AMNISTIA PREVISTA NO ARTIGO 6.º DA LEI 38-A/2023
APLICAÇÃO ÀS INFRAÇÕES DISCIPLINARES PRATICADAS POR TRABALHADORES DO SECTOR PÚBLICO EMPRESARIAL DO ESTADO
ABRANGÊNCIA DA EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA POR INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sumário

I - A amnistia prevista no artigo 6.º da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, aplica-se às infrações disciplinares praticadas por trabalhadores do sector público empresarial do Estado, mesmo que vinculados no âmbito de contrato individual de trabalho.
II - Da declaração judicial de amnistia de infração disciplinar objeto da ação não decorre, por si só, a extinção da instância na ação, por inutilidade superveniente da lide, quanto a pedidos e causas de pedir que, sendo invocados na ação, estejam incluídos nos direitos e garantias que devam considerar-se intocados por aquela.

Texto Integral

Apelação/processo n.º 2437/23.8T8VFR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro Juízo do Trabalho de Santa Maria da Feira - Juiz 1

Autora / recorrente: AA

Ré / recorrida: Unidade Local de Saúde de ..., E.P.E.


_______


Nélson Fernandes (relator)

Teresa Sá Lopes

António Luís Carvalhão

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório

1. A Autora, AA, interpôs ação com processo comum contra Unidade Local de Saúde de ..., E.P.E., peticionando que seja anulada a sanção disciplinar que lhe foi aplicada, bem como que seja a Ré condenada a indemnizar a Autora, por danos não patrimoniais, no montante de valor não inferior a €15.000,00€.

Alegou, para tanto, e em síntese, que: é médica anestesista desde Julho de 2003 e foi admitida para trabalhar sob a direção, orientação, fiscalização e ao serviço da Ré no dia 01 de julho de 2005 para exercer as funções inerentes ao conteúdo funcional da categoria profissional de “Assistente Hospitalar de Anestesiologia”; sempre pautou o exercício das funções para as quais foi contratada pelo seu cumprimento integral e escrupuloso, e sem registo de qualquer sanção disciplinar; que a Ré, através de ofício datado de 27 de Janeiro de 2023, comunicou-lhe a instauração do processo disciplinar n.º ...1/2022, do qual consta a alegação de que, no dia 15 de Dezembro de 2022, compareceu na sala de cirurgia para a qual estava escalada com cerca de uma hora de atraso e que se ausentou do bloco operatório no decurso da realização da cirurgia; no termo do processo disciplinar, a Ré determinou a aplicação de uma sanção de repreensão registada à Autora, tendo-a notificado em 05-04-2023; os factos que lhe são imputados são falsos; em consequência da aplicação da aludida sanção disciplinar, sofreu danos não patrimoniais refletidos em violações dos seus direitos enquanto trabalhadora e pessoa, que além de atentarem contra a sua reputação e desvalorização profissional, atentam também contra a sua estabilidade pessoal e familiar.

2. Seguindo os autos os seus termos subsequentes, com apresentação pela Ré de contestação e prolação ainda de despacho saneador, depois de notificadas as partes para se pronunciarem, o que essas fizeram, o Tribunal de 1.ª instância proferiu decisão de cujo dispositivo consta:

“Termos em que, pelo exposto, declaro amnistiada a sanção disciplinar aplicada pela Ré “UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DE ..., E.P.E.” à Autora AA, impondo-se o seu apagamento do respetivo registo disciplinar, e, em consequência, determino a extinção da presente instância por inutilidade superveniente da lide.

Valor da ação: €5.000,01 (artigos 297.º, n.ºs 1 e 2 e 306.º, n.º 2, do Código de Processo Civil ex vi do artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho).

Custas pela Autora e pela Ré, em partes iguais, por aplicação do disposto no artigo 536º,n.º1 do Código de Processo Civil, uma vez que a demanda da Autora e a oposição da Ré eram fundadas no momento em que foram intentadas/deduzidas, deixando de o ser por circunstâncias supervenientes a estes não imputáveis.

Registe e notifique.”

2.1. Notificada, apresentou a Autora requerimento de interposição de recurso, formulando no final das suas alegações as conclusões seguintes (transcrição):

“1) A Recorrente é médica anestesista desde Julho de 2003 e foi admitida para trabalhar sob a direção, orientação, fiscalização e ao serviço da Recorrida, para exercer a categoria profissional de “Assistente Hospitalar de Anestesiologia”.

2) A Recorrente, sempre pautou o exercício das funções para as quais foi contratada pelo seu cumprimento integral e escrupuloso, sem registo de qualquer sanção disciplinar.

3) A Recorrida, através de ofício datado de 27 de Janeiro de 2023, comunicou à Recorrente a instauração do processo disciplinar n.º ...1/2022.

4) Foi notificada pelo Instrutor do Processo Disciplinar, da Nota de Culpa, de 31 de Janeiro de 2023.

5) Respondeu à nota de culpa excecionando a caducidade dos factos elencados no art. 56º da Nota de Culpa e impugnando a falsidade dos restantes articulados, pugnando pelo arquivamento do processo disciplinar, por não provado.

6) Após elaboração do Relatório Final, no qual consideraram provados todos os factos constantes na Nota de Culpa, a Recorrida deliberou em 04-05-2023, aprovar as suas conclusões e determinou a aplicação de uma sanção de repreensão registada à Recorrente.

7) Face à decisão da Recorrida e tendo a Recorrente concluído que os factos que suportam tal decisão ou são falsos, ou não integram qualquer comportamento ilícito ou suscetível de originar qualquer tipo de sanção disciplinar, careciam de ser sufragados através da ação à qual está associada a sentença ora recorrida, na qual é peticionada a anulação da referida sanção e a condenação da Recorrida ao pagamento de uma indemnização cível em montante não inferior a 15.000€ (quinze mil euros),

8) Porquanto a Recorrida, sem qualquer suporte factual ilícito, causou danos patrimoniais e não patrimoniais à Recorrente, refletidos em violações dos seus direitos enquanto trabalhadora e pessoa, que além de atentarem contra a sua reputação e desvalorização profissional, atentam também contra a estabilidade pessoal e familiar.

9) No âmbito da ação judicial com o n.º de processo 2437/23.8T8VFR, foi proferido despacho a convocar audiência de partes, no qual as partes requereram a suspensão da instância pelo período de 20 dias, para a eventual resolução consensual do litígio, findo o qual se deu início, de imediato, ao prazo para apresentar contestação.

10) Frustrada qualquer resolução amigável do litígio, a Recorrida apresentou contestação, reiterando a manutenção da sanção disciplinar, pedindo a improcedência dos pedidos da Recorrente tendo sido proferido despacho saneador e designado o dia 15 de janeiro de 2024 para Audiência de Discussão e Julgamento.

11) Na Audiência de Discussão e Julgamento foi proferido despacho pela Mm. ª Juiz no sentido da Recorrente e a Recorrida se pronunciarem, quanto à aplicação da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto, no prazo de 10 dias.

12) A Recorrente, pronunciou-se no sentido de recusar a aplicação da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto, e consequentemente ser realizada a audiência de julgamento com a discussão e produção de prova.

13) A Recorrida, pronunciou-se acerca do referido despacho apelando para a decisão do Tribunal de acordo com o princípio da legalidade.

14) Foi proferida sentença, tendo decidido:

“Termos em que, pelo exposto, declaro amnistiada a sanção disciplinar aplicada pela Ré “UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DE ..., E.P.E. à Autora AA”, impondo-se o seu apagamento do respetivo registo disciplinar, e, em consequência determino a extinção da presente instância por inutilidade superveniente da lide.”

15) A Recorrente entende que não deve ser declarado extinto, nem pode o art. 277º, al. e) do Código de Processo Civil ter aplicação ao caso concreto, por inutilidade superveniente da lide.

16) A instância finda, por inutilidade superveniente da lide quando surge um facto superveniente que torne a lide inútil e consequentemente deixe de interessar a sua apreciação, não trazendo qualquer benefício às partes.

17) Ora, no caso em apreço, o facto superveniente a que a Mm. ª Juiz acolheu é o surgimento da Lei n.º 38-A/2023, que consagra o perdão de penas e amnistia de infrações.

18) Ainda que, da aplicação da mesma lei resulte o perdão da sanção de repreensão registada que lhe fora aplicada, a Recorrente quer ver ser realizada justiça, e esta só é possível de concretizar através do prosseguimento dos autos.

19) A Recorrente não pôde ver ser discutido o objeto da causa, foi-lhe aplicada uma sanção disciplinar e lidou com todas as consequências negativas da mesma.

20) São evidentes as pretensões da Recorrida, ao pretender atingir a Recorrente no processo disciplinar que originou a ação, como responsável por comportamentos inadequados quando sempre respeitou os deveres inerentes à sua atividade profissional.

21) Encontrando-se o processo disciplinar completamente coberto de mentiras e falsidades, que nunca foram desvendadas!

22) A Recorrente sempre pretendeu ver realizada a discussão e consequente prova dos pressupostos que fundamentaram a aplicação da sanção disciplinar e foi com esse objetivo que intentou a competente ação.

23) Não se fez a devida justiça no caso em apreço, uma vez que a Recorrente viu a sua honra e dignidade pessoal e familiar serem denegridas, bem como a sua reputação profissional dentro da comunidade hospitalar, e não pôde em qualquer momento discutir sobre a aplicação da sanção disciplinar.

24) A sanção disciplinar depois de aplicada, ainda que seja apagada, não destrói de maneira alguma os efeitos negativos, que já se projetaram na Recorrente e no meio pessoal e profissional.

25) Nunca estaremos perante inutilidade superveniente da lide uma vez que a Recorrente colhe efeito útil, que consiste na possibilidade de recuperação da sua dignidade pessoal, no seio da sua família e enquanto profissional.

