INCUMPRIMENTO DOS ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário

I - A reapreciação da matéria de facto no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662º do CPC, não pode confundir-se com um novo julgamento pressupondo, por isso, que a recorrente fundamente de forma concludente as razões por que discorda da decisão recorrida, apontando com precisão os elementos ou meios de prova que implicam decisão diversa da proferida em 1ª instância e indique a resposta alternativa que pretende obter, em cumprimento dos ónus que lhe são impostos pelo art. 640º do mesmo código, sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto.
II – A inobservância, pela recorrente, daqueles ónus a que alude o art. 640º, nº 1 e 2, importa que se rejeite o recurso, na parte, em que se impugna a decisão de facto.
III – Ou seja, o recurso sobre a matéria de facto deve ser rejeitado pela Relação por incumprimento dos ónus estabelecidos naquele art. 640º, quando a recorrente se limita a fazer uma indicação genérica e, apenas, em parte da prova que na sua perspectiva justificaria uma decisão diversa daquela a que chegou o Tribunal recorrido, em relação aos factos impugnados.
IV - A exigência da especificação dos concretos meios probatórios convocados e a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre do preceituado no nº 1 do art. 662º.

(da responsabilidade da Relatora. nos termos do disposto no art. 663º, nº 7, do CPC)

Texto Integral

Proc. Nº 978/22.3T8AVR.P1

Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro Juízo do Trabalho de Aveiro - Juiz 1



Recorrente: AA e BB
Recorrida: A..., Ld.ª








Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto



I – RELATÓRIO
Os AA., AA, NIF ...20..., e mulher, BB, NIF ...49..., reformados, ambos residentes na Rua ..., da União de freguesias ... e ..., ... ..., instauraram acção declarativa sob a forma de processo comum, emergente de contrato de trabalho, contra a Ré, A..., Ld.ª, sociedade comercial por quotas com o NIPC ...56 e sede na Rua ..., ..., União de freguesias ... e ..., ... ..., na qual pedem (petição apresentada, em resposta ao convite ao aperfeiçoamento, que lhes foi efectuado) que, “deve a presente acção ser julgada provada e procedente e, consequentemente:
a) Ser considerado resolvido o contrato de trabalho celebrado entre os A.A. e a entidade patronal, por iniciativa dos A.A. com fundamento em justa causa motivada pelo comportamento culposo da Ré pelo não pagamento das remunerações;
b) Ser a Ré condenada a pagar à A. as remunerações dos meses de Março a Dezembro de 2020, de Janeiro, Fevereiro, e 10 dias de Março de 2021, no valor de 7.236,67 €;
c) Ser a Ré condenada a pagar à A. os subsídios de férias e de Natal vencidos nos anos de 2019 e 2020, as férias e subsídios de férias e de Natal vencidos no ano de 2021 e ainda as partes proporcionais de férias, subsídios de férias e de Natal dos meses de trabalho no ano de 2021, no valor de 4.594,31 €;
d) Ser a Ré condenada a pagar à A. a indemnização a determinar em 30 dias de retribuição por cada ano completo de trabalho por conta da Ré, no valor de 25.935,00 €;
e) Ser a Ré condenada a pagar o trabalho suplementar prestado pela A., por conta da Ré, ao longo dos últimos cinco anos de, conforme peticionado dos artigos 68º a 102º desta petição inicial, no valor de 33.761,00 €;
f) Ser a Ré condenada a fazer os respectivos descontos para a Segurança Social desde a data da incapacidade até à data da reforma do A.;”.
Fundamentam o seu pedido alegando, em síntese, que através de contrato de trabalho verbal, celebrado em ../../1982, o A..., de CC admitiu ao seu serviço os AA., para sob as suas ordens, direcção e fiscalização, lhe prestarem trabalho na alimentação, tratamento e abate de gado, e na sementeira, cultivo e colheita de milho, forragens e demais produtos hortícolas, nas diversas quintas e terrenos agrícolas, propriedade de CC, que posteriormente, com a criação da sociedade R., em 1993, foram integrados nesta, que passou a ser a entidade empregadora dos AA..
Mais, alegam que, em contrapartida, auferiam retribuição mensal mista, que incluía o direito a habitar uma casa propriedade da R.; o direito ao consumo de todos os produtos hortícolas semeados e colhidos nos terrenos anexos à casa de habitação; e o pagamento da quantia mensal de 12.500$00, a cada um dos AA., sendo o horário de trabalho das 5:00 às 7:00 horas, das 8:00 às 12:30 horas e das 14:00 às 20:00 horas. Horário esse que a partir de meados de Maio e até fins de Setembro, de cada ano, se prolongava, na maior parte dos dias, até por volta das 22:00 horas, devido às regas, que não deviam ser feitas nas horas de calor.
Alegam, também, que nos 25 anos seguintes à sua contratação, sempre foi pago aos AA. montante em dinheiro superior ao salário mínimo, o que deixou de suceder a partir de 2012. Que a R. não pagou à A. os salários referentes aos meses de Março de 2020 a Fevereiro de 2021 e ainda 10 dias de Março de 2021 e, em face disso, os AA. resolveram os contratos de trabalho, por carta registada com aviso de recepção, datada de 10/03/2021, que enviaram à R., mas que esta não recebeu, nem levantou nos CTT. Tendo os AA. enviado mais 4 cartas registadas, com aviso de recepção, que a R. também não recebeu, nem levantou nos CTT. Todavia, a declaração/carta enviada pelos AA. considera-se eficaz em 202.03.11, uma vez que só por culpa da R. não foi oportunamente recebida.
Por fim, alegam que, ao longo de todos os anos de trabalho e durante todos os dias do ano, prestaram trabalho suplementar em benefício da R., que foi prévia e expressamente determinado por CC, no início do contrato, em 1982 e, posteriormente, logo após a constituição da R., pelos seus sucessivos sócios-gerentes, sendo devida a retribuição reclamada a esse título.

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Realizada audiência de partes, nos termos que constam da acta datada de 29.03.2022, não foi possível a sua conciliação tendo a ré, notificada para o efeito, apresentado contestação, impugnando a versão dos factos alegada na petição inicial e alegando, em síntese, que os AA. foram contratados por CC e mulher, DD, para enquanto trabalhadores agrícolas, exercerem as funções inerentes àquela categoria profissional, em propriedades de que estes eram proprietários ou detentores. Tratando-se de um contrato de trabalho rural, com carácter permanente, sujeito ao regime da Portaria de Regulamentação do Trabalho Rural de 08.06.1979. Com o falecimento daqueles, os terrenos agrícolas, as cabeças de gado e os instrumentos de trabalho usados pelos AA. passaram a pertencer à herança ilíquida e indivisa por eles deixada - e não à sociedade R., que sempre exerceu apenas a actividade de ensino particular.
Mais, alega que eram os próprios AA. que organizavam o seu dia de trabalho, como bem entendiam, nunca lhe tendo sido determinado qualquer horário de trabalho, fazendo a gestão do seu tempo, com total liberdade. O A. marido reformou-se por invalidez em 16 de Março de 1999, caducando com isso o contrato de trabalho. Por sua vez, a A. mulher reformou-se, por ter atingido o limite de idade, em 16 de Dezembro de 2007, permitindo DD que a A. continuasse a fazer alguns trabalhos e a viver na casa que os AA. habitavam, pagando-lhe tudo o que lhe era devido, com o que passou a vigorar um novo contrato a termo resolutivo certo de seis meses, renovável nos termos legais.
E, alega que esse contrato a termo resolutivo da A., caducou na sequência do falecimento de DD, em ../../2011, embora ainda tenham sido feitos os descontos devidos para a Segurança Social até Março de 2012. Porém, atendendo ao estado de saúde da A., os herdeiros de DD, permitiram, por mera tolerância, que os AA. permanecessem a habitar e a cultivar as suas frutas, legumes e animais. E a R., para ajudar os AA., para que estes se sentissem úteis, de vez em quando, sem carácter permanente, pagou entre Março de 2012 e Setembro de 2018, a título de gratificação à A. mulher, cerca de € 480,00. E entre Outubro de 2018 e Março de 2020, a R., com o mesmo espírito de liberalidade, pagou, sem carácter permanente à A. mulher, € 375,00. Perante ameaças por parte de um filho dos AA., os herdeiros deixaram de pagar o que quer que fosse à A..
