ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
PRIVAÇÃO DE USO
Sumário


I- A manobra enceta pelo condutor de um motociclo que desviou para a esquerda, invadindo a faixa de rodagem contrária, quando vê surgir à sua frente um veículo automóvel, a sair de uma curva, a ocupar parte da faixa de rodagem por onde seguia o motociclo, em rota de colisão com este, não traduz acto de condução ilegal, antes constituindo uma manobra evasiva ou de salvamento, para evitar a colisão frontal iminente com o veículo automóvel, provocada pela condução delituosa do condutor deste veículo.
II- A questão do dano biológico vem sendo de há algum tempo tratada na jurisprudência e doutrina, quer na vertente do respectivo enquadramento jurídico quer na da sua ressarcibilidade, retirando-se a conclusão de que o chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral, tendo a situação que ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originou, no futuro, durante o período activo do lesado ou da vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, uma afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.
III- Estando apurado que o lesado tinha à data do acidente 43 anos, que auferia um rendimento mensal de 1.650,48€, que ficou com um défice funcional permanente de integridade física fixado em 4 pontos, com punho direito doloroso e joelho esquerdo doloroso, que estas sequelas, embora compatíveis com o exercício da actividade laboral actual, implicam esforços suplementares, que necessariamente também afectarão as suas actividades extra-laborais e durante toda a vida, não apenas da activa, que tal défice funcional constituirá uma diminuição da potencialidade de aumento futuro de ganho do lesado, correlacionando o facto de a actividade profissional deste se prender com o ramo do comércio de motociclos e de o mesmo apresentar dificuldade em os conduzir, o que prejudica a sua capacidade de testar modelos e fazer o acompanhamento de clientes, e ponderando também o padrão ressarcitório operado pela jurisprudência em casos semelhantes, considera-se justo e equitativo arbitrar ao lesado a indemnização de € 20.000,00 pelo dano biológico.
IV- Considerando que o lesado foi sujeito a sofrimento físico e psíquico durante o período compreendido entre a data do acidente e a consolidação das lesões (correspondente ao quantum doloris de grau 4), que, em virtude do embate sofrido, ficou com sequelas que lhe atribuíram um dano estético permanente fixado no grau 1, que se encontra condicionado na actividade de condução de motociclos e velocípedes, impedindo-o de praticar as actividades de motocrosse, btt e ciclismo, que antes praticava, que sofreu depressão, angústia e diminuição da sua auto-estima, que receou pela sua vida quando se apercebeu da iminência do embate com a viatura segurada pela ré, que ficou limitado na sua capacidade de locomoção, que sente angústia por saber que não recuperará totalmente das lesões sofridas na sequência do embate e que sentiu dificuldades ao nível do sono, e ponderando também que o acidente ocorreu por culpa exclusiva da condutora do veículo segurado pela ré, a situação económica do lesado e da ré seguradora e os padrões geralmente adoptados pela jurisprudência, bem como as demais circunstâncias concretas do caso, mostra-se justa e equitativamente fixado o valor de € 15.000,00, como compensação pelos danos não patrimoniais.
V- Apesar de se ter provado que a seguradora não mandou reparar o motociclo acidentado, que o autor o utilizava nas deslocações para o trabalho e para efeitos de lazer, nomeadamente no âmbito de participação em eventos de motociclismo de caris turístico, e que a ré não ofereceu veículo de substituição, não há lugar à indemnização pela privação de uso, por se ter provado que o autor, em virtude das lesões sofridas, deixou de poder conduzir aquele tipo de motociclos, e não ter sido alegado o uso por terceiro.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Recurso de Apelação n.º 783/19.4T8PTG.E1

Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I – Relatório
1. AA instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Generali – Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação da R. a pagar-lhe as quantias de:
«a) 7.610,00€ a título reparação do motociclo ..-TU-..;
b) 379,00€ a título de dano em GPS Garmin;
c) 6.680,00€ a título privação de uso do motociclo ..-TU-.. já vencidos, peticionando ainda os dias que se vencerem a este título;
d) 585,00€ a título de despesas em roupa e capacete;
e) 893,93€ a título de consultas médicas, fisioterapia, exames hospitalares e taxas moderadoras;
f) 160,00€ a título despesas com transportes;
g) 102,00€ despesa certidão acidente GNR;
h) 35.000€ a título de dano biológico;
j) 40.000,00€ a título de danos não patrimoniais;
k) relegando-se para liquidação em execução de sentença ou em momento ulterior à realização da perícia medico legal o dano patrimonial futuro resultante do apuramento do défice funcional permanente e respectivo rebate profissional do Autor;
l) relegando-se para liquidação em execução de sentença ou em momento ulterior à realização da perícia medico legal o valor pelo dano moral complementar resultante do apuramento do quantum doloris e dano estético do Autor;
m) relegando-se para liquidação em execução de sentença a despesa com eventual cirurgia do Autor para tratamento das sequelas resultantes do acidente sub judice bem como despesas médicas, medicamentosas e de fisioterapia futuras;
No valor total de 97.520,80€ (noventa e sete mil quinhentos e vinte euros e oitenta cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos calculados à taxa supletiva legal aplicável aos créditos de que são titulares as empresas comerciais, a contar desde a data do sinistro, 25 de Março de 2018, até integral pagamento bem como no pagamento de custas.»

2. Para tanto, alegou factos relativos à ocorrência de um acidente rodoviário que imputa exclusivamente à acção culposa da condutora do veículo segurado pela R., do qual resultaram os danos patrimoniais e não patrimoniais, cujo ressarcimento pretende com a presente acção.

3. Regularmente citada, a R. deduziu contestação, defendendo-se por impugnação, imputando a responsabilidade do acidente ao autor.

4. Realizou-se a audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido o despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

5. Foi admitida a intervenção acessória do chamado BB como assistente da R., ao abrigo do disposto no artigo 321.º do Código de Processo Civil.
Citado, o chamado deduziu contestação, defendendo-se por impugnação, imputando ao A. a responsabilidade pela ocorrência do acidente.
O Instituto da Segurança Social, I.P. veio deduzir pedido de reembolso das prestações sociais atribuídas ao A., a título de subsídio de doença no valor de € 2.463,41, acrescido de juros de mora, contabilizados desde a data da notificação do respectivo pedido, ao abrigo do disposto no artigo 1.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 59/89.
Contestando o aludido pedido e defendendo-se por impugnação, a R. e o Chamado
pugnaram pela improcedência do mesmo.

6. Realizou-se a audiência de julgamento, com observância das formalidades legais, após o que veio a ser proferida sentença, na qual se decidiu:
« … julga-se a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, decide-se:
a) Condenar a ré Generali – Companhia de Seguros S.P.A a pagar ao autor AA a quantia global de 50.540,42€ (cinquenta mil quinhentos e quarenta euros e quarenta e dois cêntimos), a título de indemnização / compensação por:
i) danos patrimoniais no montante de 15.540,42€ (quinze mil quinhentos e quarenta euros e quarenta e dois cêntimos), acrescido de juros de mora contados desde a citação (07-06-2019), contabilizados à taxa de 4%, até efectivo e integral pagamento;
ii) danos não patrimoniais no montante de 35.000,00€ (trinta e cinco mil euros), acrescido de juros de mora contados desde o trânsito em julgado, contabilizados à taxa de 4% até efectivo e integral pagamento;
b) Condenar a ré Generali – Companhia de Seguros S.P.A a pagar ao autor a quantia que se vier a apurar em sede incidente de liquidação de sentença, quanto a danos futuros decorrentes das despesas com a aquisição de medicamentos;
c) Condenar a ré Generali – Companhia de Seguros S.P.A a reembolsar o Instituto de Segurança Social I.P. no montante de 2.463,41€ (dois mil quatrocentos e sessenta e três euros e quarenta e um cêntimos), acrescido de juros de mora, contados desde a data da notificação do respectivo pedido (19-06-2020), contabilizados à taxa de 4%, até efectivo e integral pagamento.
d) Absolver a ré do restante pedido. (…)»

