OBJETO DO RECURSO
PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
Sumário

I - Convocando o Recorrente questões de facto e de direito que não foram oportunamente alegadas na oposição/contestação, estão precludidas, por via do princípio da concentração da defesa, uma delas sequer objecto de alusão ou apreciação na sentença, com o que evidentemente excluída de conhecimento em sede de recurso.
II - Em causa factos em que se estribam novas ou distintas excepções (que não apenas enquadramentos jurídicos de realidades trazidas ao processo na contestação), não oportunamente alegados, a possibilidade do conhecimento destes e, nessa medida, da defesa/argumentação recursiva atinente, estava dependente da oportuna, admissível e admitida alegação atendível destes, por via da dedução fundamentada e válida de articulado superveniente.
III - Não tendo contestado/impugnado, antes admitido a Ré a realização da entrega da mercadoria ao destinatário pela Autora, vedado em sede de recurso reconduzir-se ao desconhecimento da entrega ou à inferência pela não efectividade desta ou pelo extravio da mercadoria. E irrelevante a questão do ónus e forma ou modo da prova do cumprimento da obrigação de entrega. O ónus da prova respeita à demonstração de um facto controvertido, impugnado, sendo que a Ré não contrariou, antes houve por certa, a entrega/recebimento da mercadoria pelo destinatário.
IV - Impedida, consequentemente, por impossibilidade legal, a apreciação “do mérito” das questões suscitadas no recurso, nos termos das conclusões formuladas, porquanto não é admissível nesta fase do processo a alteração do seu objeto.

(da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Processo: 35865/23.9YIPRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível da Maia - Juiz 2


Relatora: Isabel Peixoto Pereira
1º Adjunto: Ernesto Nascimento
2º Adjunto: Aristides Rodrigues Almeida


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Acordam os juízes da 3.ª secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.

A..., S.A., com sede na Rua ..., na Maia, veio propor a presente acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato contra B..., Unipessoal, Lda., com sede na Rua ..., nas ..., pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de Eur. 18.640,28, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos até integral e efectivo pagamento, contados à taxa legal, bem como do montante de Eur. 40,00, a título de “outras quantias”.

Para fundamentar a sua pretensão alega a autora, em síntese, que:  no âmbito de um acordo celebrado entre ambas, prestou à requerida, a pedido desta, diversos serviços de transitário, logística e de operações de apoio ao transporte, no valor global de Eur. 18.640,28.

Apesar de interpelada para o efeito, a ré não procedeu ao pagamento da quantia supra aludida.

Pessoal e regularmente citada para os termos da presente acção, a ré veio apresentar a respectiva oposição.  Para fundamentar a sua defesa reconduziu-se à incompetência territorial e, de fundo, excepcionou que a requerente não cumpriu as obrigações a que estava adstrita no âmbito do contrato celebrado, uma vez que tinha ordens expressas para entregar o documento para o levantamento do contentor à requerida. Ora, contrário das referidas indicações, entregou directamente tal documento à cliente da requerida, a qual levantou a mercadoria, sem proceder ao pagamento. A Requerente tinha, pois, ordens expressas para entregar o BL (documento para o levantamento do contentor) à requerida, tendo entregue directamente o documento que permite proceder ao levantamento da mercadoria que se encontra no contentor à cliente da requerida; assim inviabilizando a cobrança pela requerida prévia ao levantamento da mercadoria.

Realizada a audiência, foi proferida decisão, a qual julgou a acção procedente e, em consequência, foi a ré B..., Unipessoal, Lda.  condenada a pagar à autora A..., S.A. a quantia de Eur. 18.640,28 (dezoito mil, seiscentos e quarenta euros e vinte e oito cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos até 10/4/2023 no montante de Eur. 606,68, dos juros de mora vencidos desde 11/4/2023 até 29/6/2023, contados sobre a quantia de Eur. 18.640,28 e calculados à taxa legal, dos juros de mora vencidos desde 30/6/2023 até à presente data, contados sobre a quantia de Eur. 18.680,28 e calculados à taxa legal e dos juros de mora vincendos desde a presente data até integral e efectivo pagamento, contados sobre a quantia de Eur. 18.680,28 e calculados à taxa legal.

