MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
CUMPRIMENTO DE PENA
RECUSA FACULTATIVA DE EXECUÇÃO
RESIDÊNCIA
RECONHECIMENTO DE SENTENÇAS PENAIS NA UNIÃO EUROPEIA
PRINCÍPIO DO RECONHECIMENTO MÚTUO
PENA DE PRISÃO
NULIDADE DE SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário


I. Para se verificar o motivo de não execução de um MDE emitido para cumprimento de pena com fundamento em que a pessoa condenada «reside» em território nacional, nos termos e condições referidos na alínea g) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003 (n.º 6 do artigo 4.º da Decisão-Quadro 2002/584/JAI), em conjugação com o regime de transmissão e reconhecimento da sentença condenatória estabelecido na Lei n.º 158/2015 (Decisão-Quadro 2008/909/JAI), devem ser levadas em conta as normas de direito da União relativas à liberdade e ao direito de circulação e residência consagrado nos Tratados (artigos 9.º do TUE e 20.º e 21.º do TFUE) e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 45.º) e às respetivas condições e limites.
II. Devem, assim, observar-se as diretivas 2003/86/CE, relativa ao direito ao reagrupamento familiar, e 2003/109/CE, relativa ao estatuto dos nacionais de países terceiros residentes de longa duração, transpostas pela Lei n.º 34/2007, de 4 de julho, e 2004/38/CE, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados-Membros, transposta pela Lei n.º 37/2006, de 9 de agosto.
III. A recusa facultativa de entrega de um cidadão da União (nacional de um Estado-Membro) residente em território nacional ao Estado de emissão de um MDE para cumprimento de uma pena de prisão, prevista na al. g) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003, requer a verificação de três requisitos cumulativos: (1) que a pessoa condenada tenha residência em Portugal, no exercício do direito de livre circulação e residência nas condições e limites estabelecidos no direito da União; (2) que o Estado de emissão, a pedido do tribunal de execução do MDE, proceda à transmissão e que o tribunal de execução proceda ao reconhecimento da sentença condenatória nos termos da Lei 158/2015, no processo e na decisão sobre a execução do MDE (n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 65/2003 e 26.º da Lei n.º 158/2015); e (3) que, para este efeito, o tribunal de execução conclua que a recusa de entrega se justifica por um interesse legítimo, determinado pelo objetivo de facilitar e aumentar as possibilidades de reinserção social da pessoa procurada após a execução da pena a que foi condenada.
IV. Cabendo aos tribunais nacionais aplicar o direito da União, que constitui um sistema de direito autónomo, são obrigados a interpretá-lo, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade do direito da União, para atingir o resultado prosseguido pelas decisões-quadro. Esta obrigação de interpretação conforme do direito nacional, com recurso a todos os métodos admissíveis, à jurisprudência anterior do TJUE e ao mecanismo de reenvio prejudicial previsto no artigo 267.º do TFUE, é inerente ao sistema dos Tratados, permitindo aos órgãos jurisdicionais nacionais assegurar a coerência, a efetividade e a eficácia do direito da União no domínio das suas competências definidas pelo princípio da atribuição e com base no princípio da cooperação leal entre os Estados-Membros e entre estes e a União (artigos 4.º e 5.º do TUE).
V. A ordem jurídica da União, que cabe aos tribunais nacionais garantir e fazer respeitar, é uma ordem axiologicamente fundada (artigo 2.º do TUE) no respeito pelos direitos fundamentais (artigo 6.º do TUE) e teleologicamente orientada à realização e funcionamento de um espaço de liberdade, segurança e justiça (artigos 3.º TUE e 67.º, 77.º, 78.º 79.º e 82.º do TFUE), devendo os tribunais nacionais assegurar e garantir, por via da tutela jurisdicional efetiva, a prossecução dos objetivos das decisões-quadro 2002/484/JAI e 2008/909/JAI, que constituem objetivos comuns inerentes às finalidades das penas, em conformidade com a jurisprudência do TJUE no domínio da interpretação do direito da União.
VI. Sendo a pessoa procurada nacional de um Estado-Membro residente em território nacional há mais de três meses, com o agregado familiar de que faz parte a sua companheira nacional de um Estado não-membro da União Europeia, e tendo sido solicitada ao tribunal de emissão do MDE a transmissão da sentença condenatória nos termos da Decisão-Quadro 2008/909/JAI, há que determinar se ela goza do direito de residência nas condições e limites estabelecidos no direito da União, se, nessas condições, se realizam os objetivos de reinserção social que justificam a recusa da entrega e que, sendo o caso, proceder ao reconhecimento da sentença condenatória nos termos e em conformidade com o disposto nos n.ºs 3 e 4 da Lei n.º 65/2003 e na Lei n.º 158/2015, para que se possa constituir o fundamento do motivo de não execução facultativa do MDE previsto na al. g) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003.
VII. A omissão de pronúncia sobre estas questões constitui motivo de nulidade do acórdão, que se declara, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, devendo o tribunal recorrido, realizadas as diligências necessárias, suprir as nulidades apontadas.

Texto Integral

ACÓRDÃO

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. AA, de nacionalidade irlandesa, com a identificação que consta dos autos, recorre para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23.4.2024, que ordenou a execução do mandado de detenção europeu emitido pelo Tribunal de ..., Países Baixos, e a sua entrega às autoridades judiciárias daquele país, para efeitos de cumprimento da pena de 4 anos de prisão, da qual faltam cumprir 1225 dias, em que foi condenado no processo OVL-U-........79-23-....51-16, por sentença com força executiva com a referência 23-....51-16, de 27/06/2018.

2. Discordando da decisão de entrega e pretendendo cumprir a pena em Portugal, por considerar haver motivo de não execução com fundamento na residência em território nacional, apresenta motivação de que extrai as seguintes conclusões:

“1. Contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, proferido pelo TRE em 23-04-2024, o ora recorrente entende estarem reunidos os pressupostos para a recusa de execução do Mandado de Detenção Europeu e, consequentemente, reunidas as condições para o cumprimento da pena em Portugal.

2. O ora recorrente foi surpreendido com o MDE bem como com a decisão condenatória transitada que o suporta.

3. O recorrente deixou a Holanda, por temer represálias fundadas em sérias ameaças, logo após a absolvição (12-05-2016) nos autos que, posteriormente e sem que tivesse conhecimento, o vieram a condenar.

4. Na verdade, ao que parece, o ora recorrente terá sido condenado por, juntamente com outros, furtar/roubar bens de sua propriedade. Junto aos presentes autos recibo comprovativo do relógio de pulso da marca rolex ali referenciado, dos outros objectos não possui comprovativos.

5. O ora recorrente é multimilionário pelo que não precisa de praticar crimes de furto ou roubo, ainda assim, atenta a decisão condenatória transitada, conforma-se com o cumprimento da pena em Portugal, restando-lhe a oportunidade de eventual de recurso de revisão no Estado da condenação.

6. A sua oposição à execução do MDE e consequente recusa prende-se, no essencial, com motivos de preservação da sua integridade física e da sua mãe, por ter estabilizado a sua residência em Portugal, onde vive com as suas duas filhas, uma já nascida em Portugal, com a mãe delas e com a sua mãe de 74 anos.

7. O recorrente assim que chegou a Portugal adquiriu património avultado, mormente um veículo usado pelo valor de € 275.000,00, como apresentação de uma sociedade de automóveis de aluguer e jet-skis, bem como a recente aquisição de uma moradia para habitação da família, melhor descrita no cpcv supra, pelo valor € 650.000,00 a pronto pagamento.

8. Como se referiu na motivação, existem todas as vantagens na recusa da entrega do recorrente e consequente cumprimento do restante da pena de prisão em Portugal.

9. O recorrente apresenta-se com uma personalidade frágil, necessitando de tratamento médico urgente, atenta a doença pulmonar de que padece, necessitando de contacto familiar frequente, através das visitas ao EP da sua mãe, filhas e companheira. E, sobretudo, sentir a proximidade familiar que deixará de existir se for entregue para cumprir a pena na Holanda.

10. O recorrente necessita ainda de iniciar tratamento à adição o que será mais facilmente conseguido com a proximidade familiar.

11. A própria reinserção social se afigura com uma prognose bastante mais favorável se o recorrente cumprir a pena em Portugal atenta a estabilidade familiar, mormente o superior interesse das crianças, e as excelentes condições económicas de que pode fruir.

12. Atento o supra exposto, quer na motivação quer nas conclusões, entendemos, por existir fundamento bastante, que deve ser julgada procedente a causa de recusa facultativa de execução do MDE, prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 12º da Lei n.º 65/ 2003 e que se deve proceder ao reconhecimento da sentença estrangeira.

13. Entendemos, ainda, não ser despiciendo o facto de o arguido não ter estado presente no julgamento na Holanda que o condenou, por se encontrar em Ibiza pelas razões supra alegadas, e só aquando da sua detenção, através do MDE, ter tomado conhecimento da sentença condenatória.

14. Deve, por isso, ordenar-se que a execução da pena decorra em Portugal.

15. Preceitos violados: artigos 4º A e 5º da Decisão-Quadro 2002/584, 12º, n.º 1, al.), 12º A, n.º 1 al. d) e 13º da LMDE, 32º n.º 1 da CRP.”