7. Inconformado com a sentença interpôs o A. recurso, o qual motivou, concluindo do seguinte modo:
A. A sentença proferida pelo tribunal “a quo” encontra-se devidamente fundamentada e apreciada, no entanto e salvo o devido respeito, o Mm.º Juiz “a quo” não apreciou correctamente duas questões, nomeadamente no que concerne ao dano relativo à privação de uso do motociclo propriedade do Autor, bem como, no que concerne ao dano patrimonial futuro resultante do apuramento do défice funcional permanente e respectivo rebate profissional do Autor.
B. Dos factos provados n.º 22º, 23º e 71º da colisão com responsabilidade do veículo segurado na Ré, resultaram danos para o motociclo propriedade do Apelante, sendo que desde a data do acidente o Apelante ficou impedido de utilizar e usufruir o referido motociclo.
C. O referido impedimento foi atestado pela perícia judicial requerida pela Ré, onde ficou demonstrado que o motociclo não teve até à data reparação por falta de condições financeiras do Apelante, sendo que ficou também demonstrado (factos provados n.º 71) não foi facultado qualquer veículo de substituição.
D. Cabia à ora Ré, seguradora do veículo responsável pela ocorrência do acidente, proceder à reparação do motociclo propriedade do Apelante, o que não o fez, tendo dado azo à privação de uso do referido motociclo.
E. Na doutrina e jurisprudência mais recente é adoptada a teoria da ressarcibilidade autónoma da privação de uso, sendo que a impossibilidade de fruição de um bem próprio, em consequência de uma actuação ilícita de outrem, determina um corte temporal no legitimo direito de fruição, sendo totalmente justificada uma indemnização ao Apelante, dos danos decorrentes da privação em si mesma até à data.
F. Pelo que, ao contrário do entendimento do tribunal a quo, atendendo que o motociclo do Apelante continua sem reparação devido ao sinistro sub judice, peticiona ainda o Apelante o mesmo valor diário pelos dias que, entretanto, se vencerem, após a data da entrada da presente acção e até integral e efectivo pagamento do valor correspondente à reparação do veículo.
G. Face ao exposto bem mal andou o tribunal “a quo” nesta parte.
H. O ora Apelante peticionou na Petição Inicial o seu direito ao Dano Patrimonial Futuro porquanto, e como apurado, o Apelante auferia 1434,26€ mensais, tendo 43 anos à data do acidente, padecendo o mesmo seguramente de uma incapacidade permanente absoluta.
I. Tal incapacidade irá perdurar até ao final da vida do Autor, pelo que a indemnização pelo dano patrimonial futuro deverá ser calculada tendo em conta o tempo provável de vida do lesado.
J. Não obstante, à data da entrada da Petição Inicial, não era possível quantificar o défice funcional permanente e respectivo rebate profissional do Autor pelo que nesta parte, no que concerne ao dano patrimonial futuro, o Apelante relegou a sua quantificação para momento posterior, após a realização da perícia médico-legal, ou relegando para liquidação em execução de sentença.
K. Com efeito, o tribunal “a quo” arbitrou ao Apelante danos patrimoniais e não patrimoniais, incluindo neste último o dano biológico, no entanto a douta sentença foi omissa no que concerne ao pedido de dano patrimonial futuro cuja liquidação em execução de sentença foi peticionado.
L. Assim de acordo com os factos provados n.º 50 a 56, o Apelante sofreu várias lesões que se traduziram um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 4 pontos – punho direito doloroso e joelho esquerdo doloroso.
M. Entre a data do acidente e consolidação das lesões, o autor foi sujeito a sofrimento físico e psíquico, que se traduziu num quantum doloris de grau 4/7 e ainda um dano estético permanente fixado no grau 1.
N. As sequelas descritas são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
O. À data do acidente, o Apelante tinha 43 anos de idade e exercia a actividade de coordenador comercial, numa empresa que se dedica ao comércio de motociclos.
P. A indemnização por danos patrimoniais futuros, derivado da incapacidade geral permanente, independentemente de o mesmo se repercutir na vertente do respectivo rendimento salarial, constitui um dano de esforço, porquanto o sujeito para conseguir desempenhar as mesmas tarefas e obter o mesmo rendimento, necessitará de um maior empenho, de um estímulo acrescido.
Q. Este dano visa ressarcir mais do que a capacidade e de perda de rendimentos laborais ou profissionais, pois, acima de tudo, aquilo que mais releva neste segmento é tornar indemne o sofrimento psico-somático que afecta a disponibilidade do autor para o desempenho de quaisquer actividades do seu dia-a-dia.
R. Isto dito, regressando ao caso dos autos, temos que o dano indemnizável sob apreciação – olhado basicamente na sua vertente patrimonial (na medida em que limita as oportunidade no futuro, gerando tais danos) – decorre do Apelante, em consequência do acidente, ter ficado, como se refere nos factos deste acórdão, com um coeficiente de desvalorização, em termos de incapacidade permanente geral (ou em termos de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica), de 4 pontos percentuais, exigindo as sequelas com que ficou esforços acrescidos/suplementares no exercício da sua actividade profissional.
S. Assim, bem mal andou o tribunal “a quo” ao omitir o arbitramento de patrimonial futuro, tendo o ora Autor relegado oportunamente a sua quantificação para momento posterior, para liquidação em execução de sentença.
Termos em que face ao exposto, deverá ser a douta sentença revogada, substituindo-se por outra que condene a Recorrida Generali Companhia de Seguros S.P.A. a liquidar ao Recorrido AA a quantia peticionada já vencida até á presente data a título privação de uso do motociclo ..-TU-.., peticionando ainda os dias que se vencerem a este título, e condenando-se ainda a Recorrida em liquidação em execução de sentença o dano patrimonial futuro resultante do défice funcional permanente e respectivo rebate profissional do Apelante, julgando-se assim procedente o recurso interposto, porque se assim fizerem, farão V. Exas. Meritíssimos Desembargadores a justa e sã JUSTIÇA!

8. Também a R. interpôs recurso da sentença, nos termos e com os fundamentos que condensou nas seguintes conclusões:
1.ª A via de rodagem onde ocorreu o acidente é uma via de terra batida e configura uma paisagem campestre, cujo aspecto melhor pode ser visualizado nas fotos juntas nos autos.
2.ª O autor recorrido participava em evento desportivo, circulando em sentido contrário ao do condutor do veículo seguro na recorrente (Renault).
3.ª Releva para os presentes autos o comportamento dos condutores dos veículos intervenientes no acidente, desde o momento antecedente ao mesmo, nomeadamente quando foram visualizados por cada deles.
4.ª Está provado que o Renault alcançou a curva para a direita, antes da intersecção com o motociclo, ocupando parte da faixa de rodagem contrária (por onde seguia o recorrido), mas que, ao avistá-lo, terá imediatamente guinado para a sua direita, deixando livre a faixa de rodagem contrária.
5.ª Não se apurou qual a largura da faixa de rodagem contrária que o Renault ocupava aquando da visualização do mesmo, mas consta do auto de notícia junto aos autos a sua mobilização precisamente no local de embate, totalmente na sua faixa de rodagem.
6.ª Também está provado que o autor, em alegada manobra de recurso quando avistou o Renault em sentido contrário, terá guinado para a sua esquerda, invadindo precipitadamente a faixa de rodagem de sentido por onde provinha aquele veículo, atravessando-se à sua frente.
7.ª Ou seja, ao invés de igualmente se colocar o mais à direita possível, faz uma manobra de recurso absurda e perigosa, reveladora de extrema imperícia e precipitação irreflectida, guinando para a sua esquerda.
8.ª Não se mostrando justificada, como causa de força maior, a circunstância de para além da berma direita da faixa de rodagem do recorrido existir cerca, ou um decline/ravina.
9.ª Até porque, sendo um motociclo, se configura como admissível a passagem no espaço livre deixado mais à direita, ao invés de assumir uma manobra perigosa e improvável, atravessando-se à frente do veículo automóvel no intuito de o contornar pela esquerda da via de rodagem (atento o sentido do recorrido), qual manobra de circo.
10.ª A circunstância de o condutor do Renault ter retomado a sua faixa de rodagem mal visualiza o motociclo em sentido contrário, contraria o facto provado 14. que, aliás, não se mostra sustentado em qualquer conduta estradal do assistente.
11.ª Antes revela erro de apreciação das provas, confundindo algum “mau feitio” do condutor do Renault, por invasão de motociclos na paisagem campestre e alentejana, com a sua conduta estradal no momento do acidente.
12.ª O acidente de viação teria sido evitado, caso o recorrido tivesse discernimento e destreza para avaliar a sua circulação pela faixa de rodagem do seu sentido, o que não logrou saber fazer, potenciando substancialmente a hipótese de ocorrer um acidente.
13.ª Dos factos provados – 8 - consta que ao “aperceber-se da presença do veículo conduzido pelo assistente, o autor guinou para a esquerda, invadindo a hemifaixa do sentido contrário”.
14.ª A manobra de “recurso” para “evitar o acidente” foi a sua causa exclusiva.
15.ª Numa conduta inesperada e improvável, o recorrido deu causa exclusiva ao acidente de viação, tanto mais que o embate ocorre integralmente na faixa de rodagem contrária àquela por onde o circulava.
16.ª Não se justifica como uma manobra de força maior (porque violadora do Código da Estrada), a manobra de recurso do autor, guinando para a sua esquerda e invadindo a faixa de rodagem contrária.
17.ª A manobra “evasiva” do autor foi desadequada, revelando total imperícia e destreza na condução de veículos motorizados, num acto de precipitação e inabilidade, violadora das regras estradais.
18.ª Foi o recorrido quem contribuiu decisivamente para a produção do acidente de viação e dos danos que sofreu por um embate frontal e violento na frente do Renault.
19.ª Nada consta no processo que indicie uma iminente colisão do veículo conduzido pelo assistente com o motociclo, antes pelo contrário, o Renault retorna à sua faixa de rodagem, deixando livre a faixa contrária.
20.ª O Renault ficou imobilizado no preciso local do embate, o que para além de significar uma circulação em muito pouca velocidade, também realça que a violência do embate e os danos verificados nos veículos (e no autor) é consequência da excessiva velocidade que aquele impunha no motociclo, desde logo pela própria circunstância de se encontrar a participar em prova desportiva.
21.ª A sentença recorrida violou os dispositivos legais contidos nos art.ºs 483º, n.º 1, 563º, 503º, n.º 1, e 570º, todos do CC.
22.ª Pela doutrina da causalidade adequada, vigente na nossa lei, é inequívoco que o comportamento do autor foi desadequado e injustificado, revelador de inabilidade na condução, e causador dos danos por este sofridos, nomeadamente na sua gravidade e dimensão.
23.ª Dão-se por reproduzidos os ensinamentos do Profº Galvão Telles e Profº Vaz Serra, transcritos nas alegações.
24.ª Foi o recorrido, condutor do motociclo, que em violação dos preceitos contidos no n.º 2 do art.º 3º e n.º 1 do artigo 13º todos do Código da Estrada, deu causa exclusiva ao acidente de viação e aos danos dele resultantes, devendo a sentença recorrida ser revogada, com a absolvição total da recorrente.
25.ª Sem conceder, e apenas por hipótese, sempre terá de funcionar o n.º 1 do art. 570º do CC, uma vez quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.
26.ª Sem conceder, a fixação dos danos reclamados a título de dano biológico e danos não patrimoniais mostra-se excessiva e contrária ao que o critério de equidade, sustentado na jurisprudência de casos semelhantes aconselha.
27.ª O recorrido não sofreu perda de capacidade de rendimento, pelo que apenas se coloca indemnização de dano biológico na vertente não patrimonial.
28.ª Devendo também nessa medida ser a sentença revogada, com a redução substancial do quantum total fixado de € 35.000,00, para valores não superiores a € 15.000,00.
29.ª A sentença recorrida violou o artº 496º, nº 4 CC.
Termos em que, deve a sentença recorrida ser revogada, por provado e procedente o presente recurso, com a absolvição da recorrente;
Sem conceder, sempre terá de ser apreciada a repartição de responsabilidades entre os intervenientes do acidente de viação, atento a contribuição que a violação das regras estradais de cada um deu causa ao acidente, e bem assim, aos danos sofridos pelo recorrido;
E ainda sem conceder, serem os danos fixados (biológico e não patrimonial) reduzidos a valores equitativos, não superior a 15.000,00, com o se fará Justiça!