É desta decisão que vem interposto recurso pela Ré, concluindo a recorrente pelo modo seguinte:

O tribunal violou o instituto contemplado no Dl 352/86 de 21 de outubro;

Considerou a relação jurídica dos autos numa mera prestação de serviço nos termos 1154º Código Civil;

Não fazendo qualquer análise ou referência ao direito comercial marítimo;

Considerando ainda a recorrente que julgou e aplicou mal o direito incluindo o disposto no art. 342º do Código Civil-;

1. O Tribunal a quo decidiu:

2. “Julgar a presente acção procedente e, em consequência, condenar a ré B..., Unipessoal, Lda. a pagar à autora A..., S.A. a quantia de Eur. 18.640,28 (dezoito mil, seiscentos e quarenta euros e vinte e oito cêntimos), acrescida dos juros de mora vencidos até 10/4/2023 no montante de Eur. 606,68, dos juros de mora vencidos desde 11/4/2023 até 29/6/2023, contados sobre a quantia de Eur. 18.640,28 e calculados à taxa legal, dos juros de mora vencidos desde 30/6/2023 até à presente data, contados sobre a quantia de Eur. 18.680,28 e calculados à taxa legal e dos juros de mora vincendos desde a presente data até integral e efectivo pagamento, contados sobre a quantia de Eur. 18.680,28 e calculados à taxa legal.”

3. Perante a douta decisão discorda da aplicabilidade do regime jurídico contemplado no artigo 1154º do Código Civil.

4. - A disciplina do contrato de transporte de mercadorias por mar consta, no essencial, do DL 352/86, de 21 de Outubro, na senda do preceituado pela Convenção de Bruxelas de 25 de Agosto de 1924, sobre conhecimentos de carga;

5. Nos contratos de transporte de mercadorias por mar, sujeitos ao regime do DL 352/86, aplica-se imperativamente a Convenção de Bruxelas de 25 de Agosto de 1924, por força da qual as operações de carga e descarga são da responsabilidade do transportador, embora materialmente efectuadas por operadores portuários;

6. Entende que o Tribunal a quo, assumiu o transporte marítimo como uma prestação e serviço sendo a sua obrigação quanto à contraprestação com a entrega da respetiva fatura, ficando a aqui recorrente obrigada a proceder ao pagamento;

7. Consta dos fatos provados no ponto 5 “O transporte aludido em 2) foi efectuado ao abrigo de um Sea Waybill emitido antes do início desse mesmo transporte.”

8. Sea Waybill é um contrato legal entre o expedidor e o transportador (e depois o transportador e o destinatário), ele também:

9. Requer assinaturas de representantes autorizados do remetente, transportador e destinatário.

10. Competia a Recorrida provar a sua boa entrega ao destinatário, fato que não o fez.

11. A A. teria de ter apresentado em tribunal o BL ou o Sea Waybill com «Clean Bill of Lading» indica que as mercadorias foram recebidas numa aparente boa ordem e em boas condições.

12. Era sua total responsabilidade, da A., a entrega, em boas condições da mercadoria ao destinatário;

13. Só ficou provado que a mercadoria chegou ao México no dia 20 de Dezembro de 2022.

14. Não ficou provado nos AA que a A. tenha entregado ao destinatário tal mercadoria.

15. À luz do referido direito marítimo, não ficou provado nos AA que a A. tenha entregado ao destinatário tal mercadoria;

16. Violando o tribunal desta forma o dispostos do artigo 16º e 17º do DL 352/86 de 21.10;

17. Deveria ter o Sea Waybill, nº……., assinado no campo referente a uso da Alfândega em entrada autorizada.

18. Não a A. apresentou qualquer documento nomeadamente Sea Waybill, ou outro documento que comprovasse a respectiva entrega.

19. A A. em momento algum do processo junto documento como Sea Waybill ou Summary Entry/ Immediate Delivery ou outro a comprovar a quem a mercadoria foi efetivamente entregue com a assina que representasse a firma destinatária das mercadorias e se tem poderes para o efeito.

20. A A. tinha o ónus de provar que a mercadoria tinha sido entregue a quem efetivamente estava identificado como destinatário no Seawaybill;

21. Pelo não compreende como o Tribunal a quo inseriu a relação jurídico dos autos como mera prestação e serviços, nos termos previstos do código civil, ignorando por completo a aplicação do Direito Marítimo;

22. Tudo indica que a mercadoria não foi entregue ao destinatário;

23. Uma vez que o destinatário não pagou até ao momento a mercadoria à R.- fato provados nº 13 da sentença.

24. Ao ignorar o Tribunal a quo das regras e costumes do direito marítimo e o ónus da prova que recaia contra a A., de mostrar a boa execução da sua prestação (da entrega ao destinatário da mercadoria e as boas condições desta);

25. Violou o disposto no DL 352/86 de 21.10;

26. Bem como o art. 342º do Código Civil- Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.

27. Deveria a A. demonstrar a sua boa prestação para exigir a sua contra prestação, que aqui seria o pagamento mediante as faturas apresentadas.