3. Respondeu o Ministério Público, pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal do Relação, defendendo a procedência do recurso, em concordância com o recorrente, nos termos seguintes:

“1. É inegável não se verificar no caso qualquer dos motivos de não execução obrigatória do mandado de detenção europeu consagrados no artigo 11.º da Lei nº 65/2003 (…).

3. Nos termos do disposto no n.º 1, al. g), do artigo 12.º da Lei nº65/2003 é motivo de não execução facultativa do mandado de detenção europeu, podendo ser recusada a execução do mandado de detenção europeu, entre outros, quando a pessoa procurada se encontrar em território nacional ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa.

4. Ora, como bem decidido no Acórdão do TRC de 8/08/2023, no Processo n.º118/22.9YRCBR (…):

III - O MDE está, porém, sujeito a uma reserva de soberania, pois que as causas de recusa obrigatória e facultativa de execução do MDE previstas, respectivamente, nos artigos 11.º e 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, impõem ou permitem ao Estado Português a recusa da execução do mandado na decorrência da salvaguarda de interesses ligados à soberania penal do Estado da execução, à efectividade da sua jurisdição, ao respeito por princípios relevantes da natureza do seu sistema penal e a um campo (ainda) de resguardo e protecção dos seus nacionais ou de pessoas que relevem da sua jurisdição.

IV - Os critérios a utilizar para recusar a execução do MDE com base na alínea g), do n.º 1, do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, não estão directamente fixados e devem “ser encontrados na unidade do sistema nacional, perante os princípios de política criminal que comandem a aplicação das penas, e sobretudo as finalidades da execução da pena … a ligação do nacional ao seu país, a residência e as condições da sua vida inteiramente adstritas à sociedade nacional serão índices de que é esta a sociedade em que deve (e pode) ser reintegrado, aconselhando o cumprimento da pena em instituições nacionais”.

V - A ligação do requerido a Portugal, demonstrativa das vantagens no cumprimento da pena no nosso país, não equivale à existência de um direito de residência permanente, ou outro, no território do Estado de acolhimento, pois ali o que releva é a análise da situação concreta e não um critério que atenda apenas ao número de anos de residência. (…)

5. Face ao nesta parte alegado pelo requerido, entendemos que deve ser julgada procedente a causa de recusa facultativa de execução do MDE, prevista na alínea g), do n.º 1, do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003 e que se deve proceder ao reconhecimento da sentença estrangeira, uma vez cumpridas as pertinentes formalidades.

6. Do que fica dito, resulta que existe fundamento bastante para recusar o cumprimento do mandado de detenção europeu emitido e execução da pena em Portugal.

7. (…) Como se pode ler no Acórdão do STJ, de 1.8.2022, proferido nos presentes autos, “a decisão sobre o reconhecimento da sentença estrangeira é enxertada no acórdão que decide sobre o mandado de detenção europeu. Não pode haver execução da sentença sem o reconhecimento, e sem execução da sentença inexiste a possibilidade de recusa da entrega do condenado. Como se decidiu no acórdão do STJ de 22-06-2022 (…), I -A recusa facultativa de entrega da pessoa condenada ao Estado de emissão no processo de execução de um MDE emitido para cumprimento de pena de prisão aplicada no Estado de emissão, prevista na al. g) do n.º 1 do art. 12.º da Lei n.º 65/2003, requer dois requisitos cumulativos: a nacionalidade portuguesa da pessoa procurada e o compromisso do Estado Português em executar a pena em Portugal. II - Sendo o processo de execução do MDE inteiramente jurisdicionalizado, o compromisso de execução da pena de prisão em Portugal satisfaz-se mediante decisão do tribunal da relação competente para a execução do MDE que, no processo de execução do MDE, reconheça a sentença condenatória proferida no Estado de emissão, confirmando a pena aplicada, assim lhe conferindo força executiva (art. 12.º, n.º 3, da Lei n.º 65/2003, de 23-08, na redação da Lei n.º 35/2015, de 04-05, e n.º 4, na redação da Lei n.º 115/2019, de 12-09).

No caso analisado pelo Supremo no acórdão acabado de citar, o requerido tinha a nacionalidade portuguesa, mas esse primeiro requisito surge aqui na modalidade de “residente no país da execução”, diferença que não releva para a resolução do problema em análise.

Importante, sim, é a afirmação da exigência dos dois requisitos cumulativos e os critérios para a densificação de tais requisitos”. (…)

Estão, assim, verificados todos os pressupostos para o reconhecimento e execução da sentença (…) em território português.

Pelo exposto, encontrando-se preenchidos todos os pressupostos para a recusa da execução do presente MDE, nos termos do artigo 12º, nº 1, alínea g), da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, deve ser julgada procedente a oposição do requerido….”.

2. Em conclusão:

Tudo ponderado, deve proceder o recurso interposto pelo requerido do Acórdão proferido que deferiu a execução do Mandado de Detenção Europeu emitido contra si.”

4. Foram os autos a vistos e à conferência (artigo 25.º da Lei n.º 65/2003).

II. Fundamentação

Factos

5. O acórdão recorrido encontra-se fundamentado nos seguintes termos (transcrição):

5.1. De facto

“Com relevância para a decisão, mostram-se provados os seguintes factos:

1) Em 15 de Janeiro de 2024, por Juiz de Direito do Tribunal de ..., foi emitido Mandado de Detenção Europeu, que se mostra traduzido, visando a detenção e entrega de AA, para efeitos de cumprimento de pena, no Processo identificado por OVL-U-........79-23-....51-16, pela prática, como autor, de um crime de roubo organizado ou armado violência, p. e p. pelo estabelecido no artigo 310º, do Código Penal Holandês – artigo 312º, do Código Penal Neerlandês, praticado aos 21/09/2015, em ..., nos Países Baixos, tendo sido condenado na pena de quatro anos de prisão, por sentença com força executiva do Tribunal de Justiça de Amesterdão, com a referência identificativa 23-....51-16, de 27/06/2018, faltando-lhe ainda cumprir 1225 dias de prisão.

2) Os factos por que o requerido foi condenado são os seguintes:

A 21/09/2015, em ..., Países Baixos, o requerido, juntamente com outros, subtraíram a BB a quantia de 500 euros e dois telemóveis, das marcas “Blackberry” e “Samsung”.

Subtraíram a CC uma corrente real de prata, um relógio de pulso da marca “Rolex”, a quantia em dinheiro de aproximadamente 900,00 euros, um telemóvel da marca “Samsung”, umas chaves de automóvel e chaves de casa.

A subtracção foi antecedida ou acompanhada de violência e ameaças de violência cometida contra BB, CC e DD, com o objetivo de facilitar a subtracção ou preparar esta. A violência ou ameaça de violência consistiu no facto de a pessoa procurada e os outros terem efetuado o seguinte:

Apontado armas de fogo a BB, CC e DD.

Gritado "Deitem-se no chão! Para baixo! Para baixo!

Encostado uma arma de fogo contra as cabeças de BB e CC e contra o pescoço e parte lateral de DD.

Carregando uma arma de fogo enquanto BB estava amarrado.

Atingido BB no rosto com a mão e a coronha da arma de fogo;

Pontapeando a face deste.

Terem dito: "colabora!"

Enquanto BB, CC e DD se encontravam amarrados, disseram "Vou dar-vos um tiro””.

Mais se mostra comprovado:

3) O requerido foi detido em 26 de Fevereiro de 2024, na localidade de ... - Portugal.

4) O requerido tem dupla nacionalidade, dos Estados Unidos da América e da Irlanda.

5) É solteiro e vive com uma companheira, de nacionalidade ... e com a progenitora. Tem com a companheira duas filhas menores de idade, uma delas EE, nascida em ... de ... de 2023, em ....

6) O requerido reside em Portugal desde Agosto de 2023, altura em que deixou ... com a família. Antes de detido, residia em casa arrendada no ... - ... e actualmente a família reside em casa arrendada na ....

7) Não apresenta carreira ou inserção laboral de relevo, tendo iniciado no passado algumas empresas/projectos pessoais sem sucesso. Nunca exerceu actividade laboral em Portugal. A companheira também não exerce actividade laboral desde há vários anos, sendo que, de acordo com progenitora, o requerido não tem necessidade de trabalhar por ser milionário.

8) Apresenta problemática de toxicodependência desde o início da idade adulta, não ultrapassada, encontrando-se em fase activa de consumo de cocaína quando da detenção.

Não se provou:

a) Que o requerido tenha abandonado os Países Baixos por correr perigo de vida e por temer represálias contra a sua família, mormente sua mãe com quem sempre viveu e tema que a sua entrega o coloque em perigo de vida atento as ameaças de morte que recebeu.

b) Que o requerido seja milionário.»

5.2. De direito:

«O regime jurídico do Mandado de Detenção Europeu (MDE) foi aprovado pela Lei n.º 65/2003, de 23/08 (à qual pertencerão os preceitos adiante citados sem menção especial), em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI adoptada pelo Conselho em 13/06/2002.

De acordo com o nº 1, do artigo 1.º, “O mandado de detenção europeu é uma decisão judiciária emitida por um Estado-Membro com vista à detenção e entrega por outro Estado-Membro duma pessoa procurada para efeitos de procedimento penal ou de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade.”