Por último alega que, não tem qualquer fundamento a carta que os AA. alegam ter remetido à R. - e que esta desconhece se o foi ou não -, a resolver o contrato de trabalho, porque à data, não havia qualquer contrato com os AA., além de que nenhum contrato de trabalho foi outorgado com a R..
Conclui que, “deve a presente acção ser julgada improcedente por não provada e, consequentemente, absolver-se a R. dos pedidos formulados pelos AA. na sua petição inicial, tudo com custas pela autora.”.
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Nos termos do despacho datado de 01.02.2023, fixou-se à causa o valor de € 71.526,98, dispensou-se a identificação do objeto do litígio e a enunciação dos temas de prova e proferiu-se saneador tabelar.
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Os autos prosseguiram para julgamento e realizada a audiência de discussão, nos termos documentados nas actas juntas, foi proferida sentença que terminou com a seguinte: “DECISÃO:
Em face de todo o exposto, decide-se:
A) Julgar a acção totalmente improcedente, no que concerne ao A. AA, absolvendo a R. do pedido que por aquele foi formulado.
B) Julgar a acção parcialmente procedente, no que concerne à A. BB, e em consequência:
I. Reconhecer a existência de justa causa na resolução contratual operada pela A., com fundamento na falta de pagamento de retribuições.
II Condenar a R. a pagar à A.:
a) A quantia global ilíquida de € 7.236,67 (sete mil, duzentos e trinta e seis euros e sessenta e sete cêntimos), respeitantes aos salários de Março a Dezembro de 2020 e de Janeiro e Fevereiro de 2021 e 10 dias de Março de 2021.
b) A quantia global ilíquida de € 3.929,30 (três mil, novecentos e vinte e nove euros e trinta cêntimos), relativa a subsídios de férias e de Natal de 2019, 2020 e 2021, conforme discriminado supra.
c) € 1.884,17 (mil, oitocentos e oitenta e quatro euros e dezassete cêntimos), de indemnização pela resolução com justa causa do contrato de trabalho.
III. No mais, absolver a R. do pedido formulado pela A..
*

Custas pelos AA. e pela R., na proporção dos respectivos vencimentos - art.º 527º n.ºs 1 e 2 do Cód. de Processo Civil.
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Registe e notifique.”.
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Inconformada a A. interpôs recurso, nos termos das alegações juntas, que terminou com as seguintes: “CONCLUSÕES
1- Vem o presente recurso da douta sentença que, decidindo do mérito da causa, não condenou a Ré, aqui Apelada a pagar à A., aqui Apelante, o montante devido a título de retribuição por trabalho suplementar, bem como dos factos que a recorrente considera incorrectamente julgados.
2- A apelante não pode aceitar que o tribunal a quo tenha dado como provados os factos referidos em 10, 11 e 12 da matéria dada como provada.
3- A apelante de modo nenhum pode aceitar que o Tribunal a quo tenha dado como não provados os factos referidos nos artigos 21º a 24º, 66º, 68º, 73º. 78º, 83º, 88º, 93º, 98º, e 108º da petição inicial.
4- Sabendo-se que as vacas têm de ser ordenhadas todos os dias do ano é absolutamente contra natura dar como não provados os factos supra alegados da petição inicial, pelo que os mesmos devem ser dados como provados.
5- A Apelante realizou trabalho suplementar, depois da sua reforma em 2007, ao longo dos últimos cinco anos, conforme peticionado nos artigos 73.º a 102.º da petição inicial, pelo que lhe é devida a quantia 29.294,78 € a pagar pela apelada.
6- Foram violados os artigos 228.º do Código do Trabalho e 72.º e 73.º do Código do Processo do Trabalho.
Termos em que
deve ser dado provimento ao presente recurso, devendo ser alterada a douta decisão recorrida, no sentido de concluir que a apelante realizou trabalho suplementar, depois da sua reforma em 2007, ao longo dos últimos cinco anos, conforme peticionado nos artigos 73.º a 102.º da petição inicial, pelo que lhe é devida a quantia de 29.294,78 € a pagar pela apelada, sem prejuízo das quantias já fixadas na douta sentença recorrida, assim se fazendo
INTEIRA JUSTIÇA.”.
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Notificada a R. veio contra-alegar, nos termos que constam das alegações juntas, terminando com as seguintes CONCLUSÕES:
“A - O presente recurso tem por objecto o facto de a douta sentença não ter condenado a R. a pagar à recorrente o montante devido a título de retribuição por trabalho suplementar e a incorrecta apreciação da prova produzida feita pelo Tribunal a quo ao considerar como provados os factos mencionados em 10., 11. e 12..
B - A recorrente não concorda que “Eram os AA. que organizavam o seu dia-a-dia de trabalho, não tendo horário de trabalho fixo e gerindo o seu tempo consoante o que achassem mais urgente e a disponibilidade que tinham, havendo dias e semanas em que trabalhavam mais e outros em que trabalhavam menos, em função, nomeadamente, da época do ano.”,
C - Nem que “Ao longo do tempo, o gado de que os autores cuidavam foi-se reduzindo, e a partir de 2000/2003, deixou de haver vacas leiteiras, passando a ser bovinos da raça marinhoa, apenas para fornecimento de carne.”.
D - Não concorda a recorrente que “Também por essa altura, o Colégio deixou de ter alunos internos, pelo que a necessidade de produtos agrícola, leite e carne era menor, determinando a diminuição da carga de trabalho dos AA.”.
E - A recorrente não concorda que os Pontos 10., 11. e 12 dos Factos Provados o tenham assim sido julgados com base no depoimento da testemunha EE, que transcreve.
F - Mas é a própria testemunha EE que afirma que “…após a morte do meu pai era eu e a minha mãe, depois da minha mãe falecer, o meu pai faleceu em 1995 e a minha mãe faleceu em 2011, depois da minha mãe falecer eu fiz alguma gestão, mas depois abdiquei, saí e portanto não sei qual dos meus irmãos é que ocupou essa gestão, eu geri alguma coisa, pouco, acho que foi o meu irmão FF era o que mais ia à quinta fazer essa gestão.”.
G - A testemunha EE afirma ainda que a partir dessa data “Sim, disse que sim porque eu só o via a ele. Eu acho que o meu irmão FF, duvido muito que o meu irmão FF tenha capacidade para fazer a gestão dessa exploração, mas que o via lá via.”.
H - Afirma que a partir do falecimento da Mãe, em 2011, fez alguma gestão e saiu, entrando o irmão FF, pelo que é impossível que responda com verdade quando afirma que a recorrente fez horas extraordinárias em 2016, 2017, 2018, 2019 e 2020!!
I - O FF - testemunha que o EE refere que foi quem foi gerir a quinta após o falecimento da sua Mãe e a sua saída da gestão -, engenheiro agrónomo de profissão (sentença), afirma que a partir de 1999/2000, deu apoio à Mãe nas questões relacionadas com a exploração agrícola, que em 2003 já não havia vacas leiteiras, mas apenas para produção de carne.
J - A recorrente não impugnou o mencionado depoimento.
L - A testemunha GG, trabalhador do A... desde 1997, ajudando na agricultura, confirmou que a partir de 2000/2003 deixou de haver vacas leiteiras, passando a ser marinhoas, apenas para fornecimento de carne, que a partir dessa altura acabou o regime de internato do A..., com a consequente diminuição do trabalho.
M - A recorrente não impugnou o mencionado depoimento.
N - Nos depoimentos de HH (irmã do FF e do EE) e do seu marido, II, referem que ao longo do tempo, o gado foi-se reduzindo, que o Colégio deixou de ter alunos internos e que o trabalho diminuiu, depoimentos que não sofreram reparo da recorrente.
O - A recorrente entende que se deve considerar que ela realizou trabalho suplementar ao longo dos últimos cinco anos (presume-se que se refere aos anos de 2016 até 2020) porque a testemunha EE, inquirida sobre se a Autora terá feito horas extraordinárias em 2016, em 2017, em 2018, em 2019 e em 2020, responde que “É natural que tenha feito, não estou 24 horas na quinta, mas como o Sr. AA esteve doente, havia um trabalho acrescido da D.ª BB, teria de fazer mais horas, é fácil que tenha acontecido.”.