28. Pelo que considera que o tribunal não deveria ter condenado a R. no pagamento da prestação da A., por considerar que esta prestou a sua prestação com defeito ao não ter entregue a mercadoria ao destinatário;

29. Era A. que tinha a única prova da boa entrega;

30. Não o fez porque e A. não tem qualquer documento assinado pelo destinatário;

31. E ao não ter pago a cliente da R, demonstra que a mercadoria foi certamente extraviada ou entregue a outra entidade que não ao destinatário;

32. Pelo que considera a recorrente nada ter apagar à A;

33. E que ao contrário das prestações de serviços, o pagamento não deveria ser exigido com as meras faturas mas com o Seawaybill, assinado pelo destinatário da mercadoria.

34. Quanto à caducidade o Tribunal a quo considerou extemporânea alegação da caducidade da ação por parte da A;

35. A Ré desconhecia e ainda desconhece se a mercadoria tinha ou não chegado ao México e mais concretamente se tinha chegado ao destinatário e quando;

36. A R desconhece se foi enviado a notificação para o destinatário conforme determina o nº 2 do art. 21º;

37. A notificação prevista no nº 2 será feito ao destinatário porque só ele pode aferir a mercadoria e que esta lhe será a si entregue;

38. O Bill of Landing deve ser assinado pelo comandante do navio ou por um preposto expressamente autorizado - pois confirma o recebimento correto das mercadorias, no porto de origem.

39. Essa assinatura também torna o transportador responsável pela entrega da referida carga, sem danos e no porto de destino.

40. Cabia à A. ter com o comprovativo do B/L ou do Seawaybill, devidamente assinado bem como dos restantes documentos que provam a chegado do navio ao porto destino, notificar devidamente a R. para o pagamento;

Da Caducidade

41. Ora com a alegada notificação, doc 2 entregue na audiência de julgamento, email com data de março, a R tomou conhecimento da caducidade da ação;

42. Até à data a R. estava completamente desconhecedora do destino da carga;

43. Recebendo informações diversas, especulativas e contraditórias quanto à chegada da carga ao destinatário;

44. A notificação ali prevista deverá ser endereçada ao destinatário e não ao expedidor, aqui R.;

45. Contudo considera-se que a caducidade ali prevista para o pagamento dos seus créditos deverá ser aplicado também à cobrança dos créditos do transportador ao expedidor quando este é responsável pelo pagamento do transporte;

46. E a data concreta e efetiva da boa prestação da A. só esta tem o seu conhecimento;

47. Com o email a A demonstra que o navio chegou 20.12.2022, a qual teria 45 dias para propor ação competente;

48. Pois ao contrário do entendimento do tribunal a quo, a recorrente considera que não é com apresentação as faturas que a R. fica obrigada ao pagamento;

49. Mas sim com o comprovativo da chegada da mercadoria em boas condições e respetiva entrega ao destinatário, exercendo o seu direito de retenção ou solicitando o pagamento devido;

50. Cabe sempre á transportadora provar documentalmente a chegada ao porto destino da mercadoria em boas condições com Clean Bill of Lading ou com o Seawaybill devidamente assinado e tudo em conformidade, encontra-se somente aí na condição de informar e solicitar o seu pagamento ao destinatário ou ao expedidor;

51. Fato que nos presentes autos não se encontra provado e nunca foi demonstrado pela A.

52. Pelo que se considera que a A., não se encontra em condições de poder exigir qualquer pagamento pelo transporte o qual se desconhece, (A., não comprovo) que chegou em boas condições ao destinatário.

Conclui pela respectiva absolvição dos pagamentos exigidos pela A., no âmbito do transporte marítimo de mercadorias para o destinatário no México.

