improcede o pedido de indemnização por danos não patrimoniais porque a recorrente contribuiu com o seu comportamento culposo, para a produção desses danos, o que justifica a exclusão da reparação pecuniária dos danos morais que sofreu (cf. artigo 570.º do CC). Custas
149. De acordo com o princípio da causalidade consagrado no artigo 527.º n.º 1 do CPC, ex vi artigo 87.º n.º 1 do CPT, ambas as partes são responsáveis pelo pagamento das custas do recurso na respectiva proporção em que decaíram. Tendo sido em parte revogada, em parte alterada, a decisão recorrida, ambas as partes decaíram.
150. Segundo a doutrina (cf. Salvador da Costa, As Custas Processuais, 9.ª Edição, Almedina, página 9): “Beneficiando a parte vencida de apoio judiciário na modalidade de dispensa de custas, não tem apoio legal a condenação no seu pagamento com a ressalva do apoio judiciário de que beneficie, mas sim a não condenação dela no pagamento de custas”.
É esse o caso da recorrente, à qual foi concedido o apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo (cf. referência citius 37493396 de 6.11.2023).
151. No entanto, a dispensa do pagamento de custas de que beneficia a recorrente não abrange os reembolsos à parte contrária a que haja lugar, os quais, nos termos do artigo 26.º n.º 6 do Regulamento das Custas Processuais (RCP), são suportados pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P.
152. À luz do disposto nos artigos 607.º, n.º 6, 663.º n.º e 679.º do CPC, o Tribunal da Relação deve fixar as custas do recurso mas não as custas das decisões recorridas ainda que objecto de alteração/revogação, como foi o caso. Isto porque a condenação em custas em primeira instância tem natureza provisória (cf. neste sentido Salvador da Costa, As Custas Processuais, 9.ª Edição, Almedina, página 8).
153. A mesma interpretação foi adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo 2104/12.8TBALM.L1.S1 cujo ponto iV do sumário é a seguir transcrito): “IV. A condenação em custas por decisão de que seja interposto recurso de apelação ou de revista assume sempre natureza provisória, na medida em que a sua efetivação fica condicionada pelo resultado que vier a ser declarado pela Relação ou pelo Supremo que, podendo consistir na confirmação da decisão recorrida, pode também traduzir-se na sua anulação, revogação ou alteração, com efeitos que se projetam na determinação ou na amplitude da responsabilidade tributária e ainda na exigibilidade ou não da taxa de justiça remanescente.”
154. Tendo em conta a jurisprudência e a doutrina acima expostas, o Tribunal condena a recorrida nas custas do recurso, na proporção do respectivo decaimento. Quanto à recorrente, como beneficia da dispensa do pagamento de custas na proporção em que decaiu, o Tribunal determina que essa dispensa não abrange o reembolso à parte contrária, a que haja lugar nos termos do artigo 26.º n.º 6 do RPC, o qual será suportado pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P.
Decisão
Acordam as Juízes desta secção em:
I. Julgar parcialmente procedente o recurso.
II. Revogar a decisão recorrida na parte em que julgou lícito o despedimento e substituí-la por outra que declara ilícito o despedimento da recorrente.
III. Alterar a decisão recorrida proferida quanto à reconvenção deduzida pela recorrente e condenar a recorrida a pagar à recorrente as seguintes quantias Retribuições intercalares
i. 890,17 euros (oitocentos e noventa euros e dezassete cêntimos), devidos pelo mês de Maio de 2023.
ii. 1271,67 euros (mil duzentos e setenta e um euros e sessenta e sete cêntimos) devidos, respectivamente, por cada um dos meses seguintes, desde Junho de 2023 até ao trânsito em julgado do presente acórdão.
iii. Às retribuições intercalares acima mencionadas em i. e ii., a recorrida deve deduzir e entregar à segurança social o montante de 4 871,79 (quatro mil e oitocentos e setenta e um euros e setenta e nove cêntimos) já recebido pela recorrente a título de subsídio de desemprego até Novembro de 2023 e o valor do subsídio de desemprego atribuído à recorrente desde Dezembro de 2023 até ao trânsito em julgado do presente acórdão, conforme se liquidar em execução de sentença.
iv. Os juros de mora, à taxa legal, vencidos sobre os valores mencionados em i. ii. e iii. desde a data em que se liquidarem essas quantias. Indemnização pelo despedimento ilícito
v. 13 806,73 euros (treze mil oitocentos e seis euros e setenta e três cêntimos).
vi. Os juros de mora à taxa legal, vencidos desde a citação e vincendos até integral pagamento, sobre a quantia acima indicada em v.
vii. A quantia devida por cada ano ou fracção de antiguidade que, até ao trânsito em julgado do presente acórdão, venha a acrescer aos indicados no parágrafo 123, à razão de 20 (vinte) dias de retribuição base, que perfazem 726,67 euros (setecentos e vinte seis euros e sessenta e sete cêntimos), por cada ano ou fracção de antiguidade, acrescida dos juros de mora à taxa legal, vencidos desde a data do trânsito em julgado do presente acórdão.
IV. Manter no mais a decisão recorrida sobre a reconvenção.
V. Condenar a recorrida nas custas, na proporção em que decaiu e determinar que a dispensa de pagamento de custas de que beneficia a recorrente, em virtude do apoio judiciário, não prejudica a aplicação do disposto no artigo 26.º n.º 6 do RCP
Lisboa, 3 de Julho de 2024
Paula Pott
Paula Santos
Maria José Costa Pinto - com a seguinte declaração de voto:
Consigno que, na minha perspectiva, os juros de mora sobre as retribuições intercalares a que a trabalhadora tem direito deveriam ser computados à taxa legal desde a data de vencimento de cada prestação, até efectivo e integral pagamento (em conformidade com o decidido, entre outros, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Março de 2022, processo 16995/17.2T8LSB.L2.S1), aspecto que, todavia, no contexto da decisão que subscrevo, tem uma escassa relevância.