LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
MULTA E INDEMNIZAÇÃO
CONHECIMENTO NA SENTENÇA
Sumário


1 – A litigância de má-fé é suscetível de produzir dois efeitos: um necessário, consistente na condenação da parte em multa, e outro eventual, que é a fixação de uma indemnização a favor da parte contrária. A condenação em indemnização à contraparte depende de ter sido pedida por esta; se não for pedida não é fixada, ao contrário da multa, que constitui um efeito punitivo necessário da litigância de má-fé.
2 – À fixação da indemnização é estranha qualquer finalidade sancionatória. O comportamento censurável não é sancionado através da indemnização, pois a finalidade punitiva cabe à multa, não à indemnização. O quantum da indemnização é fixado de harmonia com os critérios enunciados no artigo 543º, nº 1, do CPC.
3 – Sem prejuízo da possibilidade de conhecimento oficioso e da necessária discussão contraditória, se durante o processo alguma das partes suscitar a questão da litigância de má-fé da contraparte, em princípio, o juiz tem de a conhecer na sentença, sob pena de nulidade desta por omissão de pronúncia.
4 – É na sentença que o juiz há de decidir se o litigante procedeu de má-fé; em caso afirmativo, condena-o como tal em multa e, se a parte contrária a tiver pedido, indemnização.
5 – A decisão de condenação por litigância de má-fé baseia-se em factos, os quais carecem de ser enunciados. O apuramento e a fixação das ocorrências materiais sobre que pretende assentar-se a existência de má-fé é uma questão de facto que compete ao juiz decidir.
6 – A parte não pode ser condenada a pagar uma indemnização à parte contrária sem que seja condenada em multa. De duas uma: ou os autos fornecem todos os elementos necessários para a aplicação da multa e a fixação da indemnização, ou não; na negativa, a parte não pode ser condenada como litigante de má-fé; na afirmativa, o juiz deve condená-la como tal.
7 – Se depois do saneador os autos prosseguem para, além do mais, instrução relativamente à questão da litigância de má-fé, que constitui tema da prova enunciado pelo juiz, não pode a parte ser logo condenada no saneador em indemnização à parte contrária.
8 – Se o juiz não se considera habilitado para condenar a parte em multa, que é uma implicação necessária da litigância de má-fé, não pode desde logo condená-la em indemnização à parte contrária.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

1.1. AA, que usa o nome profissional abreviado de AA, propôs ação declarativa (honorários), sob a forma de processo comum, contra o Condomínio do Prédio denominado ..., NIF ...29, sito na Rua ..., ..., ..., ... ..., representado pela sua Administradora,  a sociedade EMP01... Unipessoal, Lda., pedindo que o Réu seja condenado «a pagar ao A., a quantia de 5.135,64 euros acrescida de juros vencidos que se contabilizam em mais 34,23 Euros o que tudo perfaz a quantia global de 5.169,87 euros a que acrescem os juros vincendos até total pagamento».
Alegou que o Réu conferiu ao Autor poderes para interpor ação judicial com vista a cobrar de forma coerciva quotas de condomínio e outras despesas, que se encontravam em divida por parte de 11 condóminos relapsos, processo esse que correu termos nos autos de que estes são apenso e que se encontra findo, subsistindo apenas a ação executiva intentada contra um deles conforme consta do apenso A destes autos. Após o termo do processo declarativo e na pendência do processo executivo o Autor prestou ao Réu outros serviços que se encontram descriminados na nota de despesas e honorários. O Autor, no desempenho do mandato, prestou ao Réu os serviços que a fatura descrimina e fez despesas constantes da mesma, apresentando as mesmas um saldo a favor do Autor no valor de € 4.459,14, a que acrescem os honorários pelos serviços extrajudiciais prestados e também constantes da missiva enviada à atual Administração do Condomínio no valor de € 676,50, o que tudo perfaz o valor global de € 5.135,64, quantia que permanece por liquidar.
Com relevo para o restrito objeto do recurso, alegou ainda:
«9º A Ad de Condominio, devidamente mandatada por este, tendo-lhe sido apresentada a dita conta via postal, reconheceu a divida e os serviços prestados de tal forma que propôs um desconto da mesma, o que o Autor estaria disposto a aceitar (prescindindo do honorários dos serviços extra judiciais) se o Condominio decidisse liquidar no prazo que lhe foi concedido, a dita conta referente aos processos judiciais, conforme se provará se necessário for. Só que,
10º O Autor viria a ser, entretanto, contactado por uma Colega, que lhe solicitou que aguardasse até ao dia ../../.... corrente porque, ao que foi dito, o Condominio iria fazer auditoria ás contas e deliberar pelo pagamento voluntario, o que o Autor em atenção à dita Colega, aceitou. Afinal,
11º. Foram tudo palavras vãs, pois nem o Condominio disse nada, nem a Administradora respondeu, nem a Ilustre Colega também respondeu á mensagem via telemóvel que lhe foi remetida, atenta a passagem da data de 30/6, o que se lamenta.»

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O Réu contestou por exceção e por impugnação. A título de exceção, alegou a «falta de responsabilidade da ré pelo pagamento da conta de honorários e despesas».
Concluiu que «deve ser julgada improcedente, por não provada, a presente acção e o petitório formulado pelo Autor e, consequentemente, dele ser absolvida a Ré; subsidiariamente e apenas para o caso de assim se não entender, deverá fixar-se o valor dos honorários e despesas por recurso a juízos de equidade, integrados pelos critérios ou parâmetros referenciais de carácter deontológico/estatutário previstos no artigo 105.º, n.º 3 do EOA.»
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Exercendo o contraditório, o Autor pediu que a Ré seja «condenada como litigante de má-fé no valor indemnizatório que o Meritíssimo Julgador ache adequado.»
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1.2. Na audiência prévia, proferiu-se o seguinte despacho:
«A Ré veio alegar a exceção da sua responsabilidade pelo pagamento da conta de honorários e despesas. Para o efeito começa por mencionar que o Autor expressamente invoca na petição inicial da acção instaurada contra a Ré, ter sido mandatado pela anterior de administração da Requerente, a empresa “EMP02..., Lda.”, na pessoa da sua legal representante BB, através de procuração bastante” para interpor acção judicial com vista a cobrar de forma coerciva quotas de condomínio e outras despesas.
Compulsado o processo judicial n.º 2444/20.... a que os presentes autos estão apensos, foi apresentada pelo aqui Autor em juízo e encontra-se junta à indicada acção a procuração forense outorgada em 25 de Agosto de 2020 por BB, na invocada e aposta qualidade de legal representante da empresa “EMP03..., Lda.”.
Acrescenta que a escolha do Advogado para patrocinar em juízo a Ré foi absolutamente alheia aos condóminos e à Ré, sendo que a mesma não resulta de uma qualquer consulta e/ou deliberação prévia e válida daqueles tomada em sede de assembleia de condóminos. Sendo desconhecida dos Senhores Condóminos e da Ré tal situação até ao dia em que estes/esta foram/foi confrontados/a com a conta de honorários e despesas.