Contra-alegou a autora, reconduzindo-se à inadmissibilidade da apreciação de impugnação de matéria de facto, por vício do recurso mesmo, que não explicita os termos do julgamento erróneo desta.  Sempre quanto à matéria de direito, aduz a Recorrida que a Recorrente se limitou a remeter para um regime jurídico, sem identificar, ou sequer indicar, as concretas normas que – alegadamente – seriam aplicáveis e cujo sentido era contrário à douta sentença proferida nestes autos. Pelo que o recurso interposto pela Recorrente deverá ser rejeitado. Sem prescindir, por mera cautela de patrocínio, mais aduz que a única conduta imputada à aqui Recorrida foi a alegada entrega do BL a um terceiro – facto que não ficou provado e, aliás, contrariado pelo próprio Gerente da Recorrente. Sempre a Recorrida cumpriu a obrigação a que estava adstrita.

Finalmente, quanto à caducidade do direito de acção, vedado à Recorrente utilizar o Recurso de Apelação como articulado para fazer valer argumento que não foram invocados em sede de (sua) oposição à injunção, recorrendo, desta forma, ao uso de novos meios de defesa que anteriormente não foram invocados. É que, de harmonia com o disposto no artigo 573.º, n.º 1, do CPC, “toda a defesa deve ser deduzida na contestação”, em conformidade com o princípio da concentração de defesa. Sucede que, finda a fase dos articulados, a Recorrente não invocou a caducidade do direito da Recorrida e ao não ter invocado qualquer exceção na oposição, como as presentes no corpo de alegações, o direito de tal invocação precludiu.

Em ostensiva má fé, a Recorrente veio – tentar é certo – alicerçar a invocação da caducidade no facto de a Recorrida ter apresentado um documento – novo – aquando da audiência de julgamento. Sucede que, apesar de a Recorrida ter junto dois documentos na aludida diligência processual – uma vez que a prova é a apresentar -, quem juntou o aludido documento foi sim a própria Recorrente. Note-se que o aludido documento deu entrada no processo pelas mãos da própria Recorrente, na data da audiência de julgamento.

A recorrente litiga de má fé, pelo que deverá ser condenada no pagamento de uma multa e indemnização a favor da Recorrida, em quantia nunca inferior a € 900,00 (novecentos euros).

Conclui pela rejeição liminar do Recurso interposto pela Recorrente. Sempre pela improcedência deste e pela condenação da Recorrente por litigância de má fé.


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Não se determinou, desde logo, o cumprimento do contraditório quanto à pretensão de condenação da Autora por litigância de má fé, suscitada em sede de contra-alegações, por desnecessidade, nos termos e para o efeitos do art. 3º, n.º 3 do CPC.

Como é sabido, o princípio do contraditório é um dos princípios basilares que enformam o processo civil. Na verdade, “o processo civil reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars)… - esta estruturação dialéctica ou polémica do processo tira partido do contraste de interesses dos pleiteantes, ou até só do contraste das suas opiniões…para o esclarecimento da verdade”, como bem anota  Manuel de Andrade, Noções Elementares, 1979, pág.379 -.

Sempre este princípio não é de perspetivação e aplicação inelutável e absoluta, apresentando-se situações em que pode ser mitigado ou mesmo postergado, vg. em situações de atendível urgência ou, no próprio dizer da lei, de manifesta desnecessidade.

Por outro lado certo é que os advogados que patrocinam as partes devem conhecer o direito, e, consequentemente, uma vez na posse dos factos, devem, de igual modo, prever todas as qualificações jurídicas de que os mesmos são susceptíveis.

Nessa medida, o cumprimento do princípio do contraditório não se reporta, pelo menos essencial ou determinantemente, às normas que o juiz entende aplicar, nem à interpretação que delas venha a fazer, mas antes aos factos invocados e às posições assumidas pelas partes.

O que deve entender-se por manifesta desnecessidade constitui-se como o cerne da questão.

Na situação aprecianda, em causa a análise ou ponderação do comportamento ou actividade processual da parte, expresso nos autos, com o que não se antevendo que o contraditório possa relevar para a determinação dos factos que interessam… Outrossim, antevendo-se a improcedência da pretensão, não se crê que o contraditório seja necessário a lograr um enfoque diverso da questão jurídica convocada.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II.

Considerando que o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), adiante-se que não há qualquer questão suscitada em sede de recurso que possa/deva ser apreciada/conhecida.

A Autora reclama a insuficiência da fundamentação argumentativa do recurso, em termos de justificar a sua não admissão pura e simples.