26) A pretensão manifestada pela Recorrente é possível, bem como admissível e tem toda a utilidade uma vez que, a Recorrente pretende a anulação de uma sanção injustamente e ilegalmente aplicada, sem qualquer fundamento ou prova e ainda a indemnização por danos não patrimoniais, refletidos em violações dos seus direitos enquanto trabalhadora e pessoa!

27) Ora, a Sentença proferida, ao impedir a discussão dos pressupostos que levaram à aplicação da sanção disciplinar, impossibilita a apreciação dos danos não patrimoniais e patrimoniais que se refletiram na Recorrente.

28) E, tais danos, são de uma relevância e profundidade graves e são atestadas pelo médico psiquiatra que vem acompanhando a Recorrente, nos termos constantes do Relatório Médico, junto aos autos através de requerimento com a referência 46145029.

29) Ao ser vedada a possibilidade de apreciação dos danos patrimoniais e não patrimoniais nos autos da ação de condenação de cuja sentença se recorre, a Recorrente vê fechada qualquer outra via judicial, onde possam ser discutidos os referidos pressupostos.

30) A Sentença proferida, não pode ser causa de impedimento do recurso à tutela jurisdicional efetiva, por parte da Recorrente.

31) É um direito fundamental previsto na Constituição da República Portuguesa, no artigo 20.º e que implica o direito de acesso aos tribunais para defesa de direitos individuais, não podendo a lei da amnistia, de carácter excecional, impossibilitá-lo.

32) Deve, para tanto prosseguir a lide, para que se discuta a improcedência dos fundamentos da aplicação da sanção disciplinar e seja determinada a sua anulação.

33) Refere a lei da Amnistia no seu art. 2º que: “Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”

34) Será de concluir que, pela razão da idade a Lei 38-A/2023 não será de aplicar ao caso em apreço, uma vez que a Recorrente nasceu a ../../1971, e assim sendo, à data dos factos, tinha mais de 30 anos de idade pelo que, se encontra fora do âmbito de aplicação da referida lei.

35) A sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, salienta “...que a amnistia se aplica a todos os processos disciplinares, de empresas públicas ou privadas...”.

36) Contudo, salvo devido respeito, não é esse o entendimento da Recorrente.

37) A natureza jurídica do vínculo laboral existente entre a Recorrente e a Recorrida, tem assento no direito laboral privado, sendo essa a natureza do contrato de trabalho sem termo, celebrado entre as partes em 01-07-2005.

38) No âmbito da sua cláusula 13º, n.º 2 as partes convencionaram que “em caso de litígio decorrentes do referido Contrato, é competente para a sua apreciação e decisão “... ao foro da Comarca de Santa Maria da Feira”.

39) O processo disciplinar instaurado pela Recorrida à Recorrente, correu termos no Juízo do Trabalho de Santa Maria da Feira, com a observância das normas legais do Código do Trabalho e do Código de Processo do Trabalho.

40) A sanção de repreensão registada aplicada à Recorrente pela Recorrida, foi deliberada pelo seu órgão de gestão, Conselho de Administração, em 04-05-2023.

41) A Recorrida é uma entidade pública empresarial, dotada de personalidade jurídicopública, mas que se rege essencialmente pelo direito privado-civil, comercial e laboral, tendo autonomia administrativa, financeira e patrimonial, sendo este modelo de entidade pública de gestão privada adotado no setor da saúde.

42) E foi no âmbito desse domínio que o seu Conselho de Administração, com poderes para tal, conduziu todo o processo disciplinar e aplicou a sanção de repreensão registada à Recorrente.

43) Ainda no que ao caso respeita, A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (Lei de Amnistia), não abrange a infração disciplinar laboral conduzida pelo direito privado e imputada à Recorrente.

44) A Recorrida apesar de ser uma entidade pública empresarial, dotada de personalidade jurídico-pública, rege-se pelo direito privado-civil e foi nesse âmbito que atuou disciplinarmente com a Recorrente.”

Conclui, na procedência do recurso, pela revogação da decisão recorrida.

2.1.1. Contra-alegou a Ré, constando das suas alegações a conclusão que se segue:

“1. A sentença proferida faz uma correta interpretação e aplicação da Lei da Amnistia e com tal a decisão tem, inexoravelmente, que ser mantida.”

Conclui pela improcedência do recurso interposto

2.2. O recurso foi admitido no Tribunal a quo nos termos do despacho seguinte:

“Por legal e tempestivo, admito o recurso interposto pela Autora AA (ao qual a Ré “Unidade Local de Saúde de Entre Douro e Vouga, EPE” respondeu), o qual é de apelação, com efeito meramente devolutivo e subida nos próprios autos, nos termos dos artigos 79.º-A, n.º 1, alínea a), 80.º, n.º 1, 81.º, 83.º, n.º 1, 83.º, n.º 1 e 83.º-A, n.º 1, todos do Código de Processo do Trabalho.”

3. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual, para além do mais, fez constar nomeadamente o seguinte:

“(…) Uma interpretação literal do art.º 6º da Lei n.º 38-A/2023, como deverá ser feita, conduzirá, pois, à inserção de toda e qualquer infração disciplinar não extintiva, no âmbito da amnistia, incluindo as laborais.

3.3. Poderia, eventualmente, suscitar-se a questão da (in)constitucionalidade da mesma.

Mas cremos que não. Com efeito, não se trata de uma intromissão do Estado nas empresas (privadas), na medida em que, o poder disciplinar não resulta de contrato (do contrato de trabalho), mas é, antes, previsto e regulado por lei.

Tal como depois a sanção disciplinar aplicada pela entidade empregadora pode ser impugnada nos tribunais judiciais como estava a decorrer neste caso.

E assim, entende-se que pode o Estado amnistiar, também, estas infracções disciplinares laborais, sem que isso constitua uma intromissão na organização empresarial.

3.4. Acresce neste caso a natureza da Ré, “CENTRO HOSPITALAR DE ..., E.P.E.”, atualmente denominada “Unidade Local de Saúde de ..., E.P.E.”, pelo que se entende que deveria ser confirmada a douta decisão recorrida.

3.5. Porém, no Ac. do TRP, de 20.05.2024, proferido no processo n.º 1860/23.2T8AGD.P1, Referência n.º 18107793, foi decidido que:

“A amnistia prevista no art. 6º da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, não se aplica às infrações disciplinares laborais de direito privado.”

3.1. Respondeu a Recorrente ao aludido parecer, concluindo no sentido que defendeu no recurso que interpôs.


***

Cumpre decidir.

II – Questões a resolver

Sendo pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do NCPC – aplicável “ex vi” do art. 87º/1 do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir: saber se a decisão recorrida errou na aplicação da lei e do direito a respeito de saber: (1) se a amnistia prevista no artigo 6.º da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, é de aplicar à infração disciplinar que é objeto da ação; (2) em caso de resposta positiva à questão anterior, se daí decorre inutilidade superveniente da lide.


*

III – Fundamentação

A) Fundamentação de facto

Os factos relevantes para a decisão do recurso resultam do relatório a que se procedeu.


***


B) Discussão

1. Do regime que resulta da lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto

No caso que se analisa, sem prejuízo da apreciação da questão relacionada com inutilidade superveniente da lide, mas, necessariamente, por direta referência à causa em que, na decisão recorrida, se fundou, importa então que comecemos por apreciar essa afirmada causa, assim da aplicação ou não da amnistia estabelecida pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto,

Tendo então por referência o que resulta das conclusões apresentadas pela Recorrente – que como o dissemos, muito embora sem prejuízo do conhecimento de questões de que o tribunal possa conhecer oficiosamente, delimitam o objeto do recurso –, constata-se que são avançados no essencial os argumentos seguintes:

- Tendo nascido a ../../1971, tendo assim à data dos factos mais de 30 anos de idade, encontra-se fora do âmbito de aplicação da referida lei (artigo 2.º da lei aplicada);

- A Recorrida, apesar de ser uma entidade pública empresarial, dotada de personalidade jurídico-pública, rege-se pelo direito privado-civil e foi nesse âmbito que atuou disciplinarmente com a Recorrente, sendo que, diz, a Lei n.º 38-A/2023 não abrange as infrações disciplinares laborais conduzida pelo direito privado.

- Tendo nascido a ../../1971, tendo assim à data dos factos mais de 30 anos de idade, encontra-se fora do âmbito de aplicação da referida lei (artigo 2.º da lei aplicada);

- A Recorrida, apesar de ser uma entidade pública empresarial, dotada de personalidade jurídico-pública, rege-se pelo direito privado-civil e foi nesse âmbito que atuou disciplinarmente com a Recorrente, sendo que, diz, a Lei n.º 38-A/2023 não abrange as infrações disciplinares laborais conduzida pelo direito privado.

Conclui, na procedência do recurso, pela revogação da decisão recorrida.

Pronuncia-se a Recorrida, por sua vez, pela adequação do julgado.

O Ministério Público, junto desta Relação, emitiu parecer nos termos constantes do relatório que antes se elaborou.

Tendo em vista a apreciação da questão que nos é colocada, constata-se que consta da decisão recorrida (transcrição):

«(…) Ocorre, porém, que no passado dia 01 de Setembro entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.

Concretamente, nos termos do disposto no artigo 2º, n.º 2, alínea b), estão igualmente abrangidas pela mencionada lei as sanções relativas a infrações disciplinares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6º.

Por sua vez, dispõe o artigo 6º o seguinte: “São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar”.

Notificada para se pronunciar, a Autora manifestou a sua recusa de aplicação da presente lei, apesar da situação em apreço se encontrar no seu âmbito, uma vez que no processo disciplinar foram alegados factos falsos e pretende discutir os pressupostos que fundamentaram a aplicação da sanção de repreensão registada.

