RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO
ERRO JUDICIÁRIO
FALTA DE REVOGAÇÃO DA DECISÃO DANOSA PELA JURISDIÇÃO COMPETENTE
INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 13.º
N.º 2
DA LEI 67/2007
DE 31/12
REENVIO PREJUDICIAL
Sumário

I- Em acção declarativa de condenação com processo comum para efectivar a responsabilidade cível extracontratual emergente de alegado erro judiciário contra o Estado Português pedindo que «seja o Estado condenado a pagar-lhe indemnização a vários títulos, exige-se que o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
II - Não tendo o Autor feito prova da revogação – pois o acórdão junto manteve a sentença recorrida e, por outro lado, nas partes em que apreciou pretensões do ora autor, não lhe deu razão, deve julgar-se verificada a excepção de ausência de prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente e, em consequência, ser o Estado Português absolvido do pedido, como decorre do disposto no artigo 13º,2 da Lei 67/2007, conjugado com os artigos 571º e 576º, 1 e 3, excepção que é de conhecimento oficioso- artigo 579º, todos do CPC.
III - Não é inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º67/2007, de 31 de Dezembro, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
IV - Só deve ordenar-se o reenvio quando tal se justificar pela necessidade do recurso ao direito comunitário para a resolução da causa e pela existência de um problema de interpretação desse direito.

Texto Integral




Acordam os Juízes na 2ª Secção Judicial do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - RELATÓRIO

a)
O Autor AA, maior, residente na Rua ..., cave, ..., intentou em 20 de Janeiro de 2022 a presente acção declarativa de condenação com processo comum para efectivar a responsabilidade cível extracontratual emergente de alegado erro judiciário contra o Estado Português pedindo que «seja o Estado condenado a pagar indemnização ao Autor:
A. Todos os custos com as taxas de justiças, honorários advocatícios e eventuais custas de parte que incorreu e venha ainda a incorrer com o processo 5100/19.... a apurar a posteriori, em sede de execução de sentença e na proporção do erro judiciário verificado no dito processo que ditou o seu decaimento na acção.
B. Todos os danos patrimoniais que resultarem da impossibilidade de alienar potestativamente os valores mobiliários de que é titular ao preço justo, nomeadamente € 31.396,83 no artigo 14 supra.
C. Pelos danos não patrimoniais que resultaram da violação do direito a um processo equitativo perante por parte do tribunal supra identificado e pela razões supra mencionadas, a apurar à posteriori, em sede de execução de sentença.
Deve ainda ser revogada a decisão considerada violadora do direito comunitário e da CEDH, nos termos do artigo 13 (2) da Lei 67/2007, convelindo, necessariamente, a confiança, certeza e a segurança jurídicas inerentes ao caso jugado – que embora sendo valores imanentes do ordenamento jurídico interno e também comunitário devem ser abalados perante a violação do Direito da União Europeia cometida pelo tribunal nacional supra identificado, uma vez que há não existe outra hipótese de recurso; abalamento esse que é perfeitamente tolerado pela CRP [na dimensão, por exemplo, da uniformização de jurisprudência – vide artigo 688 do CPC] respeitante ao recurso e mesmo até na sua máxima amplitude)».
Para tanto, e em síntese, - socorrendo-nos com a devida vénia do bem conseguido relatório da decisão recorrida -, o Autor alegou que, no âmbito do processo n.º 5100/19...., que correu termos no Juízo de Comércio de Coimbra – Juiz ... (no qual o também ali Autor pedia que fosse reconhecido o seu direito de alienação potestativa dos valores representativos do capital da sociedade F..., S.A., que detinha, nos termos e para os efeitos conjugados nos números 5 e 6, ambos do artigo 490.º, do CSC, e que a ali Ré fosse condenada a pagar-lhe o justo valor por esses valores mobiliários), foi cometido um erro judiciário, pretendendo, agora, o Autor ser indemnizado pelos danos daí decorrentes.

*
Citado, o Ministério Público apresentou contestação, na qual foi aduzida defesa por excepção e por impugnação.
Quanto à defesa por excepção, o Ministério Público começou por invocar que no âmbito do processo n.º 5100/19.... não ocorreu qualquer erro, muito menos grosseiro ou manifesto, além de que aí não foi revogada a decisão da 1.ª instância, o que, de acordo com a configuração dada pelo Ministério Público, configuraria uma excepção peremptória. De seguida, o Ministério Público arguiu uma excepção dilatória, concretamente de ineptidão da petição inicial.
Por fim, o Ministério Público impugnou os factos alegados pelo Autor.
Concluiu a contestação, pronunciando-se no sentido de que deve:
«1) O Estado ser absolvido do pedido, nos termos do disposto nos artigos 571.º, 576.º n.º 1 e 3 e 579.º, todos do CPC, por verificação da exceção peremptória enunciada supra;
2) Serem julgadas as exceções dilatórias invocadas, por provadas, e consequentemente ser o R Estado absolvido da instância nos termos do disposto nos artigos 5.º n.º1, 186.º n.º 1 e 2, al.a), 278.º n.º 1 al.b), 576.º n.º 1 e 2 e 577 al.b), todos do CPC.
E sem prescindir
3) Ser a ação julgada improcedente, por não provada, absolvendo-se o Estado do pedido, declarando-se que o R Estado Português não é devedor de qualquer quantia monetária a título de indemnização por erro judiciário».

*
Dada a oportunidade de exercer o contraditório quanto à matéria de excepção, o Autor não se pronunciou.

*

Por despacho de 30-11-2022, este Tribunal de 1.ª instância considerou estar verificada a excepção dilatória de ineptidão da petição inicial, decisão que veio a ser revogada por douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 13-06-2023.