9. Pelo chamado BB também foi interposto recurso da sentença, como consta de fls. 354 a 365.

10. O A. e a R. apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso da parte contrária.

11. Os recursos do A. e da R. foram admitidos como de apelação, com subida nos próprios autos, sendo o do A. com efeito meramente devolutivo e o da R. com efeito suspensivo, face à prestação de caução validamente prestada, não tendo sido admitido o recurso interposto pelo Chamado BB (cf. despachos ref.ª 32417965 e 32482416).

12. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, importa decidir as seguintes questões:
Do recurso do A.
(i) Da atribuição de indemnização pela privação de uso do motociclo; e
(ii) A indemnização relativa ao dano patrimonial futuro pelo défice funcional e respectivo rebate profissional.
Do recurso da R.
(i) Impugnação da matéria de facto;
(ii) Da culpa na produção do acidente; e
(iii) Reapreciação dos valores atribuídos como indemnização pelo dano biológico e danos não patrimoniais.
*
III – Fundamentação
A) - Os Factos
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1. No dia 25 de Março de 2018, pelas 13h00, o autor circulava pelo caminho municipal, freguesia ..., ..., sentido Estrada Nacional ...67 – ..., conduzindo o motociclo da marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-TU-...
2. A via supra referida apresenta um piso em terra batida e permite trânsito nos dois sentidos.
3. Naquela ocasião, o autor encontrava-se a participar no evento motociclista, de cariz turístico, denominado «A...».
4. Após ter percorrido cerca de 1.000 metros naquela via, a uma velocidade não superior a 50 kms/h, o autor deparou-se com o veículo automóvel ligeiro de passageiros, da marca Renault, modelo ..., com a matrícula JT-..-.., conduzido pelo assistente BB, pertencente a CC.
5. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel estava, à data, transferida para a ré através da apólice n.º ...00.
6. A referida viatura automóvel circulava no sentido contrário ao do motociclo.
7. O veículo automóvel conduzido pelo assistente circulava naquela via, ocupando parte da hemifaixa de rodagem do autor.
8. Ao aperceber-se da presença do veículo conduzido pelo assistente, o autor guinou para a esquerda, invadindo a hemifaixa do sentido contrário.
9. De igual modo, ao aperceber-se da presença do motociclo conduzido pelo autor, o assistente guinou para o veículo por si conduzido para a direita.
10. De seguida, deu-se o embate entre as duas viaturas, que ocorreu entre a frente do motociclo e a frente do veículo automóvel, na faixa de rodagem no sentido ... - Estrada Nacional ...67.
11. O embate deu-se logo após o veículo automóvel, conduzido pelo assistente, ter completado a curva que se lhe apresentava para a direita.
12. Após o embate, o assistente encostou o veículo por si conduzido ao lado mais direito da via (sentido ... – Estrada Nacional ...67).
13. Após o embate, mais concretamente às 13h52m, o assistente foi submetido ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado, acusando uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 0,893 g/l, correspondente à taxa registada de 0,94g/l.
14. Em virtude da presença daquela quantidade de álcool no seu sangue, o assistente ficou com as suas capacidades de antecipação, acuidade visual, reacção e motoras diminuídas.
15. Em momento anterior ao do embate supra referido, mais propriamente na recta que antecede a curva mais próxima ao local do embate (sentido ... – Estrada Nacional ...67), o assistente conduzia o veículo automóvel propositadamente no meio da via, ocupando parte da faixa de circulação em sentido contrário.
16. O aludido embate provocou a queda do autor e, subsequentemente, o arrastamento do mesmo juntamente com o motociclo.
17. Após o acidente, o autor foi transportado para o Hospital de Abrantes com vários traumatismos no joelho esquerdo e edema na mão direita, havendo-lhe sido diagnosticado uma fractura proximial da tíbia esquerda e planalto e fractura distal do 1.º radio direito, bem como fractura proximal do metacárpico direito.
18. O autor foi sujeito a imobilização com tela gessada, passando a locomover-se com o auxílio de canadianas.
19. Volvido um período de dois meses, o autor fez reabilitação com fisioterapia.
20. Após essa data, o autor passou a fazer tratamento intra articular ao joelho para viscossuplementação, que implicou repouso e imobilização da perna esquerda.
21. Relativamente ao membro inferior esquerdo, o autor apresenta ligeira instabilidade ântero-posterior simétrica, ligeira instabilidade lateral, mantendo a mobilidade; testes meniscais negativos; sem atrofia muscular; relativamente ao membro superior direito, o autor apresenta cicatriz, hipocromática, entre o 1.º e o 2.º raio do dorso da mão, grosseiramente vertical, com 2cm de comprimento, corrigidos, vestígios de sutura, cicatriz hipocromática, no 2.º raio do dorso da mão, grosseiramente vertical, com 0,5cm de comprimento, sem limitação articular; pronossupinação mantida; sem alteração da força muscular.
22. Da colisão resultaram danos para o motociclo conduzido pelo autor, cujo valor de reparação ascende, pelo menos, a 7.610,00€.
23. Desde a data da colisão, o autor ficou impedido de usar o referido veículo para se deslocar até ao local de trabalho e para efeitos de lazer, nomeadamente no âmbito da participação em eventos de motociclismo, de cariz turístico.
24. Ainda como consequência do aludido embate, o aparelho de GPS, instalado no aludido motociclo, da marca Garmin, modelo 62ST, no valor de 379,00€, ficou destruído.
25. Aquando do acidente, o autor vestia umas calças da marca ..., no valor de 145,00€, umas luvas da marca e modelo ..., no valor de 80,00€ e usava um capacete da marca e modelo ..., no valor de 360,00€ que, como consequência do embate, ficaram totalmente destruídos.
26. No dia 26-03-2018, o autor despendeu a quantia de 69,03€, com o pagamento de uma prestação de serviços médicos – consulta, radiologia convencional, tomografia axial computorizada e farmácia, realizados no Hospital Lusíadas Lisboa.
27. No dia 26-03-2018, o autor despendeu a quantia de 15,00€, com o pagamento de uma prestação de serviços de enfermagem, realizados no Hospital Lusíadas Lisboa.
28. No dia 29-03-2018, o autor despendeu a quantia de 4,50€, com o pagamento de uma taxa moderadora no centro de saúde de Sesimbra.
29. No dia 17-04-2018, o autor despendeu a quantia de 15,00€, com o pagamento de uma prestação de serviços médicos – radiologia convencional, realizados no Hospital Lusíadas Lisboa.
30. No dia 17-04-2018, o autor despendeu a quantia de 14,00€, com o pagamento de uma prestação de serviços médicos – primeira consulta, realizados no Hospital Lusíadas Lisboa.
31. No dia 07-05-2018, o autor despendeu a quantia de 4,50€ com o pagamento de uma taxa moderadora no centro de saúde de Sesimbra.
32. No dia 15-05-2018, o autor despendeu a quantia de 22,50€, com o pagamento de uma prestação de serviços médicos – radiologia convencional, realizados no Hospital Lusíadas Lisboa.
33. No dia 15-05-2018, o autor despendeu a quantia de 15,00€, com o pagamento de uma prestação de serviços médicos, realizados no Hospital Lusíadas Lisboa.
34. No dia 24-05-2018, o autor despendeu a quantia de 50,00€, com o pagamento de uma prestação de serviços médicos – tomografia axial computorizada, realizados no Hospital Lusíadas Lisboa.
35. No dia 15-06-2018, o autor despendeu a quantia de 22,50€, com o pagamento de uma prestação de serviços médicos – radiologia convencional, realizados no Hospital Lusíadas Lisboa.
36. No dia 10-07-2018, o autor despendeu a quantia de 14,00€, com o pagamento de uma prestação de serviços médicos – consulta subsequente realizados no Hospital Lusíadas Lisboa.
37. No dia 15-05-2018, o autor despendeu a quantia de 14,00€, com o pagamento de uma prestação de serviços médicos – consulta subsequente realizados no Hospital Lusíadas Lisboa.
38. No dia 21-07-2018, o autor despendeu a quantia de 50,00€, com o pagamento de uma prestação de serviços médicos – ressonância magnética, realizados no Hospital Lusíadas Lisboa.
39. No dia 21-08-2018, o autor despendeu a quantia de 14,00€, com o pagamento de uma prestação de serviços médicos – consulta subsequente, realizados no Hospital Lusíadas Lisboa.
40. No dia 05-06-2018, o autor despendeu a quantia de 14,00€, com o pagamento de uma prestação de serviços médicos – consulta de ortopedia, realizados no Hospital Lusíadas Lisboa.
41. No dia 14-08-2018, o autor despendeu a quantia de 240,00€, com o pagamento de 20 sessões de fisioterapia, 20 sessões de técnicas especiais de cinesiterapia, 20 sessões de fortalecimento muscular, 20 sessões de massagem manual, 20 sessões de treino de equilíbrio e marcha e 20 sessões de treino de AVD´S.
42. No dia 28-06-2018, o autor despendeu a quantia de 65,00€ com o pagamento de uma consulta de fisiatria.
43. No dia 26-03-2018, o autor despendeu a quantia de 37,10€, com a aquisição de uma tala imobilizadora de punho.
44. No dia 26-03-2018, o autor despendeu a quantia de 11,40€, com a aquisição de medicamentos.
45. No dia 21-04-2018, o autor despendeu a quantia de 19,90€, com a aquisição de uma canadiana.
46. No dia 21-04-2018, o autor despendeu a quantia de 45,00€, com a aquisição de um imobilizador de joelho.
47. No dia 29-05-2018, o autor despendeu a quantia de 160,00€, com a aquisição de um gel condutor compex, electroestimulador e despesas acessórias de transporte.
48. No dia 25-03-2018, o autor despendeu a quantia de 160,00€ com o pagamento de um serviço de táxi realizado entre Abrantes e Sesimbra.
49. No dia 19-06-2018, o autor despendeu a quantia de 102,00€ com a obtenção de certidão de acidente, junto da Guarda Nacional Republicana – Destacamento de Trânsito de Portalegre.