Invoca ainda que, à data de 25 de Agosto de 2020, o legal representante da empresa “EMP02..., Lda.”, administradora da Ré nas invocadas circunstâncias temporais, era CC, NIF ...03..., residente na Avenida ..., ..., ... .... Razão pela qual considera resultar que a indicada Senhora BB não dispunha de poderes, nem legitimidade, para, em representação da Ré e com efeitos vinculativos para a Ré, outorgar a referida procuração e constituir mandato a favor do Advogado aqui Autor nos termos em que o fez. Concluindo que a Ré não conferiu ao Autor poderes representativos para atuar em seu nome.
Por conseguinte, pretende excecionar que a outorga da procuração em referência e o patrocínio assumido ao abrigo desta não vinculam a Ré e os poderes exercidos pelo Autor ao abrigo daquela são ineficazes em relação à Ré. Tal como assim plasmado no artigo 268.º do Código Civil.
Em resposta o Autor veio alegar o seguinte:
Conforme atas que se juntou e que se dá por reproduzidas a Ré Condomínio (na pessoa os condóminos) deliberaram accionar judicialmente os condóminos relapsos no pagamento das respectivas quotas e outros encargos e, no caso da ata nº ...7, instruir a ação intentada de que esta é apenso na qual(ata) mais se diz que “ …após o prazo concedido pela Assembleia para liquidação dos montantes em divida e, na falta de cumprimento dos condóminos devedores, as mesmas são entregues ao Advogado, intentar-se-á a correspondente ação legal, sendo que os condomínios faltosos suportarão todas as despesas com a cobrança coerciva, incluindo despesas judiciais e extrajudiciais, honorários de advogado e agente de execução. Foi aprovado por unanimidade dos presentes” (cfr. doc.1,2,3,e,4 juntos);
Sendo que, in casu, não tendo a assembleia designado advogado para o efeito e sabendo os condóminos que a empresa eleita para a respectiva administração possuía assessoria jurídica, facto que lhes foi comunicado pela Sr.ª BB, foi outorgada procuração ao signatário com poderia ter sido outorgada a qualquer outro Advogado;
O Autor já anteriormente tinha intervindo na mesma qualidade intentando duas acções judiciais contra condóminos relapsos, servindo-se das mesmas atas, para instruir o respectivo pedido.
Mais concretamente as ações seguintes:
- proc nº 165/22.... intentada em 13/01/2022 que correu termos no ... Juizo Local Civel de ... na qual foi Reu o condómino DD – que terminou com o pagamento do Reu tendo sido requerida a inutilidade superveniente da lide; e
- proc. Nº 2220/22.... intentada em 21/06/2022 que correu termos nesse mesmo Juízo, ou seja, no Juízo Local Cível 1 na qual foram RR EE e FF - findou com transacção judicial na qual os RR assumiram e concretizaram o pagamento prestacional da dívida – conforme doc 5 e 6 juntos com a resposta às excepções.
Mais referiu que em todos os processos judiciais intentados, mormente estes dois supra referidos, que antecederam o principal de que este é apenso, (ou seja o proc. nº2224/20....), os condóminos foram conhecedores, sendo informados pela respectiva administradora durante as Assembleias, de que o signatário havia intentado a respectiva acção judicial, tendo sido informados do desenrolar dos mesmos e do resultado obtido. Tendo a Ré condomínio pago as respectivas contas de despesas e honorários ao signatário.
Aliás, qualquer pagamento a efectuar pelo condomínio teria que ser validado por um elemento do condomínio, conforme decorre da dita acta nº ...2 junta como doc. nº1 da resposta apresentada.
Mais invocou o que decorre do art. 1436º alíneas e) e h) do Cod. Civil- Funções do Administrador- que a Ad. nomeada tem poderes (sem necessitar de autorização da assembleia) para exigir dos condóminos as despesas aprovadas e executar as deliberações da Assembleia, o que foi efectuado. Conferindo-lhe o artigo seguinte a legitimidade para o efeito-art. 1437 nº1 do mesmo diploma.
Nesse sentido invoca o decidido pelo Ac. STJ - proc. nº 2150/19.0T8PTM.E1 cuja súmula, transcreveu:
Ponto IV - “A contratação de mandatário judicial para promover ações judiciais com vista á cobrança das comparticipações em divida ao condomínio integra-se assim nas funções do administrador estabelecidas nas alíneas e) e j) do art 1436 do CC, ou seja, na obrigação de “exigir dos condóminos a sua quota parte nas despesas aprovadas” e “de regular (…) a prestação de serviços de interesse comum”;
Ponto V - “Tal contrato assume, deste modo, carácter vinculativo a não ser que o regulamento ou deliberação expressamente impeça a sua celebração pelo administrador ou o condomínio alegue e prove que o contrato continha clausulas gravosas e desproporcionadas, tendo em vista a natureza dos serviços a prestar”.
Mais alegou quanto ao mandato conferido e assinado pela Sr.ª BB, que a mesma tinha os poderes necessários para outorgar a procuração ao signatário, ao contrário do que invocou a Ré. Para o efeito juntou o documento nº7 junto, nos termos do qual o gerente da EMP03..., Ld.ª, CC substabelece na Sr.ª BB poderes para subscrever a procuração ao Autor.
Inclusive invoca o Autor que ainda que assim não fosse, a alegação da Ré configura um verdadeiro abuso do direito face ao trabalho desenvolvido pelo Autor nos autos de que estes são apenso, cobrando judicialmente quantia superior a 30.000,00 euros em beneficio da Ré, para além de outros trabalhos desenvolvidos. Para agora vir dizer que não existe mandato válido, configurando para além do abuso do direito, verdadeiro enriquecimento à custa do trabalho desenvolvido pelo Autor.
Menciona ainda que quando ocorreram as transações judiciais sempre interveio a D. BB e quando ocorreram as propostas de pagamento por parte dos R.R. sempre foram levadas ao conhecimento da mesma que, em cumprimento das suas funções deu o assentimento a elas, contactando o condomínio,
Aliás, tal sucedeu também no processo nº 2220/22...., mesmo quanto aos acordos extrajudiciais, cujas propostas de pagamento dos devedores relapsos sempre foram levados ao conhecimento da Dr.ª GG. Sendo que o pagamento dos devedores relapsos sempre equacionou o pagamento integral da dívida, apenas sendo admitido o pagamento em prestações, pelo que o condomínio em nenhum momento ficou prejudicado.
Refere o Autor que sempre forneceu à nova administração do condomínio a documentação que lhe foi solicitada conforme é exemplo a que juntou aos autos o que sucedeu formalmente em 25/5/2023, embora esta fosse conhecedora da mesma em data anterior.
E mais mencionou que “esqueceu-se” a representante da nova administração de dizer que, durante a troca de correspondência eletrónica que culminou com o envio da carta de 25/5, esta em nome do condomínio, fez uma proposta de pagamento ao Autor pelos serviços prestados, embora de quantia inferior à reclamada – conforme resulta do teor do mail datado de 12/5/2023, junto aos autos com a resposta e já da nova administração do condomínio. Onde a Ré apresenta uma proposta de pagamento dos serviços prestados e que agora são peticionados. Pu seja, se tal sucedeu é porque, ao contrário do que diz, aceitou:
- A contratação do autor para prestar os serviços jurídicos em causa; e
- Aceitou o pagamento dos mesmos ainda que por defeito.
Cumpre decidir.