Por esse mesmo Douto Acórdão foi determinada a remessa dos autos à 1ª instância para aí prosseguirem os autos seus termos, sendo caso disso, com recurso ao convite para aperfeiçoamento previsto no n.º 3 e 4 do art. 590º do CPC, sem prejuízo de se entender tal convite desnecessário, por se considerar que, por razão diversa da falta de causa de pedir, a ação deve findar no despacho saneador, designadamente pela procedência de outra exceção.

b)
Na sequência, em 3 de Novembro de 2023 foi com a ref. 92174110, proferido douto despacho onde …
antevendo que a acção poderia findar, no despacho saneador com a procedência da excepção peremptória invocada pelo Ministério Público, se afigurava como provável a dispensa da audiência prévia, ao abrigo do princípio da gestão processual e da adequação formal, consagrados nos artigos 6.º e 547.º, do Código de Processo Civil., isto porquanto, através do despacho de 12-09-2022, este Juízo de Competência Genérica concedera já ao Autor a possibilidade de exercer o contraditório quanto à matéria de excepção.
Por isso se convidaram as partes a, em 10 dias, dizer se se opunham à dispensa da audiência prévia, sendo que o silêncio será tido por anuência – artigo 3.º, n.º 3, e 149.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Em caso de não concordância, desde logo se solicitou a indicação da disponibilidade de agenda para realização da audiência prévia nos dias 16 de Novembro de 2023, 7 de Dezembro de 2023 ou 11 de Dezembro de 2023, este último da parte da tarde.

Notificadas as Partes, nada foi dito.

c)
Em 16 de Fevereiro de 2024 foi proferido o seguinte douto despacho a fundamentar a dispensa da realização da audiência prévia:

Por acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra de 13-06-2023 foi revogada a «decisão recorrida, julgando que não se verifica nos autos a nulidade da ineptidão da petição inicial, e determinar a remessa dos autos à primeira instância para que ali prossigam a sua marcha, nos termos expostos».
Neste contexto, regressados os autos a este Tribunal de 1.ª instância, por despacho de 03-11-2023 deu-se conta às partes de que «antevendo este Juízo de Competência Genérica que a acção poderá findar, então, no despacho saneador com a procedência da excepção peremptória invocada pelo Ministério Público, afigura-se como provável a dispensa da audiência prévia, ao abrigo do princípio da gestão processual e da adequação formal, consagrados nos artigos 6.º e 547.º, do Código de Processo Civil.
Isto porquanto, através do despacho de 12-09-2022, este Juízo de Competência Genérica concedeu ao Autor a possibilidade de exercer o contraditório quanto à matéria de excepção». Nessa sequência, convidaram-se «as partes a, em 10 dias, dizer se se opõem à dispensa da audiência prévia, sendo que o silêncio será tido por anuência – artigo 3.º, n.º 3, e 149.º, n.º 1, do Código de Processo Civil».
Notificadas deste despacho, nada foi dito.
Pelo exposto, ponderando que as partes não apresentaram qualquer óbice a tal dispensa, que já foi garantido o contraditório quanto à excepção em causa e que a acção, pelas razões abaixo aduzidas, terminará pela procedência de uma excepção peremptória, ao abrigo dos princípios da gestão processual e da adequação formal, consagrados respectivamente nos artigos 6.º e 547.º, do Código de Processo Civil, decide-se dispensar a realização de audiência prévia.

d)
Foi fixado o valor da causa.
Proferiu-se despacho saneador.
O Tribunal entendeu que o processo já continha todos os elementos para poder decidir do mérito sem a produção de mais provas.

e)
Proferiu douto saneador-sentença, com base nos articulados das Partes, dos documentos juntos e na resenha jus-processual também supra referida.

Nela conheceu-se da excepção da falta de revogação da decisão.

Tudo nos termos que se sintetizam:

A presente acção diz respeito à responsabilidade do Estado por erro judiciário.
Tendo em conta a factualidade que se tem por assente, os pressupostos legalmente exigidos para procedência deste tipo de responsabilidade, que no caso não estão verificados, bem como que as questões colocadas quanto à necessidade de verificação desses pressupostos são de cunho jurídico, é possível conhecer já da excepção peremptória arguida pelo Ministério Público e, pelas razões abaixo explicadas, concluir pela sua procedência, o que conduz à imediata improcedência da acção.
Vejamos então.
Sobre o regime da responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades públicas (doravante RRCEE) releva a Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, constando aquele regime de anexo a esta lei. Isto porque, de acordo com o artigo 1.º, n.º 1, daquele regime, «A responsabilidade civil extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público por danos resultantes do exercício da função legislativa, jurisdicional e administrativa rege-se pelo disposto na presente lei, em tudo o que não esteja previsto em lei especial

(…)
Especificamente sobre os danos decorrentes do exercício da função jurisdicional regem os artigos 12.º a 14.º do RRCEE. Pela sua relevância, segue-se a respectiva transcrição.
Artigo 12.º
Regime geral
Salvo o disposto nos artigos seguintes, é aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça, designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável, o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa.
Artigo 13.º
Responsabilidade por erro judiciário
1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.
2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
Artigo 14.º
Responsabilidade dos magistrados
1 - Sem prejuízo da responsabilidade criminal em que possam incorrer, os magistrados judiciais e do Ministério Público não podem ser directamente responsabilizados pelos danos decorrentes dos actos que pratiquem no exercício das respectivas funções, mas, quando tenham agido com dolo ou culpa grave, o Estado goza de direito de regresso contra eles.
2 - A decisão de exercer o direito de regresso sobre os magistrados cabe ao órgão competente para o exercício do poder disciplinar, a título oficioso ou por iniciativa do Ministro da Justiça.

(…)
Como se disse, a responsabilidade civil extracontratual do estado e demais entidades
públicas tem na sua base o comando constitucional ínsito no artigo 22.º, da Constituição da República Portuguesa, relevando para a responsabilidade quanto à função jurisdicional também o disposto no artigo 216.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, que determina que «Os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, salvas as excepções consignadas na lei
Não obstante o regime em causa constar de um diploma específico como é o RRCEE, os pressupostos da responsabilidade civil são os mesmos que se exigem no domínio do Direito das Obrigações (ou seja, a existência de uma acção, que seja ilícita, culposa e que cause danos – artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil), embora por referência não a actos entre particulares, mas a «actos de gestão pública, pois o exercício da função jurisdicional é sempre gestão pública estadual (mesmo que haja traços privatísticos, como acontece actualmente com certos modelos processuais, tais como, o processo executivo, o processo de mediação ou o processo arbitral)» - Guilherme da Fonseca e Miguel Bettencourt da Câmara, in A Responsabilidade Civil Por Danos decorrentes…, Revista Julgar, nº 11, 2010, disponível na net.
Tendo em conta o modo como o RRCEE disciplina a responsabilidade civil do Estado por actos praticados no âmbito da função jurisdicional, é necessário destrinçar dentro
desta:
 a responsabilidade por actos materialmente administrativos (artigo 12.º);
 a responsabilidade por erro judiciário (artigo 13.º);
 e a responsabilidade pessoal de juízes e magistrados do Ministério Público (artigo
14.º).
No caso em apreço, releva o segundo, ou seja, o regime da responsabilidade por erro
judiciário, o qual consta, como acima referido, do artigo 13.º, do RRCEE.