50. As lesões sofridas pelo autor consolidaram-se em 21-08-2018, sendo a repercussão temporária na actividade profissional total fixável em 150 dias (entre 25-03-2018 e 21-08-2018).
51. Entre a data do acidente e consolidação das lesões, o autor foi sujeito a sofrimento físico e psíquico, que se traduziu num quantum doloris de grau 4/7.
52. As sequelas referidas no ponto 21) determinaram-lhe um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 4 pontos – punho direito doloroso e joelho esquerdo doloroso.
53. As sequelas descritas são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares.
54. As sequelas em causa causaram um dano estético permanente fixado no grau 1.
55. As sequelas referidas causaram repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer fixável no grau 4/7.
56. À data do acidente, o autor tinha 43 anos de idade e exercia a actividade de coordenador comercial, numa empresa que se dedica ao comércio de motociclos.
57. Em virtude do exercício da sua actividade profissional, o autor auferiu no mês de Janeiro de 2018 a quantia de 1.405,61€ (líquidos), que inclui o montante de 466,56€, a título de prémio de produção, e subsídio de refeição; no mês de Fevereiro de 2018 a quantia de 1.434,26€ (líquidos), que inclui o montante de 505,50€, a título de prémio de produção, e subsídio de refeição; no mês de Março de 2018 a quantia de 1.258,83€ (líquidos), que inclui o montante de 65,60€, a título de prémio de produção, e subsídio de alimentação; no mês de Julho de 2019 a quantia de 711,23€ (líquidos), que inclui o subsídio de alimentação; no mês de Agosto de 2018 a quantia de 1.371,71€ (líquidos), que inclui o montante de 525,90€, a título de comissões, e subsídio de refeição; no mês de Setembro de 2018 a quantia de 1.642,44€ (líquidos), que inclui o montante de 625,50€, a título de comissões, e subsídio de refeição; no mês de Outubro de 2018 a quantia de 3.203,62€ (líquidos), que inclui o montante de 2.925,54€, a título de comissões, e subsídio de refeição; no mês de Novembro de 2018 a quantia de 4.219,45€ (líquidos), que inclui o montante de 4.117,26€, a título de comissões, e subsídio de refeição.
58. O autor sempre circulou de mota e adorou o ramo do motociclismo na vertente de lazer.
59. O autor era uma pessoa bastante dinâmica, trabalhadora, autónoma e alegre, tendo no último ano passando a ser uma pessoa deprimida.
60. Após o embate acima mencionado, a auto-estima do autor desceu.
61. O autor praticava btt e ciclismo, bem como o motocrosse, modalidades que deixou de praticar em virtude das sequelas sofridas em virtude do embate supra aludido.
62. Em momento imediatamente anterior ao embate, o autor receou pela sua vida.
63. Em virtude do engessamento da perna e posterior viscossuplementação, o autor esteve dependente da ajuda de terceiros, nomeadamente a sua esposa e família mais próxima, vendo a sua liberdade de movimentos limitada, o que lhe causou desgosto.
64. Durante o período de imobilização da perna esquerda, o autor não conseguia sair de casa, nomeadamente para ir buscar os filhos à escola, à excepção das deslocações para efeitos de tratamentos de enfermagem, médicos e de fisioterapia, sendo auxiliado por terceiros naquela ocasião.
65. O autor sentiu angústia ao ver-se acidentado.
66. Actualmente, o autor sente angústia e amargura por saber que nunca regressará à condição física que tinha em momento anterior ao embate.
67. Após o embate acima referido e em virtude das sequelas sofridas acima referidas, o autor ficou impossibilitado de conduzir motociclos nas condições em que anteriormente o fazia, apenas conseguindo cumprir deslocações esporádicas de curta distância e em motociclo de dimensões e cilindrada inferior ao identificado em 1).
68. O autor experienciou dificuldades em dormir nas noites subsequentes ao embate, uma vez que não podia dormir para o lado esquerdo face às dores que sentia.
69. Em virtude das dificuldades ao nível do sono, o autor apresentava grande sonolência e irritabilidade.
70. A ré declinou a responsabilidade decorrente do embate acima mencionado, através de carta datada de 10-05-2018, dirigida ao autor.
71. A ré não facultou ao autor qualquer veículo de substituição.
72. A ré não procedeu à marcação de consulta de avaliação de dano corporal com vista ao apuramento da incapacidade e sequelas resultantes para o autor em virtude do embate supra referido.
73. O Instituto da Segurança Social I.P. pagou ao autor, beneficiário n.º ...76, no período compreendido entre 26 de Março de 2018 a 4 de Agosto de 2018, a quantia de €2.463,41€, a título de concessão provisória de subsídio de doença no valor de 2.463,41€.
74. O autor necessitará permanentemente de recurso a medicação regular, nomeadamente analgésicos, antiespasmódicos ou antiepilépticos para ultrapassar as suas dificuldades em termos funcionais e nas situações de vida diária, em virtude das sequelas sofridas acima referidas.
*
B) – O Direito
1. Ambas as partes recorreram da sentença.
O recurso do A. incide sobre o valor peticionado a título de privação de uso do motociclo, que a sentença não atendeu, e quanto à questão do dano patrimonial futuro, que se diz não ter sido considerado na sentença, enquanto o recurso da R., mais abrangente, engloba a impugnação de um ponto da matéria de facto, e a decisão jurídica da causa, no que respeita à culpa no acidente, em face da dinâmica apurada nos autos, e os valores indemnizatórios fixados pelo dano biológico e danos não patrimoniais, cuja redução pede.
Por razões de ordem lógica e funcionais de precedência de conhecimento, começaremos pela apreciação do recurso da R..
Do recurso da R.
2. A R., a propósito da dinâmica do acidente e da imputação que faz da culpa pela produção do mesmo ao A., diz, na conclusão 10ª, que “[a] circunstância de o condutor do Renault ter retomado a sua faixa de rodagem mal visualiza o motociclo em sentido contrário, contraria o facto provado 14. que, aliás, não se mostra sustentado em qualquer conduta estradal do assistente”, sendo que no corpo das alegações refere que “[o] Facto Provado 14. não decorre de nenhum facto provado em audiência de julgamento, e constitui manifesto erro de apreciação dos factos provados neste processo, seja através dos documentos juntos aos autos, seja através do depoimento das partes e testemunhas. Devendo ser eliminado.”.
O facto provado impugnado é o seguinte: «14. Em virtude da presença daquela quantidade de álcool no seu sangue, o assistente ficou com as suas capacidades de antecipação, acuidade visual, reacção e motoras diminuídas.»
E o facto que o antecede, a que o mesmo se reporta é do seguinte teor: «13. Após o embate, mais concretamente às 13h52m, o assistente foi submetido ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado, acusando uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 0,893 g/l, correspondente à taxa registada de 0,94g/l.»
Sucede que, ao contrário do que advoga a recorrente, as razões para se ter dado como provado o facto impugnado estão bem explicadas na motivação da matéria de facto [e fazemos um parêntesis para dizer que a dita motivação se apresenta como um bom exemplo de análise crítica da prova produzida, em que se evidencia o iter cognitivo do julgador, com clara e precisa referência às provas produzidas e análise crítica das mesmas, com recurso às regras da experiência, que o levaram a dar os factos como provados e outros como não provados], pois, como ali se escreveu:
«No que concerne ao ponto 14), o Tribunal alicerçou a sua convicção na conjugação dos factos em apreço com as regras da experiência comum e da ciência, de acordo com as quais decorre vitreamente que, pelo menos, a partir dos 0,5 g/l no sangue, a ingestão de álcool perturba os reflexos e a coordenação psicomotora, prejudicando também o tempo de reacção.
O acima aduzido corresponde ao entendimento sufragado pela jurisprudência, há muito sedimentado. A este propósito, a título de exemplo, veja-se o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-03-2004, processo n.º 04B3385, disponível in www.dgsi.pt., cujo excerto ora se transcreve:
“O nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia na condução automóvel e o acidente, na perspectiva da condição consubstanciada nesse estado ser em abstracto idónea para o efeito, apenas pode ser provado por via das regras da experiência e dedução lógica de determinados factos assentes, atentando para o efeito nas regras da experiência científica e comum.
À luz do que é considerado pela ciência médica, o álcool no sangue entre 0,5 e 0,8 gramas perturba os reflexos e a coordenação psicomotora e gera a lentidão dos tempos de reacção, bem como o período de euforia da pessoa em causa (J. PINTO DA COSTA, In Vino Veritas, Jornal de Notícias do Porto, edição de 23 de Novembro de1993).
Segundo as regras da experiência comum no domínio da circulação automóvel, a ingestão de álcool para além de determinado limite desconcentra a inteligência e a vontade exigidas na actividade de condução automóvel, já de si perigosa pelos meios que envolve, e potencia a verificação acrescida de acidentes de trânsito.
Face às regras da experiência comum e científica, a condução sob a influência de 0,75 gramas por litro de sangue era idónea a provocar no recorrido incapacidade sensitiva e neuromotora diminuidora da sua percepção e reacção na actividade de condução automóvel que empreendia.”»
Tanto basta para que se mantenha tal facto como provado, sendo certo que, ainda que se entendesse que tal matéria, sendo conclusiva, não devia integrar o elenco factual, sempre se tiraria tal conclusão, em sede de subsunção jurídica dos factos apurados.