Por sua vez, a Ré pugnou pela aplicação da Lei n.º 38º-A/2023, por se verificarem os respetivos pressupostos legais.

Cumpre apreciar e decidir:

Ora, afigura-se-nos que a amnistia se aplica a todos os processos disciplinares, de empresas públicas ou privadas, sem qualquer limite de idade, desde que a sanção não seja superior a uma suspensão, ou seja, infrações disciplinares punidas com sanções conservatórias (a repreensão, a sanção pecuniária, a perda de dias de férias e a suspensão do trabalho sem retribuição).

Do mesmo modo, a recusa de amnistia aplica-se apenas aos crimes, e já não as infrações disciplinares, como expressamente decorre do preceituado no artigo 11º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 38º-A/2023.

No caso dos autos, a pena disciplinar aplicada à Autora foi a de repreensão registada, e a infração foi alegadamente cometida a 15 de Dezembro de 2022, pelo que entendemos que se encontra abrangida pelo âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto. Deste modo, uma vez que a pena disciplinar aplicada à Autora se encontra amnistiada pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, impondo-se o seu apagamento do respetivo registo disciplinar, o prosseguimento dos presentes autos no que concerne ao primeiro pedido efetuado pela Autora, de anulação da sanção disciplinar, carece de utilidade.

O mesmo se diga quanto ao pedido indemnizatório formulado pela Autora, o qual pressupõe que se discutam os fundamentos que determinaram a aplicação da sanção disciplinar de repreensão registada. Com efeito, tal discussão resulta prejudicada, por força da amnistia da mesma.

Veja-se, a este propósito, o recente Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 07/12/2023, pesquisado em www.dgsi.pt, proferido já a respeito da Lei n.º 38º-A/2023, e do qual se transcreve o sumário, na parte que releva para os presentes autos: “I - A amnistia faz cessar a responsabilidade disciplinar do arguido, pelo que, salvo disposição legal em contrário, tem eficácia ex-tunc, e faz desaparecer o objeto da ação que visa a anulação ou declaração de nulidade do ato que aplicou a pena disciplinar, determinando a inutilidade da respetiva lide”.

Entendemos, pois, verificar-se uma inutilidade superveniente da presente lide que, nos termos do disposto na alínea e) do artigo 277º do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do artigo 1º, nº 2, alínea a) do Código de Processo do Trabalho, é causa de extinção da instância, o que se impõe declarar.»

Importando que nos pronunciemos, no presente recurso, sobre a questão colocada, a tal tarefa nos dedicaremos seguidamente, iniciando-se a nossa análise pelos argumentos de ordem formal relacionados com o estar ou não abrangida a infração disciplinar aqui em causa pela lei chamada à aplicação.

Já, pois, no referido âmbito, não obstante a Invocação da Recorrente se apresentar de algum modo contraditória quando por um lado admite que possa resultar da aplicação da Lei n.º 38-A/2023 o perdão da sanção de repreensão registada que lhe foi aplicada, mas por outro, invoca a inaplicabilidade da mesma lei, ainda assim, sempre esclareceremos, desde já, que carece de adequada sustentação o argumento que avança de que, por ter nascido a ../../1971, tendo assim à data dos factos mais de 30 anos de idade, se encontra fora do âmbito de aplicação da referida lei seu (artigo 2.º). É que, sendo verdade que na redação inicial do projeto de lei tal questão poderia eventualmente ser colocada, no entanto, porém, da redação final que veio a ser aprovada e publicada, resulta do seu artigo 2.º, claramente, que tal requisito é exigido apenas em relação às “sanções penais” – ou seja, de que os destinatários “tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto” –, sendo que, diversamente, no que se refere às “Sanções relativas a infrações disciplinares”, e é dessas que se tratará no caso (agora sem prejuízo do que resultar da apreciação do outro argumento, assim de que não será aplicável por estarem eventualmente em causa relações laborais “ditas privadas” reguladas pelo Código do Trabalho), já não se fez constar tal requisito, constando, apenas, o de que as infrações tenham sido “praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º” (alínea b), do n.º 2, do artigo).

Entrando-se então na análise do segundo argumento avançado pela Recorrente, assim de que a Recorrida, apesar de ser uma entidade pública empresarial, dotada de personalidade jurídico-pública, se reger pelo direito privado-civil e foi nesse âmbito que atuou disciplinarmente no caso, sendo que, diz, a Lei n.º 38-A/2023 não abrange as infrações disciplinares laborais conduzidas pelo direito privado, sem prejuízo de se nos impor desde já esclarecer e precisar que, no caso, não obstante a natureza do contrato celebrado, estarmos afinal, como a Recorrente o reconhece, dada a natureza da Ré/recorrida, perante uma entidade pública empresarial – aspeto que, como veremos mais tarde, assume aqui real relevância –, teremos porém de reconhecer que o Legislador não primou, na nossa ótica, pela clareza que se imporia na redação que veio a ser aprovada e publicada, pois que, não podendo aliás desconhecer que a questão se poderia revestir de alguma complexidade e mesmo geradora de polémica, esta já abordada a respeito de leis de idêntica natureza que foram aprovadas no passado, a verdade é que apenas fez constar, da letra da lei, no que agora importa, a expressão «infrações disciplinares» (assim: no artigo 2.º, n.º 2: (…) Estão igualmente abrangidas pela presente lei as: (…) b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º”; no artigo 6.º, com a epígrafe «Amnistia de infrações disciplinares e infrações disciplinares militares»: “São amnistiadas as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar”).

É que, fazendo uma breve análise sobre as leis anteriores, a redação utilizada diverge claramente daquela que, em termos históricos, foi utilizada anteriormente, assim, designadamente, nas Leis n.º 29/99, de 12 de Maio[1], n.º 23/91, de 04 de Julho[2], n.º 15/94, de 11 de Maio[3], como ainda, diga-se, de diplomas anteriores, assim, das Leis n.º 16/86, de 11 de junho[4], e n.º 17/82, de 2 de julho[5], e do Decreto Lei n.º 47702, de 15 de maio[6].

Ou seja, a questão, em termos interpretativos, passa também por perceber se a intenção legislativa foi, na lei que agora se analisa, de inovar, em particular no sentido de, diversamente do que demonstram os diplomas anteriores, incluir no âmbito da sua aplicação as infrações disciplinares laborais, incluindo as aplicadas por empresas privadas e que são reguladas em exclusivo pelo designado direito laboral.

Constatando-se que na sentença recorrida a questão sequer foi em concreto apreciada, limitando-se o Tribunal recorrido a referir genericamente que se lhe afigurava “que a amnistia se aplica a todos os processos disciplinares, de empresas públicas ou privadas, sem qualquer limite de idade, desde que a sanção não seja superior a uma suspensão, ou seja, infrações disciplinares punidas com sanções conservatórias (a repreensão, a sanção pecuniária, a perda de dias de férias e a suspensão do trabalho sem retribuição)”, desde já diremos que não acompanhamos integralmente tal consideração/afirmação, como melhor esclareceremos de seguida.

Como primeira nota, em termos de enquadramento, sendo diversas as razões e finalidades que podem estar na base da aprovação de uma lei de amnistia, relembramos que, tratando-se afinal de instituto que vigora desde há muito, mesmo desde a antiguidade, traduzindo-se no “esquecimento” de delitos praticados, em termos de conceitualização poderemos dizer que esse foi sendo modelado ao longo dos tempos, chegando até aos nossos dias como traduzindo-se em ato de clemência pública, que tem como efeito a extinção do procedimento criminal ou, em caso de já ter havido condenação, fazendo cessar a execução da pena e os seus efeitos (segunda designação de alguns, tratando-se nos primeiros casos de amnistia “própria” e, nos segundos, da designada amnistia “imprópria/“perdão genérico”)[7].

Tratando-se de ato que se insere na competência da Assembleia da República[8], apesar de ser verdade que o seu campo de aplicação tradicional foi o foro criminal, constata-se, porém, que esse se foi estendendo a outras condutas do direito público[9].

Ora, importando interpretar devidamente a Lei publicada e em particular a norma que aqui está em causa, que como é sabido foi publicada por ocasião da denominada Jornada Mundial da Juventude, que contou com a presença do Papa Francisco, teve por base a Proposta de Lei 97/XVI/1ª, constata-se desde logo que, vista a sua exposição de motivos, dessa apenas resulta que é motivada na realização em Portugal do evento antes mencionado, que diz marcante a nível mundial, “que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal”, o que justificaria que seria de adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento (jovens), a que acresce, ainda, que, quer do seu texto, quer dos pareceres que foram emitidos (da OA, do CSM e do CSMP), não resulta que tenha sido também abordada a questão das “infrações disciplinares” que, afinal, como dito, é objeto do presente recurso, razão pela qual não poderemos considerar que os trabalhos preparatórios esclareçam em especial a questão da abrangência da expressão que foi utilizada “infrações disciplinares” e, em particular, quais serão essas infrações.

Ora, não obstante a atualidade da lei em causa, são já várias as pronúncias da nossa Jurisprudência a respeito do seu campo de aplicação, evidenciando-se, aliás, que nem sempre de modo totalmente coincidente.

A respeito da questão de saber se estão ou não incluídas as infrações disciplinares aplicáveis por empresas de direito privado, importa esclarecer que, muito recentemente, esta Secção do Tribunal da Relação do Porto, assim em acórdão de 20 de maio de 2024[10] – a que alude aliás o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu, como ainda a Recorrente na resposta que a esse apresentou – se pronunciou a esse respeito, nos termos que de seguida transcreveremos, pela sua utilidade desde logo para efeitos de compreensão da solução a que nesse se chegou.