(…)

A lei exige que o pedido de indemnização se funde na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
Recorrendo, de novo, à explicação de José Manuel Cardoso da Costa, colhida do Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-05-2023, p. nº 11359/20.3T8SNT.L1-2 acessível no site da dgsi.net, «sendo a função jurisdicional e as decisões em que ela se exprime o que são, então não há-de poder atribuir-se qualquer relevo a um alegado «erro» judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o «erro» (o puro «erro») só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto. É, pois, desde logo e fundamentalmente, uma razão dogmático-institucional, ligada à própria natureza da função judicial, que impõe a condição estabelecida pelo (…) n.º 2 do artigo 13.º - e exclui que a ocorrência e o eventual relevo do erro judiciário possam ser aferidos diretamente, e sem mais, em sede de responsabilidade e pelo tribunal competente para o apuramento desta».
Esta exigência de prévia revogação da decisão danosa não é uma solução líquida e isenta de críticas.
Com efeito, a doutrina e a jurisprudência têm reflectido sobre a conformidade constitucional deste pressuposto, desde logo porque existem casos em que não é admissível recurso pela circunstância de o valor da causa ser inferior à alçada do Tribunal – por exemplo, na jurisdição cível, o recurso da decisão do Tribunal de 1.ª instância está, em princípio e em primeiro lugar, dependente de o valor da causa ser superior à alçada desse Tribunal (artigos 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e 42.º, n.º 2, e 44.º, n.º 1, da LOSJ).
Apesar destas dúvidas, o nosso Tribunal Constitucional já tomou posição quanto à conformidade constitucional da opção do legislador e nos acórdãos n.s 363/2015 e 844/2023 decidiu não julgar «inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente».
Em ambas as decisões é feita referência a um acórdão do próprio Tribunal Constitucional, que embora seja anterior ao RRCEE abordou o artigo 22.º, da Constituição da República Portuguesa em termos que se mantêm actuais: o acórdão n.º 45/99.
Neste acórdão n.º 45/99 explica-se que «o artigo 22° da Constituição reconhece aos cidadãos o direito à reparação dos danos que lhes forem causados por ações ou omissões praticadas por titulares de órgãos do Estado e das demais entidades públicas, ou por seus funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções, reparação essa que deve ser integral e assumida solidariamente pela Administração. Mas o mesmo artigo 22° não estabelece os concretos mecanismos processuais através dos quais se há-de exercitar esse direito: ponto é que o legislador, ao fazê-lo, não crie entraves ou dificuldades dificilmente superáveis, nem encurte arbitrariamente o quantum indemnizatório.» Uma vez que não são estabelecidos os concretos mecanismos processuais mediante os quais este direito à reparação deve ser exercido, ao legislador ordinário assiste liberdade de conformação quanto ao modo de efectivar aquele direito. A exigência de que a decisão danosa tenha sido previamente revogada assenta, precisamente, nesta margem de liberdade.
Quanto a este Tribunal, sopesando o reconhecimento do direito fundamental à reparação de actos danosos, a natureza da função jurisdicional e que a acção de responsabilidade civil contraactos praticados naquele domínio já é uma forma de reacção secundária, dado que a primeira é a de recorrer da decisão danosa no âmbito do processo em que a mesma foi proferida, afigura-se que a disciplina constante do artigo 13.º, do RRCEE, não é arbitrária, nem desproporcional, inserindo-se numa margem de liberdade que se deve reconhecer ao legislador ordinário quanto ao desenho dos mecanismos para exercício do direito à reparação de actos danosos.
Tem-se, assim, que quanto a este Tribunal, na senda de posição já sufragada pelo nosso Tribunal Constitucional, o artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, isto é, a exigência de prévia revogação da decisão danosa, não é inconstitucional.
De todo o modo, com a Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro, aditou-se o artigo 696.º-A ao Código de Processo Civil e foi dada nova redacção aos artigos 696.º, al. h), 697.º, 701.º e 701.º-A, do mesmo diploma, passando a prever-se expressamente a possibilidade de recurso de revisão no âmbito da acção em que foi proferida a decisão danosa, ao invés de o lesado ter que intentar especificamente uma acção de responsabilidade civil por danos decorrentes da função jurisdicional.
Com isto, fica ultrapassado na jurisdição cível o argumento de que nem todas as acções admitem recurso, o que, recorde-se, como se viu, não conduzia, pelo menos quanto a este Tribunal e à posição dos nossos Tribunais, à inconstitucionalidade do disposto no artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE.
Questão diferente e também suscitada pelo Autor é se esta exigência está, ou não, em conformidade com o direito da União Europeia.
Este assunto também já foi apreciado pela nossa jurisprudência e pelo Tribunal de Justiça, sendo que aí o que se tem configurado como efectivo problema a resolver não é se a disciplina do artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE respeita o direito da União Europeia, antes se o direito interno que foi aplicado no processo em que ocorreu o erro judiciário está em conformidade com o direito da União Europeia.
No âmbito de um reenvio prejudicial, no processo C‑160/14 - João Filipe Ferreira da Silva e Brito contra o Estado português, o Tribunal de Justiça após análise dos princípios da autoridade do caso julgado e da segurança jurídica como argumentos a favor da solução constante do artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, decidiu que «O direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União cometida por um órgão jurisdicional que decide em última instância devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por esse órgão jurisdicional, quando essa revogação se encontra, na prática, excluída».
Como explicam Alessandra Silveira e Sophie Perez Fernandes, a «regra do art. 13.º, n.º 2, do RRCEE não se aplica, pois, aos casos de violação do direito da União imputáveis ao Estado no exercício da função jurisdicional, por força do princípio do primado do direito da União» - Anotação aos acórdãos (TEDH) Ferreira Santos Pardal c. Portugal e (TJUE) Ferreira da Silva e Brito (ou do “grito do Ipiranga” dos lesados por violação do direito da União Europeia no exercício da função jurisdicional), página 7, disponível em https://www.oa.pt...
A partir da decisão do Tribunal de Justiça João Filipe Ferreira da Silva e Brito contra o
Estado Português, passou a vigorar um duplo regime, que varia consoante no processo em que a decisão danosa é tomada esteja em causa a violação de direito interno, ou de direito da União Europeia.
Foi neste contexto que surgiu a já acima referida Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro.
Com as alterações introduzidas ao Código de Processo Civil com esta, instituiu-se um
novo regime em que, pese embora se haja mantido a exigência da revogação prévia da decisão consagrada no artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, se utilizou a «revogação da decisão que ocorre no juízo rescindente do recurso de revisão para cumprir a exigência do art. 13.º, n.º 2, Anx. L 67/2007; esta solução apresenta a significativa vantagem de, como a revisão deve ser interposta no tribunal que proferiu a decisão a rever (art. 697.º, n.º 1), evitar que – como aliás já sucedeu – decisões das Relações ou do STJ sejam discutidas, como fundamento de responsabilidade civil do Estado, nos tribunais de 1.ª instância» e ainda se consagrou a admissibilidade de «dedução do pedido de indemnização contra o Estado no juízo rescisório do recurso de revisão» - Miguel Teixeira de Sousa, As recentes alterações na legislação processual civil, Julgar Online, Dezembro de 2019, página 21, disponível em …