Perante a invocação da exceção da falta de responsabilidade da Ré pelo pagamento da conta de honorários e outras despesas, atendendo à documentação apresentada pelo Autor na resposta à mesma, é manifesto que a mesma não tem qualquer consistência factual, nem legal.
Note-se que a Ré nos termos do teor do email datado de 12/05/2023 revela admitir a responsabilidade pelo pagamento dos honorários ao Autor, apenas colocando em causa o montante dos mesmos perante o valor requerido a título de honorários, propondo efectuar apenas o pagamento €3.593,43, com IVA incluído.
O que denota que obrigatoriamente a Ré aceita tacitamente o mandato conferido ao Autor, bem como ser devido o pagamento de honorários ao mesmo, ainda que proponha valor inferior.
Por ultimo, note-se que a exceção invocada no sentido de que a outorga da procuração em referência e o patrocínio assumido ao abrigo desta não vinculam a Ré e os poderes exercidos pelo Autor ao abrigo daquela são ineficazes em relação à Ré, não faz qualquer sentido. Pois o condomínio não se altera, o que se altera é apenas a sua administração.
Nestes termos, a exceção invocada quanto à falta de poderes para conferir o mandato ao Autor pela Sr.ª BB, revela uma clara invocação de factos que jamais podia desconhecer. Não podia assim a Ré colocar em causa o mandato exercido pelo Autor.
Nesse sentido e concordando-se com o Autor “esqueceu-se” a Ré que foi enviada e rececionada a carta com a nota de honorários. Tendo apenas sido trocados os emails juntos com a resposta de onde se salienta o enviado pelo Réu em 12/05/2023, onde não é colocado em causa o mandato deste, pretendendo apenas propor um valor abaixo do constante da nota de honorários enviada.
Além do mais, note-se conforme decorre do processo principal a que este se encontra anexo, que a Ré recebeu efectivamente como argumenta o Autor valor acima €30.000,00, incluído as taxas de justiça adiantadas, juros e multas que decorriam de regulamento do condomínio. Como foi admitido no art. 42º da contestação, por conjugação com o teor da petição inicial do autos principais (proc. nº 2444/20....).
Não se pode assim equacionar face ao teor do doc. nº7 junto com a resposta do Autor, bem como pelo email identificado que todos os acordos foram validados pela Sr.ª BB ao abrigo dos poderes que detinha, conforme procuração junta e em cumprimento dos art.1436 e 1437 do Código Civil.
Todas as quantias relativas ao proc. nº2444/20.... foram necessariamente recebidas pelo condomínio. Colocando este apenas agora em causa o mandato conferido ao Autor, bem como o valor dos mesmos.
Pelo exposto, não vislumbra a verificação da exceção invocada pela Ré, a qual necessariamente se julga improcedente perante o supra exposto.
Notifique.
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Contudo importa, desde já conhecer da eventual litigância de má fé invocada pelo Autor, quanto a esta parte.
Perante o exposto, considera este Tribunal que estamos perante uma clara situação de abuso de direito por parte da Ré. Face não só à defesa que tem de ser considerada dolosamente apresentada considerando o teor do email de 12/05/2023, o qual foi omitido na contestação apresentada, sendo que apenas se fez referência aos emails datados de 04/05/2023, 10/05/2023 e 25/05/2023. Por conjugação com a factualidade que usou para invocar a exceção em causa na sua contestação.
O que não pode deixar de ser inequivocamente censurável esta forma de defesa, razão pela qual se condena a Ré como litigante de má fé e no pagamento da indeminização a favor do Autor na quantia de €2.000,00 (dois mil euros), a qual se julga adequada perante a natureza da defesa apresentada na contestação e o alegado pelo Autor na petição inicial e resposta apresentada, quando conjugado com o teor dos autos principais. (cfr. artigos 546º, nº1, nº2, al. a) e 547º nº3, todos do CPC).
Repetindo-se o já exposto, importa ter presente que a litigância processual exige responsabilidade, probidade e prudência, não sendo aceitável ou admissível a utilização desenfreada e sem critério de todos os meios e expedientes de que a parte se lembre para a prossecução e obtenção dos fins que a possam favorecer.
A conduta da Ré revela um claro abuso de direito. São pressupostos desta modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium – os seguintes elementos: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou.
O princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; está presente, desde logo, na norma do art. 334.º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.
Assim, actuou com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, a Ré perante o já admitido no email de 12/05/2023, porquanto pelo menos admite necessariamente a validade do mandato do Autor, apenas propondo um valor abaixo do requerido por aquele. Bem como o mesmo se conclui por conjugação com a tramitação referente aos autos principais.
Não podem as partes através dos articulados apresentados, no caso a Ré, obter pretensões assentes unicamente para beneficiar do eventual conhecimento de uma exceção invocada. Razão pela qual perante a manifesta e inequívoca verificação da figura jurídica de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, não se pode considerar verificada a excepção de falta de mandato do Autor, conforme alegado na contestação.
Pelo que se condena o Réu como litigante de má-fé em indeminização a pagar ao Autor na quantia de €2.000,00 (dois mil euros). (cfr. artigos 546º, nº1, nº2, al. a) e 547º nº3, todos do CPC)».
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1.3. Na ata da audiência prévia fez-se ainda constar:
«II. Identificação do objecto do litígio:
O objecto do litígio consiste em determinar se assiste razão ao Autor e seja procedente a condenação da Ré nos valores peticionados.
Temas de Prova:
. Honorários devidos pelo Ré ao Autor;
. litigância de má-fé.»
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1.4. Inconformado, o Réu interpôs recurso de apelação da decisão relativa à litigância de má-fé, formulando as seguintes conclusões:
«1. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida em 21.03.2024 em sede de audiência prévia proferida pelo Tribunal a quo que condenou o Réu, ora Apelante, como litigante de má-fé em indemnização a pagar ao Autor na quantia de €2.000,00 (dois mil euros).
2. Entende o ora Recorrente que tal decisão é contrária à Lei e que o Tribunal a quo em tal aresto decisório fez incorrecta interpretação e aplicação do Direito e errado enquadramento fáctico-legal e que a mesma é profunda injusta.
3. Tal como resulta do teor da decisão recorrida, considera o Tribunal a quo que “(…) estamos perante uma clara situação de abuso de direito por parte da Ré. Face não só à defesa que tem de ser considerada dolosamente apresentada considerando o teor do email de 12/05/2023, o qual foi omitido na contestação apresentada, sendo que apenas se fez referência aos emails datados de 04/05/2023, 10/05/2023 e 25/05/2023. Por conjugação com a factualidade que usou para invocar a exceção em causa na sua contestação. (…)”
4. Como supra referido e cumpre precisar, a decisão recorrida foi proferida em sede de audiência prévia e sem produção de prova, designadamente, em sede de audiência de julgamento, ancorando-se apenas e só na prova documental carreada para os autos pelas partes com os seus articulados e na factualidade alegada.
5. O Autor alegou nos autos (artigo 2.º da petição inicial) que “O Réu conferiu ao Autor, através da anterior administração de Condomínio, a sociedade EMP03... Lda., (…) na pessoa da sua legal representante BB, através de procuração bastante, precisos poderes para interpor ação judicial com vista a cobrar de forma coerciva quotas de condomínio e outras despesas, que se encontravam em dívida por parte de 11 condóminos (…)”.