O respectivo âmbito de aplicação vem definido no artigo 2.º, cujo n.º 1 estabelece, nomeadamente, que “ (…) pode ser emitido por factos puníveis, pela lei do estado membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas da liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses (…)” e cujo nº 2 contém a enumeração das infracções puníveis, de acordo com a legislação do Estado membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 3 anos, relativamente às quais a extradição será concedida, com origem num MDE, sem controlo da dupla incriminação do facto, entre elas se contando o crime de” roubo organizado ou à mão armada” que é o crime que consta como fundamento do MDE ora em análise.

No nº 3 do mesmo artigo, consagra-se o controlo da dupla incriminação do facto, de acordo com o qual, “no que respeita às infracções não previstas no número anterior só é admissível a entrega da pessoa reclamada se os factos que justificam a emissão do mandado de detenção europeu constituírem infracção punível pela lei portuguesa, independentemente dos seus elementos constitutivos ou da sua qualificação”.

No caso em apreço, como se viu, não é exigível a dupla incriminação, sendo certo que a factualidade por que foi condenado integra a prática de crime de roubo, de acordo com a lei portuguesa, p. e p. pelo artigo 210.º, nº 2, alínea b), com referência ao artigo 204.º, n.º 2, alínea f), do Código Penal.

No artigo 3º vêm indicados os requisitos de conteúdo e forma do MDE, entre as quais as indicações relativas à identificação da pessoa procurada e da autoridade judiciária de emissão, a descrição das circunstâncias em que as infracções foram cometidas, a natureza e qualificação jurídica destas, para além das regras atinentes à tradução do MDE.

Por seu turno, as causas de recusa de execução do MDE vêm enumeradas nos artigos 11.º e 12.º, sendo as que constam do primeiro destes preceitos de natureza obrigatória e as do segundo de natureza facultativa.

A execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena (ou medida de segurança) privativa da liberdade pode também ser recusada se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão, a menos que do mandado conste que a pessoa, em conformidade com a legislação do Estado-Membro da emissão, “tendo conhecimento do julgamento previsto, conferiu mandato a um defensor por si designado ou pelo Estado para a sua defesa e foi efetivamente representado por esse defensor no julgamento”, como se consagra no artigo 12.º-A, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 65/2003.

Nos presentes autos, o requerido foi detido, em cumprimento do MDE contra ele emitido e apresentado para ser ouvido no Tribunal competente, tendo sido observados os procedimentos estabelecidos nos artigos 17.º e 18.º. O requerido não consentiu na sua entrega e apresentou oposição escrita.

Mostrando-se juntas aos autos todas as informações que se reputam de necessárias, há que proferir decisão sobre a execução do MDE.

Vejamos então.

Nos termos do artigo 21.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, de 23/08, a oposição à entrega ao Estado membro de emissão pode ter por fundamentos o erro na identidade do detido ou a existência de causa de recusa de execução do Mandado de Detenção Europeu.

A identidade do requerido não se mostra colocada em causa e vero é que não compete a este Tribunal da Relação, no âmbito destes autos, apreciar a comprovação da factualidade por que foi condenado pela Justiça dos Países Baixos ou a respectiva subsunção jurídico-penal.

Por outro lado, e conforme se extrai do MDE e documentação enviada para os autos pela Justiça dos Países Baixos, “o julgamento do mérito do processo criminal do interessado teve lugar nas audiências de 6 de junho de 2017 e 13 de junho de 2018 no Tribunal de Justiça de Amesterdão. O interessado não esteve presente nas audiências. O advogado do interessado esteve presente nestas audiências e afirmou ter sido expressamente autorizado pelo interessado a intervir em sua defesa. De acordo com a lei neerlandesa, o tratamento do caso contra o suspeito que autorizou o seu advogado ou advogada a defender-se é considerado um processo de contestação. O advogado interveio efetivamente em defesa e foi-lhe igualmente conferido o direito de falar em último lugar. Por acórdão de 27 de Junho de 2018 do Tribunal de Justiça de Amesterdão, o interessado foi condenado por contraditório a uma pena de prisão de 4 anos. Em 29 de junho de 2018, um funcionário do Tribunal de Justiça de Amesterdão, especialmente autorizado pelo advogado do interessado, interpôs recurso de cassação contra o referido acórdão. Por acórdão de 5 de novembro de 2019 do Supremo Tribunal dos Países Baixos, o recurso de cassação do interessado foi rejeitado. O acórdão de 27 de junho de 2018 do Tribunal de Justiça de Amesterdão foi, portanto, considerado irrevogável desde 5 de novembro de 2019”.

Daí que, se verifique a excepção prevista no artigo 12.º-A, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 65/2003.

Mas, analisemos se se verifica a causa de recusa facultativa prevista no artigo 12.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 65/2003, de 23/08.

Estabelece-se neste normativo que a execução do MDE “pode ser recusada quando a pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa.”

Pois bem.

Mesmo dando como certo que o requerido reside em Portugal, proveniente de ..., desde Agosto de 2023 com a progenitora, a companheira e duas filhas em comum com esta, sendo que a segunda nasceu em território nacional aos 3 de Setembro de 2023, certo é que o requerido tem nacionalidade estado-unidense e irlandesa e a companheira a nacionalidade ..., pelo que se tem de concluir serem pessoas sem quaisquer raízes afectivas, sociais ou culturais, no território nacional.

Aliás, nem mesmo o requerido (ou a sua companheira ou a progenitora, com quem reside) desenvolveram actividade profissional alguma em Portugal desde a sua chegada, o que, a verificar-se, poderia resultar em alguma vinculação de natureza económico-financeira a este País.

Daí se entenda que, a entrega do requerido ao Estado da emissão para cumprimento da pena não se mostra para o mesmo excessivamente gravosa, quer do ponto de vista da sua reinserção social, quer do ponto de vista da estabilidade familiar, dado que as condições da sua vida não estão adstritas, de forma minimamente consolidada e consistente, à sociedade nacional - cfr. Ac. do STJ de 29/12/2023, Proc. n.º 320/23.6YRPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.

E, no que tange ao alegado temor de que a entrega o coloque em perigo de vida, atento as ameaças de morte que recebeu, não se mostram estas sequer concretizadas, quer temporalmente, quer no seu teor, apresentando-se tão só como uma alegação genérica, que demonstrada não está.

Assim, os motivos invocados pelo requerido não integram causa de recusa facultativa (muito menos imperiosa, claro) da execução do Mandado.

Tudo visto, ponderando as exigências do ordenamento jurídico do Estado membro de emissão e as da ordem pública portuguesa, bem assim que a entrega não se mostra absolutamente gravosa para o requerido, tendo em atenção as circunstâncias enunciadas, não se justifica fazer operar esta causa de recusa facultativa.

Destarte, encontram-se preenchidos todas os pressupostos e condições legais e substanciais para a decisão de aceitação de execução do MDE emitido.»

Objeto e âmbito do recurso

6. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso quanto a vícios e nulidades (artigos 410.º, n.ºs 2 e 3, e 379.º, n.ºs 1 e 2, do CPP).

A questão colocada em recurso traduz-se em saber se, como pretende o recorrente, ocorre o motivo de não execução do MDE previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, que aprova o regime jurídico do mandado de detenção europeu, em cumprimento da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho, a qual dispõe que «1 - A execução do mandado de detenção europeu pode ser recusada quando: (…) g) A pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa».

Corresponde esta disposição ao artigo 4.º, n.º 6, da Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do seguinte teor: «A autoridade judiciária de execução pode recusar a execução de um mandado de detenção europeu: (…) 6. Se o mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, quando a pessoa procurada se encontrar no Estado-Membro de execução, for sua nacional ou sua residente e este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional».

Dada a matéria de facto provada, está em causa a circunstância de o recorrente, tendo nacionalidade irlandesa, residir em Portugal.

Quadro normativo

7. O mandado de detenção europeu («MDE»), instituído pela Decisão-Quadro 202/584/JAI do Conselho, de 13.6.2002, que constitui a primeira concretização do princípio do reconhecimento mútuo em que se funda a cooperação judiciária em matéria penal na União Europeia («UE»), teve como objetivo substituir o sistema formal de extradição multilateral baseado na Convenção Europeia de Extradição de 13.12.1957, do Conselho da Europa, nas relações entre os Estados-Membros da UE, por um regime simplificado de entrega, entre autoridades judiciárias, de pessoas condenadas ou suspeitas, para efeitos de execução de sentenças que apliquem uma pena de prisão ou uma medida de segurança de duração não inferior a quatro meses ou de procedimento penal por factos puníveis, pela lei do Estado-Membro de emissão, com pena ou medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a 12 meses (preâmbulo, n.ºs 5, 6 e 7, e artigo 2.º).

A Decisão-Quadro 2008/909/JAI do Conselho, de 27.11.2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia, que substituiu as disposições correspondentes da Convenção Europeia Relativa à Transferência de Pessoas Condenadas, de 21.3.1983, do respetivo Protocolo Adicional, de 18.12.1997 e da Convenção Europeia sobre o Valor Internacional das Sentenças Penais, de 28.5.1970, do Conselho da Europa, é aplicável à execução de condenações no Estado de que a pessoa condenada é nacional ou em que é residente, em caso de não execução de um MDE e de consequente recusa de entrega da pessoa condenada para cumprimento de pena de prisão, para facilitar a sua reinserção social (artigos 3.º, 4.º e 25.º).