Resulta, então, do indicado Acórdão designadamente o seguinte:

«(…) A questão que se coloca consiste em saber se a amnistia referida se aplica ou não a infracções disciplinares laborais no âmbito de empresas privadas. Sustenta-se na sentença sob recurso que nada obsta à resposta afirmativa a tal questão, pelo que a aplicou, e defende a recorrente a negativa, sustentando, em última análise a inconstitucionalidade do entendimento acolhido na sentença.

Importa começar por referir que a jurisprudência invocada na sentença sob recurso, nomeadamente o acórdão do Tribunal Constitucional nº 152/1993, de 3 de Fevereiro de 1993, processo 151/92, acessível em www. tribunalconstitucional.pt, foi tirada a propósito da amnistia da Lei nº Lei nº 23/91, de 4 de Julho, não respondendo a esta questão, uma vez que a mesma jurisprudência apenas se pronuncia, de forma positiva, sobre a aplicação de tal amnistia às infrações disciplinares laborais no âmbito de empresas públicas ou de capitais públicos, deixando de fora a sua aplicação às infrações disciplinares laborais no âmbito de empresas privadas. Isso mesmo se refere expressamente no referido acórdão do Tribunal Constitucional: “não tem o Tribunal Constitucional de curar agora da questão de natureza seguramente diferente, a saber, a da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade de normas de amnistia que tivessem por destinatários trabalhadores de empresas privadas, autores de infracções disciplinares.”

Aliás, analisando tal acórdão, que faz uma resenha histórica no direito português e de direito comparado, resulta que a aplicação das leis de amnistia a infrações disciplinares laborais no âmbito de empresas privadas, ocorreram em escassas situações, em Espanha, França e Brasil, em contextos historicamente excepcionais de mutações constitucionais, ou semelhantes.

De todo o modo, isso não impediria o legislador nacional de consagrar a amnistia das infracções aqui em causa no art. 6º da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, como se defende na sentença sob recurso, mesmo que tal se pudesse configurar como inconstitucional.

Entendemos, porém, que não foi essa a situação, como defende a recorrente.

Sobre a questão em análise pronunciou-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Janeiro de 2024, processo 778/23.3T8PDL-A.L1-4, acessível em www.dgsi,pt, nos seguintes termos:

“Nos termos do artigo 98º do Código do Trabalho, “O empregador tem poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço, enquanto vigorar o contrato de trabalho.”

Como se escreve no sumário do Acórdão do STJ de 21.03.2012, Proc. 161/09.3TTVLG.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt, “I - A titularidade do poder disciplinar, enquanto emanação essencial contida no contrato de trabalho, (que, por definição, conforma a posição de supremacia ou autoridade do empregador, nessa relação, por contraposição à característica subordinação jurídica do trabalhador), está legalmente conferida ao empregador. (…).” E como também elucida o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.02.2022, Proc. 9443/19.5T8LRS.L1, igual pesquisa: “I– O poder disciplinar caracteriza-se por ser um poder subjetivo do empregador, que se reconduz à categoria de direito potestativo, traduzindo-se para o trabalhador numa posição de sujeição face às alterações que o exercício de tal poder implicam na sua esfera jurídica. (…).”

E de acordo com o mesmo aresto, trata-se de um poder exclusivo do empregador, que pode ser exercido directamente pelo empregador ou por superior hierárquico do trabalhador, nos termos estabelecidos por aquele (art. 329º nº 4 do Código do Trabalho).

(...)

Não obstante, o despacho recorrido considerou que a sanção disciplinar aplicada à Autora está amnistiada.

(...)

A amnistia, é assim, uma medida de clemência emanada da vontade do poder político.

E como se afirma no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06.12.2023, Proc. nº 2436/03.6PULSB-D.L1, consultável em www.dgsi.pt, “A amnistia e perdão são medidas penais que concedem a graça inerente, ou seja, amnistiando certos crimes e/ou perdoando certas penas, de determinada natureza e dentro de determinados limites, como ali se imponha. Enquanto reminiscências históricas e manifestação de soberana vontade de quem assim podia dispor dos poderes do Estado, chega aos nossos dias sobretudo com um âmbito que, ainda por conceder uma vantagem decorrente de uma circunstância não especificamente judiciária, se prefigura mais como a oportunidade de esbater os efeitos da generalidade e abstracção das normas legais.”

Por outro lado, há que ter presente que as Leis de Amnistia têm um carácter excepcional pelo que não comportam aplicação analógica (art. 11º do Código Civil).

(...)

Sucede, porém, que, nem o artigo 2º nº 2 al. b), nem o artigo 6º da Lei esclarecem sobre a natureza das “infracções disciplinares” contempladas pela amnistia colocando-se, pois, a questão de saber se nelas estarão incluídas as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores de empresas privadas.

Ora, limitando-se as mencionadas normas a aludir às “infracções disciplinares” sem operar qualquer distinção entre as praticadas por trabalhadores de empresas privadas e trabalhadores ao serviço de empresas ou organismos públicos e sendo conhecido o brocardo “onde a lei não distingue não cabe ao intérprete distinguir”, à primeira vista, a conclusão a retirar seria a de que a Lei da Amnistia também abrangeria as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores vinculados por relação laboral privada.

Mas dizemos à primeira vista porque não será assim.

Como é sabido, a interpretação da lei não se cinge ao elemento literal.

Com efeito, estatui o artigo 9º do Código Civil: “1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”

(...)

Donde, a letra da lei é o ponto de partida e não pode ser considerado o pensamento legislativo que não tenha o mínimo de expressão no texto da Lei.

A par, impõe-se ao intérprete socorrer-se dos demais elementos de interpretação da lei, assumindo, por vezes, particular importância, na busca da mente do legislador, a proposta que antecedeu a lei.

(...)

Porém, no que respeita à questão em análise, a “Exposição de motivos” nada adianta quanto ao que extrair do artigo 2º nº 2 al. b) e 6º na parte relativa às “infracções disciplinares.”

Sustenta a Recorrente que o elemento histórico aponta no sentido de que as “infracções disciplinares” não respeitam às praticadas por trabalhadores de empresas privadas e chama à colação a Lei nº 23/91, de 4 de Julho, referindo que esta estendeu a amnistia mas limitada às infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos e que a Lei nº 29/99, de 12 de Maio, excluía liminarmente do âmbito da amnistia os “ilícitos laborais” e incluía as “infracções disciplinares e os ilícitos disciplinares militares.”

A Recorrida, por seu turno, invoca que a inclusão de matéria disciplinar laboral comum no regime de amnistias, ao contrário do que alega a Recorrente, não foi apenas contemplada na Lei nº 23/91 de 4 de Julho, existindo, pelo menos, dois precedentes nesta matéria constantes na Lei nº 17/85, de 17 de Julho e na Lei nº 16/86, de 11 de Junho, mas reconhecendo que as amnistias anteriormente decretadas foram aplicadas a empresas públicas, concluindo, contudo, não haver fundamento para negar a amnistia a infracções disciplinares no domínio das relações laborais privadas.

Analisadas as referidas Leis constata-se que a Lei nº 23/91 de 4 de Julho amnistiou as infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos (art. 1º al. ii) e a Lei 29/99 de 12 de Maio, amnistiou as infracções disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituíssem simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela mesma lei e cuja sanção aplicável não fosse superior à suspensão ou prisão disciplinar, desde que não constituíssem ilícito antieconómico, fiscal, aduaneiro, ambiental e laboral (artigo 7º al. c).

De tal análise cremos poder concluir que a história recente das Leis de Amnistia nunca seguiu no sentido de abranger as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores vinculados a empregadores privados.

E a explicação para tanto parece dever radicar na circunstância de o Estado não ter poderes para dispor de um direito de que não é titular.

Sobre esta questão escrevem António de Lemos Monteiro Fernandes e João Vilaça, em RH Magazine, 12 de Setembro de 2023, consultável em https://rhmagazine.pt/atualidade-laboral-estarao-as-infracoes-laborais-cobertas-pela-amnistia/: (...) “Quanto a este último ponto, todavia, a Lei nº 38-A/2023 parece deixar em aberto o significado a atribuir à expressão “infrações disciplinares”. O restante texto não oferece nenhuma indicação a esse propósito. Fica, aparentemente, de pé a questão de saber se essa expressão também abrangerá as sanções disciplinares laborais, aplicadas pelos empregadores privados, no exercício do seu poder disciplinar. A infeliz opção do legislador atual foi a de reproduzir uma parte da solução acolhida pela Lei nº 29/99 (a inclusão na amnistia das infrações disciplinares e dos ilícitos disciplinares militares) omitindo a fórmula através da qual esse diploma afastava liminarmente da amnistia os “ilícitos laborais”. Uma interpretação literal do art. 6º da Lei nº 38-A/2023 conduzirá, assim, à inserção de toda e qualquer infração disciplinar não extintiva no âmbito coberto pela amnistia. Mas será, a nosso ver, uma interpretação errónea. O ato de clemência que se corporizou na Lei 38-A/2023 representa uma renúncia parcial e momentânea do Estado ao seu poder de punir (ius puniendi), reduzindo ou anulando penas aplicadas por crimes, coimas correspondentes a contraordenações e sanções fundadas em infrações disciplinares praticadas no âmbito de funções públicas, incluindo o sector militar. O Estado dispôs assim de faculdades sancionatórias que lhe pertencem, com o propósito de assinalar o acontecimento relevante que foi a Jornada Mundial de Juventude, com a presença do Papa. Fora desse domínio se situa a disciplina laboral, conjunto de dispositivos de natureza normativa e sancionatória que se encontram na titularidade de quem gere empresas, como condição de viabilidade do funcionamento e da coesão interna destas. Em relação ao exercício do poder disciplinar, o legislador cria, normativamente, condições de controlo dos excessos e abusos a que ele pode conduzir, como poder funcionalizado ao interesse de uma das partes no contrato de trabalho. Mas não pode ir além disso. Não pode, nomeadamente, agir como se lhe pertencesse esse poder, renunciando totalmente ou parcialmente ao seu exercício – e privando da sua titularidade plena os empregadores. A neutralização de decisões disciplinares nas empresas – para além dos casos em que a sua ilicitude seja declarada pelos tribunais – teria consequências conflituantes com a liberdade de organização e gestão das empresas, consagrada nos arts. 61º e 80º-c) da Constituição, e representaria uma forma de ingerência manifestamente não comportável nos limites definidos pelo art. 86º/2 da Lei Fundamental. Esvaziar juízos disciplinares legitimamente realizados sobre comportamentos dos trabalhadores constitui um facto de enorme perturbação na ordem e na coesão interna das empresas, sem apoio no ordenamento constitucional. Assim, pode bem interpretar-se o art.º 6º da Lei 38-A/2023, nomeadamente no tocante à omissão do segmento que, na Lei 29/99, expressamente excluía os “ilícitos laborais”, como a expressão do reconhecimento das evidências que se acaba de apontar e, por conseguinte, em sentido restritivo, deixando à margem da amnistia decretada as infrações praticadas por trabalhadores ao serviço de empresas com as quais tenham relações reguladas pela lei geral do trabalho.”