3. No que se reporta à apreciação jurídica da causa, propriamente dita, na sentença concluiu-se pela verificação dos pressupostos da responsabilidade civil, previstos no artigo 483º, nº 1, do Código Civil, [(i) facto voluntário; (ii) culpa; (iii) ilicitude; (iv) dano e (v) nexo de causalidade entre o facto voluntário do agente e o dano sofrido pelo lesado], porquanto resulta da matéria de facto dada como provada, que o assistente (condutor do veículo automóvel “JT”) conduzia o veículo segurado pela R., com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 0,893 g/l, invadindo voluntariamente a faixa percorrida pelo autor – cfr. pontos 7), 13) e 15) (i - facto voluntário), de forma intencional - (ii- conduta culposa), obrigando o A. a executar uma manobra evasiva de modo a tentar impedir a colisão, violando, assim, o Código da Estrada (CE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 114/94, de 3 de Maio, designadamente os artigos 11.º, n.º 2, 13.º e 81.º (iii – ilicitude).
E a sua conduta foi também a causa necessária e directa dos danos provocados ao autor, verificando-se, assim, o requisito atinente ao nexo de causalidade.
Deste modo, concluiu-se que, por força da celebração do contrato de seguro mencionado no ponto 5), a R. está obrigada a reparar os danos resultantes do facto ilícito nos termos dos artigos 562.º e seguintes do Código Civil e Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que aprovou o Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel.
A R. discorda, porquanto entende que a culpa na produção do evento danoso não é imputável ao assistente – o condutor do Renault “JT” –, mas sim ao A., condutor do motociclo, afirmando que a manobra de “recurso” feita pelo A. para “evitar o acidente” é que foi a sua causa exclusiva, apelidando tal manobra de “precipitada”, “desadequada” e resultante da imperícia, falta de destreza e inabilidade do A..
Mas, basta ler o elenco dos factos provados relativos à dinâmica do acidente para se concluir pela falência dos argumentos invocados pela recorrente.
Atentemos que o A., condutor do motociclo, seguia na sua mão de trânsito e vê surgir à sua frente o automóvel conduzido pelo assistente, que circulava em sentido contrário ao seu, ocupando parte da hemifaixa de rodagem do A., e estava a sair de uma curva que se lhe apresentava para a direita (para o A. à esquerda).
O acidente dá-se, quando o A. guinou para a esquerda, invadindo a hemifaixa do sentido contrário, para se desviar do “JT” e, simultaneamente o assistente guinou o veículo automóvel por si conduzido para a direita.
É verdade que se o A. tivesse desviado o motociclo para a direita e o assistente tivesse feito o mesmo com o veículo que conduzia, o acidente poderia não ter ocorrido, mas tal é mera suposição e não faz da manobra do A. a causa do acidente.
A manobra evasiva do A. é um acto normal, diríamos mesmo instintivo, de um condutor que se depara com um veículo à sua frente, saindo de uma curva, em rota de colisão frontal, por circular em sentido contrário ao seu e invadindo a sua faixa de rodagem, que tenta evitar a colisão entre o motociclo que conduz e o automóvel, desviando-se do seu curso.
Tal manobra assemelha-se ao que no acórdão desta Relação, de 15/10/2021 Proc. n.º 15/12.6TBSRP.E2), em que foi relatora a aqui 1ª Adjunta, disponível, como os demais citados, em www.dgsi.pt., se qualificou como “manobra de salvamento ou manouevre de sauvetage”, seguindo os ensinamentos de Dario Martins de Almeida (Manual de Acidentes de Viação, 1980, p. 524), que a caracteriza como “… toda a manobra pela qual um condutor a quem é imposta uma situação de perigo para a sua vida, manifesto e iminente, cede in extremis a um impulso de auto defesa para minimizar um prejuízo já inevitável ou para se furtar a ele, preferindo por isso entrar em transgressão às regras do trânsito ou causar porventura um dano a outrem, desde que, instintivamente, tenha esse dano por coisa menos grave do que ser atropelado”.
E, no caso, o acidente só se deu na hemifaixa do assistente porque este, ao mesmo tempo que o A. guinou para a esquerda o motociclo, desviou o veículo automóvel por si conduzido para a direita, ou seja, para a hemifaixa de onde nunca devia ter saído, ainda mais numa curva da estrada em que seguia, sendo certo que sabia que outros motociclos ali circulavam, tendo em conta os incidentes relatados ocorridos com as testemunhas DD e EE, como se dá viva nota na motivação da matéria de facto.
Não está indicado na matéria de facto quais as condições de visibilidade da curva, mas, resultando dos pontos 8 e 9 da matéria de facto que ambos os intervenientes guinaram os respectivos veículos ao aperceberem-se do outro, tendo o embate ocorrido logo após o veículo automóvel ter completado a curva (cf. ponto 11), é de presumir que a curva não tinha visibilidade que permitisse atempadamente ao A. agir antes de outro modo para evitar o embate, sendo certo que em relação ao assistente sabemos que na recta, antes da curva, já conduzia o veículo automóvel propositadamente no meio da via, ocupando parte da faixa de circulação em sentido contrário (cf. ponto 15 dos factos provados), postura que manteve na curva, sendo evidente a gravidade desta sua conduta.
E já nem queremos pensar que assim procedia para intimidar os participantes no evento motociclista em que o A. participava, como resulta do relato das testemunhas DD e EE, que são referidos na motivação da matéria de facto.
Quanto ao facto de o A., ao aperceber-se do assistente a conduzir o veículo automóvel em sentido contrário ao seu, a sair da curva, invadindo parte da sua hemifaixa de rodagem, portanto em rota de colisão frontal com o seu motociclo, ter guinado para a esquerda, e não para a direita, além de outras explicações que se possam perspectivar, designadamente por ser mais fácil desviar para a esquerda por ir descrever uma curva nessa direcção, compreende-se e justifica-se pelo facto de do lado direito da via existirem cercas, bem como uma ravina ou vala com declive acentuado, como referiu o A. e as supra citadas testemunhas.
Por conseguinte, temos por manifesto que a manobra encetada pelo A., que guinou para a esquerda, invadindo a faixa contrária, embora não tenha sido eficaz para evitar a colisão, não traduz acto de condução ilegal que caiba na previsão da norma do nº 1 do artigo 13º do CE, antes constituiu manobra evasiva para evitar a colisão frontal iminente com o veículo do assistente, que seguia em contravenção ao CE, tendo sido provocada pela condução delituosa do assistente violadora das mais elementares regras estradais.
Foi, pois, o assistente que com a sua conduta deu causa ao acidente e com culpa exclusiva da sua parte, não havendo qualquer facto culposo do lesado, concorrente para o evento danoso, legitimador da redução da indemnização, nos termos do n.º 1 do artigo 570º do Código Civil, como advoga a recorrente.
Assim, como se referiu, por força da celebração do contrato de seguro mencionado no ponto 5), a R. está obrigada a reparar integralmente os danos resultantes do facto ilícito em causa.