8. De acordo com o artigo 34.º, n.º 2, al. c), do Tratado da União Europeia («TUE»), na redação do Tratado de Amesterdão (1997), a decisão-quadro constitui uma «medida» própria do antigo terceiro pilar da União (Título VI do TUE contendo «Disposições relativas à cooperação policial e judiciária em matéria penal»), da competência do Conselho, que visa a «aproximação das disposições legislativas dos Estados-membros» e vincula os Estados-membros quando aos resultados a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios.

Cabendo aos tribunais nacionais aplicar o direito da União, que constitui um sistema de direito autónomo, compete ao Tribunal de Justiça da União Europeia («TJUE»), em «diálogo» com os juízes nacionais, decidir, em recurso (reenvio) prejudicial sobre a interpretação dos Tratados e dos atos adotados pelas instituições da União (artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia – «TFUE»), sempre que se coloque ao juiz nacional uma questão desta natureza que não possa ser adequadamente resolvida por recurso a jurisprudência anterior ou por via do princípio da interpretação conforme do direito nacional (sobre o sentido e alcance do artigo 267.º do TFUE, por todos, o acórdão de 6.10.2021, processo n.º C-561/19, Consorzio Italian Management e o., ECLI:EU:C:2021:799, n.ºs 26-66).

Constitui princípio do direito da União, de elaboração jurisprudencial, que, ao aplicar o direito em matérias por ele reguladas, os órgãos jurisdicionais nacionais são obrigados a interpretá-lo, na medida do possível, à luz do texto e da finalidade do direito da União, para atingir o resultado prosseguido. Esta obrigação de interpretação conforme do direito nacional é inerente ao sistema dos Tratados, na medida em que permite aos órgãos jurisdicionais nacionais assegurar, no âmbito das suas competências, a coerência e a plena eficácia do direito da União quando decidem dos litígios que lhe são submetidos (assim, entre muitos outros, o acórdão Ognyanov, de 8.11.2016, no processo C-554/14, ECLI:EU:C:2016:835, n.ºs 58 e 59, e jurisprudência citada, bem como o recente acórdão de 9.4.2024, no processo C-582/21, ECLI:EU:C:2024:282).

Resulta da jurisprudência constante do TJUE que o caráter vinculativo de uma decisão-quadro acarreta para as autoridades nacionais, incluindo os órgãos jurisdicionais nacionais, uma obrigação de interpretação conforme do direito nacional. Nos processos C-42/11, Lopes da Silva Jorge (ECLI:EU:C:2012:517), C-579/15, Popławski I (ECLI:EU:C:2017:503) e C-573/17 Popławski II (ECLI:EU:C:2019:530), o Tribunal de Justiça declarou que os tribunais nacionais são obrigados a interpretar o respetivo direito nacional à luz do texto e da finalidade da decisão-quadro, a fim de garantir a sua plena eficácia e alcançar o resultado por ela prosseguido.

9. A ordem jurídica da União funda-se num conjunto de valores comuns – entre os quais os valores da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos humanos, valores que são comuns aos Estados-Membros (artigo 2.º do TUE) – e visa a realização dos objetivos definidos pelos Tratados nas áreas das suas competências definidas pelo princípio da atribuição (artigo 5.º do TUE), com base no princípio da cooperação leal entre os Estados-Membros e entre estes e a União (artigo 4.º do TUE).

A União proporciona aos seus cidadãos um espaço de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controlos na fronteira externa, de asilo e imigração, bem como de prevenção da criminalidade e combate a este fenómeno [artigo 3.º do TUE e artigos 1.º, 2.º e 4.º, n.º 2, al. j), do TFUE)].

A União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia («Carta»), de 7.12.2000, com as adaptações que lhe foram introduzidas em 12.12.2007 (JOUE C 202/389 de 7.6.2016), que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados. Os direitos, as liberdades e os princípios consagrados na Carta devem ser interpretados de acordo com as disposições gerais constantes do Título VII da Carta que regem a sua interpretação e aplicação e tendo na devida conta as anotações a que a Carta faz referência [em JOUE C 303 de 14.12.2007], que indicam as fontes dessas disposições. Do direito da União fazem parte, enquanto princípios gerais, os direitos fundamentais tal como os garante a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais e tal como resultam das tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros (artigo 6.º do TUE).

A ordem jurídica da União, que cabe aos tribunais nacionais garantir e fazer respeitar, é, nestes termos, uma ordem axiologicamente fundada e teleologicamente orientada, devendo os tribunais nacionais, nessa base e com esse objetivo, fazer tudo o que for da sua competência para assegurar a sua efetividade, aplicando todos os métodos de interpretação por este reconhecidos (assim, por todos, o acórdão de 29.6.2017, Poplawski II, C-579/15, 34).

10. A União constitui um espaço de liberdade, segurança e justiça, no respeito dos direitos fundamentais e dos diferentes sistemas jurídicos dos Estados-Membros, assegura a ausência de controlos de pessoas nas fronteiras internas, desenvolve uma política comum em matéria de asilo, de imigração e de controlo das fronteiras externas e envida esforços para garantir um elevado nível de segurança, através de medidas de prevenção e combate da criminalidade e de coordenação e de cooperação entre autoridades policiais e judiciárias e outras autoridades competentes, bem como através do reconhecimento mútuo das decisões judiciais em matéria penal e, se necessário, através da aproximação das legislações penais (artigo 67.º do TFUE).

Os artigos 77.º, 78.º e 79.º do TFUE definem os princípios, regras e instrumentos da política comum em matéria de asilo, de imigração e de controlo das fronteiras externas da União, incluindo os direitos de circulação e permanência dos nacionais de Estados terceiros (Estados não-membros da União) que residam legalmente nos Estados-Membros.

A cooperação judiciária em matéria penal na União assenta no princípio do reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e inclui medidas destinadas a definir regras e procedimentos para assegurar o reconhecimento em toda a União de todas as formas de sentenças e decisões judiciais e a facilitar a cooperação entre as autoridades judiciárias ou outras equivalentes dos Estados-Membros, no âmbito da investigação e do exercício da ação penal, bem como da execução de decisões (artigo 82.º do TFUE).

11. O artigo 45.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia garante os direitos de circulação e permanência (residência) no espaço da UE.

Estabelecendo distinção em função do estatuto de cidadão da União (nacional de um Estado-membro) e do estatuto de cidadão nacional de país terceiro (nacional de Estado não-membro da União), dispõe este preceito:

«1. Qualquer cidadão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados-Membros.

2. Pode ser concedida liberdade de circulação e de permanência, de acordo com os Tratados, aos nacionais de países terceiros que residam legalmente no território de um Estado-Membro.»

Dispõe o artigo 9.º do TUE:

«É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-Membro. A cidadania da União acresce à cidadania nacional e não a substitui.»

E o artigo 20.º do TFUE (ex-artigo 17.º TCE):

«1. É instituída a cidadania da União. É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-Membro. A cidadania da União acresce à cidadania nacional e não a substitui.

2. Os cidadãos da União gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres previstos nos Tratados. Assistem-lhes, nomeadamente:

a) O direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados-Membros; (…)».

Nos termos do n.º 1 do artigo 21.º do TUE (ex-artigo 18.º TCE) «Qualquer cidadão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados-Membros, sem prejuízo das limitações e condições previstas nos Tratados e nas disposições adoptadas em sua aplicação.»

Lê-se na anotação ao artigo 45.º (Anotações à Carta referidas no artigo 6.º do TUE): «O direito garantido pelo n.º 1 é o direito garantido pela alínea a) do n.º 2 do artigo 20.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (cf. também a base jurídica constante do artigo 21.º, bem como o acórdão do Tribunal de Justiça de 17 de Setembro de 2002, processo C-413/99, Baumbast, Colect. 2002, p. 709). Nos termos do n.º 2 do artigo 52.º da Carta, é aplicável nas condições e limites previstos nos Tratados. O n.º 2 recorda a competência atribuída à União pelos artigos 77.º, 78.º e 79.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, pelo que a concessão do referido direito depende do exercício desta competência pelas instituições.»

No artigo 45.º, a Carta incorpora o direito de circulação e residência com bem conhecido «lastro histórico», consagrado na generalidade dos instrumentos de direito internacional: na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 13.º), no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (artigo 12.º), na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (Protocolo n.º 4, artigo 2.º). Na UE este direito surge e desenvolve-se, no direito originário e no direito derivado, por via legislativa e jurisprudencial, em associação à liberdade de circulação em função de uma atividade económica, nomeadamente dos trabalhadores assalariados e dos trabalhadores independentes e das suas famílias, alargado, posteriormente, a outras situações e atividades, até se constituir num direito da cidadania europeia, instituída pelo Tratado de Maastricht (artigo 8.º) (cfr. J. Cunha Rodrigues, comentário ao artigo 45.º, Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia comentada, A. Silveira/M. Canotilho (coord.), Almedina, Coimbra, 2013).

Os direitos de cidadania «reforçam o sentimento de inserção do cidadão da União na comunidade em que pela residência se insere» (como nota Moura Ramos, em anotação aos artigos 18.º a 23.º do TFUE, Tratado de Lisboa anotado e comentado, M. Lopes Porto/G. Anastácio (coord.), Almedina, Coimbra, 2012).