Aplicando ao caso em apreço.
A presente acção configura uma acção de responsabilidade civil contra o Estado por danos decorrentes da função jurisdicional, pedindo o Autor que o Estado Português seja condenado a pagar-lhe indemnização pelos danos sofridos no âmbito do processo n.º 5100/19...., que correu termos no Juízo de Comércio de Coimbra.
A acção n.º 5100/19.... foi proposta pelo aqui Autor, pedindo este que lhe fosse
reconhecido o seu direito de alienação potestativa dos valores mobiliários representativos do capital da sociedade F..., S.A. e que a aí Ré fosse condenada a pagar-lhe o justo valor por esses valores mobiliários.
A 22-02-2021 foi ali proferida sentença que condenou a aí Ré no pagamento do valor de € 90 364, decisão com a qual a Ré não se conformou e, por isso, recorreu. Nessa sequência, o Autor contra-alegou e pediu a ampliação do objecto do recurso.
A 12-10-2021 foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que confirmou a decisão da 1.ª instância.
Entende o ali e aqui Autor que deixou de receber os € 121 760,83 que considerava justo receber, tendo apenas recebido € 90 364, sofrendo um dano de € 31 396,83 – artigo 14.º da petição inicial.
Como decorre do acabado de explicar, a sentença da 1.ª instância foi confirmada pelo
Tribunal da Relação de Coimbra, não se verificando-se, portanto, o requisito exigido pelo artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE, de prévia revogação da decisão danosa.
Trata-se de uma exigência que, pelas razões acima explanadas, se mostra conforme à nossa Lei Fundamental.
Além de ser uma exigência que respeita a nossa Constituição, a mesma, no caso concreto, não vai contra o entendimento sufragado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, na medida em que na acção n.º 5100/19.... o pedido foi enquadrado à luz da lei interna, inexistindo referência ao direito da União Europeia. Assim sendo, uma vez que a causa em que a acção danosa alegadamente ocorreu não se prende com a (in)observância do direito da União Europeia, é de admitir a exigência feita pelo legislador ordinário português de prévia revogação da decisão danosa.
Em suma, por não estar verificada a exigência de prévia revogação da decisão alegadamente danosa, conclui-se que falta um dos requisitos exigidos para responsabilização civil por danos decorrentes da função jurisdicional, o que permite concluir imediatamente pela improcedência da presente acção, ao abrigo do disposto no artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE.

(…)

A final foi julgada verificada a excepção de ausência de prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente e, em consequência, a acção improcedeu, tendo o Réu Estado sido absolvido do pedido.
As custas ficaram pelo Autor.

f)
O Autor, inconformado, recorreu.
O recurso veio admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

g)
Alega o Apelante apresentando as seguintes conclusões:

1. O autor, ora apelante, notificado da douta decisão proferida nos presentes autos e não se conformando com a mesma, vem interpor RECURSO DE APELAÇÃO, sobre a matéria de direito, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 644 (1,a) e 647 (1), todos do CPC.
2. Da decisão ora recorrida e apenas para o que aqui interessa, o tribunal a quo decidiu julgar: a exceção de ausência de prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente e, em consequência, absolver o réu do pedido.
3. Por muito respeito que mereça o vertido na decisão a quo, com a mesma não se pode concordar e por isso se recorre com os fundamentos de facto e de direito apresentados no §3 que aqui se dão como reproduzidos, mas que infra iremos sumariamente concluir.
4. Ressalvado o devido respeito, que é o maior, a Meritíssima Juíza a quo não interpretou o direito da forma, quanto a nós, mais acertada, tendo em conta as implicações concretas no caso sub judice.
5. O objeto do litígio é o que se alude no § 1.3. supra, para onde se remete e aqui se dá como integralmente reproduzido, evitando sermos fastidiosos a repetir o já supra exaustivamente mencionado.
6. Mas que de forma tanto quanto resumida possível se circunscreve ao pedido do autor para que o réu, o Estado Português, seja condenado pelo erro judiciário cometido no processo 5100/19...., com devidas consequências legais, incluindo respetivas indeminizações tal como peticionado.
7. A única questão a resolver é saber se o tribunal a quo podia decidir verificada a exceção de ausência de prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, nos termos do artigo 13 (2), da Lei 67/2007 e, em consequência, absolver o réu do pedido, quando entende que a decisão da primeira instância foi confirmada pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, apesar desse douto
Tribunal não ter apreciado o mérito dessa questão (o alegado erro).
8. Entende-se que deve ser alterado o facto que foi dado como assente na sentença recorrida, por intermédio do qual concluiu que a sentença da 1.ª instância foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, pois tal facto está incorretamente julgado, se atendermos à decisão vertida no douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, no processo 5100/19.....
9. Sendo que a decisão que, em nosso entender, deve ser proferida sobre tal facto que se impugna por não ter sido incorretamente julgado é:
apesar da sentença da 1.ª instância ter sido confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, este Venerando Tribunal não decidiu sobre o mérito da ampliação do objeto do recurso e/ou da retificação de erros materiais como requerido pelo autor, ali apelado, não tendo em consequência decidido sobre o mérito da questão que estriba estes autos (o erro no cálculo da indemnização).
10. Em termos de direito aplicável, entendemos que o artigo 13 (2), da Lei 67/2007, não pode operar neste caso concreto, por forma a que seja impeditivo de o ora apelante ser indemnizado pelo erro judiciário cometido.
11. Isto porque, Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, no processo que dá estribo ao presente, não examinou o mérito do pedido relacionado ao erro na determinação da indemnização, devido à inadequação do meio processual utilizado pelo autor para corrigir tal erro.
12. Apesar do artigo 13 (2) da Lei 67/2007 exigir a revogação prévia da decisão lesiva para fundamentar um pedido de indemnização, tal requisito não se aplica neste caso, devido à violação dos princípios da confiança, certeza e segurança jurídicas, fundamentais tanto no direito interno quanto no comunitário e por, em última instância, se tratar num não direito que violaria o artigo 13, da CEDH.
13. Desde logo, porque a impossibilidade de revogação da decisão danosa, devido ao esgotamento dos meios de recurso ou à recusa de apreciação do mérito da questão, não deve impedir a responsabilização do Estado por erros judiciários, conforme entendimento do TJUE e do TEDH (por exemplo, caso Dulaurans v. França e Ferreira da Silva e Brito (C-160/14).
14. Consequentemente, o artigo 13 (2) da Lei 67/2007 deve ser interpretado de forma a não obstaculizar o direito à indemnização por erro judiciário, em consonância com os princípios de responsabilidade do Estado estabelecidos pelo direito da União Europeia e pelo direito à efetiva tutela jurisdicional garantido pela CEDH.