6. Ora, tal como resulta do plasmado nos artigos 572.º, 573.º e 574.º, todos do Código de Processo Civil, toda a defesa deve ser deduzida na contestação, devendo o Réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo Autor, expondo as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do Autor e invocando os factos essenciais em que se baseiam as excepções deduzidas, especificando-as separadamente, pelo que, e tal como resulta do teor da contestação do Réu, o mesmo exercitou os direitos que legalmente lhe assistem, invocando em matéria de excepção a seguinte factualidade:
- que, compulsado o processo judicial n.º 2444/20.... a que os presentes autos estão apensos, foi apresentada pelo aqui Autor em juízo e encontra-se junta à indicada acção a procuração forense outorgada em 25 de Agosto de 2020 pela Senhora BB, na invocada e aposta qualidade de legal representante da empresa “EMP03..., Lda.”.
Tal alegação e factualidade é verdadeira e está demonstrada no teor do documento n.º 1 junto com a contestação (e, de resto, patente no processo principal a que os presentes autos estão apensos).
- que, à data de 25 de Agosto de 2020, o legal representante da empresa “EMP02..., Lda.”, administradora da Ré nas invocadas circunstâncias temporais, era CC, NIF ...03..., residente na Avenida ..., ..., ... ....
Tal alegação e factualidade é verdadeira e está demonstrada no teor do documento n.º 2 (matrícula societária) junto com a contestação.
- que a indicada Senhora BB não dispunha de poderes, nem legitimidade, para, em representação da Ré e com efeitos vinculativos para a Ré, outorgar a referida procuração e constituir mandato a favor do Advogado aqui Autor nos termos em que o fez.
Tal alegação e factualidade resulta do teor dos documentos n.ºs 1 e 2 juntos com a contestação, porquanto, à data da outorga da procuração forense - 25 de Agosto de 2020 – a Senhora BB não era a legal representante da empresa “EMP02..., Lda.”, administradora da Ré nas invocadas circunstâncias temporais.
7. Após a apresentação em juízo da contestação, e em sede de resposta à matéria de excepção, veio o Autor alegar nos autos (artigo 14.º de tal articulado) que “o gerente da EMP03... Lda. substabeleceu na Sra. D. BB os poderes necessários para outorgar a procuração ao signatário”, tendo junto aos autos a procuração de fls… dos autos.
8. Ora, o Réu não tinha conhecimento e nem tinha como saber da existência de tal alegada procuração subscrita pelo gerente da empresa, omissa no teor da procuração de 25.08.2020 junta aos autos principais (documento n.º 1 junto com a contestação), e omitida na alegação contida na petição inicial (seu artigo 2.º).
9. Sendo o Autor, como se arroga na petição inicial (seu artigo 1.º) “advogado, que faz da advocacia profissão habitual”, e que pleiteia em causa própria no âmbito da presente demanda, o mesmo sabe e não tem como ignorar, que invocar, como o fez e faz nos autos (e resulta do teor da procuração de 25.08.2020 junta aos autos principais (documento n.º 1 junto com a contestação)) que estava mandatado pela “sociedade EMP03... Lda., (…) na pessoa da sua legal representante BB” não é o mesmo, nem sequer equivalente, alegar que estava mandatado pela sociedade EMP03... Lda., através procuração outorgada pelo “gerente da EMP03... Lda. substabeleceu na Sra. D. BB os poderes necessários para outorgar a procuração ao signatário”, o que só veio a fazer após a apresentação em juízo da contestação.
10. Sendo que, tal como doutamente decidido no douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07.03.2012, processo n.º 628/08.0GBFND.C1, disponível in www.dgsi.pt:
“(…)
1.- O instrumento de procuração forense terá que conter (para além do mais):
a) O nome completo, estado, naturalidade e residência habitual do/s outorgante/s;
b) A designação do dia, mês, ano e lugar em que for lavrado ou assinado;
c) A referência, pelo advogado constituído mandatário, à forma como por si próprio foi verificada a identidade do/s outorgante/s;
d) A assinatura quer do mandante quer do próprio advogado mandatado, na qualidade(notarial) de certificante do referido modo de verificação da identidade do mandante.
2.- Omitindo-se na procuração a indicação do estado, naturalidade e local de residência do mandante, a indicação do local da respetiva elaboração; a confirmação da identidade do mandante por qualquer das Ex.mas advogadas mandatadas e a certificação do modo como houvesse sido por si verificada, bem como a respetiva assinatura, a procuração é nula. (…)” negrito e sublinhado nosso)
11. Concluindo tal aresto jurisprudencial que carecendo a procuração do formal conteúdo legalmente exigível, em conformidade com a conjugada estatuição normativa dos artigos 220.º, 294.º e 295.º do Código Civil, haver-se-á o pretenso instrumento de procuração por nulo e juridicamente inválido como significante no âmbito processual da conferência do arrogado mandato judicial.
12. Ora, qualquer homem da simples leitura da procuração de 25.08.2020 e da própria alegação do Autor no artigo 2.º da sua petição inicial retira a afirmação de que a Sra. BB interveio na procuração na qualidade de “legal representante” da sociedade “EMP03... Lda.” - e o que não tem correspondência com a realidade, sendo que é tanto quanto resulta do seu teor e foi alegado pelo Autor (Advogado e com profundo conhecimento de direito) nos autos – e não ao abrigo de um alegado substabelecimento e/ou procuração outorgada pelo gerente daquela empresa, cuja informação foi omitida não só no texto da procuração mas também na própria petição inicial pelo Autor.
13. Pelo que, não podia o Réu, perante o teor da procuração de 25.08.2020 e alegação do Autor nos autos no seu requerimento inicial, deixar de invocar como fez na sua contestação, relativamente à ausência de poderes da Senhora BB “para, em representação da Ré e com efeitos vinculativos para a Ré, outorgar a referida procuração e constituir mandato a favor do Advogado aqui Autor nos termos em que o fez”.
14. Alegou ainda o Réu na sua contestação que a própria sociedade Administradora da Ré “EMP02..., Lda.”, não dispunha de poderes que lhe tivessem sido conferidos pela Ré, através de deliberação em assembleia de condóminos, para, por si ou através da constituição de mandatário, celebrar tais acordos nos termos e com o teor em que foram concretizados e que exorbitam as funções e deveres da administração de condomínio.
15. A este respeito, invocou o Autor nos autos que resulta do teor da ata nº ...7 que os condóminos deliberaram intentar a acção para cobrança coerciva dos valores em débito pelos condóminos relapsos e que mesmo sem necessidade de tal deliberação em assembleia, ao abrigo do disposto no artigo 1436.º alíneas e) e h) do Código Civil é função do administrador exigir dos condóminos as despesas aprovadas e executar as deliberações da assembleia.
16. Sucede que, tal como resulta do alegado na contestação em matéria de excepção não estão em causa os poderes do administrador do condomínio, mas o mandato conferido ao Autor.