P - A testemunha EE não faz uma afirmação peremptória, sem margem para qualquer dúvida sobre os factos que lhe são perguntados, nem poderia fazer porque lá não estava.
Q - De acordo com o seu depoimento aceite pela recorrente, já tinha saído da gestão da exploração agrícola após o falecimento da Mãe, em ../../2021 (Facto Provado número 21 da sentença) e era o seu irmão FF que a geria.
R - Admitindo, como mera hipótese académica, que a recorrente tivesse prestado qualquer trabalho suplementar, a prova do mesmo, nos termos do n.º 2 do artigo 337.º do Código do Trabalho, só poderia ser feita por documento idóneo, que a recorrente não juntou,
Pelo que tem o recurso apresentado que ser julgado manifestamente improcedente por não provado e, consequentemente, ser a sentença recorrida que ser integralmente mantida por ser manifestamente legal e justa, só assim se cumprindo a lei e fazendo JUSTIÇA!”.
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O Tribunal “a quo” admitiu a apelação, com efeito meramente devolutivo e ordenou a sua remessa a esta Relação.
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O Ex.mo Procurador Geral Adjunto teve vista nos autos, nos termos do art. 87º nº3, do CPT, tendo emitido parecer no sentido de o recurso ser rejeitado quanto à matéria de facto, ou, não obter provimento, no essencial, por “incorreta observância do triplo ónus a que se alude no artigo 640.º do CPC. Tal é causa de imediata rejeição do recurso nesta parte - cfr. Ac.s do STJ de 5 e 27 ambos de Setembro de 2018 e deste TRP de 22.02.2021; tb. António Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, páginas 126, 127 e 129.
Estabilizada deste modo a matéria de facto, que deverá ser integralmente confirmada, mantém-se a matéria de direito.
A ilustre julgadora “a quo” bem decidiu em conformidade com os ónus probatórios que incumbiam às partes, sendo que nada se provou quanto ao trabalho suplementar – cfr. art.º 228.º do CT.”.
Notificadas, nenhuma das partes respondeu.
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Cumpridos os vistos, há que apreciar e decidir.
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, cfr. art.s 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável “ex vi” do art. 87º, nº 1, do Código de Processo do Trabalho, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado.
Assim as questões a apreciar e decidir consistem em saber se o Tribunal “a quo” errou:
- no julgamento quanto aos factos constantes dos pontos, 10, 11 e 12 dos factos provados e ao dar como não provados os factos referidos na conclusão 3ª;
- ao não ter condenado a R. a pagar à A./apelante o montante devido a título de retribuição por trabalho suplementar, como a mesma defende.
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II - FUNDAMENTAÇÃO

A) DE FACTO
A 1ª instância, considerou provados os seguintes factos:
“1. O A... foi fundado no ano de 1948 por CC e exercia a actividade de ensino particular em estabelecimento sob o nome “A...”.
2. Após a sua fundação, o “A...” passou a fornecer internato para alunos.
3. Adjacentes ao Colégio e na sua proximidade, existiam vários terrenos agrícolas pertença de CC e mulher, DD, que lá mantinham também vacas leiteiras, suínos, galinhas e patos.
4. Os AA. foram contratados por CC e mulher, DD, em 1982, para sob as suas ordens, direcção e fiscalização, prestarem trabalho nos referidos terrenos agrícolas, sitos em ..., assim como em outros em ... e ....
5. Cabendo aos AA. procederem à plantação, limpeza de ervas daninhas, sacha, tratamento, rega e posterior colheita de legumes, couves, cebolas, alhos, cenouras e demais produtos hortícolas para confecção das refeições fornecidas pelo “A...” aos alunos que o frequentavam e para alimentação dos próprios AA..
6. Incumbindo também aos AA. tratar dos animais, procedendo, nomeadamente, à extracção diária de leite.
7. Os produtos agrícolas cultivados e os animais criados pelos AA. nos prédios de que eram proprietários CC e DD, destinavam-se ao consumo, na sua maior parte, dos alunos quem frequentava o Colégio, mas também de CC, DD e restante família, e dos próprios AA. e sua família, bem como à venda, nomeadamente o leite.
8. Os AA. recebiam, como contrapartida do seu trabalho, retribuição mensal mista, composta pelo pagamento de uma quantia em dinheiro; pelo direito a habitarem gratuitamente uma casa implantada num terreno a sul da Rua ..., pertença de CC e mulher, DD - onde os AA. passaram a residir, juntamente com os seus filhos; e pelo direito a consumirem, de acordo com as suas necessidades diárias, os produtos hortícolas semeados e colhidos nos terrenos anexos à casa de habitação.
9. Os instrumentos de trabalho usados pelos AA. eram pertença de CC e mulher, DD.
10. Eram os AA. que organizavam o seu dia-a-dia de trabalho, não tendo horário de trabalho fixo e gerindo o seu tempo consoante o que achassem mais urgente e a disponibilidade que tinham, havendo dias e semanas em que trabalhavam mais e outros em que trabalhavam menos, em função, nomeadamente, da época do ano.
11. Ao longo do tempo, o gado de que os AA. cuidavam foi-se reduzindo, e a partir de 2000/2003, deixou de haver vacas leiteiras, passando a ser bovinos da raça marinhoa, apenas para fornecimento de carne.
12. Também por essa altura, o Colégio deixou de ter alunos internos, pelo que a necessidade de produtos agrícola, leite e carne era menor, determinando a diminuição da carga de trabalho dos AA..
13. A R. é uma sociedade comercial por quotas, constituída em 1993, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de ... e aí inscrita pela Insc. 1 -AP....01, tendo como objecto a actividade de ensino particular em estabelecimento, sendo seus gerentes, na altura da constituição, CC e mulher, DD.
14. Após a constituição da sociedade R., continuou a ser CC e mulher, DD a darem ordens e instruções aos AA. e a pagarem-lhes a respectiva retribuição, continuando os AA. a prestarem trabalho da mesma forma que o faziam até então.
15. Em ../../1995, faleceu CC, no estado de casado em primeiras e únicas núpcias, no regime da comunhão geral de bens, com DD.
16. Após a morte de CC, passou ser a sua viúva, DD, a dar ordens e instruções aos AA., a orientar o trabalho destes e a pagar-lhes a retribuição.
17. Em 16 de Março de 1999, foi fixada ao A. marido uma pensão de reforma por invalidez, que foi convertida automaticamente em pensão de velhice do regime geral, em Fevereiro de 2006.
18. Pelo menos a partir de 2006, por força de problemas de saúde que se foram agravando, o A. deixou de trabalhar, tendo sido contratados serviços externos para realizar o trabalho que até aí era por ele efectuado.
19. A A. reformou-se, por velhice, em 16 de Dezembro de 2007, passando a receber a respectiva pensão, tendo tal facto sido comunicado à R. pelo Instituto da Segurança Social, I.P. - Centro Nacional de Pensões.
20. Apesar disso, a A. continuou a trabalhar, nos mesmos termos que vinha trabalhando até aí, até resolver o contrato de trabalho, e a receber a respectiva retribuição (com excepção da que reclama nos presentes autos), continuando os AA. a morar na casa em que residiam desde 1982, sendo-lhes paga a água e a electricidade.
21. No dia ../../2011, faleceu DD.
22. CC e DD deixaram como únicos herdeiros, 6 filhos: JJ, EE, HH, FF, KK e LL.
23. CC deixou testamento em que legou a quota disponível dos seus bens a favor da sua mulher, DD.
24. DD faleceu sem deixar testamento ou qualquer outra disposição de última vontade.
25. Corre termos no Juízo de Competência Genérica - Juiz 1, de ..., processo de inventário para partilha dos bens dos falecidos CC e de DD, sob o n.º ..., no qual se encontram relacionados diversos bens imóveis e instrumentos agrícolas.
26. Pelo menos a partir de Junho de 2008, a sociedade R. pagou à A. retribuição mensal e processava os respectivos descontos para a Segurança Social - nos termos a seguir referidos.
27. Em Junho de 2008, a R. pagou à A. a retribuição base mensal ilíquida de € 440,00, mais € 25,00 de subsídio de alimentação, processando os respectivos descontos para a Segurança Social.