Pugna:
Termos ex vi supra, em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, consequentemente, ser revogada a douta sentença e considerado que, no caso concreto, não pode operar o disposto no artigo 13 (2), da Lei 67/2007, porquanto direito, nesses termos, seria equivalente a um não direito, o que não é compaginável com a imposta e devida justiça.
Destarte, deve ser mandada prosseguir a ação na primeira instância.
Se assim Vossas Excelências entenderem, Venerandos Juízes(as) Desembargadores(as), que seja suspensa a instância e procedido ao reenvio das questões suscitadas, ou aquelas que Vossas Excelências melhor entenderem formular, para o TJUE para que este interprete o direito da União Europeia a título prejudicial.

h)
Contra-motiva a Exmo. Magistrado do Ministério Público, rematando:
1.º
Nos presentes autos foi o autor notificado pelo Tribunal a quo para exercer o contraditório relativamente à matéria de exceção invocada pelo réu na contestação.
2.º
Na sequência dessa notificação nada veio dizer.
3.º
Para além do mais, o AA foi notificado pelo Tribunal para que, no prazo de 10 dias, viesse aos autos dizer se se oporia ou não à dispensa de realização da audiência prévia, sendo advertido que o silêncio seria entendido como não oposição.
4.º
Nessa sequência, pelo mesmo nada foi dito, pelo que o Tribunal decidiu dispensar a realização da audiência prévia.
5.º
A dispensa da realização da audiência prévia é legalmente admissível dado que foi garantido o exercício do contraditório quanto à exceção perentória invocada pelo réu na contestação.
6.º
E, nesse sentido, estava o Tribunal em condições de proferir decisão sobre o mérito da causa.
7.º
O AA através do presente recurso de apelação pretende exercer o contraditório relativamente à exceção invocada pelo RR na contestação, uma vez que não o fez momento processual próprio.
8.º
De facto, a exigência de prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente decorrente do artigo 13.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, impõe-se.
9.º
Não tendo o Tribunal da Relação de Coimbra revogado a decisão proferida no âmbito do processo n.º 5100/19...., não poderá recair sobre o Estado Português qualquer obrigação de indemnizar.
10.º
Pelo exposto, o recurso de apelação interposto pelo AA não merece provimento, devendo manter-se integralmente a decisão recorrida.

i)
Foram dispensados os vistos.
Cumpre apreciar e decidir.

II- ENQUADRAMENTO JURÍDICO

Pelas conclusões das alegações do recurso se afere e delimita o objecto e o âmbito do mesmo.

III – OBJECTO DO RECURSO

A questão que se coloca é aquilatar do acerto, ou não, da decisão recorrida que julgou verificada a excepção peremptória de falta de revogação da decisão impeditiva do efeito jurídico do pedido. Cfr. Art. 13º,  2 da Lei nº 67/2007, de 31-12.

IV- mérito do recurso

*
Relevante a materialidade jus-processual aludida no relatório supra, para que se remete.

*
*
*

O Apelante expõe no corpo alegatório da minuta a sua versão da problemática em apreço do seguinte modo:

A presente ação emerge do erro judiciário cometido na ação declarativa com processo comum na forma ordinária de condenação, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo de Comércio de Coimbra, Juiz ..., onde o aqui autor, também ali autor, pedia que fosse reconhecido o seu direito de alienação potestativa dos valores mobiliários representativos do capital da SOCIEDADE F..., S.A. que detinha, nos termos e para os efeitos
conjugados dos números 5 e 6, ambos do artigo 490 do CSC, e que a ali ré fosse condenada a pagar-lhe o justo valor por esses valores mobiliários.
O supra referido Juiz ... nomeou um perito para proceder à avaliação da participação social do autor na sociedade F... SA.
A perícia estabeleceu uma avaliação de:
a. 78.340 milhares de euros correspondente ao capital próprio da sociedade avaliada.
Depois determinou dois valores que serviriam para efetuar ajustamentos a essa avaliação inicial do capital próprio e que são:
b. 31,8 milhões de euros, a diminuir ao capital próprio, e c. 21.233 milhares de euros, a a aumentar ao capital próprio.
O supra aludido Juiz ... decidiu, salomonicamente, estabelecer o valor da contrapartida no meio do intervalo que que resultaria do valor mínimo da avaliação, obtido pela diminuição de 31,8 milhões de euros ao capital próprio, e do valor máximo da avaliação, obtido pela adição de 21.233 milhares de euros.
O juízo que levou o aludido Juiz ... a decidir salomonicamente não se discute nesta ação – apesar de que com o mesmo também não se concordar.
Dessa decisão foi apresentado recurso da ali sociedade ré para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra. Por sua vez, o ali autor, ali apelado, aqui autor e ora apelante, requereu a ampliação do objeto do recurso ou retificação do erro material da sentença, nomeadamente quanto ao erro de cálculo que incidia sobre a falta de conformidade da sentença. Tal erro de cálculo é o que sustenta o erro judiciário que estriba a presente ação.
O Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão de 12.10.2021, no qual foi mui ilustre relator, o Venerando Juiz Desembargador, Senhor Dr. Emídio Francisco Santos, entendeu, e muito bem, julgar improcedente a ampliação do objeto do recurso, assim como a retificação dos alegados erros materiais. Sustentou tal entendimento, como consta no supra referido acórdão, que os preceitos sobre rectificação de erros materiais não se aplicam à correcção de erros de julgamento.
Ou seja, o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra não apreciou, quanto a esse segmento (o único que importa a este processo), o seu mérito.
Consequentemente, nunca poderia a decisão, nessa parte, ser revogada nesse recurso interposto pela ré.
É certo que o ali autor, aqui também autor e ora apelante, poderia ter interposto recurso, independente do da ré, como meio a ser corrigido tal erro, mas não o fez, por acreditar, embora erradamente, que poderia corrigir o mesmo por intermédio da ampliação do objeto do recurso ou do pedido de retificação supra referido. No entanto, não é porque o ali autor escolheu erradamente o meio processual para reagir ao erro, que o seu direito a ser indemnizado por aquilo que entende ter sido um erro judiciário, pode sucumbir – como se sustentará infra.
O que se discute neste processo é o erro grosseiro e intolerável, uma aberratio, que ressoltou do engano a calcular o valor médio desse intervalo, tal com se explicará detalhadamente supra. Não se tratou, como reconheceu este Venerando Tribunal da Relação, no douto acórdão retro referido, de um mero lapso, mas sim, a ser verificado, um erro de julgamento. Um erro de julgamento, entende o apelante, que é um erro judiciário.
Em consequência desse erro judiciário, o aqui autor intentou a presente ação de responsabilidade civil extracontratual do Estado, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe uma indeminização correspondente, no essencial, a todos os danos patrimoniais que resultaram da impossibilidade de alienar potestativamente os valores mobiliários de que era titular ao preço justo, nomeadamente 31.396,83 euros calculados de acordo com a causa de pedir decantada na petição inicial, para onde se remete por razões de proficiência deste sumário e pelos danos não patrimoniais que resultaram da violação do direito a um processo equitativo perante por parte do tribunal supra identificado e pelas razões supra mencionadas, a apurar à posteriori, em sede de execução de sentença.
O tribunal a quo, de forma surpreendente, entendeu aplicar o regime constante no artigo 13 (2), da Lei 67/2007, que como veremos infra, já levou, noutros processos, à condenação do Estado Português pelo TEDH e cuja aplicação tem vindo a ser recusada pelos tribunais nacionais superiores, incluindo pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça.

Estamos agora em melhores condições para apreciar.

O artigo 13º, 2 da Lei nº 67/2007 dispõe:

2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.

Sobre este dispositivo escreve Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in Regime da Responsabilidade civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Anotado, Coimbra Editora, 2008, pág. 217:
Tal significa que o requisito da ilicitude – consubstanciado na existência de um erro de julgamento -, terá de ser demonstrado não através da acção de responsabilidade civil que se destine a efectivar o direito de indemnização pelo exercício da função jurisdicional, mas no próprio processo judicial em que foi cometido o erro e por via dos meios impugnatórios que, no caso, forem admissíveis.
E na nota 292 explica: Na discussão pública que incidiu sobre a primeira proposta de lei, Luís Catarino in A Responsabilidade do Estado pela Administração da Justiça. O erro judiciário …, pág. 276 - defendeu que a responsabilidade pelo erro devia pressupor o esgotamento prévio dos meios recursórios que a lei põe à disposição do interessado para obviar ao erro, de tal modo que ele só poderia ser reconhecido através de um recurso extraordinário, ou por via de um procedimento especial que viesse a ser instituído que permitisse eliminar o efeito lesivo da decisão errada sem interferir no respectivo trânsito em julgado. Não foi essa, no entanto, a opção do legislador, que claramente fez depender o reconhecimento judicial do erro da mera revogação da decisão judicial na jurisdição competente e, portanto, através da competente instância de recurso.
E na pág. 218: a verificação do requisito da ilicitude convoca, por conseguinte, a existência de uma decisão que, com efeito de caso julgado, determina a revogação da sentença ou acórdão que tenha incorrido em erro de direito ou erro de facto.
E na pág. 220: o reconhecimento judicial do erro nos termos acabados de expor, constitui um pré-requisito da responsabilidade civil pelo exercício da função jurisdicional, sendo uma condição prévia à demonstração da ilicitude, como pressuposto necessário do direito de indemnização.
Se não se fizer a prova, no processo destinado a efectivar a responsabilidade civil da decisão da revogação que tenha incorrido em erro judiciário, não será possível considerar verificada a ilicitude, pelo que a acção deverá necessariamente improceder. Se a decisão pretensamente ilegal ou inconstitucional não é recorrível, ou se o tribunal de recurso, que poderia pronunciar-se em última instância sobre a matéria da causa, manteve o entendimento do tribunal recorrido, não pode dar-se como existente um erro de julgamento para efeitos de responsabilidade civil.



O ora Autor alegou que no âmbito do processo n.º 5100/19...., em que era autor o aqui Autor e Ré A...… SGPS, S.A., que correu termos no Juízo de Comércio de Coimbra – Juiz ..., foi cometido erro judiciário pela douta sentença de 22 de Fevereiro de 2021.
O ora Autor aduz ainda que em sede de apelação dessa douta decisão foi pelo Tribunal da Relação de Coimbra prolatado com data de 12 de Outubro de 2021 douto acórdão. Efectivamente assim foi. Tal aresto faz fls. 58 verso a 75 dos presentes autos. Tal douto aresto julgou improcedente o recurso interposto pela ré, confirmando a sentença recorrida. Transitou em julgado.

Consta desse douto aresto ainda decisão sobre duas pretensões do ora Autor:
1- Erro de cálculo e ambiguidade da sentença;
2- Pedido de ampliação do âmbito do recurso.  