17. De resto, o Réu considera que o Tribunal a quo incorreu em errada aplicação do Direito e enquadramento fáctico-legal, designadamente quanto aos poderes que resultam da procuração outorgada pelo gerente da sociedade EMP03..., Lda., e que conduziram à conclusão de que se verifica a excepção de falta de mandato, porém uma tal questão apenas poderá ser objecto de impugnação com o recurso a final.
18. De qualquer das formas, mesmo que se entendesse que o mandato ao abrigo da procuração de 25.08.2020 é válido (como assim o considerou a Mm.ª Juiz e com a qual não se concorda), do teor da mesma não resultam quaisquer poderes especiais para transigir e/ou celebrar os acordos nos termos que resultam dos autos (nem tal resulta da procuração outorgada pelo gerente da sociedade EMP03..., Lda.), nem tal resulta de qualquer deliberação de condóminos nem do disposto no artigo 1436.º alíneas e) e h) do Código Civil.
19. Refere ainda a Mm.ª Juiz a quo na decisão recorrida que “Face não só à defesa que tem de ser considerada dolosamente apresentada considerando o teor do email de 12/05/2023, o qual foi omitido na contestação apresentada, sendo que apenas se fez referência aos emails datados de 04/05/2023, 10/05/2023 e 25/05/2023.”.
20. À data em que a decisão recorrida foi proferida não há matéria de facto dada como provada e dada como não provada, desde logo porque ainda não foi realizada a audiência de discussão e julgamento, pelo que o Réu ignora onde é que a Mm.ª Juiz a quo se baseou para concluir pela defesa dolosa do Réu, e que jamais se aceita, sendo que a mesmas jamais está fundamentada, como carece de fundamentação fáctico-legal.
21. A este respeito, o Tribunal a quo cita “o teor do email de 12/05/2023” e a sua alegada omissão da contestação.
22. Ora, a respeito das comunicações electrónicas trocadas pela administração do Réu com o Autor, aquele invoca a seguinte factualidade:
- que em 04.05.2023 enviou o email ao Autor a solicitar diversa informação e elementos, entre os quais o comprovativo de pagamento da quantia de €33.930,40 indicada na conta de despesas e honorários e a resposta daquele – alegação suportada pelo documento n.º 5 junto com a contestação;
- que depois se seguiu troca de comunicações electrónicas sem que alguma vez fosse remetida e/ou disponibilizada à Ré o solicitado comprovativo de pagamento da quantia de €33.930,40 – alegação suportada pelos documentos n.º 5, 6 e 7 juntos com a contestação;
- que, por email remetido em 10.05.2023 e em 25.05.2023, a administração da Ré, em representação desta, voltou a reiterar os pedidos prévios no sentido de “ser apresentada uma nota de honorários com discriminação dos serviços prestados, devidamente assinada” - alegação suportada pelos documentos n.º 6 e 7 juntos com a contestação.
23. Considera a Mm.ª Juiz a quo que o Réu não podia ter omitido o teor do email de 12/05/2023, daí retirando, sem mais, uma actuação dolosa do Réu e o que jamais se aceita.
24. Em primeiro lugar, não é despiciendo precisar que tal email corresponde a uma comunicação havida entre o Réu e o Autor (e não com terceiros alheios a este último) pelo que tal email estava, como sempre esteve e está, na posse e inteiro conhecimento do Autor, designadamente em data anterior à apresentação em juízo da petição inicial (tal como é manifesto da data nele aposta), pelo que o Réu não o pretendeu omitir, como não omitiu.
25. Ora, tal como resulta do disposto no artigo 342.º do Código Civil, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado e a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
26. O Réu, em cumprimento do ónus previsto no artigo 342.º do Código Civil, procedeu à junção aos autos dos emails idóneos e/ou aptos a fazer prova da factualidade por si alegada nos autos e com tal desiderato, que é tanto quanto legalmente assim lhe competia.
27. Veio o Autor em sede de resposta à matéria de excepção alegar que (artigo 33.º do requerimento em apreço) “esqueceu-se a representante da nova administração de dizer que durante a troca de correspondência eletrónica que culminou com o envio da carta de 25/5, esta em nome do condomínio, fez uma proposta de pagamento ao Autor pelos serviços prestados, embora de quantia inferior à reclamada – cf. mail de 12/5/2023, documento que a nova Ad. Condomínio propositadamente omitiu nos mails que remeteu aos autos com a contestação – cf. doc 8 agora junto”.
28. Mais alegou em tal articulado que do teor de tal email resulta que o Réu aceitou a contratação do Autor e que aceitou o pagamento dos honorários ainda que por defeito.
29. Em primeiro lugar, não é despiciendo precisar-se que para além deste email de 12/05/2023, houve ainda o email de 15.05.2023, o email de 11.05.2023 e ainda o email de 09.05.2023 (juntos pelo Autor aos autos através do requerimento em apreço) trocados entre a administração do Réu e o Autor que também não foram juntos aos autos pelo Réu.
30. Sendo que o Réu não se esqueceu de tais comunicações electrónicas - na disposição e conhecimento do Autor reitera-se -, mas nenhum deles releva para a prova da factualidade por si alegada nos autos e ao Réu apenas compete a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga.
31. Sendo que, tal como resulta do disposto no artigo 342.º do Código Civil, a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita, neste caso ao Autor.
32. Ora, na petição inicial (seu artigo 9.º) invocou o Autor que a administração de condomínio após apresentação da conta de honorários por via postal reconheceu a dívida - factualidade esta que é controvertida.
33. Ora, resulta comprovado nos autos que a conta de honorários apenas foi apresentada por via postal à administração de condomínio em 25.05.2023, ou seja, em data posterior ao email em referência de 12/05/2023.
34. Nada mais foi alegado pelo Autor a respeito de um “alegado reconhecimento” na petição inicial, que competisse ao Réu contradizer ou demonstrar.
35. A invocação do alegado reconhecimento da contratação do Autor e pagamento dos honorários que, segundo o Autor, resulta do teor do email de 12.05.2023, é matéria cuja alegação e prova competia ao Autor fazer nos autos e não ao Réu.
36. Pelo que, considera o Réu que era ao Autor quem competia, ao abrigo do citado artigo 342.º do Código Civil, alegar a factualidade que apenas veio a invocar no seu requerimento em exercício do direito de resposta à excepção quando o devia e podia ter feito em sede de requerimento inicial (posto que a factualidade em apreço é anterior à data da apresentação em juízo do mesmo) e fazer prova dessa mesma factualidade, designadamente com a junção aos autos dos documentos que julgasse pertinentes para o efeito (seja o email de 12/05/2023 ou qualquer outro).
37. De qualquer das formas jamais se poderá retirar do teor do email de 12/05/2023 as conclusões a que o Autor e a Mm.ª Juiz a quo chegam e que esta última faz constar da decisão recorrida, no sentido de que perante tal comunicação o Réu admite necessariamente a validade do mandato do Autor, apenas propondo um valor abaixo do requerido por aquele e que não se aceita.
38. A uma tal conclusão apenas se poderia e poderá chegar com o esclarecimento e correspondente produção de prova, designadamente com a audição da testemunha autora de tal comunicação indicada no rol testemunhal quer do Autor quer do Réu, relativamente ao contexto em que tal email foi escrito e enviado, o desígnio subjacente ao seu envio e aquilo que efectivamente se pretendeu escrever e admitir – prova essa que ainda não foi realizada nos autos posto que a decisão recorrida foi proferida em sede de audiência prévia.