Considerando o que acima se referiu sobre os contornos do poder disciplinar e sobre as Leis de Amnistia acompanhamos aquela interpretação, sendo certo que considerar o contrário violaria o quadro constitucional vigente.

Com efeito, a interpretação de que o artigo 2º nº 2 al. b) da Lei da Amnistia quando refere “infracções disciplinares” está a incluir os ilícitos de natureza laboral praticados por trabalhadores vinculados a empregadores privados, para além de esvaziar o poder disciplinar do empregador sem, em simultâneo, alterar o Código do Trabalho na parte relativa àquele poder, representaria uma intromissão por parte do Estado na gestão e organização das empresas privadas, não permitida por chocar com o direito à livre iniciativa, à liberdade de iniciativa e de organização empresarial e com o princípio de que o Estado só pode intervir na gestão de empresas privadas a título transitório, nos casos expressamente previstos na lei e, em regra, mediante prévia decisão judicial, consagrados nos artigos 61º nº 1, 80º al. c) e 82º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, como afirmado por aqueles autores.

Por conseguinte, resta concluir no sentido de que a Lei nº 38-A /2023, de 2 de Agosto (Lei da Amnistia), não abrange as infracções disciplinares laborais praticadas por trabalhadores vinculados a empregadores privados.”

Este é o entendimento igualmente sufragado no acórdão do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa, com a mesma data, 24 de Janeiro de 2024, processo 24210/21.8T8LSB.L2-4, assim como o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 2 de Maio de 2024, processo 1773/23.8T8VCT-A.G1, também acessíveis em www.dgsi.pt, bem como pela doutrina citada pela recorrente nas suas alegações e na própria sentença recorrida.»

Pois bem, como aliás já antes o dissemos, o caso sujeito à apreciação deste Tribunal no presente recurso é diverso daquele sobre o qual incidiu o citado Acórdão, de resto num aspeto que, como aliás no mesmo se assinala, assumiu particular relevância para a solução a que aí se afirmou, assim, precisamente, o de estar aí em causa infração disciplinar laboral praticada por trabalhador vinculado a empregador privado e não, pois, como ocorre no caso que apreciamos, em que o empregador, a Ré / aqui recorrida, Unidade Local de Saúde de ..., é uma E.P.E. Na verdade, como resulta das considerações constantes da citação que se faz da posição de António de Lemos Monteiro Fernandes e João Vilaça, a interpretação literal do artigo 6.º da Lei n.º 38-A/2023 aponta no sentido da inserção de toda e qualquer infração disciplinar não extintiva no âmbito coberto pela amnistia, assentando o argumento essencial para se considerar excluídas na consideração de que, dispondo o Estado de faculdades sancionatórias que lhe pertencem, com o propósito de assinalar o acontecimento relevante que foi a Jornada Mundial de Juventude, com a presença do Papa, fora desse domínio se situará a disciplina laboral, conjunto de dispositivos de natureza normativa e sancionatória que se encontram na titularidade de quem gere empresas, como condição de viabilidade do funcionamento e da coesão interna destas, não podendo, nomeadamente, agir como se lhe pertencesse esse poder, renunciando totalmente ou parcialmente ao seu exercício – e privando da sua titularidade plena os empregadores.

Ora, como aliás se nos afigura que se extrairá, assim, das considerações que resultam do citado Aresto e justificação para a solução aí alcançada, a questão relacionada com a natureza da entidade empregadora, ou seja privada ou diversamente pública ou de capitais públicos, assumiu relevância determinante para que se afastasse, quanto às últimas, a sua inclusão na previsão da norma que se interpretava, sendo que, afinal, no que ao caso sujeito à nossa apreciação no presente recurso diz respeito, tais razões, que levaram, como dito, à exclusão da previsão da norma das infrações incluídas no âmbito de empregadores privados, já não serão válidas, porque não verificadas, no que se refere a entidades com a natureza da Ré / aqui recorrida. Do mesmo modo, ainda, a respeito do argumento, também constante do citado Acórdão, relacionado com violação do quadro Constitucional vigente – por representar “uma intromissão por parte do Estado na gestão e organização das empresas privadas, não permitida por chocar com o direito à livre iniciativa, à liberdade de iniciativa e de organização empresarial e com o princípio de que o Estado só pode intervir na gestão de empresas privadas a título transitório, nos casos expressamente previstos na lei e, em regra, mediante prévia decisão judicial, consagrados nos artigos 61º nº 1, 80º al. c) e 82º nº 2 da Constituição da República Portuguesa” –, pois que, naturalmente, tal problemática já não se colocará na situação que, repete-se, está sujeita à nossa apreciação.

De resto, no referido âmbito, com relevância manifesta para o caso que apreciamos, assim em face da natureza da Ré e contratação que é objeto da presente ação, o Tribunal Constitucional já se debruçou, mais do que uma vez, sobre a questão da concessão de amnistias quanto a infrações disciplinares praticadas por trabalhadores do sector público empresarial do Estado, resultando, a título exemplificativo, do Acórdão n.º 53/93, de 3 de fevereiro de 1993[11], designadamente o seguinte:

«(…) No que toca à concessão de amnistias no domínio laboral quanto a infracções disciplinares praticadas por trabalhadores do sector público empresarial do Estado (no domínio da comunicação social ou noutros domínios), não se vê como se possa sustentar que tais amnistias são de todo em todo impossíveis ex natura rerum. De facto, o poder disciplinar não é configurável no nosso ordenamento jurídico como um poder absoluto, como é confirmado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a legitimidade constitucional da Lei nº 68/79, quando conferiu aos tribunais a competência para aplicar a sanção de despedimento aos dirigentes sindicais (vejam-se, por todos, os Acórdãos nºs 126/84, da 1ª Secção, e 204/85, da 2ª Secção, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 4º, págs. 393 e segs, e 6º, págs. 511 e segs., respectivamente).

Não sendo um poder absoluto, não pode dizer-se que esteja vedado ao legislador amnistiar certas infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de entidades de natureza pública, como sucede no caso dos autos. Não há que falar em expropriação ou confisco do poder disciplinar de entidades autónomas quando o Estado é, directa ou indirectamente, o único titular do capital social dessas empresas,- é o que sucede no caso da entidade recorrida -não tendo sentido aludir neste contexto à iniciativa económica privada (cfr. art. 82º, nº 2, da Constituição). Tão-pouco se pode ver nessa amnistia uma ofensa ao direito de propriedade privada, visto que o Estado é proprietário, directa ou indirectamente, das empresas do sector público, não sendo fundado invocar aquele artigo constitucional para disciplinar as relações do titular das empresas com os órgãos das mesmas. Do mesmo modo, não pode encontrar-se no nº 2 do art. 87º da Constituição qualquer apoio para considerar ilegítima a presente amnistia laboral, visto que o Estado não está a intervir em empresas privadas, mas em empresas, como é o caso da B., cujo capital lhe pertence integralmente, empresas do sector público da economia, portanto.

Conclui-se, por isso, que o órgão parlamentar pode, em tese geral e observadas certas regras, fazer abranger por leis de amnistia o ilícito disciplinar laboral, ainda que regulado pelo direito privado, desde que as entidades patronais sejam entidades públicas (empresas públicas ou sociedades de capitais públicos). Dado o teor das normas em apreciação, não tem o Tribunal Constitucional de curar agora da questão de natureza seguramente diferente, a saber, a da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade de normas de amnistia que tivessem por destinatários trabalhadores de empresas privadas, autores de infracções disciplinares. (…)

Do mesmo modo que o Estado entendeu amnistiar certas infracções disciplinares cometidas por agentes administrativos, funcionários ou não funcionários, da Administração Pública, central, regional e local, e por militares (alíneas gg) e hh) do art. 1º da Lei nº 23/91), entendeu também amnistiar as infracções disciplinares praticadas por trabalhadores do sector público empresarial, sem distinguir entre os que estão sujeitos à lei do regime do contrato individual de trabalho e os que estão sujeitos a um regime laboral de direito administrativo (art. 30º, nº 1, do Decreto-Lei nº 260/76 de 8 de Abril). A circunstância de ficarem excluídas as infracções disciplinares punidas com sanção expulsiva, no caso de funcionários públicos, não implica que o legislador não pudesse ter contemplado com a amnistia as infracções cometidas pelos trabalhadores de empresas públicas e de sociedades de capitais públicos, puníveis com despedimento ou punidas com despedimento não definitivo nem transitado, visto não ser válido um raciocínio por maioria de razão entre dois regimes amnistiadores aplicáveis a destinatários com estatuto funcional diferenciado.