28. No ano de 2009, a R. pagou à A. a retribuição base mensal ilíquida de € 450,00, mais € 30,00 de subsídio de alimentação, processando os respectivos descontos para a Segurança Social.
29. No ano de 2010, a R. pagou à A. a retribuição base mensal ilíquida de € 475,00, mais € 30,00 de subsídio de alimentação, processando os respectivos descontos para a Segurança Social.
30. No ano de 2011, a R. pagou à A. a retribuição base mensal ilíquida de € 485,00, mais € 30,00 de subsídio de alimentação, processando os respectivos descontos para a Segurança Social.
31. Em Março de 2012, a R. pagou à A. a retribuição base mensal ilíquida de € 526,68, processando os respectivos descontos para a Segurança Social.
32. Pelo menos em alguns meses, a R. pagou à A., entre Março de 2012 e Setembro de 2018, cerca de € 480,00, e entre Outubro de 2018 e Março de 2020, € 375,00.
33. Os AA. remeteram à R., em 10/03/2021, carta registada com aviso de recepção, dirigida ao “Exm.º Sr. Director do Colégio, Ld.ª, Rua ..., ... ...», de que figura cópia a fls. 29 v.º/30 dos autos, da qual consta, além do mais,
«Assunto: Resolução dos contratos de trabalho (2) celebrados em 1982;
Exmos. Senhores:
Como é do vosso conhecimento, face até às nossas reiteradas “reclamações”, mostram-se nesta data por pagar os salários (de ambos) desde Março de 2020 (inclusive) em diante, à razão mensal de pelo menos 485,00€ a cada um de nós (970,00€/mês no conjunto) totalizando 11.640,00€.
Por outro lado, os subsídios de férias e de Natal devidos e já vencidos desde 2019 até hoje (2021), bem como os respetivos proporcionais (tempo de trabalho executado até ao momento), também não foram liquidados, perfazendo esta rubrica pelo menos 4.200,00€.
Acresce que, e também pelo que conseguimos apurar junto das entidades competentes, V.Exas. desde dezembro de 2011 não precederam à liquidação à Segurança Social dos devidos e legais “descontos”, o que, como é evidente, acarreta um prejuízo assinalável a ambos, o que em sede e momento próprio será objeto da competente participação e responsabilização.
Assim, e em face do sumariamente exposto, e face ao estatuído no art.º 394.º n.º 1 e 2 al. a), e) e 5 (e art.° 351.º n.º 3) e art.º 395.º do Código Laboral, somos a informar que resolvemos com justa causa o contrato laboral celebrado com V. Exas. em Março de 1982, tudo com as legais consequências, mormente a imediata cessação do contrato supra. (…)».
34. Essa carta não foi recebida nem levantada nos CTT pela R., tendo sido devolvida aos AA. em 22/03/2021, com a menção de não ter sido reclamada.
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Não se provaram quaisquer outros factos de entre os alegados na petição inicial e contestação, nomeadamente:
- Que tenha sido fixado aos AA. e/ou eles tenham praticado, por ordem de quem quer que seja, o horário de trabalho referido nos arts. 21º a 24º e 66º, 68º, 73º, 78º, 83º, 88º, 93º, 98º e 108º da petição inicial.
- Que o A. prestou trabalho a partir de 2006.
- Que aquando da contratação dos AA., em 1982, foi acordado o pagamento de 12.500$00 a cada um dos AA..
- Que os terrenos onde os AA. prestavam trabalho são propriedade da sociedade R..
- Que todos os terrenos onde os AA. prestavam trabalho, todos os instrumentos de trabalho que usavam e todo o gado existente, fazem parte da herança deixada por óbito de CC e de DD, não sendo propriedade da sociedade R..
- Que posteriormente à devolução da primeira carta enviada pelos AA. a resolverem os contrato de trabalho, os AA. enviaram à R. outras cartas registadas, com aviso de recepção, em 2021-04-05, 2021-04-29, 2021-05-04 e 2021-05-19, mas nenhuma delas foi recebida ou levantada dos CTT pela R..
- Que a falta de pagamento de retribuições por parte da R. privou a A. de cumprir as suas obrigações atempadamente, impedindo-a de fazer face às suas necessidades com alimentação vestuário, calçado e gás para a confecção das refeições.
- Que para fazer face às despesas, os AA. viram-se obrigados a ter de pedir ajuda ao filho, para lhes emprestar dinheiro para as necessidades básicas.
- Que a gerência da R., quando confrontada para proceder ao pagamento das remunerações em atraso, apresentava a desculpa de não haver dinheiro.
- Que os AA. sofreram por causa disso grande tristeza, ansiedade, dificuldade em dormir e depressão.
- Que o A., por força de problemas de saúde, esteve de baixa médica desde Outubro de 1997 até Março de 1999, pelo que nada fez durante este período.
- Que a R. efectuou os pagamentos à A. mencionados nos n.ºs 26 a 32 dos factos provados, a título de liberalidade e como “gratificação”.”.
*

B) O DIREITO

- Da impugnação da matéria de facto
Sob a consideração de que, “o Tribunal “a quo” não fez correcta apreciação da prova produzida”, insurge-se a recorrente contra a decisão recorrida, no que à matéria de facto respeita. E, após transcrever trechos do depoimento da testemunha EE, diz não poder aceitar o que se deu como provado em 10, 11 e 12, face ao que aquela afirmou e por outro lado, “de modo nenhum, pode aceitar que o Tribunal a quo tenha dado como não provados os factos referidos nos artigos 21º a 24º, 66º, 68º, 73º. 78º, 83º, 88º, 93º, 98º, e 108º da petição inicial”.
Vejamos.
Dispõe o nº 1 do art. 662º que: “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”.
Aqui se enquadrando, naturalmente, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão de facto feita pelos recorrentes.
Nas palavas de (Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, Coimbra, 2013, págs. 221 e 222) “… a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1ª instância”.
No entanto, como continua o mesmo autor (págs. 235 e 236), “… a reapreciação da matéria de facto no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662º não pode confundir-se com um novo julgamento, pressupondo que o recorrente fundamente de forma concludente as razões por que discorda da decisão recorrida, aponte com precisão os elementos ou meios de prova que implicam decisão diversa da produzida e indique a resposta alternativa que pretende obter.”.
Esta questão da impugnação da decisão relativa à matéria de facto e a sua apreciação por este Tribunal “ad quem” pressupõe o cumprimento de determinados ónus por parte do recorrente, conforme dispõe o art. 640º ex vi do art. 1º, nº 2, al. a) do C.P.Trabalho, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”.
Resulta da análise deste dispositivo que, o legislador concretiza a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando, neste novo regime, os ónus de alegação impostos ao recorrente, impondo-se que especifique, em concreto, os pontos de facto que impugna e os meios probatórios que considera impunham decisão diversa quanto àqueles e deixe expressa a solução que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Ou seja, tendo em conta os normativos supra citados, haverá que concluir que a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação, tendo que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância, já que só assim, como se refere no (Ac. STJ de 24.09.2013 in www.dgsi.pt (sítio da internet onde se encontram disponíveis os demais acórdãos a seguir citados, sem outra indicação)) poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição, muito embora não se trate de um segundo julgamento e sim de uma reponderação, não se basta com a mera alegação de que não se concorda com a decisão do Tribunal “a quo”, exigindo-se à parte que pretenda usar daquela faculdade, a demonstração da existência de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efectivamente, no caso, foram produzidos, sem limitar porém o segundo grau de sobre tais desconformidades, previamente, apontadas pelas partes, se pronunciar, enunciando a sua própria convicção - não estando, assim, limitada por aquela primeira abordagem, face ao princípio da livre apreciação da prova que impera no processo civil, art. 607º, nº 5 do CPC, cfr. (Ac. STJ de 28.05.2009).
Verifica-se, assim, que o cumprimento do ónus de impugnação da decisão de facto, não se satisfaz com a mera indicação genérica da prova que na perspectiva do recorrente justificará uma decisão diversa daquela a que chegou o Tribunal “a quo”, impõe-lhe a concretização quer dos pontos da matéria de facto sobre os quais recai a sua discordância como a especificação das provas produzidas que, por as considerar como incorrectamente apreciadas, imporiam decisão diversa, quanto a cada um dos factos que impugna sendo que, quando se funde em provas gravadas se torna, também, necessário que indique com exactidão as passagens da gravação em que se baseia, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.