Como afirma João Aveiro Pereira, O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil, in O Direito, 141.º, 2009, II, 309-337), de harmonia com o acórdão do S.T.J. de 19/02/2008, Proc. n.º 08A194 (Sebastião Póvoas), as conclusões não podem limitar-se a uma singela «afirmação de procedência do pedido da recorrente, antes contendo todo um raciocínio lógico-jurídico a contrariar as razões adoptadas no aresto posto em crise (...)».

Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, 5º vol. reimpressão, Coimbra Editora, 1981, pág. 360, lembra o caso do ac. do STJ de 10/12/1943 que decidiu que «não satisfaz ao disposto no art. 690.º [atual art. 639.º, n.º 1, do C.P.C.] a alegação do recorrente que, a título de conclusão, se limita a solicitar a absolvição do pedido e a revogação da sentença apelada, pois o artigo exige que nas conclusões se indiquem resumidamente os fundamentos por que se pede a alteração ou anulação da sentença ou despacho».

Como se afirma o Ac. do TRC, de 02.12.1992, sumariado no B.M.J. 422.º-441, citado por João Aveiro Pereira, «alegar não é só apresentar um requerimento com a forma de alegação, mas sim atacar a decisão recorrida e dizer das razões por que se discorda dela, para serem apreciadas no tribunal superior» Cfr. a este propósito ainda Ac. do TRL de 23.03.2017, Proc. n.º 1297/12.9T2AMD-A.L1-2 (Pedro Martins), in www.dgsi.pt.

De todo o modo, não assiste razão à recorrida, quando sustenta que o recurso e, decisivamente, as suas conclusões, não permitem compreender as razões ou fundamentos da discordância da recorrente com a decisão.

Contudo, convoca a Recorrente questões de facto e de direito que, não tendo sido oportunamente alegadas na oposição/contestação, estão precludidas, por via do princípio da concentração da defesa, uma delas sequer objecto de alusão ou apreciação na sentença, com o que evidentemente excluída de conhecimento em sede de recurso.

Desde logo, a questão da caducidade do direito da Autora (assente já no facto “novo” da falta de notificação à Recorrente da data de entrega da mercadoria, a implicar o conhecimento ulterior desta e por isso que um dies a quo postergado).

Bem assim a questão da falta (de prova) da entrega das mercadorias à cliente da Ré.

Em causa factos em que se estribam novas ou distintas excepções (que não apenas enquadramentos jurídicos de realidades trazidas ao processo na contestação[1]) não oportunamente alegados. Donde, a possibilidade do conhecimento destes e, nessa medida, da defesa/argumentação agora convocada, estava dependente da oportuna, admissível e admitida alegação atendível destes, por via da dedução fundamentada e válida de articulado superveniente.

É consensual o entendimento de que o processo civil, em virtude de ter por objecto relações jurídicas privadas, está fortemente marcado pela ideia de dispositivo. Se a relação jurídica privada, por princípio e pela sua natureza, se encontra na disponibilidade das partes, essa disponibilidade tenderá a reflectir-se na relação processual correspondente.

Tradicionalmente, diz-se que a disponibilidade do processo pelas partes se manifesta em três planos: no impulso processual; na definição do objecto do processo e na definição dos limites da sentença.

No caso, releva o segundo dos planos elencados. Quanto ao objecto do processo, é direito e é encargo das partes aportar ao processo os factos que sustentam as respectivas pretensões, também defensivas, em termos tais que o tribunal, na decisão a proferir, só pode tomar em consideração os factos alegados (e provados) pelas partes.

Naturalmente que a preclusão se restringe aos factos essenciais (isto é, àqueles de cuja verificação depende a procedência) em que se baseiam as excepções invocadas.

Como tal tem de haver-se, desde logo, o facto que respeita à ocasião do conhecimento pela Ré da entrega da mercadoria, como momento a partir do qual começando a correr o prazo de caducidade…

É que não basta, naturalmente, que nas alegações finais do processo se refira a Ré à caducidade do direito da Autora (como se alude na decisão recorrida). Ponto era que, na medida da natureza da invocação, respeitando a interesses meramente particulares, donde carecendo de arguição/oposição, tivesse concretizado os factos determinantes dessa extinção e, sustentando que o conhecimento destes o foi superveniente, tivesse suscitado em primeira instância a possibilidade/oportunidade da sua consideração no processo, nos termos das disposições processuais civis pertinentes (dedução de articulado superveniente, louvando-se na superveniência subjectiva do facto).