Já se viu que o Prof. D. sustenta, no parecer junto aos autos, que tal amnistia viola o princípio da igualdade, uma vez que o instituto do poder disciplinar, configurado por normas jurídicas de direito laboral, existe tanto no ordenamento jurídico das empresas públicas (salvo poucas excepções, entre as quais não figura a ora recorrente), como no das empresas privadas, pelo que é legítimo comparar o tratamento dado (e não dado) a ambos os tipos de empresas pela alínea ii) do art. 1º da Lei nº 23/91, havendo de concluir-se que a lei em causa tratou desigualmente situações jurídicas qualificáveis como iguais.

Todavia, não pode aceitar-se tal posição. Bastará notar que a natureza empresarial pública da entidade patronal pode condicionar as relações laborais, nomeadamente pela sujeição dos trabalhadores a um regime de direito público (art. 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 49.408, de 11 de Novembro de 1969; art. 30º, nº 1, do Decreto-Lei nº 260/76, de 8 de Abril), sucedendo mesmo que certos trabalhadores do sector público têm determinados ónus, que não impendem sobre trabalhadores de empresas privadas, mesmo quando sujeitos ao regime da lei geral do contrato individual de trabalho. A título exemplificativo, refiram-se certas incompatibilidades legais para o exercício de funções remuneradas em regime de acumulação que atingem apenas os trabalhadores de empresas públicas do sector bancário (cfr. art. 30º, nºs 1 e 3, do Decreto-Lei nº 729-F/75, de 22 de Dezembro; cfr. José Acácio Lourenço, As Relações de Trabalho nas Empresas Públicas, Coimbra, 1984, págs. 37 e segs.), bem como as amplas possibilidades de exercício de funções por funcionários públicos e trabalhadores de outras empresas públicas em regime de requisição (art. 32º do Decreto-Lei nº 260/76).

Entende-se, assim, que o legislador tinha a possibilidade constitucional de decretar uma amnistia laboral restrita aos trabalhadores do sector público, atendendo a que se tratava de cidadãos que desenvolvem a sua actividade no interesse e por conta do empresário público, que é o Estado, não tendo por isso uma situação igual às dos trabalhadores das empresas do sector privado (cfr. arts. 54º, alínea b), e 90º da Constituição). Não se vê como poderão resultar violados os arts. 13º e 82º, nº 1, da Constituição pela diferenciação introduzida pela lei amnistiadora. Nesta lei de 1991 há normas amnistiadoras que englobam os trabalhadores da Administração directa do Estado e os de chamada Administração indirecta (cfr. sobre estas noções, por todos, Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1986, págs. 205, 303 e segs.), por o legislador ter dado prevalência à natureza pública da entidade patronal, em vez de ter valorizado a distinção entre trabalhadores vinculados a empresas do sector público por regimes laborais de direito administrativo ou de direito privado, distinção que se reveste de carácter essencialmente técnico ou formal. Tal opção do legislador não é arbitrária ou irrazoável, não podendo este Tribunal censurá-la, já que continua garantida a existência de um sector de propriedade pública dos bens de produção, o qual se não confunde com o sector privado da economia (art. 82º, nºs 1 e 2, da Constituição).

20. De igual modo, assim como não se vê que seja violado o princípio da igualdade pela diferenciação de tratamento dos trabalhadores do sector público e do sector privado, não se vê como tal opção do legislador possa violar os arts. 62º, nº 1, e 87º, nº 2 da Constituição, ao contrário do que tem sido afirmado por certa doutrina: as empresas públicas e a propriedade pública dos meios de produção têm um regime diverso do das empresas privadas e da propriedade privada dos meios de produção. Como já se referiu, não pode falar-se, tão-pouco, em "expropriação" inconstitucional do poder disciplinar das empresas públicas, fazendo uma equiparação integral deste ao poder disciplinar dos empresários privados. Não há qualquer ofensa da garantia da "propriedade privada" das empresas públicas, seja qual for o sentido que tal expressão possa assumir.

E, como atrás se deixou dito, não ocorreu igualmente qualquer violação da garantia institucional do sector público empresarial. (…)»

Do exposto resulta que, salvo o devido respeito, improcedendo no mais o argumentado pela Recorrente – incluindo quando considera que estamos no puro âmbito do direito laboral privado em face da natureza do vínculo, pois que essa questão ficou esclarecida no Acórdão antes transcrito –, temos por incluída, mediante a necessária e adequada interpretação, na previsão da Lei n.º 38-A/2023 (seus artigos 2.º, n.º 2, alínea b), e 6.º), quando aí se diz “São amnistiadas as infrações disciplinares…”, a infração disciplinar aplicada à Autora / aqui recorrente e que é objeto da ação.

Sendo assim, importa então apreciar, por último, se a conclusão a que chegámos anteriormente leva, como considerado na decisão recorrida, à inutilidade superveniente da lide, questão que analisaremos de seguida.

2. Da afirmada inutilidade superveniente

Sustenta a Recorrente, neste âmbito, que, ainda que da aplicação da Lei n.º 38-A/2023 resulte o perdão da sanção de repreensão registada que lhe foi aplicada, a realização da justiça, que pretende, só é possível de concretizar através do prosseguimento dos autos, sendo que, diz, com a decisão recorrida fica impedida de ver discutido o objeto da causa, estando em causa a aplicação de uma sanção que lesou a sua honra e dignidade pessoal e familiar, bem como a sua reputação profissional dentro da comunidade hospitalar, e não pôde em qualquer momento discutir sobre a aplicação da sanção disciplinar – a sanção disciplinar depois de aplicada, ainda que seja apagada, não destrói de maneira alguma os efeitos negativos, que já se projetaram na sua esfera e no meio pessoal e profissional, pelo que nunca estaremos perante inutilidade superveniente da lide, uma vez que colhe efeito útil, que consiste na possibilidade de recuperação da sua dignidade pessoal, no seio da sua família e enquanto profissional / a pretensão manifestada é possível, bem como admissível e tem toda a utilidade uma vez que pretende a anulação de uma sanção injustamente e ilegalmente aplicada, sem qualquer fundamento ou prova e ainda a indemnização por danos não patrimoniais, refletidos em violações dos seus direitos enquanto trabalhadora e pessoa, sendo que a decisão recorrida, ao impedir a discussão dos pressupostos que levaram à aplicação da sanção disciplinar, impossibilita a apreciação dos danos não patrimoniais e patrimoniais que se refletiram na Recorrente e tais danos são de uma relevância e profundidade graves (ao ser vedada a possibilidade de apreciação dos danos patrimoniais e não patrimoniais nos autos da ação de condenação de cuja sentença se recorre, vê fechada qualquer outra via judicial, onde possam ser discutidos os referidos pressupostos) / essa decisão não pode ser causa de impedimento do recurso à tutela jurisdicional efetiva, por parte da Recorrente (artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa);

Conclui, na procedência do recurso, pela revogação da decisão recorrida.

Apreciando, começaremos por fazer, de seguida, algumas considerações a respeito do instituto em causa.

De harmonia com o normativo inserto no artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil, a instância extingue-se com a impossibilidade ou com a inutilidade superveniente da lide.

A impossibilidade da lide ocorre em caso de morte ou extinção de uma das partes, por desaparecimento ou perecimento do objeto do processo ou por extinção de um dos interesses em conflito. A inutilidade superveniente da lide tem lugar quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não tem qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo ou porque o fim visado com a acção foi atingido por outro meio[12].

A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide traduz-se, deste modo, numa impossibilidade ou inutilidade jurídica, cuja determinação tem por referência o estatuído na lei. De acordo com Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto[13], “a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por já ter sido atingido por outro meio”.

Na consideração do regime que antes sinteticamente se enunciou, desde já diremos que não acompanhamos a solução a que se chegou na decisão recorrida.

Para o efeito, em jeito de introdução, em termos de enquadramento prévio da questão que nos é colocada, começaremos por transcrever de seguida, então a propósito da Lei nº 23/91, de 4 de Julho, parte do texto do Acórdão do Tribunal Constitucional de 16 de abril de 1997[14]:

«(…) 5. A distinção entre a amnistia "própria" e "imprópria" - entendendo‑se pela primeira a que respeita ao próprio crime e pela segunda a relativa à consequência jurídica - tem sido apresentada pela doutrina penalista. Só que, como refere J. Figueiredo Dias (Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime, Lisboa, Aequitas/Editorial Notícias, Lisboa, 1993, p. 691), "uma tal distinção, se na verdade se aceita, todavia não deve considerar-se susceptível de fundar efeitos jurídicos diversos, reconduzindo-se portanto a um dispensável e inconveniente luxo de conceitos. Não se trata minimamente, na verdade, de que na amnistia própria exista uma espécie de «descriminalização», enquanto na amnistia imprópria se estaria perante uma mera «despenalização»: ainda na amnistia própria, e mesmo quando ela seja feita por apelo a certos tipos de factos, o que definitivamente está em causa (e só) é o impedir-se que o agente agraciado sofra a sanção a que poderia vir a ser (ou a que já foi) condenado. Em suma: tanto a amnistia própria como a imprópria (ou perdão genérico) se reconduzem à mesma fonte de legitimação e devem possuir os mesmos efeitos jurídico-penais".