39. Do teor do email de 12.05.2023 apenas resulta o que nele está escrito, ou seja, que a administração do condomínio considerou que com o envio dos elementos já era possível justificar (sinónimo de explicar) os mesmos perante os condóminos – não está aqui inserto um qualquer reconhecimento do que quer que seja e mesmo que o estivesse, no contexto de mera comunicação entre as partes, jamais poderá ser atribuído o efeito de confissão e/ou subtrair da esfera do Réu a possibilidade de discutir em Tribunal a validade do mandato do Autor, nos termos em que o fez na presente demanda.
40. E nem se diga, de igual forma, que da proposta de pagamento efectuada no contexto interlocutório onde foi feita, também resulta, sem mais, o reconhecimento da validade do mandato do Autor, pois que são inúmeras e várias as motivações para a tentativa de celebração de um acordo que não implica necessariamente um qualquer reconhecimento, como é o caso, por exemplo, evitar pendências judiciais e os inerentes incómodos e custos, etc.
41. Pelo que a conclusão vertida pela Mm.ª Juiz a quo na decisão recorrida relativamente ao alegado “reconhecimento da validade do mandato do Autor” não se retira e não tem qualquer suporte no elemento literal do teor do email de 12/05/2023, sem mais.
42. E jamais se poderá considerar que com o envio de tal email o Réu renunciou a direitos que legalmente lhe assistem, designadamente deduzir toda a sua defesa nos termos em que o fez na presente demanda.
43. De resto, não tendo o Autor aceite tal proposta, como efectivamente não aceitou, a mesma não tem qualquer valor, designadamente aquele que a Mm.ª Juiz a quo retira e faz constar do seu aresto decisório, aqui recorrido, sendo que tal proposta jamais terá, como não tem, o efeito de confissão e/ou reconhecimento da validade do mandato do Autor.
44. E só poderíamos falar em “princípio da confiança” se tal proposta tivesse sido aceite pelo Autor e o que não aconteceu.
45. Nesta conformidade e em face do acima exposto, não deduziu o Réu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, não alterou a verdade dos factos ou omitiu factos relevantes para a decisão da causa, nem praticou uma omissão grave do dever de cooperação, nem tal resulta dos autos.
46. A alegada falta e/ou ineficácia do mandato corresponde a factualidade que impede, modifica e/ou extingue o efeito jurídico dos factos articulados pelo Autor, pelo que não podia o Réu deixar de a invocar em sede e matéria de excepção, tal como plasmado no artigo 575.º do Código de Processo Civil.
47. O Réu não actuou com abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, como a decisão recorrida assim o conclui, sem mais, porquanto não se verifica uma qualquer contradição no seu comportamento anterior susceptível de gerar uma situação de confiança no Autor, pelo contrário.
48. Considerar, como faz a Mm.ª Juiz a quo que por força de tal email ficou o Réu inibido processualmente de alegar e provar a falta e/ou ineficácia do mandato, tal é totalmente incompatível com o interesse privado que cada uma aspira, legitimamente, alcançar com a sua litigância.
49. O dever de dizer a verdade, de cooperar com a efectiva realização da justiça nunca significaria impor à mesma parte um comportamento processual contrário ao seu interesse, sendo que o Réu actuou e actua na presente demanda de boa-fé, convencido de que tinha (tem) razão.
50. Veja-se que, em face do alegado pelo Autor na petição inicial e do teor da procuração de 25.08.2020, é verdadeira a factualidade alegada nos autos pelo Réu e a mesma está corroborada pelo teor dos documentos n.ºs 1 e 2 juntos com a contestação (a Senhora BB não era a legal representante da empresa EMP03..., Lda. e não dispunha de poderes especiais para transigir), sendo que, com tal alegação, o Réu não deturpou a realidade dos factos.
51. É o Autor que transpõe para os autos uma versão sem correspondência com a realidade relativamente à por si invocada qualidade de legal representante da Sra. BB, por um lado, e omite a alegada procuração subscrita pelo gerente “EMP03..., Lda.”, por outro lado, sendo que o teor do email de 12.05.2023 não altera tal factualidade.
52. Ademais, o Réu não assumiu qualquer posição contraditória, que justifique a invocação do princípio do abuso de direito.
53. A litigância de má fé distingue-se do abuso do direito, sendo dois institutos jurídicos que não se confundem.
54. A declaração do abuso do direito depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos previstos no artigo 334.º do Código Civil e o que não sucede manifestamente na presente demanda (pelo menos, à data da prolacção da decisão recorrida), sendo que o abuso do direito apenas pode ser fonte de responsabilidade civil desde que no exercício abusivo se verifiquem os demais requisitos ou pressupostos do dever de indemnizar, ou seja, dolo ou a mera culpa, o dano e o nexo de causalidade entre a actuação abusiva e o dano e os quais não resultam provados no âmbito da presente demanda (pelo menos, à data da prolacção da decisão recorrida).
55. Pelo que jamais poderia a Mm.ª Juiz a quo ter concluído pelo abuso de direito nos termos em que o faz para fundamentar a decisão recorrida.
56. De qualquer das formas, a Mm.ª Juiz a quo condena o Réu como litigante de má-fé.
57. Ora, como supra ficou exposto, a conduta do Réu, perante a factualidade alegada pelo Autor e teor da procuração de 25.08.2020, é perfeitamente lícita - coisa diferente é se vai ter sucesso na sua pretensão (sendo que o Tribunal a quo já julgou improcedente a excepção invocada, por decisão ainda passível de recurso), sendo que a mesma não é contrariada pelo que resulta do teor do email de 12.05.2023.
58. Não estão, assim, verificados quaisquer dos requisitos legalmente plasmados no artigo 572.º do Código de Processo Civil, pelo jamais poderia ter sido o Réu condenado como litigante de má-fé e no pagamento de uma indemnização ao Autor no valor de €2.000,00.
59. Nos termos do disposto no artigo 543.º do Código de Processo Civil, a indemnização pode consistir: a) no reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos; b) no reembolso dessas despesas e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência direta ou indireta da má-fé.
60. Ora, ignora-se em que consiste a fixada quantia de €2.000,00 a título de indemnização pela Mm.ª Juiz a quo, sendo que nem sequer resultam dos autos alegadas e quantificadas quaisquer despesas e/ou prejuízos, sendo certo que o montante da indemnização deverá ser encontrado segundo o prudente arbítrio do juiz, isto é, segundo critérios de razoabilidade e de equidade.
61. E, considerando que tal montante corresponde a cerca de 50% do pedido do Autor, poder-se-á questionar um eventual enriquecimento sem causa do mesmo, não se reputando o quantum indemnizatório fixado de €2.000,00 nem razoável, nem equilibrado, ignorando-se inclusivamente o critério que presidiu a tal decisão, sendo omisso o aresto decisório recorrido a respeito.
62. A fixação da indemnização na quantia de €2.000,00 para além de não respeitar os pressupostos legais previstos no artigo 543.º do Código de Processo Civil, também não se reputa razoável nem equilibrada.