Quanto agora à suscitada falta de prova do cumprimento da obrigação de entrega da mercadoria ao destinatário, mediante a falta de junção aos autos do documento de transporte assinado por aquele[2], em causa matéria que não pode também ser apreciada, vista a aquisição processual daquela entrega e por isso que a irrelevância, rectius, a impossibilidade de conhecimento da questão.

Assim é que, quando se considere a posição da parte, Recorrente, com expressão nos articulados, como se aduz na sentença recorrida, a Ré não se reconduziu à falta de entrega da mercadoria, mas à falta de pagamento desta pelo destinatário, a pressupor, justamente, a entrega… Vejam-se os artigos 18 e 19 da oposição/contestação: a cliente da requerida após lhe ter sido entregue pela Requerente o documento que lhe permitiu levantar o contentor (e respectiva mercadoria) não mais cumpriu com as suas obrigações conforme contratualizado com a requerida; nomeadamente o pagamento inerente ao transporte. E bem assim (de 25 a 30): A Requerente deve ser responsabilidade pelo ato ilícito que fez e respectiva consequência;  Fazia parte do acordo não só o transporte da mercadoria em contentor mas também a emissão e entrega a quem legitimo da documentação necessária a qual faz parte do bom cumprimento obrigacional do negócio; Não tinha ordens nem legitimidade para entregar documentos a partes ilegítimas e que não faziam parte do contratualizado; Não recebendo até à data o valor inerente do transporte por culpa exclusiva da requerente, não deve pagar o serviço reclamado; Após o bom pagamento se um dia a cliente da requerida o fizer (…).

Donde, não impugnou, antes admitiu a Ré a realização da entrega da mercadoria ao destinatário pela Autora, com o que vedado agora em sede de recurso reconduzir-se ao desconhecimento da entrega ou à inferência pela não efectividade desta ou pelo extravio da mercadoria (conclusões 22, 31 e 35 do recurso)…

Na medida desta admissão ou aceitação da entrega, mediante a posição assumida na contestação, completamente irrelevante a questão do ónus e forma ou modo da prova do cumprimento da mesma obrigação. Como é óbvio, o ónus da prova respeita à demonstração de um facto controvertido, impugnado, sendo que a Ré não contrariou, antes houve por certa, a entrega/recebimento da mercadoria pelo destinatário.

Nessa medida, caracterizada a figura da preclusão quanto à invocação da caducidade do direito da Autora ao recebimento do preço e à falta de entrega da mercadoria, que, no que tange aos meios de defesa, decorre do princípio da concentração da defesa na contestação consagrado no art. 573º do NCPC, ao impor que toda a defesa deve ser deduzida na contestação (nº 1), salvo os casos de defesa superveniente (nº 2).

Deste modo, apresentada a contestação, fica, a partir desse momento[3], precludida a invocação pelo réu, quer de outros meios de defesa, quer dos meios que ele não chegou a deduzir e até mesmo daqueles que ele poderia ter deduzido com base num direito seu.

Acentuando o efeito que a preclusão produz sobre o próprio acto omitido, escreve Miguel Teixeira de Sousa, no blog do IPPC- Pape 199- de 03.05.2016 que, «neste contexto, a preclusão pode ser definida como a inadmissibilidade da prática de um acto processual pela parte depois do prazo peremptório fixado, pela lei ou pelo juiz, para a sua realização». E, estabelecendo a correlatividade entre o ónus de concentração e da preclusão, afirma que « a) Quando referida a factos, a preclusão é correlativa não só de um ónus de alegação, mas também de um ónus de concentração: de molde a evitar a preclusão da alegação do facto, a parte tem o ónus de alegar todos os factos relevantes no momento adequado […].

A correlatividade entre o ónus de concentração e a preclusão significa que, sempre que seja imposto um ónus de concentração, se verifica a preclusão de um facto não alegado, mas também exprime que a preclusão só pode ocorrer se e quando houver um ónus de concentração. Apenas a alegação do facto que a parte tem o ónus de cumular com outras alegações pode ficar precludida.

Se não for imposto à parte nenhum ónus de concentração, então a parte pode escolher o facto que pretende alegar para obter um determinado efeito e, caso não o consiga obter, pode alegar posteriormente um facto distinto para procurar conseguir com base nele aquele efeito. […]» .