No mesmo sentido, Eduardo Correia/Taipa de Carvalho [cfr. Direito Criminal III (2), policopiado, Coimbra, 1980, p. 18] escrevem que "a nossa lei, diferentemente de outras, não distingue entre amnistia própria (a concedida antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória) e amnistia imprópria (a aplicada posteriormente à condenação definitiva)", adiantando que tal solução é a correcta, "pois que a amnistia se dirige à própria infracção". (…)»

Avançando-se na análise, agora já com direta relevância para a nossa apreciação a respeito da solução que deve ser afirmada – mesmo com especial e na nossa ótica decisiva relevância –, socorrendo-nos de seguida das considerações constantes do Acórdão do mesmo Tribunal Constitucional de 14 de março de 2001[15], quando se fez constar o seguinte (transcrição):

«(…) A recorrente sustenta que tal dimensão normativa viola o princípio e a norma que define a República Portuguesa como um Estado de Direito artigo 2º da Constituição; o princípio da unidade do sistema jurídico artigo 3º, nºs 2 e 3, da Constituição; a norma que a todos assegura o acesso ao direito e aos tribunais para (tutela) dos direitos e interesses legalmente protegidos artigo 20º, nº 1, da Constituição; a norma que prevê o direito a que uma causa em que intervenham os cidadãos portugueses seja objecto de decisão mediante processo equitativo artigo 20º, nº 4, da Constituição; a norma que obriga a lei a assegurar aos cidadãos procedimentos judiciais adequados a obter tutela efectiva dos seus direitos e garantias pessoais (como o direito de acesso ao direito e aos tribunais, supra indicado, e o direito ao trabalho, nos termos constitucionalmente assegurados) artigos 58º, nº 1, e 59º, nº 1, alínea b), da Constituição artigo 20º, nº 5, da Constituição; e a norma e o princípio e garantias dos administrados quanto à tutela jurisdicional efectiva dos seus direitos e interesses, mormente quanto à impugnação de actos administrativos artigo 268º, nº 4, da Constituição.

Não obstante a invocação de todos os princípios mencionados, a recorrente acaba por afirmar que todas as normas e princípios acima referidos têm como vértice único o princípio do acesso ao direito e aos tribunais, sendo então esse o princípio que, na perspectiva da recorrente, é violado, nas suas várias dimensões, pela interpretação normativa impugnada.

7 A amnistia, como modalidade do exercício do direito de graça, constitui um acto de soberania estadual (...) que, criando um obstáculo à efectivação da punição, pode rigorosamente (...) qualificar-se como a contraface do ius puniendi estadual (cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, II, As consequências jurídicas de crime, 1993, p. 691).

O Tribunal Constitucional tem entendido que sob o ponto de vista constitucional, a legitimidade das leis de amnistia de infracções punidas por normas de direito público deve ser aferida à luz do princípio do Estado de Direito, donde resulta que os fins das leis de amnistia não podem ser incompatíveis com a realização de um tal princípio (cf. o Acórdão nº 301/97, de 16 de Abril inédito; cf. também os Acórdãos nºs 444/97, de 25 de Junho D.R., II, de 22 de Julho de 1997, e 510/98 – D.R., II, de 20 de Outubro de 1998).

Porém, nos presentes autos, a questão de constitucionalidade normativa suscitada pela recorrente não se prende especificamente com os fins da lei de amnistia aplicada no processo. Na verdade, o que a recorrente questiona no recurso de constitucionalidade em apreciação é a legitimidade constitucional da dimensão normativa que subjaz à decisão que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, em virtude de ter sido aplicada uma amnistia que não eliminou os efeitos da sanção já verificados, impedindo apenas a produção dos efeitos ainda não produzidos.

Vem assim questionada no presente recurso a conformidade à Constituição de uma dimensão normativa relativa às condições e consequências específicas da aplicação da amnistia.

O Tribunal Constitucional, no mencionado Acórdão nº 301/97, considerou expressamente ser constitucionalmente admissível à Assembleia da República amnistiar infracções disciplinares sem destruir os efeitos já produzidos pela aplicação da pena, desde que seja salvaguardada a legitimidade material da amnistia. Nesse aresto, o Tribunal, invocando a jurisprudência constante dos Acórdãos nºs 152/93 e 153/93 (D.R., II Série, de 16 de Março de 1993 e de 23 de Março de 1993, respectivamente), sublinhou o reconhecimento de uma margem de liberdade de conformação do legislador neste domínio, tendo o legislador que aprova a amnistia liberdade para definir os efeitos desta, designadamente para, no âmbito da amnistia das infracções disciplinares, destruir ou não os efeitos já produzidos pela aplicação da pena.

Ora, decorre da jurisprudência constitucional sumariamente citada que a definição de certas condições de concessão de uma amnistia integra o espaço de liberdade de conformação legislativa, podendo o legislador estabelecer limites aos efeitos da medida de graça, efeitos esses que não têm, desse modo, de significar a destruição de todas as consequências da infracção amnistiada. Compreende-se, de resto, que assim seja, uma vez que a concessão da amnistia, consubstanciando uma medida excepcional, repercute-se no funcionamento do sistema sancionatório público, impedindo a normal produção de efeitos das normas que o integram. Trata-se, pois, de uma intervenção singular, em ordem a valores específicos e necessariamente legítimos (cf., quanto à natureza e legitimidade de tais valores, os Acórdãos n.º 444/97 e 510/98), cuja concreta extensão assim como as respectivas condições de aplicação não se encontram constitucionalmente pré-definidas.

Os limites a tal medida referem-se então aos seus fins (como o Tribunal Constitucional apreciou nos Acórdãos n.ºs 444/97 e 510/98), de forma a que, com a concessão da amnistia, não se afectem princípios fundamentais do Estado de direito. O carácter mais ou menos restrito dos seus efeitos (uma vez assente, sublinhe-se, a legitimidade material e teleológica da medida de graça), ou seja os efeitos concretos da infracção amnistiada que são eliminados, assim como as repercussões processuais da medida também poderão ser livremente conformadas pelo legislador dentro dos assinalados limites.

Por outro lado, a aplicação da amnistia não poderá, naturalmente, limitar, ainda que reflexamente, de modo inevitável outros direitos fundamentais do agente beneficiário. Adianta-se, porém, de imediato, que in casu tal não acontece, pois pode ser requerida a não aplicação da amnistia, nos termos do artigo 10º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio.

Em resumo, pode afirmar-se que a amnistia se traduz num benefício concedido pelo Estado, com maior ou menor amplitude, e que, consubstanciando uma valoração excepcional e de algum modo acidental da infracção, deixa intocados os direitos e as garantias fundamentais do agente, caso possa, por opção livre do potencial beneficiário, não ser aplicado.

8. Nos presentes autos, e como já se referiu, a recorrente insurge-se contra a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, e não contra a aplicação da amnistia. Porém, a recorrente podia ter requerido a não aplicação da amnistia, nos termos do artigo 10º da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, o que implicaria, naturalmente, o prosseguimento do processo onde se discutia a licitude da sanção disciplinar aplicada. Nessa hipótese, a recorrente teria então a possibilidade de obter uma decisão de anulação da decisão condenatória, com os efeitos inerentes. No entanto, não foi essa a estratégia seguida pela recorrente. No presente processo, a recorrente pretende a aplicação da amnistia no que respeita aos efeitos da sanção ainda não produzidos e o prosseguimento do processo contencioso relativamente aos efeitos já produzidos.

Ora, nenhum princípio ou norma constitucional impede que uma amnistia tenha efeitos restritos ou determinadas repercussões processuais. Com efeito, a Constituição não veda a possibilidade de uma amnistia ter certas consequências ao nível processual, tendo então o particular de optar entre beneficiar da amnistia com certas limitações ou prosseguir com o processo contencioso, recusando a aplicação da amnistia. Não decorre da Constituição um "direito" à amnistia em determinadas condições e com certos efeitos.

O direito de acesso aos tribunais e a um processo equitativo, assim como o princípio da tutela jurisdicional efectiva, encontram-se suficientemente assegurados in casu, uma vez que a lei confere expressamente a possibilidade de recusa da amnistia, subsistindo então a possibilidade de discutir a questão controvertida nos tribunais, com todas as garantias inerentes. Caso se aceite, porém, a aplicação da amnistia (como acontece no presente processo), então tal aceitação estender-se-á também às condições específicas em que a amnistia é concedida, não sendo, nessa medida, procedente afirmar que a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide afecta qualquer dimensão do direito de acesso aos tribunais, constitucionalmente consagrado.

9. Averiguar se esta é a melhor solução normativa, não compete ao Tribunal Constitucional. Ao Tribunal Constitucional apenas compete averiguar se se trata ou não de uma solução inconstitucional. A tal questão, pelas razões expostas, o Tribunal responde negativamente.»

Ora, muito embora então proferido no âmbito de aplicação de lei diversa, as considerações constantes do citado Acórdão, que aqui acompanhamos, permitem dar resposta à questão que nos é colocada no presente recurso, pois que, em face do texto da Lei aplicada no caso, apenas estando prevista, assim no artigo 11.º, a possibilidade de os arguidos por infrações previstas no artigo 4.º poderem requerer, no prazo de 10 dias a contar da sua entrada em vigor, que a amnistia não lhes seja aplicada, já não se prevê, porém, tal possibilidade no caso de aplicação de sanções disciplinares abrangidas pelo seu artigo 6.º, razão pela qual, assim o consideramos, valem afinal nesta situação as considerações que constam do citado Acórdão, mas no sentido de que, diversamente do que ocorria com a situação sobre a qual esse incidiu, não estarão, na situação sobre a qual incide a nossa análise, suficientemente assegurados, no nosso quadro constitucional, o direito de acesso aos tribunais e a um processo equitativo, assim como o princípio da tutela jurisdicional efetiva, pois que, não sendo conferida pela lei expressamente a possibilidade de recusa da amnistia, a entender-se que ocorria inutilidade da lide, como o entendeu o Tribunal recorrido, retiraria à aqui Autora a possibilidade de discutir a questão controvertida nos tribunais, com todas as garantias inerentes, em que se incluem desde logo os direitos constitucionais antes mencionados. É que, afinal, a questão que é colocada pela Autora / recorrente na presente ação assenta na invocação de que ocorreu violação de direitos que diz assistirem-lhe fundados na prática pela outra parte de ato que tem como ilegal e ilícito (porque não fundado) e que lhe teria provocado danos, ou seja, a sufragar-se o entendimento sufragado pela decisão recorrida, para além dos efeitos concretos da infração amnistiada que são eliminados – assim como as repercussões processuais da medida também poderão ser livremente conformadas pelo legislador dentro dos assinalados limites – a que se alude no citado acórdão, estará diretamente a limitar-se, ainda que reflexamente, de modo inevitável outros direitos fundamentais do agente beneficiário, assim os que antes se referiram, sem que, como dito, neste caso possa ser requerida a não aplicação da amnistia, quando, socorrendo-nos de novo do mesmo Acórdão transcrito, a amnistia, traduzindo-se num benefício concedido pelo Estado, com maior ou menor amplitude, que, “consubstanciando uma valoração excecional e de algum modo acidental da infração, apenas deixará intocados os direitos e as garantias fundamentais do agente, “caso possa, por opção livre do potencial beneficiário, não ser aplicado”.