Sendo que, como bem se refere, no (Ac. desta Secção, de 18.03.2024, Proc. nº 7583/21.0T8PRT.P1, relatado pelo, agora, 2º Adjunto e subscrito pela, agora, relatora e 1ª Adjunta), nas situações de impugnação da decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, é necessário que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal a quo quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal a quo, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou assinalando a insuficiência dos elementos considerados para as conclusões tiradas. É que, a reapreciação por parte do Tribunal da Relação da decisão da matéria de facto proferida em 1ª instância não corresponde a um segundo (novo) julgamento da matéria de facto, apenas reapreciando o Tribunal da Relação os pontos de facto enunciados pelo interessado (que circunscrevem o objeto do recurso).
Pois e acrescendo, como bem diz, novamente, (Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2014, 2ª edição, págs. 132 e 133), “O recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto;”.
Sobre este assunto, no (Ac. do STJ de 27.10.2016) pode ler-se: “… Como resulta claro do art. 640º nº 1 do CPC, a omissão de cumprimento dos ónus processuais aí referidos implica a rejeição da impugnação da matéria de facto. …”. E, do mesmo Tribunal no (Ac. de 07.07.2016) observa-se o seguinte: “… para que a Relação possa apreciar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, tem o recorrente que satisfazer os ónus que lhe são impostos pelo art. 640º, nº 1 do CPC, tendo assim que indicar: os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, conforme prescreve a alínea a); os concretos meios de prova que impõem decisão diversa, conforme prescrito na alínea b); e qual a decisão a proferir sobre as questões de facto que são impugnadas, conforme lhe impõe a alínea c).”.
Neste mesmo sentido, lê-se no (Ac. desta Relação de 15.04.2013, relatora Desembargadora Paula Leal de Carvalho) que, “Na impugnação da matéria de facto o Recorrente deverá, pois, identificar, com clareza e precisão, os concretos pontos da decisão da matéria de facto de que discorda, o que deverá fazer por reporte à concreta matéria de facto que consta dos articulados (em caso de inexistência de base instrutória, como é a situação dos autos).
E deverá também relacionar ou conectar cada facto, individualizadamente, com o concreto meio de prova que, em seu entender, sustentaria diferente decisão, designadamente, caso a discordância se fundamente em depoimentos que hajam sido gravados, identificando as testemunhas por referência a cada um dos factos que impugna (para além “de indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição.”, (sublinhado nosso).
Em suma, o legislador impõe à parte recorrente, que pretenda impugnar a decisão de facto, um ónus de impugnação, devendo o recorrente expor os argumentos que, extraídos de uma apreciação crítica dos meios de prova, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo tribunal “a quo”, salientando-se que, como decorre do (Ac. do STJ Uniformizador de Jurisprudência nº 12/2023, de 17.10.2023, publicado no DR, Iª série, de 14.11) quanto à «decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas», aquele Tribunal uniformizou jurisprudência no sentido de que basta que a parte recorrente o faça nas alegações, desde que essa decisão alternativa propugnada resulte de forma inequívoca das alegações.
Transpondo o regime exposto para o caso, verifica-se que houve gravação dos depoimentos prestados em audiência e a apelante impugna a decisão da matéria de facto, com indicação dos pontos que tendo sido considerados provados e não provados, em seu entender, o Mº Juiz “a quo” julgou erradamente e a resposta que considera deverá ser dada aos mesmos, atentas as provas que indica, que considera cruciais e em que funda o recurso.
Passemos, então, à requerida reapreciação da factualidade impugnada, lembrando, ainda, o entendimento, (veja-se a propósito, António Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., pág. 286), que este Tribunal da Relação, tendo presente o disposto no art. 662º, na apreciação da impugnação da decisão sobre matéria de facto usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (art. 607º, nº 5), em ordem ao controlo efetivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efetiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Analisemos, então.
Começando por ver como o Mº Juiz “a quo” fundamentou a sua convicção, nomeadamente, quanto aos pontos impugnados, transcrevendo, em síntese, o seguinte: “A matéria de facto dada como provada sob os n.º 1, 2, 4, 5 e 8 resulta da aceitação ou não impugnação por parte da R..
Quanto à demais matéria de facto considerada provada, a convicção do tribunal baseou-se:
N.ºs 3, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 14, 16, 18 e 20: Nos depoimentos conjugados das testemunhas:
- EE, médico veterinário, filho de CC e DD, sendo sócio da R., embora esteja de relações cortadas com os legais representantes desta (os seus irmãos JJ e KK), que afirmou, nomeadamente, que os AA. foram trabalhar para a quinta e terrenos dos seus pais por volta de 1982, contratados por estes, sendo os AA. que cultivavam os terrenos e cuidavam do gado, servindo a exploração agrícola de apoio ao Colégio, que na altura funcionava também em regime de internato, situando-se junto ao Colégio a maior parte dos terrenos de cultivo. Sendo a mesma coisa dizer-se que trabalhavam para os seus pais ou que trabalhavam para o Colégio, porque o colégio era dos seus pais.
Referindo que os AA. recebiam uma retribuição mensal, tal como os demais trabalhadores do Colégio, embora não saiba de que montante; e que do contrato fazia parte o direito dos AA. a habitarem uma casa existente nas proximidades, bem como a consumirem parte dos produtos que cultivavam.
Que o horário praticado pelos AA. variava conforme a época do ano, desconhecendo se trabalhavam ou não para além do período normal de trabalho, sendo os próprios AA. que geriam o seu tempo, pois já sabiam o que tinham que fazer.
Que depois da morte do pai, passou a ser a mãe a pagar aos AA. e dar-lhes ordens quando era preciso, com a ajuda da testemunha ,que passado algum tempo da morte da mãe, se desligou dos assuntos da exploração agrícola.
Que após a morte da mãe, os gerentes da sociedade R. entenderam continuar a explorar a quinta e os terrenos, que defendiam pertencer à sociedade - e não à herança. Sendo a R. que pagava o ordenado aos AA., concretamente o gerente, KK.
E que segundo o que o A. lhe disse, estavam em dívida salários e subsídios a partir de 2020.
- II e mulher, HH, sendo esta filha e herdeira de CC e DD, além de ser sócia da R., embora não tenha nenhum papel na gestão da sociedade, segundo disse.
Tendo ambos afirmado, designadamente, que os AA. por volta de 1982 foram contratados para trabalharem os terrenos agrícolas associados ao colégio, cultivando as terras e criando e cuidando dos animais, sendo a maior parte da produção destinada ao estabelecimento de ensino, que na altura tinha cerca de 200 alunos internos.
Que ao longo do tempo, o gado foi-se reduzindo e o colégio deixou de ter alunos internos, com a consequente diminuição do trabalho a cargo dos AA..
Que com a morte de CC, passou a ser DD a cuidar do colégio, da produção agrícola e do trabalho dos AA., assuntos que com o falecimento de DD passaram a ficar sob gestão da sociedade R., que era quem pagava a retribuição aos AA., concretamente o sócio-gerente KK.
E que o A. se queixou às testemunhas da existência de salários em atraso, apesar das insistências junto de referido KK para que lhes fossem pagos.
- MM, amigo dos AA. desde 1984/1985, morando nas proximidades destes, que disse que os AA. trabalhavam nas terras do colégio, cuja produção se destinava ao consumo do estabelecimento, referindo que toda a vida ouviu dizer que os AA. eram trabalhadores do colégio e que o A. se queixou que lhe ficaram a dever dinheiro.
- NN, que é amigo dos AA. desde há cerca de 40 anos, tendo estudado no A..., afirmando que os AA. trabalhavam nos terrenos da quinta do colégio, cultivando a terra e tomando conta do gado
- GG, que disse trabalhar no Colégio desde Setembro de 1997, fazendo de tudo um pouco, incluindo ajudar na agricultura, quando necessário.
Tendo afirmado, nomeadamente, que os AA. trabalhavam nos terrenos do A....
Que a partir de 2000/2003, deixou de haver vacas leiteiras, passando a ser marinhoas, apenas para o fornecimento de carne, tendo por essa altura também acabado o regime de internato no Colégio, com a consequente diminuição da carga de trabalho dos AA..