4. No que se reporta à indemnização pelos danos sofridos, na sentença condenou-se a R. a pagar ao A., além do mais:
«… a quantia global de 50.540,42€ (cinquenta mil quinhentos e quarenta euros e quarenta e dois cêntimos), a título de indemnização/compensação por:
i) danos patrimoniais no montante de 15.540,42€ (quinze mil quinhentos e quarenta euros e quarenta e dois cêntimos), acrescido de juros de mora contados desde a citação (07-06-2019), contabilizados à taxa de 4%, até efectivo e integral pagamento;
ii) danos não patrimoniais no montante de 35.000,00€ (trinta e cinco mil euros), acrescido de juros de mora contados desde o trânsito em julgado, contabilizados à taxa de 4% até efectivo e integral pagamento»
A recorrente não questiona o valor da indemnização pelos danos materiais referidos em i) do dispositivo da sentença.
A sua discordância reporta-se ao valor arbitrado na sentença indicado em ii) do dispositivo, que engloba o valor de € 20.000,00 de indemnização pelo dano biológico, considerado na sua vertente não patrimonial, e € 15.000,00, por danos não patrimoniais.
Diz a recorrente que estes valores são excessivos e contrários ao critério de equidade sustentado na jurisprudência de casos semelhantes, argumentando ainda que o recorrido A. não sofreu perda de capacidade de rendimento, pelo que apenas se coloca a indemnização do dano biológico na vertente não patrimonial, concluindo “serem os danos fixados (biológico e não patrimonial) reduzidos a valores equitativos, não superior a € 15.000,00”.
Vejamos:

5. No que se reporta à indemnização pelo dano biológico, o Tribunal deu como provado que o A. ficou com sequelas resultantes das lesões causadas pelo acidente, designadamente ao nível do punho e joelho esquerdos, que determinaram um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 4 pontos (pontos 21 e 52), havendo as referidas sequelas causado repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de grau 4/7 (ponto 55).
Vejamos.
O dano biológico corresponde à limitação somática-psíquica e funcional do lesado que o obriga a despender mais esforço na execução de tarefas ligadas não só à sua vida profissional, mas também pessoal.
Mas, como se diz na sentença, traduz-se também na redução da capacidade de adaptação do lesado a novas experiências sociais e de emprego que confinam a sua amplitude de escolha, condicionando assim a sua vida, e deverá ser indemnizado independentemente de consubstanciar uma concreta diminuição no rendimento do lesado, em virtude da limitação funcional se repercutir em todas as dimensões da vida do lesado, que não se resume ao nível laboral.
A questão do dano biológico vem sendo de há algum tempo tratada na jurisprudência e doutrina, quer na vertente do respectivo enquadramento jurídico quer na da sua ressarcibilidade, retirando-se a conclusão de que o chamado dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como compensado a título de dano moral, tendo a situação que ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originou, no futuro, durante o período activo do lesado ou da vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, uma afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade (cf. neste sentido, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17/05/2011 – Proc. n.º 7449/05.0TBVFR.P1.S1).

Como dano de natureza autónoma e específica por envolver prioritariamente uma afectação da saúde e plena integridade física do lesado, a sua compensação, como se afirma, por exemplo, no Acórdão do Supremo Tribunal de 11/11/2010 (proc. n.º 270/04.5 TBOFR.C1.S1) “(…) tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança ou reconversão de emprego pelo lesado, enquanto fonte actual de possíveis e eventuais acréscimos patrimoniais, frustrada irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar, quer da acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas.
Na verdade, a perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediatamente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado – constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades do exercício profissional e de escolha de profissão, eliminando ou restringindo seriamente qualquer mudança ou reconversão de emprego e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição, erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuros lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais.”
Tal indemnização tem plena autonomia relativamente à compensação pelos danos não patrimoniais sofridos e visa reparar a perda de capacidade de trabalho e de ganho, de modo a que, conforme se prescreve o artigo 562.º do Código Civil, se reconstitua a situação patrimonial que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, e a circunstância de não se ter demonstrado que, no imediato, o A. tivesse sofrido qualquer redução salarial, também não exclui ou faz esvaziar o seu direito à reparação, que o é de um dano futuro, que vai projectar-se ao longo de toda uma vida activa de produtividade limitada.
Quanto ao cálculo da indemnização, há-de apurar-se o valor com recurso à equidade e dentro da factualidade que resultou provada, sendo que a jurisprudência tem considerado que uma justa indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que a vítima não irá auferir e que se extinguirá no final do período provável da sua vida (não a vida activa do lesado, já que não é razoável ficcionar-se que a vida física desaparece no mesmo momento e com ela todas as suas necessidades), posto que só assim se logrará, na verdade, reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (cf., neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/02/2004 – proc. n.º 03A4282 - e de 25/09/2007 – proc. n.º 07A2727).
A equidade intervém, necessariamente, na medida em que há que assentar no tempo provável de vida da vítima, na diferença que, em cada época futura, existirá entre o rendimento auferido e o que auferiria se não tivesse sido a lesão e, por fim, na evolução da unidade monetária que a indemnização se irá exprimir (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/06/2002, CJ/STJ, Tomo 2º, pág. 128).
Contudo, quanto à concretização do montante indemnizatório, a posição maioritária da doutrina considera que o recurso a fórmulas matemáticas não constitui um critério absoluto, devendo as mesmas ser aplicadas como meros índices ou parâmetros, que carecem de ser temperados mediante o recurso a um juízo de equidade, uma vez que na avaliação dos prejuízos, o juiz deve atender sempre à multiplicidade e à especificidade das circunstâncias que concorrem no caso concreto e que o tornam único e diferente, além de que não se pode desvincular do critério da equidade que é erigido pelo legislador no artigo 566º, n.º 3, do Código Civil, como critério a seguir na fixação deste tipo de indemnização.