12. No acórdão Baumbast (cit. supra, ECLI:EU:C:2002:493) que reconheceu efeito direto ao artigo 18.º do TCE (atual artigo 21 do TUE), disse o TJUE: «o direito de os nacionais de um Estado-Membro entrarem no território de outro Estado-Membro e aí residirem constitui um direito diretamente atribuído pelo Tratado CE ou, consoante os casos, pelas disposições adotadas em sua execução»; «embora, antes da entrada em vigor do Tratado da União Europeia [Maastricht], o Tribunal de Justiça tenha declarado que este direito de residência, diretamente conferido pelo Tratado CE, está sujeito à condição do exercício de uma atividade económica nos termos dos artigos 48.°, 52.° ou 59.° do Tratado CE, é um facto que, desde então, o estatuto de cidadão da União foi introduzido no Tratado CE, tendo o artigo 18.°, n.º 1, CE passado a reconhecer a todos os cidadãos um direito de circular e de residir livremente no território dos Estados-Membros»; «o Tratado da União Europeia não exige que os cidadãos da União exerçam uma atividade profissional, assalariada ou independente, para gozarem dos direitos previstos na parte II do Tratado CE, relativa à cidadania da União».

E no acórdão McCarthy, já na vigência do Tratado de Lisboa: «A cidadania da União confere a cada cidadão da União um direito fundamental e individual de circular e de residir livremente no território dos Estados-Membros, sujeito às limitações e restrições estabelecidas nos Tratados e às medidas adotadas em sua execução, constituindo a livre circulação das pessoas uma das liberdades fundamentais do mercado interno, que, de resto, foi reafirmada no artigo 45.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia» (acórdão de 5.5.2011, processo C-434/09, ECLI:EU:C:2011:277).

O direito de circulação e residência consagrado no n.º 1 do artigo 45.º da Carta não é, porém, um direito absoluto. Embora o n.º 1 não reenvie para o artigo 21.º do TUE quanto a condições e limites, estes são de considerar por via do n.º 2 do artigo 52.º, segundo o qual os direitos reconhecidos pela Carta que se regem por disposições constantes dos Tratados são exercidos de acordo com as condições e limites neles definidos, como resulta da anotação à Carta (supra, 11).

É assim que, na definição do conceito de «residente», em aplicação da al. g) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003 (n.º 6 do artigo 4.º da Decisão-Quadro 2002/584/JAI), em conjugação com o regime de reconhecimento da sentença condenatória (artigos 26.º da Lei n.º 158/2015 e 25.º da Decisão-Quadro 2008/909/JAI), e na apreciação das condições de recusa de execução do MDE justificadas pelo objetivo de reinserção social da pessoa condenada, se impõe que sejam levadas em devida conta as normas de direito derivado da União relativas à liberdade de circulação e residência e às respetivas condições e limites (como adiante se verá).

13. Neste quadro, importa convocar o essencial do regime de execução do MDE decorrente da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, que transpõe a Decisão-Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13.6.2002, para a ordem jurídica interna, bem como do regime de reconhecimento de sentenças condenatórias em penas de prisão no espaço da União Europeia constante da Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro, que transpõe a Decisão-Quadro 2008/909/JAI do Conselho, de 27 de novembro de 2008, para que remete o artigo 12.º, n.º 4, daquela lei do MDE.

Nos termos do artigo 9.º do Protocolo (n.º 36) anexado ao Tratado de Lisboa, relativo às disposições transitórias, as decisões-quadro, adotadas com fundamento no anterior 3.º pilar da União (artigo 34.º do TUE, na redação do Tratado de Amesterdão), com vista à realização do objetivo de criação de um espaço de liberdade, segurança e justiça, mantêm-se preservadas enquanto não forem alteradas ou substituídas, continuando a produzir todos os seus feitos jurídicos.

14. Como resulta do artigo 1.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, o MDE é uma decisão judiciária emitida pela autoridade judiciária competente de um Estado-Membro – autoridade judiciária de emissão –, com vista à detenção e entrega, pela autoridade judiciária competente de outro Estado-Membro – autoridade judiciária de execução –, de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou de uma medida de segurança privativas da liberdade.

O MDE é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo (artigo 1.º, n.º 2), de elaboração jurisprudencial [alínea b) do artigo 267.º do TFUE], em que assenta a cooperação judiciária em matéria penal na União Europeia (artigo 82.º, n.º 1, do TFUE, e que o Conselho Europeu de Tampere, em outubro de 1999, havia identificado como a «pedra angular» da cooperação judiciária).

De acordo com este princípio, uma decisão definitiva proferida por uma autoridade judiciária competente de um Estado-Membro (Estado de emissão), em conformidade com o direito interno desse Estado, tem um efeito pleno e direto no território dos demais Estados-Membros, concretamente no Estado em que deva ser executada (Estado de execução), como se de uma decisão de uma autoridade judiciária deste Estado se tratasse, desde que não se verifique motivo obrigatório ou facultativo de não execução.

Como tem sido sublinhado em jurisprudência constante do TJUE, o princípio do reconhecimento mútuo assenta em noções de equivalência e de elevado grau de confiança mútua nos sistemas jurídicos dos Estados-Membros da UE, alicerçada no respeito pelos direitos fundamentais consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e na Convenção Europeia dos Direitos Humanos. O direito da União assenta na premissa fundamental segundo a qual cada Estado‑Membro partilha com todos os outros Estados‑Membros, e reconhece que estes partilham com ele, uma série de valores comuns nos quais a União se funda, como precisado no artigo 2.º TUE. Esta premissa implica e justifica a existência da confiança mútua entre os Estados‑Membros no reconhecimento desses valores e, portanto, no respeito do direito da União que os aplica (Acórdãos de 25 de julho de 2018, Minister for Justice and Equality (Falhas do sistema judiciário), C‑216/18 PPU, EU:C:2018:586, n.º 35; e de 15 de outubro de 2019, Dorobantu, C‑128/18, EU:C:2019:857, n.º 45)”.

Nesta base, a autoridade judiciária do Estado de execução encontra-se obrigada a executar o MDE emitido de acordo com o formulário anexo à decisão-quadro 2002/584/JAI (alterado pela Decisão-Quadro 2009/299/JAI), que preencha os requisitos legais, estando limitado e reservado à autoridade judiciária de execução um papel de controlo da execução e de emissão da decisão de entrega, a qual só pode ser negada em caso de procedência de motivo de não execução ou de falta de prestação de garantias que possam ser exigidas (acórdãos do TJUE proferidos nos processos C-388/08, de 1.12.2008, C-123/08, de 6-10-2009, C-261/09, de 16.11.2010, C-42/11, de 5.9.2012, e C-396/11, de 29.1.2013 e, entre muitos outros, mais recentemente, o acórdão de 11.3.2020, no processo C‑314/18 e o acórdão de 26.10.2021, nos processos apensos C‑428/21 PPU e C‑429/21 PPU; sobre estes pontos, cfr. «Reconhecimento mútuo de decisões judiciais em matéria penal no espaço da União Europeia», in Comentário da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Vol. II, Pinto de Albuquerque (org.), Católica Editora, 2019, pp. 1142ss).

Os motivos de não execução do MDE (obrigatória e facultativa) são apenas os que constam dos artigos 3.º, 4.º e 4.º-A da Decisão-Quadro (a que correspondem os artigos 11.º, 12.º e 12.º-A da Lei n.º 65/2003), entre os quais se inclui a nacionalidade e residência da pessoa procurada, na condição de o Estado de execução se comprometer a executar a pena em que se funda a emissão do MDE (n.º 6 do artigo 4.º da Decisão-Quadro).

15. Dispõe o artigo 12.º, n.º 1, al. g), transpondo o n.º 6 do artigo 4.º da Decisão-Quadro, que a execução do MDE pode ser recusada quando “[a] pessoa procurada se encontrar em território nacional, tiver nacionalidade portuguesa ou residir em Portugal, desde que o mandado de detenção tenha sido emitido para cumprimento de uma pena ou medida de segurança e o Estado Português se comprometa a executar aquela pena ou medida de segurança, de acordo com a lei portuguesa”.

Sendo o regime de execução do MDE inteiramente jurisdicionalizado – não comportando, por isso, intervenção de outros órgãos do poder político em fase administrativa do processo –, o compromisso do Estado Português em executar a pena ou medida de segurança em Portugal deve expressar-se e resultar de uma decisão judicial.

Assim, o n.º 3 do mesmo preceito, aditado pela Lei n.º 35/2015, de 4 de maio, veio estabelecer que a recusa de execução nos termos desta alínea g) depende de decisão do tribunal da relação – que é o competente para a execução (artigo 15.º) –, no processo de execução do MDE, a requerimento do Ministério Público, que declare a sentença exequível em Portugal, confirmando a pena aplicada. Acrescentando o n.º 4, aditado pela mesma Lei n.º 35/2015, que “[a] decisão a que se refere o número anterior é incluída na decisão de recusa de execução, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo à revisão e confirmação de sentenças condenatórias estrangeiras”.

Por virtude da Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro – que substituiu a revisão e confirmação de sentença estrangeira por um regime de reconhecimento de sentenças penais nas relações ente os Estados-membros da UE, transpondo a Decisão-Quadro 2008/909/JAI, de 27.11.2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União Europeia –, este n.º 4 do artigo 12.º, foi alterado pela Lei n.º 115/2019, de 12 de setembro, enxertando o procedimento de reconhecimento da sentença condenatória no procedimento de execução do MDE. Passou então o n.º 4 a dispor que “[a] decisão a que se refere o número anterior é incluída na decisão de recusa de execução, sendo-lhe aplicável, com as devidas adaptações, o regime relativo ao reconhecimento de sentenças penais que imponham penas de prisão ou medidas privativas da liberdade no âmbito da União Europeia, devendo a autoridade judiciária de execução, para este efeito, solicitar a transmissão da sentença”.