Sobre estes pontos escreveu-se:

Resposta ao recurso
Erro de cálculo e ambiguidade da sentença

O autor, recorrido, requereu a correcção da sentença no sentido de o valor da participação social dele, fixado pelo tribunal a quo em 90,364.00 euros, ser corrigido e fixado em € 121 760,00.
A linha argumentativa do recorrido é, em síntese, a seguinte:
1. A perita apurou um capital próprio de 78.340 milhares de euros, o qual foi primeiramente ajustado em 31,8 milhões de euros pelo valor da imparidade de activos que resultou da “opinião com reservas” do auditor da sociedade dominada e novamente ajustado em 21.233 milhares de euros como resultado da reavaliação de ativos fixos tangíveis (imoveis) efetuada por peritos avaliadores independentes e registados na CMVM;
2. Depois dos ajustamentos supra-referidos e feitos da forma explicada, a senhora perita chegou a um intervalo de valores entre os 46,540 milhares de euros (valor mais baixo) e os 67.773 milhares de euros depois dos ajustamentos (valor mais alto). O tribunal a quo decidiu, salomonicamente, estabelecer o valor da contrapartida no meio desse intervalo;
3. Tratando-se de estabelecer um intervalo de valores entre o valor mais alto e mais baixo que a sociedade avaliada pode ter em resultado de todos os ajustamentos que se entendam necessários, importa, pois, apurar efectivamente esse valor mais alto e esse valor mais baixo, o que não é conseguido pela aritmética utilizada pela senhora perita;
4. O ponto de partida são os 78.340 milhares de euros correspondente ao capital próprio. Depois temos dois valores que vão servir para efectuar os ajustamentos e que são os 31,8 milhões de euros e os 21.233 milhares de euros, a diminuir e a aumentar respectivamente;
5. A forma correcta de realizar esta operação é: apurar o valor máximo por intermédio dos 78.340 milhares de euros (do capital próprio) somado de 21.233 milhares de euros (ajustamento pela reavaliação dos imóveis), o que perfaz 99,573 milhares de euros, ou seja, 66,38 euros por acção, valendo as 2.500 acções do autor, aqui recorrido, 165.955 euros;
6. Apurar o valor mínimo por intermédio dos 78.340 milhares de euros (do capital próprio) subtraído de 31.8 milhares de euros (ajustamento pela imparidade de ativos), o que perfaz 46,540 milhares de euros, ou seja, 31,03 euros por acção, valendo as 2.500 acções do autor, aqui recorrido, 77.567 euros.

Apreciação do tribunal:

A pretensão do recorrido é de julgar improcedente.
Resulta do n.º 2 do artigo 613.º do CPC combinado com o n.º 1 do artigo 614.º do mesmo diploma que é lícito ao juiz que proferiu a sentença ou, em caso de recurso, ao tribunal de recurso rectificar erros materiais da sentença, consistentes em erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto.
Precisando o sentido e o alcance dos preceitos cabe dizer:
1. Eles não se aplicam quando estiverem em causa erros de julgamento;
2. Os erros que neles são tidos em vista hão-de revelar-se no próprio contexto da sentença. Socorrendo-nos das palavras de Alberto dos Reis, na anotação ao artigo 667.º do CPC de 1939, a que correspondem os preceitos acima mencionados do CPC em vigor, “É necessário que as circunstâncias sejam de molde a fazer admitir, sem sombra de dúvida, que o juiz foi vítima de erro material, quis escrever uma coisa, e escreveu outra. Há-de ser o próprio contexto da sentença que há-de fornecer a demonstração clara do erro material” [Código de Processo Civil anotado, Volume V, Coimbra Editora, página 131].
A favor desta interpretação pode citar-se o artigo 249.º do Código Civil, a propósito do regime do erro de cálculo ou de escrita nas declarações negociais, do qual resulta que só dão direito a rectificação os erros de cálculo ou de escrita que sejam revelados no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita.
Interpretados os preceitos acima indicados com o sentido e o alcance expostos, eles dariam guarida à pretensão do recorrido se se concluísse, com base nos termos da sentença, o seguinte:
1. Que havia sido por lapso manifesto que a Meritíssima juíza do tribunal a quo escreveu nela que o valor real da participação social do autor na Sociedade F..., S.A. se situava num intervalo de negociações entre os € 67.773,00 e os € 112.955,00 - correspondentes, respectivamente, ao capital próprio da sociedade corrigido pela imparidade, como valor mínimo, e ao capital próprio corrigido pela imparidade e pelo ajustamento do valor dos activos fixos tangíveis, como valor máximo;
2. Que o que na realidade ela quis escrever sobre o valor real da participação social do autor na sociedade F..., S.A., mas que não escreveu por lapso manifesto, era o que o autor, ora, recorrido alegou.
Nenhuma destas conclusões tem o mais leve apoio no texto da decisão recorrida. O texto revela, e revela com clareza, que a Meritíssima juíza do tribunal a quo escreveu o que queria escrever sobre o cálculo do valor real da participação do autor. A sentença não tem, na parte destacada pelo recorrido, inexactidões materiais, susceptíveis de serem corrigidas ao abrigo do n.º 1 do artigo 614.º do CPC.
A coberto de um pedido de correcção de um erro de aritmética da perícia, repetido na sentença, o que o autor, ora, recorrido, pretende é alterar substancialmente a decisão por, no seu entender, ela ter errado na ordem das operações a fazer para calcular o valor real da participação social dele, autor, na sociedade F....
Sucede, como resulta do exposto acima, que os preceitos sobre rectificação de erros materiais não se aplicam à correcção de erros de julgamento. Estes erros são corrigidos através do recurso, meio de que o autor não lançou mão para modificar a decisão recorrida. (sublinhado nosso)
*
Ampliação do âmbito do recurso
O autor, ora recorrido, requereu ainda a ampliação do objecto de recurso no sentido de se considerar que o valor justo da sociedade eram 99.573 mil euros, correspondente a 66,38 euros por acção e que cabia ao autor receber 165.955 euros pelas 2.500 acções de que era titular.
Considerando que a ampliação foi deduzida para ser tomada em consideração no caso de a apelação ser julgada procedente, o que não sucedeu, está prejudicado o conhecimento da pretendida ampliação do objecto do erro.

*

As sentenças e os acórdãos interpretam-se de acordo com as regras gerais da interpretação e integração da declaração negocial – artigos 236º a 239º do CC.

Assim tal arrestou não verificou a existência dos erros materiais apontados pelo ora Autor, julgando improcedente a pretensão, com trânsito.
Tal aresto não conheceu de eventual erro de julgamento, por tal questão não poder ser objecto de apreciação, uma vez que o ora Autor, nessa acção também autor, não interpôs o competente e necessário recurso.