6. No caso concreto, embora se tenha englobado no dispositivo como danos não patrimoniais o valor indemnizatório fixado pelo dano biológico – posto que se enquadrou o dano biológico em causa na perspectiva do dano não patrimonial, visto que a factualidade dada como provada não oferece qualquer elemento no sentido de que a diminuição funcional sofrida pelo autor afecte a sua capacidade de trabalho, influindo negativamente no rendimento auferido por este, mas obrigam o A. a um maior dispêndio de esforço na execução das suas actividades laborais e sociais –, distinguiu-se na fundamentação a quantia arbitrada como ressarcimento do dano biológico e a fixadas pelos danos não patrimoniais.
Assim, quando ao dano biológico, tendo em conta (i) o facto de o autor ter, à data do acidente, 43 anos, (ii) auferir um rendimento mensal de 1.650,48€, (iii) ter ficado com um défice funcional permanente de integridade física fixado em 4 pontos, (iv) a esperança de vida em Portugal para indivíduos do sexo masculino, à data do acidente, cifrar-se nos 77,78 anos (de acordo com o Instituto Nacional de Estatística 1), (v) o grau de culpa (exclusiva) do assistente na produção do acidente, (vi) a diminuição da potencialidade de ganho e de aumento de ganho do lesado, correlacionando o facto de a actividade profissional do autor se prender com o ramo do comércio de motociclos e, bem assim, a circunstância dada como provada pelo Tribunal em 67) traduzida na dificuldade em conduzir motociclos, o que prejudica a sua capacidade de testar modelos e fazer o acompanhamento de clientes; e (vii) ponderando também o padrão ressarcitório operado pela jurisprudência em casos semelhantes e a desvalorização da moeda, considerou “justo e equitativo arbitrar ao autor uma compensação de 20.000,00€ (vinte mil euros)”.
Ora, a recorrente, apesar de considerar este valor excessivo face aos valores considerados na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, não indica um único acórdão que fundamente a sua afirmação.
Mas, veja-se, por exemplo, em termos comparativos, o acórdão da Relação da Coimbra, de 14/12/2022 (proc. n.º 16745//20.6T8PRT.P1), onde se concluiu que «[é] adequada, necessária e proporcional a importância de 22.000,00€ para indemnizar o dano biológico sofrido por lesado, guarda da GNR que à data do acidente contava 36 anos de idade, que nenhuma contribuição teve para a produção ou agravamento dos danos e que ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3%, compatível com a sua actividade, porém mediante esforços suplementares».
De resto, as indemnizações não têm que ser miserabilistas, antes devendo constituir a reparação possível adequada e proporcional às circunstâncias do caso concreto.
Como se disse, está apurado que o A. ficou com as sequelas indicadas no ponto 21 dos factos provados, que lhe determinaram um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 4 pontos (punho direito doloroso e joelho esquerdo doloroso), e estas sequelas, embora compatíveis com o exercício da actividade laboral actual, implicam esforços suplementares, que, necessariamente também afectarão as suas actividades extra-laborais, sociais, não sendo despiciendo atentar que tinha apenas 43 anos de idade, assim como tem que se ponderar que tal défice funcional constituirá uma diminuição da potencialidade de aumento futuro de ganho do lesado, correlacionando o facto de a actividade profissional do A. se prender com o ramo do comércio de motociclos e de este apresentar dificuldade em os conduzir, como consta provado no ponto 67), o que prejudica a sua capacidade de testar modelos e fazer o acompanhamento de clientes.
Acresce que a relevância da lesão não pode ser avaliada apenas com referência à vida activa provável do lesado, antes se há-de considerar também o período posterior à normal cessação de actividade laboral, com referência à esperança média de vida [no sentido de dever ser tida em conta a esperança de vida, e não apenas de vida activa, ver por exemplo os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Junho de 2008 (proc. n.º 08A1266), e de 21/02/2013 (proc. n.º 2044/06.0TJVNF.P1.S1)].
Tudo ponderado, aceita-se como equilibrada e adequada a fixação da quantia de € 20.000,00, arbitrada na sentença, como indemnização do dano biológico.

7. E da valoração efectuada do dano biológico, com estes parâmetros, não ocorre uma dupla valoração em termos de danos não patrimoniais propriamente ditos, ou confusão entre uns e outros.
De acordo com o disposto no artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais, que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo que, por força do n.º 3 do mesmo preceito legal, “o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º”
Como refere Antunes Varela, “danos não patrimoniais são os prejuízos (como dores físicas, desgostos morais, vexames, perda de prestígio ou de reputação, complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra, o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização” (Das Obrigações em Geral, 6ª edição, vol. l.°, pág. 571).
E, como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela, “[o] montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, às flutuações do valor da moeda, etc.
E deve ser proporcionado à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.” (Código Civil Anotado, vol. I, pág.501).
Nesta perspectiva, apurou-se que: i) o autor foi sujeito a sofrimento físico e psíquico durante o período compreendido entre a data do acidente e a consolidação das lesões (correspondente ao quantum doloris de grau 4) – ponto 51); ii) em virtude do embate sofrido, o autor ficou com sequelas que lhe atribuíram um dano estético permanente fixado no grau 1 – ponto 54); iii) o autor encontra-se condicionado na actividade de condução de motociclos e velocípedes, impedindo-o de praticar as actividades de motocrosse, btt e ciclismo – pontos 58), 61) e 67); iv) sofreu depressão, angústia e diminuição da sua auto-estima – pontos 59), 60) e 65); v) receou pela sua vida quando se apercebeu da iminência do embate com a viatura segurada pela ré – ponto 62); vi) ficou significativamente limitado na sua capacidade de locomoção – ponto 64); - sente angústia por saber que não recuperará totalmente das lesões sofridas na sequência do embate – ponto 66); vii) sentiu dificuldades ao nível do sono – ponto 68) e 69).
E, como se diz na sentença:
«No que diz respeito às dores sofridas pelo autor quer durante o período compreendido entre o embate e a consolidação das lesões, quer após a consolidação das lesões, afigura-se claro que as mesmas consubstanciam um dano não patrimonial relevante e merecedor de uma tutela reconstitutiva do Direito, na medida em que a intensidade e a frequência do sofrimento sentido pelo autor preenchem o critério da gravidade significativa previsto no artigo 496.º, n.º 1 do C.C.
O mesmo se dirá quanto ao receio sofrido sentido pelo autor por ocasião do acidente, que se apercebeu da iminência do acidente e do perigo que corria.
Por último, a perturbação do sono, dano estético, a tristeza e angústia vividas pelo autor em virtude das limitações decorrentes do acidente, sentidas durante o período de cura e projectadas num expectável longo futuro, atenta a idade do autor, fundamentam também a fixação de uma compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelo autor.
Desta feita, cumpre ao Tribunal arbitrar um valor ressarcitório susceptível de compensar a lesão sofrida pelo autor na sua integridade física e moral (art. 70.º e seguintes do C.C.).
Destarte, importa definir o valor da compensação a arbitrar ao autor, de acordo com o disposto nos artigos 494.º, aplicável ex vi artigo 496.º, n.º 3, e 566.º, n.º 3, todos do C.C.
Com efeito, terá de ser levado em linha de conta: o facto de o acidente se ter dado por culpa exclusiva da condutora do veículo segurado pela ré; a situação económica do autor (acima descrita) e da ré (companhia de seguros), os padrões geralmente adoptados pela jurisprudência, bem como as circunstâncias concretas do caso, já referidas.»
Tudo ponderado, concorda-se que se mostra justo e adequado atribuir uma compensação de 15.000,00€ pelos danos não patrimoniais sofridos pelo A., acima enunciados.

8. Deste modo, considera-se adequada e proporcional a fixação da quantia global de € 35.000,00, decidida na sentença, sendo € 20.000,00 referentes à indemnização do dano biológico e € 15.000,00, a título de compensação pelos danos não patrimoniais.