Não obstante o que já resulta do citado Acórdão, apenas aqui relembraremos, a respeito do artigo 20.º da CRP, que, precisamente por se tratar afinal de um Estado de Direito, no mesmo confluem regras que estabelecem e garantem o equilíbrio possível entre as posições conflituantes das partes que possam rodear-se de juridicidade, como ainda, por decorrência, um necessário equilíbrio entre a certeza e a segurança, no qual assume papel regulador o direito processual, enquanto direito instrumental, ao regulamentar os meios/forma pelos quais se poderá/deverá alcançar a reafirmação do direito que se tem por violado. Como há muito ensinava Anselmo de Castro[16], são estas normas, que visam afinal alcançar a “justa resolução e efectivação da relação jurídica controvertida”, que tutelam a forma como se pode defender em juízo o direito substantivo, assumindo por essa razão uma feição pública disciplinadora da composição de interesses em litígio. Assim se dá afinal plena satisfação ao comando Constitucional do artigo 202.º da CRP, de que “Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (…)» –como ainda, do mesmo modo, ao artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ao impor um processo equitativo sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil – sem prejuízo de se dever também salientar, agora por apelo ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 220/2015 de 8 de Abril de 2015[17], “(...) que a exigência de um processo equitativo, consagrada no referido artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo”, desde que, citando de novo, “(...) os regimes adjectivos proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efetiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva.(…)”.

De resto, acrescente-se, como resulta do artigo 12.º da Lei aqui em análise, mas aí abrangendo-se apenas as infrações previstas no seu artigo 4.º, nesses casos a garantia de discussão judicial de eventuais direitos de lesados, no âmbito de responsabilidade civil, não é diretamente afetada, pois que se dispõe, expressamente, que “A amnistia prevista no artigo 4.º não extingue a responsabilidade civil emergente de factos amnistiados”, regulando-se de seguida o modo como essa deve processar-se, sendo que, muito embora é certo essa previsão tenha em vista a garantia de direitos dos lesados por atos de outrem amnistiados, razão válida não ocorre, tanto mais que não devidamente fundada, incluindo em termos de tutela efetiva de direitos constitucionais, nos termos antes vistos, para não se considerar que, em casos como os que apreciamos, não devam ficar intocados eventuais direitos e ainda garantias fundamentais do agente.

Em face do exposto, não nos merecendo reservas a decisão recorrida na parte em que declarou a infração disciplinar que era objeto dos autos amnistiada e por decorrência determinou o seu apagamento do respetivo registo disciplinar, no entanto, porém, com a natural salvaguarda do devido respeito, não acompanhamos essa decisão quando, de seguida, determinou a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, razão pela qual, revogando este último segmento decisório, se nos impõe determinar que a ação prossiga os seus termos subsequentes quanto à apreciação do pedido, bem como causa de pedir em que se alicerça, de condenação da Ré a indemnizar a Autora, por danos não patrimoniais, no montante de valor não inferior a €15.000,00€.

                                                             

A responsabilidade pelas custas no presente recurso impende sobre as partes, na proporção de ½ para cada, nos termos do artigo 527, do CPC.


*

Sumário – a que alude o artigo 663º, nº 7 do CPC:

………………………..

………………………..

………………………..


***

IV – DECISÃO

Acordam os juízes que integram esta Secção social do Tribunal da Relação do Porto, mantendo-a no mais, em revogar a decisão recorrida na parte em que considerou ocorrer extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, determinando-se, no presente acórdão, o prosseguimento dos termos subsequentes da ação, quanto à apreciação do pedido, e inerente causa de pedir, de condenação da Ré a indemnizar a Autora, por danos não patrimoniais, nos termos peticionados.

Custas em partes iguais.


Porto, 28 de junho de 2024

(assinado digitalmente)

Nélson Fernandes (relator)

Teresa Sá Lopes

António Luís Carvalhão


_______________
[1] Constando do seu artigo 7.º: “Desde que praticadas até 25 de Março de 1999, inclusive, e não constituam ilícito antieconómico, fiscal, aduaneiro, ambiental e laboral são amnistiadas as seguintes infracções: (…) c) As infracções disciplinares e os ilícitos disciplinares militares que não constituam simultaneamente ilícitos penais não amnistiados pela presente lei e cuja sanção aplicável não seja superior à suspensão ou prisão disciplinar”.
[2] Do seu artigo 1.ª, consta: “Desde que praticados até 25 de Abril de 1991, inclusive, são amnistiados: (…) gg) As infracções disciplinares puníveis pelo Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto n.º 24/84, de 16 de Janeiro, directamente ou por remissão, quando a pena aplicável ou aplicada não seja superior a suspensão, e, bem assim, as infracções praticadas pelos funcionários ou agentes com estatuto especial, quando a sua gravidade não seja superior à das referidas no n.º 1 do artigo 24.º daquele Estatuto; hh) Os ilícitos disciplinares militares quando punidos com pena não superior a oito dias de detenção ou que lhe seja equiparada, desde que a pena haja sido efectivamente cumprida; ii) As infracções disciplinares cometidas por trabalhadores de empresas públicas ou de capitais públicos, salvo quando constituam ilícito penal não amnistiado pela presente lei ou hajam sido despedidos por decisão definitiva e transitada; jj) As infracções disciplinares cometidas, no exercício da sua actividade, por profissionais liberais sujeitos a poder disciplinar das respectivas associações públicas de carácter profissional, salvo quando os factos imputados integrem ilícito criminal punível com prisão superior a seis meses, com ou sem multa, ou quando o infractor já tiver anteriormente sido punido com censura ou pena mais grave”.
[3] Resulta do seu artigo 1.º: “Desde que praticadas até 16 de Março de 1994, inclusive, são amnistiadas as seguintes infracções: (…) jj) As infracções disciplinares puníveis pelo Estatuto Disciplinar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro, directamente ou por remissão, quando a pena aplicável ou aplicada não seja superior a suspensão e, bem assim, as infracções praticadas pelos funcionários ou agentes com estatuto especial, quando a sua gravidade não seja superior à das referidas no n.º 1 do artigo 24.º daquele Estatuto, salvo quando os factos imputados integrem ilícito criminal ou quando o infractor já tiver anteriormente sido punido com censura ou pena mais grave; ll) Os ilícitos disciplinares militares quando punidos com pena não superior a prisão disciplinar; mm) As infracções disciplinares cometidas, no exercício da sua actividade, por profissionais liberais sujeitos a poder disciplinar das respectivas associações públicas de carácter profissional, salvo quando os factos imputados integrem ilícito criminal ou quando o infractor já tiver anteriormente sido punido com censura ou pena mais grave.”
[4] Artigo 1º “ Desde que praticados antes de ../../1986, são amnistiados:.... dd) As infracções disciplinares puníveis, directamente ou por remissão, pelo Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, quando a pena aplicável ou aplicada não seja superior a suspensão, e bem assim as infracções praticadas pelos funcionários ou agentes que possuam estatuto especial, quando a sua gravidade não seja superior à das referidas no n.º 1 do artigo 24.º daquele Estatuto; ee) As infracções disciplinares cometidas por membros de órgãos representativos de trabalhadores de empresas públicas no exercício das correlativas funções ou por causa delas, quando não puníveis ou punidas com despedimento; ff) As infracções disciplinares cometidas, no exercício da sua actividade, por profissionais liberais sujeitos a poder disciplinar das respectivas associações públicas de carácter profissional, desde que os factos imputados não integrem ilícito criminal punível com prisão superior a seis meses, com ou sem multa.
[5] No que ora interessa são amnistiadas apenas infracções disciplinares de natureza militar- 3º, f), e certas infracções disciplinares do Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante - 4º, b).
[6] Artigo 1º São amnistiados....11 As infracções de carácter meramente disciplinar, previstas nos artigos 46º aº e 47.º do Decreto-Lei 41204, de 24 de Julho de 1957 (tratam-se de infracções contra a saúde pública e contra a economia nacional) e são anuladas certas penas disciplinares do Regulamento de Disciplina Militar- art. 8º.
[7] artigos 127º e 128º CP
[8] Veja-se o artigo 161.º, da Constituição (Competência política e legislativa): “Compete à Assembleia da República:....f) Conceder amnistias e perdões genéricos;”
[9] Assim, ao direito de mera ordenação social, direito disciplinar da função pública (funcionários civis), direito penal militar, direito disciplinar das Ordens Profissionais e direito sancionatório fiscal
[10] Relator Desembargador Rui Penha, em www.dgsi.pt.
[11] Proc. nº 151/92
[12] cf. A. Reis, Comentário ao CPC Anot., vol. III, Coimbra, 1946 – 367-373
[13] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, Coimbra Editora, 2ª ed., pág. 555
[14] n.º 301/97, processo n.º 78/95
[15] N.º 116/01, processo nº 441/2000.
[16] Direito Processual Civil Declaratório, 1º, pág. 38.
[17] In www.dgsi.pt