16. O artigo 26.º, al. a), da Lei n.º 158/2015, sob a epígrafe “execução de condenações na sequência de um mandado de detenção europeu”, que transpõe o artigo 25.º da Decisão-Quadro 2008/909/JAI, dispõe que esta lei se aplica à execução de condenações na sequência de um mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena de prisão ou medida de segurança privativa de liberdade, quando a pessoa procurada se encontrar no Estado de execução, for sua nacional ou sua residente e este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional, ou seja, à situação prevista na al. g) do n.º 1 da Lei n.º 65/2003, que transpõe o n.º 6 do artigo 4.º da Decisão-Quadro 2002/584/JAI.

O artigo 25.º da Decisão-Quadro 2008/909/JAI estabelece a articulação entre a Decisão‑Quadro 2002/584 (regime do MDE) e a Decisão‑Quadro 2008/909 (regime de reconhecimento das sentenças condenatórias em penas de prisão), ao dispor que “sem prejuízo da Decisão-Quadro 2002/584/JAI, o disposto na presente decisão-quadro deve aplicar-se, mutatis mutandis, na medida em que seja compatível com as disposições dessa mesma decisão-quadro, à execução de condenações, se um Estado-Membro tiver decidido executar a condenação nos casos abrangidos pelo n.º 6 do artigo 4.º daquela decisão-quadro (…) de forma a evitar a impunidade da pessoa em causa”.

O que significa que a Decisão-Quadro 2008/909/JAI (isto é, a lei que a transpõe – Lei n.º 158/2015) tem de ser aplicada quando da transferência da pena para o Estado-Membro onde é executada [assim, «Nota da Comissão – Manual sobre a emissão e a execução de um mandado de detenção europeu» (C/2023/1270), JOUE C de 15.12.2023], como resulta dos n.ºs 3 e 4 do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003.

17. A Decisão-Quadro 2008/909/JAI do Conselho tem por objetivo estabelecer as regras segundo as quais um Estado-Membro reconhece uma sentença que aplica uma pena de prisão e executa a pena de prisão imposta no Estado da condenação (no caso, o Estado de emissão do MDE destinado ao cumprimento da pena de prisão), com a finalidade de contribuir para alcançar o objetivo de facilitar a reinserção social da pessoa condenada (assim, o acórdão do TJUE de 11.3.2020, processo C‑314/18, ECLI:EU:C:2020:191).

Para se certificar de que a execução da condenação pelo Estado de execução aumentará a possibilidade e contribuirá para facilitar a reinserção social da pessoa condenada, «a autoridade competente do Estado de emissão deverá atender a elementos como, por exemplo, a ligação da pessoa ao Estado de execução e o facto de o considerar ou não como o local onde mantém laços familiares, linguísticos, culturais, sociais, económicos ou outros» (preâmbulo, n.º 9).

O disposto nesta decisão-quadro, que «respeita os direitos fundamentais e observa os princípios reconhecidos pelo artigo 6.º do Tratado da União Europeia e refletidos na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia», «deverá ser aplicado em harmonia com o direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União no território dos Estados-Membros, conferido pelo artigo 18.º do Tratado que institui a Comunidade Europeia» (atual artigo 21.º do TUE) e «nos termos da legislação comunitária aplicável, designadamente da Diretiva 2003/86/CE do Conselho [de 22 de Setembro de 2003, relativa ao direito ao reagrupamento familiar], da Diretiva 2003/109/CE do Conselho [de 25 de Novembro de 2003, relativa ao estatuto dos nacionais de países terceiros residentes de longa duração] e da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho [de 29 de Abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados-Membros]» (preâmbulo, n.ºs 13, 15 e 16).

18. No acórdão proferido no processo C-514/17, Sut, de 13.12.2018 (ECLI:EU:C:2018:1016), tendo por objeto a interpretação do artigo 4.º, n.º 6, da Decisão-Quadro 2002/584/JAI (transposto pela al. g) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003), o TJUE salientou o procedimento e as condições necessárias para aplicar esta disposição, declarando:

«32. (…) resulta da redação dessa disposição que a aplicação desse motivo de não execução facultativa está sujeito a dois requisitos, a saber, por um lado, que a pessoa procurada se encontre no Estado-Membro de execução, for sua nacional ou sua residente e, por outro, que este Estado se comprometa a executar essa pena ou medida de segurança nos termos do seu direito nacional.

33. (…) como o Tribunal de Justiça já salientou, resulta igualmente da própria redação do artigo 4.º, ponto 6, da Decisão-Quadro 2002/584, nomeadamente do termo «pode», que, quando um Estado-Membro tenha optado por transpor esta disposição para o direito nacional, a autoridade judiciária de execução deve, ainda assim, dispor de uma margem de apreciação quanto à questão de saber se há ou não que recusar a execução do mandado de detenção europeu. A este respeito, esta autoridade deve poder ter em conta o objetivo prosseguido pelo motivo de não execução facultativa enunciado nesta disposição, que consiste, segundo jurisprudência assente do Tribunal de Justiça, em permitir à autoridade judiciária de execução dar especial importância à possibilidade de aumentar as oportunidades de reinserção social da pessoa procurada após a execução da pena a que foi condenada (v. Acórdão de 29 de junho de 2017, Popławski I, C-579/15, EU:C:2017:503, n.º 21, e jurisprudência referida).

36. Quando a autoridade judiciária de execução concluir que os dois requisitos acima recordados estão preenchidos, deve verificar se existe um interesse legítimo que justifique que a pena aplicada no Estado--Membro de emissão seja executada no território do Estado-Membro de execução (v. Acórdão de 17 de julho de 2008, Kozłowski, C-66/08, ECLI:EU:C:2008:437, n.º 44). Essa apreciação permite à referida autoridade ter em conta o objetivo prosseguido pelo artigo 4.º, ponto 6, da Decisão-Quadro 2002/584, conforme exposto no n.º 33 do presente acórdão.»

19. Pronunciando-se também sobre a interpretação do n.º 6 do artigo 4.º da Decisão-Quadro 2002/584/JAI, a propósito da distinção entre a pessoa ser «residente» e «se encontrar» no território do Estado de execução, o TJUE precisou no acórdão proferido no processo C-66/08, Kozłowski, que, para saber se, numa situação concreta, a autoridade judiciária de execução pode recusar cumprir um mandado de detenção europeu, esta última deve, em primeiro lugar, determinar unicamente se a pessoa procurada é nacional, «residente» ou se «encontr[a]», na aceção do artigo 4.º, n.º 6, entrando assim no seu âmbito de aplicação e, num segundo momento, e unicamente quando a autoridade judiciária de execução concluir que essa pessoa está abrangida por uma dessas expressões, deve verificar se existe um interesse legítimo que justifique que a pena aplicada no Estado-Membro de emissão seja executada no território do Estado-Membro de execução.

20. Quanto ao primeiro requisito, considerou o Tribunal que as expressões «residente» e «se encontrar», que constituem conceitos autónomos do direito da União, têm, respetivamente, em vista as situações em que a pessoa sobre a qual recai um MDE fixou a sua residência real no Estado-Membro de execução ou criou, na sequência de uma permanência estável de uma certa duração nesse Estado, determinados laços com este último de grau semelhante aos resultantes de uma residência e, assim, declarou que (1) o artigo 4.º, n.º 6, da decisão-quadro deve ser interpretado no sentido de que «uma pessoa procurada é «residente» no Estado-Membro de execução quando tiver fixado a sua residência real neste último e «[encontra-se]» aí quando, na sequência de uma permanência estável de uma certa duração nesse Estado-Membro, criou laços com esse Estado num grau semelhante aos que resultam da residência e que (2) para determinar se entre a pessoa procurada e o Estado-Membro de execução existem laços que permitam considerar que essa pessoa está abrangida pela expressão «se encontrar», na aceção do referido artigo 4.º, n.º 6, cabe à autoridade judiciária de execução fazer uma apreciação global de vários dos elementos objetivos que caracterizam a situação dessa pessoa, entre os quais, nomeadamente, a duração, a natureza e as condições da sua permanência, bem como os seus laços familiares e económicos com o Estado-Membro de execução.»

No acórdão de 6.10.2009 [processo 123/08, Wolzenburg (ECLI:EU:C:2008:437)] esclareceu o Tribunal que os Estados--Membros podem limitar as situações em que é possível, enquanto Estado-Membro de execução, recusar entregar uma pessoa abrangida pelo âmbito de aplicação do artigo 4.º, n.º 6, subordinando a aplicação desta disposição, quando a pessoa procurada é nacional de outro Estado-Membro, à condição de essa pessoa ter permanecido legalmente e de forma ininterrupta durante um período de cinco anos no território do referido Estado-Membro de execução; contudo, um Estado-Membro não pode sujeitar a aplicação do motivo de não execução facultativa de um MDE do artigo 4.º, n.º 6, da Decisão-Quadro relativa ao MDE a requisitos administrativos adicionais, como a posse de uma autorização de residência com duração indeterminada.