63. Ao ter decidido como decidiu, violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 334.º e 342.º do Código Civil e artigos 542.º, 543.º, 572.º, 573.º, 574.º e 575.º, todos do Código de Processo Civil, pelo que, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue não estarem preenchidos os requisitos legalmente plasmados para a condenação do Réu como litigante de má-fé, ou, subsidiariamente, ser a decisão recorrida revogada e substituída por outra que julgue que o conhecimento da invocada litigância de má-fé e fixação do quantum indemnizatório deverá ser relegada para decisão final após produção de prova e realização de audiência de discussão e julgamento, ou, subsidiariamente, para o caso de se entender que se encontram preenchidos os pressupostos legais da litigância de má-fé e que dos autos resultam elementos que permitam a fixação do quantum indemnizatório em respeito pelo artigo 543.º do Código de Processo Civil, revogar-se tal parte do aresto decisório, substituindo-se o mesmo por outro que fixe tal indemnização em valor manifestamente inferior ao decidido, segundo critérios de razoabilidade e equidade.
Termos em que e no mais que for doutamente suprido por V. Exas., deve conceder-se provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e proferindo-se Douto Acórdão que esteja em conformidade com as conclusões acima formuladas, com o que se fará Justiça!».
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Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido.
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1.5. Questão a decidir

Atentas as conclusões do recurso interposto pelo Réu, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, importa apreciar se existiu de erro de julgamento ao considerar que estavam reunidos os requisitos para condenação do Réu em indemnização ao Autor por litigância de má-fé.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto

Na decisão recorrida não se procedeu à fixação da matéria de facto provada, pelo que há apenas que considerar a tramitação processual e os atos praticados no processo, melhor descritos no relatório que antecede.
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2.2. Do objeto do recurso

O artigo 20º da Constituição da República Portuguesa garante a todos o acesso ao direito e à tutela judicial efetiva. Em contraposição, tem de haver limites à forma como se exercem os direitos de ação e de defesa no âmbito do processo civil ou nos outros ramos de direito adjetivo. Nem tudo pode ser tolerado no processo, pois o exercício de um direito deve ser compatibilizado com os direitos dos outros.
No que respeita ao processo civil, toda e qualquer intervenção das partes no processo deve obedecer ao ditame imposto no artigo 8º do CPC: «as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação» previstos no artigo 7º daquele código, tendo em vista a obtenção, com brevidade e eficácia, da justa composição do litígio.
Para assegurar o aludido desiderato e um correto uso dos direitos processuais surge, a par de outros[1], o instituto da litigância de má-fé.
Partindo de um fundamento ético que deve presidir à exercitação dos direitos, a litigância de má-fé tem subjacente o interesse público na correta administração da justiça, pois a atuação abusiva dos direitos de ação e de defesa, bem como dos inerentes direitos processuais, traduzida na instrumentalização do direito processual, é suscetível de ocupar a máquina judiciária com ações que não têm um fundamento sério e razoável, de retardar a realização da justiça, de afetar a eficácia da intervenção judicial ou, em casos mais graves, de prejudicar a justa composição do litígio.
 Portanto, estamos perante um instituto processual, de tipo público e que visa o imediato policiamento do processo[2].
O seu recorte normativo integra duas vertentes: uma vertente sancionatória (v. o artigo 542º, nº 1, do CPC e o artigo 27º, nº 3, do Regulamento das Custas Processuais) e outra tendencialmente indemnizatória ou reparadora (v. artigo 543º do CPC). Se os elementos fornecidos pelo processo permitirem a formulação de um juízo de reprovação (censura) de um concreto comportamento assumido no processo, a parte que litigou de má-fé é necessariamente condenada em multa. Mas a fixação de uma indemnização depende de ter sido pedida pela parte contrária; se não for pedida não é fixada, ao contrário da multa, que constitui um efeito punitivo necessário da litigância de má-fé.
Nos termos do nº 2 do artigo 542º do CPC, litiga de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
«a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».
Decorre do nº 1 do artigo 543º do CPC que a indemnização à parte contrária «pode consistir:
a) No reembolso das despesas a que a má-fé do litigante tenha obrigado a parte contrária, incluindo os honorários dos mandatários ou técnicos;
b) No reembolso dessas despesas e na satisfação dos restantes prejuízos sofridos pela parte contrária como consequência direta ou indireta da má-fé».
Segundo Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[3], «estabelece-se, no nº 1, dois tipos de indemnização, de conteúdo mais reduzido o primeiro, de conteúdo mais abrangente o segundo. No caso da alínea a), apenas são indemnizados os danos emergentes diretamente causados à parte contrária pela atuação de má-fé. No caso da alínea b), são indemnizados todos os prejuízos que ela sofre, incluindo lucros cessantes, em consequência direta ou indireta da atuação de má-fé».
No que respeita à delimitação do conteúdo da indemnização, importa ter em conta que não são indemnizáveis todos os danos que a parte contrária sofreu em consequência do processo, mas apenas aqueles que, tendo-se produzido posteriormente ao concreto ato de litigância de má-fé, decorrem exclusivamente desta.
Enfatiza-se que à fixação da indemnização é estranha qualquer finalidade sancionatória. O comportamento censurável não é sancionado através da indemnização, pois a finalidade sancionatória cabe à multa, não à indemnização.
No caso dos autos, foi fixada uma indemnização a favor do Autor no montante de € 2.000,00.
Sucede que nenhuma fundamentação foi aduzida para fixar tal montante. Desconhece-se como a Mma. Juiz chegou àquele valor e que componentes integra, designadamente que concretas despesas se destina a reembolsar e se contempla a compensação por algum prejuízo sofrido pelo Autor e, na afirmativa, qual.
Por isso, em caso algum a decisão se poderia manter tal como está. Sempre haveria que revogá-la na parte em que fixa uma indemnização no valor de € 2.000,00 sem qualquer suporte factual ou, pelo menos, a consideração, ainda que mínima, de algum elemento. Tal como está, é uma indemnização destituída de fundamento e sem critério percetível, quando se trata de matéria regulada na lei, pois o artigo 543º, nº 1, do CPC enuncia os critérios pelos quais se afere o quantum da indemnização.

Em segundo lugar, como bem resulta do disposto no artigo 543º, nº 3, do CPC, tanto a decisão sobre a responsabilidade no caso de má-fé como o concreto conteúdo da indemnização devem em princípio ser objeto de decisão na sentença. Porém, é admissível fixar a indemnização posteriormente «se não houver elementos para se fixar logo na sentença a importância da indemnização».
A decisão sobre a litigância de má-fé não tem necessariamente de ser contemporânea ou simultânea com a sentença que conhece do mérito da causa, pois existem casos em que a lei prevê expressamente outros momentos para conhecimento dessa questão, como sucede nas situações previstas nos artigos 123º, nº 3, e 970º, nº 3, ambos do CPC, além do apontado caso do artigo 543º, nº 3, do CPC. Também nas situações em que se impõe a garantia do contraditório (art. 3º, nº 3, do CPC), o que normalmente resulta de a questão ser suscitada oficiosamente pelo tribunal, a decisão sobre a litigância de má-fé só pode proferir-se depois de concedida à parte visada uma oportunidade para esta expressar o seu ponto de vista sobre essa matéria; o mesmo é dizer que apenas lhe é permitido decidi-la em momento posterior ao da sentença.