E que há cerca de 17/18 anos atrás, o A. deixou de trabalhar, por problemas de saúde, continuando apenas a A. a prestar trabalho.
- FF, Engenheiro Agrónomo e professor no Colégio, filho de CC e DD, tendo afirmado, nomeadamente, que a produção da quinta de que faziam parte os terrenos onde os AA. trabalhavam se destinava ao consumo dos alunos do Colégio, mas também da família e dos próprios AA..
Que a partir de 1999/2000, a testemunha passou a dar apoio à mãe, nas questões relacionadas com a exploração agrícola.
E que em 2003, já não havia vacas leiteiras, mas apenas para produção de carne, pelo que o trabalho do A. diminuiu.
N.º 13: Na certidão permanente da sociedade R., junta a fls. 20 e segs. dos autos.
(…).
No tocante à matéria de facto controvertida que não foi considerada provada, a convicção do tribunal assentou na ausência de prova produzida em julgamento passível de a demonstrar.”. (sublinhado nosso)
Vejamos, então.
- Factos 10, 11 e 12, têm o seguinte teor:
“10. Eram os AA. que organizavam o seu dia-a-dia de trabalho, não tendo horário de trabalho fixo e gerindo o seu tempo consoante o que achassem mais urgente e a disponibilidade que tinham, havendo dias e semanas em que trabalhavam mais e outros em que trabalhavam menos, em função, nomeadamente, da época do ano.
11. Ao longo do tempo, o gado de que os AA. cuidavam foi-se reduzindo, e a partir de 2000/2003, deixou de haver vacas leiteiras, passando a ser bovinos da raça marinhoa, apenas para fornecimento de carne.
12. Também por essa altura, o Colégio deixou de ter alunos internos, pelo que a necessidade de produtos agrícola, leite e carne era menor, determinando a diminuição da carga de trabalho dos AA.”.
Segundo a recorrente mostram-se incorrectamente julgados e, sob a alegação de que, “entende que o Tribunal “a quo” não fez correcta apreciação da prova produzida”, quando deu aqueles como provados, prossegue aquela invocando “Audiência de julgamento, depoimento da testemunha EE:…” e procede à transcrição de trechos do depoimento desta testemunha ao longo das páginas 2 a 6 da sua alegação, após o que diz: “(conforme depoimento gravado no sistema áudio em 20230925160228_4139723_2870176. wma)” e continua alegando o seguinte:
“Ora, face ao depoimento da referida testemunha de modo nenhum se pode aceitar que o tribunal a quo tenha dado como provado o facto referido em 10. Com efeito,
É de certo modo do domínio público que as vacas leiteiras têm de ser ordenhadas de manhã e à noite e conforme referiu a testemunha supra indicada, convém que fosse de 12 em 12 horas.
Ora, não há nenhum horário de trabalho que ocupe 12 horas seguidas, pelo que a apelada para além de ter horário de trabalho de mais de 8 horas, via-se obrigada a fazer diáriamente horas extraordinárias.
Também é do conhecimento público que desde a data das sementeiras em Fevereiro e Março e até à data das colheitas que se prolongam por Setembro, Outubro e algumas colheitas até Novembro, há sempre trabalho.
Do mesmo modo que não se pode aceitar o que se dá como provado em 11 e 12, uma vez que a testemunha EE afirmou que abandonou a exploração em 2012, 2013, e nessa altura havia praticamente as mesmas vacas leiteiras.
Por outro lado a apelante de modo nenhum pode aceitar que o Tribunal a quo tenha dado como não provados os factos referidos nos artigos 21º a 24º, 66º, 68º, 73º. 78º, 83º, 88º, 93º, 98º, e 108º da petição inicial. Com efeito,
Sabendo-se que as vacas têm de ser ordenhadas todos os dias do ano é absolutamente contra natura dar como não provados os factos supra alegados da petição inicial, pelo que os mesmos devem ser dados como provados.”.
Analisando.
Verifica-se do que antecede que a recorrente, com base nos trechos do depoimento gravado da testemunha EE, que transcreve e situa, no (sistema áudio em 20230925160228_4139723_2870176. Wma), considera que, aqueles factos 10, 11 e 12 não poderiam ser dados como provados, nem pode aceitar que tenham sido dados como não provados os factos referidos naqueles artigos da p.i. que indica.
Assistir-lhe-á razão?
Ora, antes de prosseguirmos na busca da resposta a esta pergunta, através da requerida reapreciação, em concreto quanto aos factos dados como provados, importa que se diga o seguinte.
Para fundamentar a sua pretensão, no que toca aos meios de prova que, alegadamente, alicerçam a sua convicção, a recorrente invoca o depoimento da testemunha EE. No entanto, manifestamente, fá-lo sem satisfazer totalmente as exigências que o legislador impõe a quem impugna a decisão sobre matéria de facto, nomeadamente, na al. a) do nº2, do referido art. 640º já que, nos termos deste, a especificação dos concretos meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida, como acima se expôs, não se satisfaz, apenas, com a indicação dos concretos meios probatórios, exige ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, que indique “com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”. Ou seja, impõe à parte recorrente, o ónus de indicar com “exatidão” as concretas passagens das gravações, em que funda a sua impugnação, “pois são essas que devem ser ouvidas pelo tribunal (sem prejuízo de outras relevantes e até da totalidade”, como se lê, no Acórdão desta secção, supra referido, com intervenção dos, agora, relatora e 2º Adjunto.
É necessária a indicação com exactidão na gravação das passagens que têm, no entendimento da recorrente, a virtualidade de impor decisão diversa, dado só dessa forma estar a Relação obrigada a apreciá-las, cumprido que se encontre aquele ónus, sem prejuízo de poder proceder à sua audição integral e até de outros depoimentos, caso o julgue necessário, para melhor contextualizar e decidir.
Significando o exposto que, além da indicação dos concretos depoimentos que considera relevantes, ou seja, que em seu entendimento impõem decisão diversa, tem a recorrente de proceder à indicação com exactidão das passagens da gravação em que funda o seu recurso, não se satisfazendo o ónus, em causa, com a mera indicação da totalidade da gravação do depoimento, ou indicação do início e fim da gravação (como prescreve o art. 155º, nº 1, quanto ao que deve constar na acta de julgamento), ainda, que se proceda à transcrição dos excertos que se considerem relevantes, uma vez que, estes têm de se indicar com exactidão na gravação, indicando-se quanto a cada depoimento, não a indicação do sistema áudio, na totalidade ou o seu início e fim, como deve constar na acta, mas sim, na gravação de cada depoimento, indicando com precisão o início e o fim das passagens que são citadas, como dissemos, ainda que se transcrevam. Pois, só desse modo procedendo, a recorrente cumpre o ónus que lhe incumbe de “indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso”, como decorre da citada al. a), do nº 2, do art. 640º.
A este respeito, lê-se no (Acórdão do STJ de 19.02.2015, Proc. nº 299/05.6TBMGD.P2.S1) que, “a especificação dos concretos meios probatórios convocados, bem como a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, serve sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre hoje, claramente, do preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC. É, pois, em vista dessa função, no tocante à decisão de facto, que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, ou seja, sem possibilidade de suprimento, na parte afetada, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, proémio, e n.º 2, alínea a), do CPC.”.
Como bem se refere naquele, já citado (Ac. desta sessão de 18.03.2024), tal está em consonância com objetivo da impugnação da matéria de facto que acima se enunciou, e agora se relembra: o tribunal de recurso, ainda que na apreciação da impugnação da decisão sobre matéria de facto use do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância, não realiza um segundo julgamento da matéria de facto (como se não tivesse havido já julgamento em 1ª instância), fazendo a sua apreciação tendo por referência os concretos meios probatórios indicados pelo recorrente.
Decorre do exposto que, discordando da apreciação feita pelo Tribunal “a quo” quanto à decisão de facto, a recorrente tem que fornecer ao Tribunal “ad quem” os elementos que o legislador estabelece como necessários para poder ser apreciado eventual erro de julgamento, sob pena de imediata rejeição do recurso, na parte respectiva, tal não aconteça.