Toda a defesa deve ser deduzida na contestação (princípio da concentração da defesa na contestação), exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado; depois da contestação, só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.

A exceção peremptória de caducidade da acção, porque não versa sobre direitos indisponíveis, mas antes sobre direito que está na livre disposição das partes, não é de conhecimento oficioso, necessitando de ser invocada por aquele a quem aproveita, de acordo com o estatuído nos conjugados artigos 303.º e 333.º, n.º 2, do Código Civil.

Precludida, pois, a possibilidade de a Ré efectuar a dedução das excepções da caducidade da acção (nas alegações verbais da causa) e do incumprimento da obrigação de entrega (reconduzindo-se já e apenas em sede de alegações de recurso a uma falta de entrega da mercadoria ao seu cliente, nunca aventada), sendo que, quanto a esta última ou segunda,  inadmissível mesmo o próprio conhecimento do objecto do recurso nessa parte, porque se trata de questão nova, que não foi apreciada pela primeira instância.

Essas questões, assim, não fazem parte do objecto do processo, pois não foram incluídas na contestação, não foram incluídas nas questões a resolver, e, como tal, não tinham de ser tratadas na sentença recorrida[4].

Ora, por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido. Só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido.

Não sendo uma situação de conhecimento oficioso, não pode o Tribunal superior apreciar uma questão nova, por pura ausência de objecto: em bom rigor, não existe decisão de que recorrer, sendo caso de extinção do recurso por inexistência de objecto.

Foi-o, não obstante, a da caducidade, quanto à qual já exposta a respectiva preclusão, em termos da improcedência do recurso…

Impedida, consequentemente, por impossibilidade legal, a apreciação “do mérito” das questões suscitadas no recurso, nos termos das conclusões formuladas.

É que não é admissível nesta fase do processo a alteração do seu objeto…

Não vindo assacada à decisão recorrida, concreta e claramente, qualquer erro na apreciação da prova em julgamento (já afrontada a questão do ónus da prova da entrega da mercadoria), nem também na aplicação do direito[5], cabe, sem mais, mantê-la, na íntegra.

Na verdade, quanto à alusão genérica à desconsideração de normas do direito marítimo, como de disposições legais sem qualquer pertinência à decisão (assim os 16º e 17º do DL 352/86 de 21.10) carece o recurso do pressuposto objetivo da fundamentação, posto que sem ataque aos fundamentos da sentença.

O recurso, mormente as suas conclusões, tem de ser formulado/deduzido em termos nos quais a parte, não apenas manifeste sua inconformidade com o ato judicial impugnado, mas, também e necessariamente, indique os motivos de facto e de direito pelos quais requer o novo julgamento da questão nele cogitada.

Na curiosa expressão de Fredie Didier Junior e Leonardo Carneiro da Cunha, em Curso de direito processual civil, v.3 - Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais, Editora Juspodium, Edição 20, p. 176[6], “a apelação deve “dialogar” com a sentença apelada: é preciso combater os pontos da decisão”. Razões recursivas que não façam qualquer referência ao fundamento do comando decisório, numa abordagem absolutamente genérica, são, pois, impossíveis de ensejar a reforma do decisum, como resulta do art. 639º, n.º 2 do CPC, no que, novamente, a doutrina brasileira apelida de Princípio do tantum devolutum quantum appellatum.

Na medida da ausência de impugnação específica dos fundamentos da sentença, para além dos acima examinados, não há outras questões a decidir.


*

A litigância de má-fé constitui um tipo especial de ilícito em que a parte, com dolo ou negligência, agiu processualmente de forma inequivocamente reprovável, violando deveres de legalidade, boa-fé, probidade, lealdade e cooperação de forma a causar prejuízo à parte contrária e obstar à realização da justiça. 1. De acordo com o proémio do n.º 2 do artigo 542.º do Código de Processo Civil (CPC), o litigante de má-fé deve agir com “dolo ou com negligência grave” na prática do facto ilícito. A negligência grave foi, assim, equiparada ao dolo, reportando-se às situações resultantes de falta de deveres de cuidado impostos pela prudência mais elementar que deve ser observada nos usos correntes que marcam a conduta processual. 2. A norma do n.º 2 do artigo 542.º do CPC tipifica as situações em que a parte incorre em litigância de má-fé. Será, assim, litigante de má-fé quem: “a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.” As alíneas a) e c) (as únicas convocáveis) referem-se à negligência grave ou imprudência grosseira que abrange a falta de fundamento da oposição/recurso da parte, mormente quando esta última se encontre numa situação em que se lhe impunha que tivesse esse conhecimento.