Porém, se durante o processo alguma das partes suscitar a questão da litigância de má-fé da contraparte, em princípio, o juiz tem de a conhecer na sentença, sob pena de nulidade desta por omissão de pronúncia.
Nesta conformidade, as situações em que se conhece da litigância de má-fé fora da sentença têm de ser vistas como desvios à regra e esta é no sentido de ser apreciada na sentença[4] ou na decisão final proferida em incidente estruturalmente autónomo[5].
Compreende-se que assim seja, na medida em que a apreciação sobre a litigância de má-fé baseia-se em factos e os mesmos carecem de ser considerados provados. É na sentença, de harmonia com o disposto no artigo 607º, nº 3, do CPC, que «o juiz deve discriminar os factos que considera provados». Também às decisões finais dos incidentes de instância é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 607º do CPC, ex vi do artigo 295º do mesmo código.
No caso dos autos, a decisão recorrida foi proferida no saneador, num momento em que ainda não foi proferida decisão sobre os factos alegados pelas partes. Também na decisão recorrida não se deu como provado qualquer facto.
A apreciação do pedido de condenação do Réu como litigante de má-fé em indemnização à contraparte, formulado pelo Autor na resposta (exercício do contraditório) à matéria de exceção invocada na contestação, só poderá ser feita com base na avaliação que se faça de toda a prova produzida/existente nos autos, quanto aos factos atinentes à má-fé, sendo que a decisão a proferir terá que elencar, quer os que resultem provados, quer os que não se provarem e, só então concluir com decisão final. O apuramento e a fixação das ocorrências materiais sobre que pretende assentar-se a existência de má-fé é uma questão de facto que compete ao juiz decidir.
Além de a sentença ser o momento normal e adequado para proceder à apreciação da litigância de má-fé alegada por uma parte nos articulados, facilmente se verifica que ainda não estavam reunidas as condições indispensáveis para ser proferida decisão sobre a alegada litigância de má-fé do Réu.
Por um lado, a litigância de má-fé implica sempre a condenação da parte em multa; será ainda condenada em indemnização se a parte contrária a pedir. É isso que resulta do nº 1 do artigo 542º do CPC: «Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir. Além de resultar de norma expressa, isto é absolutamente pacífico na doutrina e na jurisprudência, como bem destacam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ao dizerem que «a litigância de má-fé dá lugar à condenação da parte em multa e, se a parte contrária a pedir, em indemnização».
No caso vertente, verifica-se que o Réu não foi condenado em qualquer multa, mas que foi logo condenado numa indemnização à parte contrária, sem que os autos fornecessem elementos para tal.
Isto é absolutamente contraditório: não condenar na sanção, que é de aplicação obrigatória, e fixar uma indemnização, que é um efeito eventual, dependente de pedido e de um mínimo de delimitação das despesas e demais prejuízos.
Pior: o Tribunal não se considerou habilitado para condenar o Réu em multa, que é uma implicação necessária da litigância de má-fé, mas já se considerou habilitado para se pronunciar sobre a indemnização.
Ora, no nosso entender, se o Tribunal ainda não está em condições de aplicar uma multa à parte, então, por maioria de razão, também não pode fixar já a indemnização, sobretudo na fase de saneamento do processo e sem dispor de todos os elementos para o efeito.

A própria ata da audiência prévia demonstra a prematuridade da apreciação da questão da litigância de má-fé.
Para além de a intempestividade logo resultar da simples circunstância de a Mma. Juiz não ter condenado o Réu em multa (presume-se que por os autos ainda não fornecerem todos os elementos suscetíveis de permitir fixar o seu quantitativo), verifica-se que enunciou como tema da prova a «litigância de má-fé».
Sendo assim, se a litigância de má-fé do Réu (não está suscitada nos autos tal questão relativamente ao Autor) constitui tema da prova, isso significa que existem factos atinentes a essa matéria que interessa averiguar. Se esses factos ainda estão em averiguação, então é manifesto que não podia ser desde já ser proferida decisão relativamente à alegada litigância de má-fé do Réu.
Depois, a decisão sobre a litigância de má-fé não pode ser fragmentada ou parcelada, exceto quanto à importância da indemnização, no específico quadro do nº 3 do artigo 543º do CPC, ou seja, a fixar em momento posterior. Não pode inverter-se a ordem legal das questões, começando pela indemnização. Nunca a indemnização pode ser fixada antes de estar definido o concreto âmbito da litigância de má-fé e de ser aplicada a multa.

Aliás, além de o Réu não ter sido condenado em multa (que é a consequência punitiva, típica e de aplicação necessária, prevista no artigo 542º do CPC da responsabilidade no caso de má-fé), de não haver elementos para fixar qualquer indemnização e de ser contraditório apreciar-se da litigância de má-fé quando os autos prosseguem tendo tal matéria como tema de prova, a dar-se cobertura à tramitação que foi dada à questão da litigância de má-fé, teríamos a situação inusitada de haver decisão definitiva sobre a litigância numa fase em que os factos não estão apurados e de ainda ser suscetível de recurso a decisão de improcedência da exceção apreciada no saneador (e que motivou a decisão recorrida), a impugnar no recurso que venha a ser interposto da sentença (art. 644º, nº 3, do CPC).

Nesta conformidade, impõe-se a revogação da decisão recorrida e consequente determinação que os autos prossigam os seus termos no Tribunal recorrido, onde deve ser proferido despacho a convidar o Autor a indicar as despesas a que a alegada má-fé do Réu o tenha obrigado a realizar, bem como os restantes prejuízos por si sofridos como consequência direta ou indireta da má-fé, apreciando-se depois na sentença, em termos de facto e de direito, a invocada questão da litigância de má-fé do Réu.
Para que fique bem claro, no presente acórdão nenhuma apreciação se faz sobre se o Réu litiga ou não de má-fé, matéria que terá de ser decidida globalmente na sentença e não antes.

Termos em que procede a apelação.
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que convide o Autor a indicar as despesas a que a alegada má-fé do Réu o obrigou a realizar, bem como os restantes prejuízos por si sofridos como consequência direta ou indireta da má-fé, apreciando-se depois na sentença, em termos de facto e de direito, a invocada questão da litigância de má-fé do Réu.
Sem custas.
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Guimarães, 11.07.2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Alexandra Rolim Mendes
Raquel Baptista Tavares



[1] V.g., o abuso do direito de ação.
[2] António Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé, Abuso do direito de acção e Culpa “In Agendo”, Almedina, pág. 28.
[3] Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, 3ª edição, 2018, pág. 463.
[4] Como refere Alberto dos Reis, in Código Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Coimbra Editora, 1981, pág. 281, «é nesta [sentença] que há-de decidir se o litigante procedeu de má-fé; é aí que, em caso afirmativo, há-de condená-lo como tal em multa e indemnização».
[5] O termo “sentença” utilizado no nº 3 do artigo 643º do CPC, segundo Alberto dos Reis (ob. cit., pág. 280), referindo-se a preceito homólogo (art. 466º, § 1º, do CPC de 1939), «é tanto a sentença final da causa, como a sentença que ponha termo a qualquer incidente da causa principal, quando o incidente assuma o aspeto de causa secundária