Regressando ao caso e, em concreto quanto aos pontos dados como provados, face ao que se vem a expor e ao modo, já supra descrito, como a recorrente indica o depoimento da testemunha EE, a que alude, indicando, apenas, “depoimento gravado no sistema áudio em 20230925160228_4139723 _2870176. Wma” sem referência a nenhuma das actas da audiência de julgamento, nem indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, pese embora, a transcrição que efectuou de trechos daquele depoimento, sem necessidade de outras considerações, só podemos concluir pela imediata rejeição do recurso quanto àqueles pontos 10, 11 e 12.
E, desse modo, mantém-se inalterada a redacção daqueles, supra transcrita, dada pelo Tribunal recorrido.
*

- Factos referidos nos artigos 21º a 24º, 66º, 68º, 73º. 78º, 83º, 88º, 93º, 98º, e 108º da petição inicial que, a recorrente considera se encontram “igualmente” incorretamente julgados, têm o seguinte teor:
-- “21.º
horário que a partir de meados de Maio e até fins de Setembro, de cada ano, se prolongava, na maior parte dos dias, até por volta das 22:00 horas, devido às regas que não deviam ser feitas nas horas de calor.
22.º
Os Autores diariamente e durante todos os dias da semana iniciavam o trabalho às 5:00 horas da manhã com a ordenha das 45 vacas leiteiras para extracção do leite,
23.º
tarefa que tinha de estar concluída antes das 7:00 horas, hora a que era feita a recolha do leite pelo camião cisterna.
24.º
Entre as 18:00 horas e as 20:00 horas os A.A. procediam à segunda ordenha das 45 vacas leiteiras para extracção do leite.
66.º
Como se referiu supra, dos artigos 18º a 22º desta petição inicial, os A.A. ao longo de todos os anos de trabalho e durante todos os dias do ano prestaram trabalho suplementar em benefício da Ré. Com efeito,
68.º
No ano de 2015 a A. trabalhou 303 dias úteis, 52 Domingos e 10 Feriados e deveria ter passado a receber a RMMG de 505,00 €.
73.º
No ano de 2016 a A. trabalhou 304 dias úteis, 52 Domingos e 10 Feriados e deveria ter passado a receber a RMMG de 530,00 €.
78.º
No ano de 2017 a A. trabalhou 303 dias úteis, 52 Domingos e 10 Feriados e deveria ter passado a receber a RMMG de 557,00 €.
83.º
No ano de 2018 a A. trabalhou 303 dias úteis, 52 Domingos e 10 Feriados e deveria ter passado a receber a RMMG de 580,00 €.
88.º
No ano de 2019 a A. trabalhou 303 dias úteis, 52 Domingos e 10 Feriados e deveria ter passado a receber a RMMG de 600,00 €.
93.º
No ano de 2020 a A. trabalhou 304 dias úteis, 52 Domingos e 10 Feriados e deveria ter passado a receber a RMMG de 635,00 €.
98.º
No ano de 2021 a A. trabalhou 58 dias úteis, 10 Domingos e 1 Feriado e deveria ter passado a receber a RMMG de 665,00 €.
108.º
Os A.A. no início do contrato em 1982 receberam a ordem que todos os dias seguintes enquanto durasse o contrato, tinham de ordenhar as vacas leiteiras, de modo a estar o serviço pronto antes das 07:00 horas, hora a que passava o autotanque para colher o leite.”.
Quanto a estes, alega a recorrente que, “Sabendo-se que as vacas têm de ser ordenhadas todos os dias do ano é absolutamente contra natura dar como não provados os factos supra alegados da petição inicial, pelo que os mesmos devem ser dados como provados.”.
Que dizer?
Quanto a todos estes pontos dados como não provados, diz o Mº Juiz “a quo” que a sua convicção assentou na ausência de prova produzida em julgamento passível de a demonstrar.
Por sua vez a recorrente, para alicerçar a sua pretensão, além do depoimento da testemunha EE, sem o cumprimento dos ónus que se lhe impunham quanto ao mesmo, como já se deixou exposto, nenhuma outra prova indica.
Defende que devem ser julgados provados.
Pretensão que deduz, unicamente, sob a alegação de que, “Sabendo-se que as vacas têm de ser ordenhadas todos os dias do ano é absolutamente contra natura dar como não provados os factos supra alegados da petição inicial, pelo que os mesmos devem ser dados como provados.”.
Ora, sendo deste modo, o que se verifica é que, a recorrente expressa a sua opinião sobre o que considera deve ser a resposta a dar àqueles, no entanto, também, quanto a estes pontos não cumpre os ónus que a lei lhe impõe para que este Tribunal possa proceder à requerida reapreciação. Desde logo, não indica, como se lhe impunha, art. 640º, nº1, al. b), quais os meios de prova que, quanto àqueles, impunham decisão diversa da recorrida.
Pois, novamente, a recorrente indica apenas o depoimento daquela testemunha EE, nos mesmos termos que o fez quanto aos pontos dados como provados, que impugna, “depoimento gravado no sistema áudio em 20230925160228 _4139723 _2870176. Wma”. E, pese embora, transcrever, o que consta das 5 páginas que referimos, o certo é que o faz sem qualquer localização na gravação, ou seja, sem indicar em concreto as passagens daquela em que funda o seu recurso. Ou seja, a recorrente limita-se a transcrever trechos do depoimento daquela testemunha, mas sem qualquer indicação na gravação.
É, assim, manifesto por parte da recorrente o incumprimento dos ónus que se lhe impõem, nos termos do art. 640º, em concreto, naquele nº 1, al. b) e no seu nº 2, al. a), necessário para que se proceda, nesta sede, à reapreciação da impugnação deduzida quanto àqueles e manifesto que a impugnação deduzida quanto a eles tem que ser rejeitada.
Assim, sem necessidade de quaisquer outras considerações, além das que se deixaram expostas a respeito dos pontos 10, 11 e 12 dos factos provados, que conduziram à rejeição do recurso no que toca àqueles, o mesmo, se verificando quanto aos pontos dados como não provados há, também, que rejeitar de imediato a impugnação deduzida quanto a estes.
Em suma, face ao acabado de decidir, quanto a todos os factos objecto de impugnação, mantém-se inalterada e definitivamente assente a factualidade dada como provada pela 1ª instância.
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Apesar desta conclusão, importa que se diga que, ainda que não fosse pela razão que se deixou exposta, face à análise que efectuámos dos presentes autos, é nossa firme convicção, que não assistia razão à recorrente, quanto a esta concreta questão da impugnação de facto. Pois, como se verifica, desde logo, a mesma na impugnação deduzida, nem tem em consideração, toda a prova produzida e considerada na decisão recorrida, tal como resulta da transcrição supra efectuada e lidos os trechos do depoimento transcritos pela recorrente, é manifesto que não convencem eles do modo pretendido pela mesma nem, só por si, convencem de modo a infirmar a decisão recorrida.
Vejamos.
Como decorre das suas alegações, a apelante discorda da fundamentação da decisão de facto, supra transcrita, no essencial, por considerar que há errada apreciação da prova relativamente aos factos 10., 11. e 12., dados como provados e quanto aos factos dados como não provados que indica, com destaque para a que, supomos, indica e transcreve, considerando que deveria ter-se dado resposta diversa àqueles, respectivamente, os três primeiros, não provados e os restantes provados. Pugnando, assim, pela alteração da decisão recorrida e da factualidade, dada como provada e não provada e, consequentemente, pela revogação da sentença e sua substituição nos termos que refere na conclusão 5) da sua alegação.
Mas, sempre com o devido respeito adiantamos, desde já, sem razão.
Importa que se diga que, da análise que fizemos, o que se constata é que, a recorrente está a pôr em causa a convicção do Tribunal “a quo”, mas, fazendo apelo, apenas, a parte dos mesmos meios de prova que são referidos na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto quanto àqueles pontos que impugna. Fá-lo, no entanto, descurando que o Tribunal “a quo”, além de referir os elementos de prova que foram relevantes para cada um dos grupos de facto que efectua ou para prova de cada facto, isoladamente, refere expressamente outra prova para além do depoimento da testemunha que a apelante indica, mas, ainda assim, esta deixa claro que, apenas, face à transcrição que junta do depoimento da testemunha que se limita, genericamente, a invocar, impunha-se que os factos que impugna fossem considerados, respectivamente, não provados e provados, querendo significar, com isso, que a prova não foi bastante para dar, os primeiros como provados, nos termos que constam da decisão recorrida e foi suficiente para dar os últimos como provados.