Tal douto aresto não é revogador da douta sentença de 22 de Fevereiro de 2021, não é susceptível de lhe poder apontar qualquer erro judiciário, e já transitou em julgado.

O Autor falha, portanto, a prova deste pré-requisito da responsabilidade civil pelo exercício da função jurisdicional do Estado. 

Não tendo o Autor feito prova da revogação – pois o acórdão junto manteve a sentença recorrida e, por outro lado, nas partes em que apreciou pretensões do ora Autor, não lhe deu razão, foi julgada verificada a excepção de ausência de prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente e, em consequência, a acção improcedeu, tendo o Réu Estado sido absolvido do pedido. Cfr. Artigo 13º, 2 da Lei 67/2007, conjugado com os artigos 571º e 576º, 1 e 3, de conhecimento oficioso- artigo 579º, todos do CPC.

Correctamente.

*

O Apelante não pode dizer, como diz, ter-se surpreendido com a aplicação do artigo 13º, 2 da Lei 67/2007, uma vez que já o Estado havia precisamente nos artigos 5º a 19º da contestação arguido tal excepção, aliás de conhecimento oficioso. O Apelante teve conhecimento do teor da alegação, teve possibilidade de se defender, e não o fez.
Tinha de contar razoavelmente, porque foi informado de que o Tribunal estava em condições de conhecer do mérito no saneador, com a decisão sobre a excepção, dado o disposto no artigo 595º, 1, b), parte final, do CPC.
A decisão recorrida não constitui decisão surpresa – cfr- artigo 3º, 3 do CPC.

*

Não é inconstitucional a norma do artigo 13.º, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, ora aplicada com esse sentido.

Tal questão já foi, entre de noutros, objecto de judicação pelo Ac. STJ de 26-11-2020 prolatado no p. nº 30060/15.3T8LSB.L3.S1 (Catarina Serra), acessível na base de dados da dgsi.net., precisamente com esse desfecho.
Aí se escreveu:
Sobre a conformidade constitucional desta norma já se pronunciou o Tribunal Constitucional, não julgando inconstitucional a interpretação segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
Primeiro, no Acórdão n.º 90/84, de 30.07., afirmou o Tribunal Constitucional que:
“diferentemente de um órgão ou agente administrativo que faz aplicação de uma norma legal, um órgão judicial «diz o direito» - o «direito do caso» -, e a sua declaração é plenamente válida (…) se e enquanto não for revogada, em sede de recurso, por um tribunal superior. Por isso mesmo, se se compreende que um acto «definitivo» da Administração possa ser posto em causa por uma instância judiciária só para efeitos indemnizatórios, não obstante para a generalidade dos efeitos haver entretanto constituído «caso resolvido», compreende-se do mesmo modo que coisa idêntica não possa suceder com um acto judicial «consolidado». Quer dizer: compreende-se que este último - não havendo sido impugnado, ou, como quer que seja, apreciado pela competente instância de recurso - não possa vir a ser ulteriormente «desautorizado» por outro tribunal (porventura até de diferente espécie, ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior) mesmo só para aqueles limitados efeitos”.
Mais recentemente, no Acórdão n.º 363/2015, de 9.07, o Tribunal Constitucional esclareceu que a solução legal decorrente do n.º 2 do artigo 13.º do RRCEE não exclui em absoluto o direito à indemnização fundada em erro judiciário e explicou:
“limitando-se a estabelecer que o erro judiciário relevante seja previamente reconhecido pela jurisdição competente, o mesmo é dizer, que o reexercício da função jurisdicional coenvolvido na reapreciação da decisão judicial danosa se faça com respeito pelas competências e hierarquia próprias do sistema judiciário e de acordo com o seu específico modo de funcionamento: o reconhecimento do erro judiciário implica uma revogação da decisão danosa pelo órgão jurisdicional competente no quadro de um recurso ou de uma reclamação (ou, porventura, de uma revisão oficiosa)”.

*

O Apelante já na douta petição inicial pretendeu que a responsabilidade civil extracontratual do Estado por erros judiciários pudesse ser apurada ainda naqueles casos em que, por não haver mais hipótese de recurso, ou por alegadamente não se ter apreciado determinada questão em termos de mérito, não seja possível a prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, através da possibilidade de afastar a norma do  artigo 13º, 2 da Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro.

Sugere/requer a suspensão da instância e o reenvio do processo para interpretação  prejudicial pelo TJUE.
Defende que o artigo 13 (2) da Lei 67/2007 deve ser interpretado de forma a não obstaculizar o direito à indemnização por erro judiciário, em consonância com os princípios de responsabilidade do Estado estabelecidos pelo direito da União Europeia e pelo direito à efetiva tutela jurisdicional garantido pela CEDH.

Socorre-se ainda do disposto nos artigos 6º - dever de gestão processual - e 7º- dever de cooperação - do CPC.

Que dizer?

O reenvio prejudicial consiste na colocação de uma questão relativa à interpretação ou à apreciação de validade de um acto de direito comunitário ao TJUE.
Só deve ordenar-se o reenvio quando tal se justificar pela necessidade do recurso ao direito comunitário para a resolução da causa e pela existência de um problema de interpretação desse direito.

Ora não verificamos qualquer necessidade de recurso ao direito comunitário para decidir o presente litígio, nem se verifica qualquer problema na interpretação do nº 2 do referido artigo 13º.

*

O artigo 7º do CPC estabelece o princípio da cooperação, abrangendo as próprias partes, com vista a obter-se, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.

O artigo 6º do CPC dá ao juiz ferramentas com vista a diminuir os custos, o tempo, a complexidade do procedimento.

Mas, em qualquer dos casos, o juiz não se pode substituir à lei nem se pode substituir às partes.

*

O Apelante não recorreu para a Relação da decisão em 1ª instância proferida no processo n.º 5100/19...., nem requereu a ampliação do âmbito do recurso interposto pela contra-parte nesse processo, podendo tê-lo feito – cfr- artigo 636º do CPC.
*

Vai indeferido o pretendido reenvio prejudicial.  

*   

Improcede o recurso.

V- DECISÃO:
 
Pelo que fica exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em julgar a Apelação improcedente, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo Apelante, ora Autor.

Valor da causa – 31.396,86.

Coimbra, 18 de Junho de 2024.

(Rui Moura)   

(Luís Cravo)

(Carlos Moreira)