No acórdão proferido no processo C-42/11, Lopes da Silva Jorge (ECLI:EU:C:2012:517.), o Tribunal de Justiça clarificou que o artigo 4.º, n.º 6, da Decisão-Quadro relativa ao MDE e o artigo 18.º do TFUE (proibição da discriminação em razão da nacionalidade) devem ser interpretados no sentido de que um Estado-Membro pode, ao transpor o artigo 4.º, n.º 6, da Decisão-Quadro relativa ao MDE, decidir limitar as situações em que a autoridade judiciária de execução pode recusar a entrega de uma pessoa abrangida pelo âmbito de aplicação dessa disposição, mas não pode excluir de forma automática e absoluta do seu âmbito de aplicação os nacionais de outros Estados-Membros que se encontram ou residem no seu território, independentemente dos seus laços com esse Estado-Membro; os órgãos jurisdicionais nacionais são obrigados a interpretar o direito tendo em conta a redação e a finalidade da Decisão-Quadro relativa ao MDE para assegurar a sua plena eficácia.

21. Quanto ao segundo requisito («interesse legítimo»), o Tribunal de Justiça sublinhou, no acórdão Kozłowski (processo C-66/08, cit.), que, no exercício da margem de apreciação de que dispõe, a autoridade judiciária de execução deve verificar se existe um interesse legítimo que justifique que a pena aplicada no Estado-Membro de emissão seja executada no território do Estado--Membro de execução e que, nesta apreciação, deve dar especial importância à possibilidade de aumentar as oportunidades de reinserção social da pessoa procurada após o cumprimento da pena em que foi condenada. Objetivo este que, sendo comum, constitui, igualmente, finalidade das penas no direito interno (artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal; realçando este ponto, o acórdão deste Tribunal de 21.11.2013, no processo n.º 753/13.6YRLSB.S1, em www.dgsi.pt).

22. Como se viu (supra, 11), a aplicação da Decisão-Quadro 2008/909/JAI, isto é, o reconhecimento de uma sentença condenatória no Estado de residência de um nacional de outro Estado da União – constituindo pressuposto da não entrega de uma pessoa com base num MDE emitido pelo Estado da condenação, justificada pela prossecução de objetivos de reinserção social da pessoa condenada – deve ser feita de acordo com normas de direito derivado sobre a liberdade de circulação, nomeadamente da Diretiva 2003/86/CE do Conselho, de 22.9.2003, relativa ao direito ao reagrupamento familiar, e da Diretiva 2003/109/CE do Conselho, de 25.11.2003, relativa ao estatuto dos nacionais de países terceiros residentes de longa duração – transpostas pela Lei n.º 34/2007, de 4 de julho – e da Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29.4.2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados-Membros – transposta pela Lei n.º 37/2006, de 9 de agosto.

23. A Diretiva 2004/38/CE (texto retificado em JOUE L 229/35 de 29.6.2004) estabelece as condições que regem o exercício do direito de livre circulação e residência (temporária e permanente) dos cidadãos da UE e dos membros das suas famílias e as restrições a esses direitos, por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública. Nela se convocam princípios e regras fundamentais do direito primário: que a cidadania da União confere a cada cidadão da União um direito fundamental e individual de circular e residir livremente no território dos Estados-Membros, conferido diretamente aos cidadãos da União pelo Tratado, não depende do cumprimento de formalidades administrativas, mas encontra-se sujeito às limitações e condições estabelecidas no Tratado e às medidas adotadas em sua execução; que a cidadania da União deverá ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados-Membros quando estes exercerem o seu direito de livre circulação e residência; que o direito de todos os cidadãos da União circularem e residirem livremente no território dos Estados-Membros implica que este seja igualmente concedido aos membros das suas famílias, independentemente da sua nacionalidade; que a fim de manter a unidade da família numa aceção mais lata e sem prejuízo da proibição da discriminação por motivos de nacionalidade, a situação das pessoas que não são abrangidas pela definição de «membros da família» e que não gozam, por conseguinte, do direito automático de entrada e residência no Estado-Membro de acolhimento, deverá ser analisada pelo Estado-Membro de acolhimento à luz da sua legislação nacional, a fim de decidir se a entrada e residência dessas pessoas podem ser autorizadas, tendo em conta a sua relação com o cidadão da União ou com quaisquer outras circunstâncias, como a sua dependência física ou financeira em relação ao cidadão da União; que o direito de residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias por períodos superiores a três meses deverá estar sujeito a condições (do preâmbulo).

O direito de residência encontra-se regulado nos artigos 6.º e seguintes, destacando-se os seguintes pontos: os cidadãos da União têm: o direito de residir no território de outro Estado-Membro por período até três meses sem outras condições e formalidades além de ser titular de um bilhete de identidade ou passaporte válido, direito que é reconhecido aos membros da família que não tenham a nacionalidade de um Estado-Membro e que, munidos de um passaporte válido, acompanhem ou se reúnam ao cidadão da União (artigo 6.º); o direito de residir e a conservar o direito de residência noutro Estado-Membro durante mais de três meses, sob reserva de certas condições e mediante certas formalidades (artigo 8.º e 14.º), consoante o seu estatuto no país de acolhimento, nomeadamente, não sendo trabalhadores assalariados ou não assalariados, desde que disponham de recursos suficientes para si próprios e para os membros da sua família, a fim de não se tornarem uma sobrecarga para o regime de segurança social do Estado-Membro de acolhimento durante o período de residência, e de uma cobertura extensa de seguro de doença no Estado-Membro de acolhimento (artigo 7.º).

O direito de residência de cidadãos da União nos termos do artigo 7.º é extensivo aos membros da família que não tenham a nacionalidade de um Estado-Membro, quando acompanhem ou se reúnam ao cidadão da União no Estado-Membro de acolhimento, desde que este preencha idênticas condições (artigo 7.º, n.º 3), mediante formalidades próprias, com detenção de cartão de residência válido (artigos 9.º a 11.º e 14.º).

A continuidade da residência pode ser atestada por qualquer meio de prova utilizado no Estado-Membro de acolhimento e é interrompida por qualquer decisão válida de afastamento da pessoa em questão que seja executada (artigo 21.º).

Nos termos dos artigos 27.º e seguintes, os Estados-Membros podem restringir a livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias, independentemente da nacionalidade, por razões de ordem pública, de segurança pública ou de saúde pública.

24. A Diretiva 2003/86/CE, relativa ao direito ao reagrupamento familiar, reconhece que as medidas relativas ao agrupamento familiar devem ser adotadas em conformidade com a obrigação de proteção da família e do respeito da vida familiar e que o reagrupamento familiar é um meio necessário para permitir a vida em família, contribuindo para a criação de uma estabilidade sociocultural favorável à integração dos nacionais de países terceiros nos Estados-Membros, estabelecendo as condições em que o direito ao reagrupamento familiar pode ser exercido por nacionais de países terceiros que residam legalmente no território dos Estados-Membros.

25. A Diretiva 2003/109/CE, relativa ao estatuto dos nacionais de países terceiros residentes de longa duração, estabelece as condições de concessão de estatuto de residente de longa duração conferido por um Estado-Membro a nacionais de países terceiros legalmente residentes no seu território, bem como os direitos correspondentes e as condições de residência de nacionais de países terceiros que beneficiem do estatuto de residente de longa duração noutros Estados-Membros que não aquele que lhes concedeu o referido estatuto. Reconhece, para além do mais, que a integração dos nacionais de países terceiros que sejam residentes de longa duração nos Estados-Membros constitui um elemento-chave para promover a coesão económica e social, que a fim de adquirir o estatuto de residente de longa duração, o nacional de um país terceiro deverá provar que dispõe de recursos suficientes e de um seguro de doença para evitar tornar-se um encargo para o Estado-Membro, que os nacionais de países terceiros que pretendam adquirir e manter o estatuto de residente de longa duração não deverão constituir uma ameaça para a ordem pública ou a segurança pública, que a fim de constituir um verdadeiro instrumento de integração na sociedade em que se estabeleceu o residente de longa duração, este deverá ser tratado em pé de igualdade com os cidadãos do Estado-Membro num amplo leque de domínios económicos e sociais, de acordo com as condições relevantes definidas na diretiva.

Apreciação

26. Recordando a verificação do motivo de não execução facultativa previsto no artigo 12.º, n.º 1, alínea g), da Lei n.º 65/2003, diz o acórdão recorrido:

«Mesmo dando como certo que o requerido reside em Portugal, proveniente de ..., desde Agosto de 2023 com a progenitora, a companheira e duas filhas em comum com esta, sendo que a segunda nasceu em território nacional aos ... de ... de 2023, certo é que o requerido tem nacionalidade estado-unidense e irlandesa e a companheira a nacionalidade ..., pelo que se tem de concluir serem pessoas sem quaisquer raízes afectivas, sociais ou culturais, no território nacional.

Aliás, nem mesmo o requerido (ou a sua companheira ou a progenitora, com quem reside) desenvolveram actividade profissional alguma em Portugal desde a sua chegada, o que, a verificar-se, poderia resultar em alguma vinculação de natureza económico-financeira a este País.

Daí se entenda que, a entrega do requerido ao Estado da emissão para cumprimento da pena não se mostra para o mesmo excessivamente gravosa, quer do ponto de vista da sua reinserção social, quer do ponto de vista da estabilidade familiar, dado que as condições da sua vida não estão adstritas, de forma minimamente consolidada e consistente, à sociedade nacional»

27. Da matéria de facto dada como provada extrai-se que:

«4) O requerido tem dupla nacionalidade, dos Estados Unidos da América e da Irlanda.