Mas, como dizem, (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, pág. 436), para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto. A prova “assenta na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida”.
Essa certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica.
Já, (Manuel de Andrade in Noções Elementares de Processo Civil Coimbra Editora, Coimbra, 1979, pág. 191), dava como definição de “Meio de Prova (instrumento ou fonte de prova”. É todo o elemento (quid) sensível, através do qual, mediante actividade perceptiva ou simplesmente indutiva, o juiz pode, segundo a lei, formar a sua convicção acerca dos factos (afirmações de facto) da causa.”.
Ora, como resulta claramente da fundamentação, o Tribunal “a quo” entendeu que a prova produzida, em concreto, aquelas que refere, permitiu dar como provados aqueles pontos, 10, 11 e 12, ou seja, aquela foi suficiente para criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto, o mesmo não acontecendo quanto aos factos dados como não provados, agora, impugnados pela recorrente.
Logo, sendo desse modo e atento o que se deixou dito, só nos resta dizer que não é, pois, a invocação de parte, apenas, dos mesmos meios de prova que constituem fundamento bastante para sustentar a pretendida alteração. Ou seja, a eliminação dos três primeiros factos e darem-se como provados os demais indicados, alegados na petição inicial.
Pelo que, por esta razão, também, a pretensão da apelante não poderia proceder. Acrescendo que, ainda, que não fosse desse modo, não aponta ela qualquer erro na apreciação das provas que foram produzidas nos autos (todas elas, provas sujeitas à livre apreciação do julgador), limitando-se a dizer que o Mº Juíza “a quo” julgou incorrectamente as provas quanto à matéria constante daqueles factos e, em concreto, quanto à realização de trabalho suplementar pela A., tendo em conta o depoimento da testemunha EE, o que desde logo revela que, do que a recorrente discorda, é da convicção que o Mº Juiz “a quo” firmou, fundamentada na globalidade e apreciação conjunta de todas as provas produzidas nos autos, considerando aquela que não é a correcta, indicando como fundamento da sua alegada convicção, como já se disse, apenas, uma das mesmas provas que fundamentaram a convicção expressa na decisão recorrida, especificamente aquela parte, que transcreve.
Mas, da simples leitura daqueles trechos que transcreve, do depoimento da referida testemunha, o que é, claramente, evidente é que não sustentam, eles, a alegada convicção da A.. Não convencendo de modo diverso, do que consta na decisão recorrida, assente na globalidade das provas produzidas.
Ao contrário do que defende a apelante, em nosso entender, só podemos adiantar que o Tribunal “a quo” fundamentou e bem a decisão de facto quanto aos factos provados e não provados que se mostram impugnados, todos, no sentido em que foram decididos. Não bastando para convencer que, aqueles factos, foram mal ou erradamente julgados o que consta do transcrito depoimento, não tendo a virtualidade de convencer quanto àqueles concretos factos do modo que a mesma o considera nas conclusões 2 e 3.
Ou seja, em nossa convicção, ao contrário do que a A. sustenta, a prova que indica e que a mesma, alega convencem de modo diferente do que foi o entendimento do Mº Juiz “a quo”, não tem a virtualidade de infirmar o que decorre da decisão recorrida com base na interpretação integrada e conjugada de todas as provas produzidas, não resultando que esteja incorrecta a decisão proferida, quanto àqueles factos. Não tendo, as provas por ela indicadas, a virtualidade, por si só, de convencer do modo que a mesma pretende infirmar, nos termos que considera que resultaram não provados, os primeiros e provados os últimos.
Sem dúvida, o que este Tribunal apreciou e leu, em particular, nos trechos do depoimento transcritos, não se revela credível de modo a firmar em nós a alegada convicção da recorrente ou infirmar convicção diversa da que consta da decisão recorrida. Coincidindo, a nossa convicção, com o que o Mº Juiz “a quo” transcreveu na motivação da decisão de facto (que, diga-se, revela a análise crítica e apreciação das provas, que se lhe impunha, nos termos prescritos, no art. 607º, nº 4, do CPC), e não com a apreciação que consta do recurso, razão porque, também, por esta via, não ocorreriam motivos para que se alterassem aqueles factos impugnados.
Cremos, assim que, também, pela via da reapreciação, a pretensão da recorrente não teria acolhimento, já que é nossa convicção que não tinha aquela, outro fundamento que não fosse a sua própria convicção, evidentemente, diversa da que foi a livre convicção do Mº Juiz julgador.
Em suma, também, por o que se acaba de expor, a decisão de facto fixada na 1ª instância haveria de manter-se inalterada.
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E, aqui chegados, fixada que está, definitivamente, a matéria de facto provada, precisamente nos termos considerados na decisão recorrida e supra transcritos, improcedem, também, sem necessidade de outras considerações, as conclusões referentes à decisão de direito, já que como delas e da alegação da recorrente decorre a análise da questão colocada pela mesma, no que toca à decisão de direito, tinha como premissa a confirmação, por este Tribunal, da conclusão expressa de que deveriam ser alterados os pontos de facto impugnados, fruto da alegada incorrecta apreciação da prova produzida nos autos, com a consequente alteração da factualidade dada como provada pelo Tribunal “a quo”, o que não aconteceu.
Pese embora isso, diga-se, apenas, que face à factualidade que se apurou nos presentes autos e que ficou, definitivamente, assente, nesta sede, a conclusão a retirar, feita a subsunção jurídica daquela factualidade, é que a decisão recorrida, não merece qualquer censura, sendo de elogiar, o modo ponderado e fundamentado como o Mº Juiz “a quo”, abordou a questão colocada, além do acerto com que o fez. A demonstrá-lo, permita-se-nos a transcrição que, subscrevemos, do enquadramento efectuado, quanto à realização de trabalho suplementar, que a recorrente discorda, sob a alegação de que, “Quer-nos parecer que, face ao alegado supra, dúvidas não restam que a Apelante realizou trabalho suplementar, depois da sua reforma em 2007, ao longo dos últimos cinco anos, conforme peticionado nos artigos 73.º a 102.º da petição inicial, pelo que lhe é devida a quantia 29.294,78 €.”.
Mas não tem razão.
A demonstrá-lo veja-se a fundamentação da decisão recorrida que, como já dissemos, subscrevemos, transcrevendo, em síntese, o seguinte: «I. Resulta dos factos provados que os AA. foram contratados por CC e mulher, DD, em 1982, para sob as suas ordens, direcção e fiscalização, cultivarem terrenos agrícolas situados junto ao estabelecimento de ensino de que eram proprietários, denominado “A...”, e criarem gado, mediante retribuição que incluía o pagamento de uma quantia em dinheiro, o direito a habitarem gratuitamente uma casa dos empregadores e o direito a consumirem, de acordo com as suas necessidades, os produtos hortícolas que cultivavam.
(…)
A A. reformou-se, por velhice, em 16/12/2007, mas continuou a trabalhar e a receber a respectiva retribuição, continuando, de resto, a morar na mesma casa, sendo-lhes paga a água e a electricidade.
(…).
Como nada é também devido a título de retribuição por trabalho suplementar, porque nenhum se provou ter sido prestado pela A., visto que não se apurou sequer qual o horário de trabalho que efectivamente praticava.
(…).» (Fim de citação).
Por isso, como dissemos, só podemos subscrever aquela, não tendo os argumentos invocados e reiterados pela recorrente, em sede de recurso, que assentavam na modificação da decisão de facto que não ocorreu, qualquer virtualidade para que seja revogada a decisão recorrida, como pretende, desde logo, sob a alegação, de que se mostra incorretamente julgados os factos 10, 11 e 12 dos factos dados como provados e que a apelante realizou trabalho suplementar, o que não logrou demonstrar, sendo que a ela lhe competia fazê-lo.
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Improcedem, assim, todas ou são irrelevantes as conclusões da apelação.
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III - DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se nesta secção em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
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Custas pela R./apelante.
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Porto, 28 de Junho de 2024
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O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos,
Relatora: (Rita Romeira)
1ª Adjunta: (Germana Ferreira Lopes)
2º Adjunto: (António Luís Carvalhão)