9. Por conseguinte, improcede o recurso da R.

Do recurso do A.
10. O A. insurge-se quanto ao facto de não lhe ter sido arbitrada qualquer quantia a título de privação do uso do motociclo, que não pode utilizar desde a data do acidente (25/03/2018), não tendo a R. custeado a reparação do mesmo nem oferecido veículo de substituição.
No caso não se mostram provados factos que evidenciem que o A. teve quaisquer danos efectivos e patrimoniais decorrentes da impossibilidade de uso do motociclo, mas está provado que, desde a data da colisão, ficou impedido de usar o motociclo para se deslocar até ao local de trabalho e para efeitos de lazer, nomeadamente no âmbito da participação em eventos de motociclismo, de cariz turístico, o que significa que antes o usava para estas finalidades.
Portanto, a questão que se coloca consiste em saber se, não se tendo provado quaisquer danos efectivos e patrimoniais quanto à falta de utilização do veículo, ainda assim, há lugar a indemnização pela indisponibilidade de uso do mesmo.
Não se desconhece a divergência jurisprudencial e doutrinal relativamente à questão de saber se a privação do uso do veículo em si mesma, isto é, em termos abstractos, produz automaticamente um dano ou se, ao invés, se deve exigir uma prova de factos que mostrem ter ocorrido um dano, em concreto.
Este dissídio é analisado com uma descrição das diferentes tomadas de posição no Acórdão da Relação de Coimbra, de 6 de Março de 2012 (proc. n.º 86/10.0T2SVV.C1) para o qual remetemos a descrição dessa polémica.
Porém, parece-nos que se o bem lesado satisfazia uma necessidade de uso concreta do sujeito e deixou de a satisfazer, porque a lesão o tornou impróprio para esse fim, há aqui, sem dúvida um dano.
Só assim não será se porventura essa necessidade, por qualquer razão, terminou definitivamente ou ficou suspensa na ocasião da lesão ou, ainda, se a necessidade não era assegurada exclusivamente por aquele bem e pôde continuar a ser satisfeita através de outros meios do lesado ou de terceiro, sem que tivesse ocorrido qualquer diminuição na satisfação das suas restantes necessidades.
Daí que se afigure que a privação de um bem que era usado pelo lesado constitua em regra um dano, pois esta regra é o reflexo desta outra: a generalidade dos bens que alguém detém e usa, usa-os para satisfazer uma qualquer necessidade.
Assim, quando alguém é privado de um automóvel, que usava, existe na generalidade dos casos um dano, na medida em que se trata de um bem que satisfazia várias e mutáveis necessidades quotidianas do seu proprietário, familiares ou amigos, principalmente as relativas à circulação da pessoa entre locais, às resultantes da sua utilização numa actividade comercial ou de qualquer outro tipo.
A este propósito, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-07-2018, (proc. n.º 176/13.7T2AVR.P1.S1), onde se concluiu que: «Independentemente da resposta à questão da ressarcibilidade do dano da privação do uso como dano autónomo de natureza patrimonial, o facto de o veículo sinistrado ser usado pelo lesado no seu quotidiano profissional e na sua vida particular não pode deixar de determinar a atribuição daquela indemnização respeitante ao período em que perdurou a privação do uso da viatura …».
E, a propósito do ónus probatório que incide sobre o lesado, atente-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-06-2021 (proc. n.º 879/17.7T8EVR.E1.S1), que na sentença também se dá nota, cujo excerto do sumário ora se transcreve:
«I. Para o reconhecimento de um direito de indemnização pelo dano de privação de uso de um veículo acidentado é suficiente a prova pelo lesado que utilizava habitualmente a viatura na sua vida diária, presumindo-se que, da respectiva privação, derivem danos efectivos.
II. Os prejuízos podem ser de ordem patrimonial (acréscimo de despesas) ou de ordem não patrimonial (incómodos, sacrifícios, etc.) e, não sendo os mesmos concretamente apurados na fase declarativa, deve a respectiva indemnização ser remetida para posterior liquidação, nos termos do artigo 609.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Em último caso, funcionará um juízo de equidade.»
Porém, no caso concreto, concordamos com a sentença, quando nela se concluiu não haver lugar, nas circunstâncias do caso concreto a indemnização pela respectiva privação, pelo facto de o A. não poder usar o veículo em causa, nem ter alegado sequer a utilização do mesmo por terceiro, não sendo despiciendo que o veículo é um motociclo.
Efectivamente, ficou provado que, após o embate e em virtude das sequelas sofridas, o autor ficou impossibilitado de conduzir motociclos nas condições em que anteriormente o fazia, apenas conseguindo cumprir deslocações esporádicas de curta distância e em motociclo de dimensões e cilindrada inferior ao identificado em 1) (cf. ponto 67 dos factos provados).
Tal significa que, ainda que a R. tivesse disponibilizado ao A. um motociclo de substituição, com as características do danificado, o A. não o podia utilizar como vinha fazendo antes do acidente.
E esta circunstância, ou seja, o facto de o A. ter ficado impossibilitado de fazer uso daquele tipo de veículos em virtude do condicionamento físico de que padece, foi ponderado em sede de compensação no plano da compensação dos danos não patrimoniais.
Assim, como diz o Tribunal recorrido, o eventual reconhecimento pelo Tribunal do direito a uma indemnização por privação do uso do aludido motociclo, que o A. não podia nem pode utilizar, em conjunto com a compensação pela limitação no exercício da actividade da condução de motociclo, geraria um enriquecimento indevido para o A., que não pode ter lugar. obrigação duplicada à ré e, forçosamente, um enriquecimento sem causa ao autor.
Diferente solução mereceria a pretensão deduzida pelo autor, caso tivesse sido alegado e provado o uso habitual do dito motociclo por parte de terceiro.
Nessa hipótese, a conduta culposa do condutor do veículo segurado pela R. geraria a obrigação de reparar o dano em causa, fazendo reconstituir a situação que existiria, se não tivesse verificado o evento danoso, uma vez que a privação do uso decorreria exclusivamente dos danos causados no motociclo em virtude do embate sofrido.
Deste modo, entende-se não ser devida ao A. a pedida compensação pela privação do uso do motociclo acidentado.

11. Diz ainda o A./Apelante que peticionou o seu direito ao dano patrimonial futuro – e como apurado, o Apelante auferia 1434,26 € mensais, tendo 43 anos à data do acidente, padecendo o mesmo seguramente de uma incapacidade permanente absoluta, pelo que a indemnização pelo dano patrimonial futuro deverá ser calculada tendo em conta o tempo provável de vida do lesado –, mas “à data da entrada da Petição Inicial, não era possível quantificar o défice funcional permanente e respectivo rebate profissional do Autor pelo que nesta parte, no que concerne ao dano patrimonial futuro, o Apelante relegou a sua quantificação para momento posterior, após a realização da perícia médico-legal, ou relegando para liquidação em execução de sentença.”
Diz ainda, que “o tribunal “a quo” arbitrou ao Apelante danos patrimoniais e não patrimoniais, incluindo neste último o dano biológico, no entanto a douta sentença foi omissa no que concerne ao pedido de dano patrimonial futuro cuja liquidação em execução de sentença foi peticionado.
Embora não o diga expressamente, está o apelante a invocar a nulidade da decisão, prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, por omissão de pronúncia.
É certo que no pedido formulado, sob a alínea k), o A. relegou para liquidação em execução de sentença, ou em momento ulterior à realização da perícia médico-legal, o dano patrimonial futuro resultante do apuramento do défice permanente e respectivo rebate profissional do A..
Porém, não é menos certo que tal dano foi ponderado na fixação da indemnização pelo dano biológico, considerando, precisamente, que as sequelas determinaram para o A. um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 4 pontos, apurado na perícia médico-legal, e que as sequelas eram compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas que implicavam esforços suplementares.
E foi com base neste factor de incapacidade e suas consequências para a vida do lesado, que ponderando todos os factores referidos a respeito do dano biológico sofrido pelo A., que se fixou a indemnização devida a este título, em termos que mereceram a nossa concordância.
Em rectas palavras, a razão invocada pelo A. para ter relegado para liquidação o apuramento do dano patrimonial futuro resultante do défice funcional permanente e respectivo rebate profissional, deixou de existir com a realização da perícia médico-legal, que fixou o grau de incapacidade e suas repercussões na vida laboral e social do A., que foram devidamente ponderadas, valoradas e quantificadas na atribuição do montante indemnizatório pelo dano biológico.
À data da sentença o Tribunal detinha todos os elementos necessários à decisão, pelo que não podia relegar para liquidação o que de liquidação não carecia.
Por conseguinte, e sem necessidade de mais considerações, temos por manifesto que não ocorreu qualquer omissão de pronúncia, tendo o Tribunal tido em conta e valorado, e bem, a incapacidade funcional fixada ao A. e as repercussões desta na sua vida laboral e social.

12. Em face do exposto, improcede também o recurso do A..

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IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedentes as apelações do A. e da R. e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Custas de cada um dos recursos a cargo dos respectivos recorrentes.
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Évora, 6 de Junho de 2024
Francisco Xavier
Elisabete Valente
Maria Adelaide Domingos
(documento com assinatura electrónica)