5) É solteiro e vive com uma companheira, de nacionalidade ... e com a progenitora. Tem com a companheira duas filhas menores de idade, uma delas EE, nascida em ... de ... de 2023, em ....

6) O requerido reside em Portugal desde Agosto de 2023, altura em que deixou ... com a família. Antes de detido, residia em casa arrendada no ... - ... e actualmente a família reside em casa arrendada na ....

7) Não apresenta carreira ou inserção laboral de relevo, tendo iniciado no passado algumas empresas/projectos pessoais sem sucesso. Nunca exerceu actividade laboral em Portugal. A companheira também não exerce actividade laboral desde há vários anos, sendo que, de acordo com progenitora, o requerido não tem necessidade de trabalhar por ser milionário.

8) Apresenta problemática de toxicodependência desde o início da idade adulta, não ultrapassada, encontrando-se em fase activa de consumo de cocaína quando da detenção.»

Não se provou:

«a) Que o requerido tenha abandonado os Países Baixos por correr perigo de vida e por temer represálias contra a sua família, mormente sua mãe com quem sempre viveu e tema que a sua entrega o coloque em perigo de vida atento as ameaças de morte que recebeu.

b) Que o requerido seja milionário.»

28. Vistos os autos, deles resulta ainda que:

(a) Em 14.3.2024, a requerimento do Ministério Público, que se pronunciou no sentido de ser recusada a entrega do recorrente à autoridade judiciária de emissão, com fundamento no motivo de não execução previsto na al. g) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003, o Senhor Juiz Desembargador titular do processo proferiu despacho em que determinou que fosse solicitado «à autoridade competente do Estado de emissão com nota de muito urgente, a transmissão, no mais curto espaço de tempo possível, de cópia autenticada da sentença condenatória do requerido AA, acompanhada da certidão cujo modelo consta do anexo I à Lei n.º 158/2015, de 17 de Setembro, devidamente traduzidas para português», «tendo em vista o eventual reconhecimento e execução da sentença com força executiva de 27/06/2018 da Justiça dos Países Baixos».

(b) Satisfazendo o solicitado, o Ministério da Justiça e da Segurança dos Países Baixos transmitiu a sentença condenatória ao Tribunal da Relação de Évora, acompanhada da certidão emitida em conformidade com o formulário anexo à Decisão-Quadro n.º 2008/909/JAI do Conselho, de 27.11.2008 (Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro), devidamente preenchido, para efeito de reconhecimento e execução da pena em Portugal, bem como a notificação ao recorrente da decisão do Ministério da Justiça e da Segurança dos Países Baixos, solicitando que esta lhe fosse entregue para informação, em conformidade com o Anexo II e nos termos do n.º 4 do artigo 6.º da mesma Decisão-Quadro.

(c) O Tribunal da Relação de Évora não se pronunciou sobre a transmissão da sentença.

29. Como já se referiu, o motivo de não execução do MDE para cumprimento de pena com fundamento na residência do condenado [al. e) do n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 65/2003] depende de compromisso do Estado Português em executar a condenação, expresso em decisão do Tribunal da Relação que proceda ao seu reconhecimento «enxertado», a requerimento do Ministério Público, no processo de execução do MDE, a pedido deste Tribunal que deve solicitar a transmissão da sentença, devendo a decisão de reconhecimento ser incluída na decisão de recusa de execução do MDE (artigo 12.º, n.ºs 3 e 4, do mesmo diploma).

Nos termos do artigo 16.º, n.º 1, da Lei n.º 158/2015, recebida a sentença devidamente transmitida pela autoridade competente do Estado de emissão e acompanhada da certidão emitida de acordo com modelo que consta do anexo I a este diploma, o Ministério Público promove o procedimento de reconhecimento, observando-se o disposto no artigo 16.º-A quanto ao procedimento de reconhecimento.

Não havendo motivo de não execução, o tribunal profere decisão de reconhecimento da sentença, o qual só pode ser recusado em caso de procedência de motivo previsto no 17.º (artigo 16.º-A, n.º 3).

Esta decisão, como anteriormente se salientou justifica-se por um interesse legítimo que consiste em contribuir para a finalidade, inscrita na Decisão-Quadro 2008/909 e na Lei n.º 158/2015, de reinserção social do condenado na execução, em Portugal, da pena de prisão que lhe foi imposta.

30. Está provado que o recorrente é nacional irlandês e tem residência em Portugal desde agosto de 2023.

Sendo nacional da República da Irlanda, que é um Estado-Membro da União Europeia, é também um cidadão da União, que goza do direito (fundamental) de circulação e residência no território dos Estados-Membros, em conformidade com os artigos 9.º, 20.º e 21.º do TUE e 45.º e 52.º, n.º, 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nas condições e com os limites reconhecidos pelo TUE e pela Diretiva 2004/38/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 29 de Abril de 2004, relativa ao direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famílias no território dos Estados-Membros, transposta pela Lei n.º 37/2006, de 9 de agosto (supra, 11 e 12).

Sendo a residência por período superior a 3 meses, o direito de residência do recorrente e da sua família encontra-se sujeito (supra, 11, 12 e 17) às condições e formalidades previstas nos artigos 7.º a 14.º (supra, 23) desta diretiva e, eventualmente, nas Diretivas 2003/86/CE e 2003/109/CE (supra, 24 e 25).

A conjugação do disposto no artigo 4.º, n.º 6 da Decisão-Quadro 2002/584/JAI (artigo 12.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 65/2003), com o artigo 3.º, n.º 1, da Decisão-Quadro 2008/909/JAI (artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 158/2015) e com as disposições dos Tratados, da Carta dos Direitos Fundamentais e das Diretivas referidas, impõe que se deva concluir que só mediante a verificação destas condições se pode afirmar que o recorrente tem residência (isto é, goza atualmente do direito de residência) em Portugal e que a execução da pena em Portugal, como componente do motivo de não execução (recusa) do MDE, satisfaz os objetivos de facilitar ou aumentar as oportunidades de reinserção social da pessoa procurada após a execução da pena a que foi condenada (supra, 18 a 21).

Sendo o recorrente cidadão da União Europeia e, como tal gozando do direito de livre circulação e residência no quadro e condições anteriormente referidos, o tribunal recorrido apenas tinha que verificar se se encontram preenchidas as condições e respeitados os limites impostos pela legislação da União para concluir que o recorrente é residente em Portugal – o que não fez –, não tendo que pronunciar-se, como se pronunciou, sobre as suas «raízes afectivas, sociais ou culturais, no território nacional» nem sobre se «o requerido (ou a sua companheira ou a progenitora, com quem reside) desenvolveram actividade profissional alguma em Portugal desde a sua chegada, o que, a verificar-se, poderia resultar em alguma vinculação de natureza económico-financeira a este País», bem como sobre se «as condições da sua vida não estão adstritas, de forma minimamente consolidada e consistente, à sociedade nacional», alheias ao conceito de «residência», fora do quadro de apreciação legalmente imposto pelo direito europeu.

Para além disso, depois de concluir que, nas condições referidas, o recorrente é residente em Portugal (primeiro requisito do motivo de não execução – supra, 18 a 20), deveria o acórdão recorrido pronunciar-se sobre o segundo requisito (interesse legítimo na recusa – objetivo de reinserção social, supra, 18, 19 e 21), o que também não fez.

31. Nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, subsidiariamente aplicável ao regime de execução do MDE (artigo 34.º da Lei n.º 65/2003) e ao regime de reconhecimento de sentença que aplique pena de prisão no espaço da UE (artigo 1.º, n.º 5, da Lei n.º 65/2015), é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

As omissões de pronúncia sobre o reconhecimento da sentença condenatória transmitida pelo Ministério da Justiça dos Países Baixos (supra, 28 e 29) – que deve ser promovida pelo Ministério Público sob pena de nulidade, nos termos do artigo 119.º, al. b), do CPP –, sobre a condição de «residente» do requerente, nos termos e condições impostos pelo direito da União Europeia (supra, 30) e sobre a justificação da execução da pena com base em motivo legítimo decorrente da satisfação do objetivo de reinserção social (supra, 30, parte final) constituem nulidades nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, que este Supremo Tribunal, podendo oficiosamente conhecer, não pode suprir.

A ocorrência destas nulidades obsta ao conhecimento do objeto do recurso (supra, 6, par. 2).

III. Decisão

32. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em declarar a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto a estas questões, devendo, em consequência, ser proferido novo acórdão que, realizadas as diligências necessárias, conheça da qualidade de residente do requerido, agora recorrente, em aplicação das normas relevantes do direito europeu, do reconhecimento da sentença condenatória transmitida pelos Países Baixos e da satisfação do objetivo de reinserção social do recorrente para execução da sentença em Portugal, de modo a apreciar e decidir sobre a verificação do motivo de não execução do MDE e consequente execução da pena em Portugal, nos termos da al. g) do n.º 1 e dos n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto, e da Lei n.º 158/2015, de 17 de setembro.

Sem custas.

Comunique de imediato ao tribunal recorrido, dado o prazo de detenção.

Notifique.

Supremo Tribunal de Justiça, 22 de maio de 2022.

José Luís Lopes da Mota (relator)

Ana Maria Barata de Brito

Antero Luís