Não se evidencia, pese embora os termos do recurso[7], a actuação conscientemente infundada de estar a usar o meio processual de forma reprovável.

Nada nos conduz à asserção de que a Ré ao impugnar o julgamento de primeiro grau o tenha feito de forma temerária justificativa da condenação que vem reclamada.

III.

Tudo visto, decide-se:

- não conhecer do recurso na parte em que vem sustentada a falta de prova da entrega da mercadoria pela Autora, na qualidade de transportadora, ao cliente da Ré, por inadmissibilidade legal;

- negar provimento, no mais, ao recurso da Ré, considerando precludida a invocação da caducidade do direito da Autora e sempre não caracterizada qualquer impugnação fundamentada dos termos da decisão recorrida.

Custas pela Recorrente, no recurso e na acção.

Notifique.


Porto, 23 de Maio de 2024
Isabel Peixoto Pereira
Ernesto Nascimento
Aristides Rodrigues de Almeida

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[1] Assim é que mesmo a excepção do não cumprimento do contrato que vem agora caracterizada não tem conteúdo idêntico ou coincidente com o alegado oportunamente em sede de contestação/oposição, que vem a sê-lo a entrega ao cliente da Ré, contra as instruções desta, de documento que permitiu a entrega da mercadoria transportada sem a realização do pagamento do fornecimento, por via de uma convencionada previamente entrega dos documentos à Ré mesma…
Vem agora suscitado o problema da falta de entrega mesma da mercadoria, em termos que não podem ser atendidos, pelas razões que resultam do texto.
[2] O contrato de transporte de mercadorias por mar é disciplinado pela Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga, assinada em Bruxelas em 25.08.1924, a que Portugal aderiu por Carta de 05.12.1931, publicada no DG, I Série, de 02.06.32, e que foi tornada direito interno pelo Decreto-Lei nº 37.748, de 01.02.50, e, subsidiariamente, pelas disposições do Decreto-Lei nº 352/86, de 21/10. É assim imperativamente regulado, quer se trate de transporte internacional, quer de transporte interno, embora neste último caso, se tenha de recorrer também ao disciplinado nos artigos 366º a 393º do Código Comercial.
Decorre do artigo 3º, nºs 3 e 4 da Convenção de Bruxelas que, após a entrega da mercadoria, o transportador (armador), ou seu representante, emite o conhecimento de carga, que tem a função de demonstrar o recebimento (pelo armador) da mercadoria objecto do contrato, sendo que o conhecimento de carga constituirá presunção, salvo prova em contrário, da recepção pelo armador das mercadorias tais como foram descritas naquele documento – v. Ac. STJ de 25.11.2003 (Pº 03A3624).
No contexto dos embarques de carga marítima, dois documentos essenciais regulam o transporte marítimo de mercadorias: o Conhecimento de Embarque (Bill of Lading) e o Conhecimento de Embarque Marítimo (Sea Waybill). Apesar das suas aparentes semelhanças, estes documentos possuem funções e funcionalidades distintas. Cfr. Alexandre Soveral Martins, As Regras de Roterdão. Em Susana Tavares da Silva, et al. Novos Caminhos para o Direito dos Transportes. Colóquios nº. 6, Coimbra: Almedina, 2013.
O denominado conhecimento de carga/embarque (bill of landing) tem uma tríplice função. Serve, a um tempo, como recibo das mercadorias; prova da celebração do contrato de transporte e do seu conteúdo e título representativo das mercadorias (nos termos do regime geral dos títulos de crédito). Cfr. a este propósito, Hugo Ramos Alves, Da limitação da responsabilidade do transportador na convenção de Bruxelas de 1924, Almedina, 2008, 49-50 e Ac. TRL de 08.06.2006 (Pº 0632648), acessível em www.dgsi.pt.
Já o Conhecimento Marítimo (SW), que é sempre nomeado e nunca à ordem, é utilizado principalmente para agilizar os trâmites de entrega da mercadoria no destino, geralmente é emitido quando há remessas cujo pagamento da mercadoria não está vinculado; é sempre emitido para um nome específico (campo Destinatário); não  é um documento negociável;  não necessita ser apresentado pelo destinatário legítimo para a liberação do embarque (bastará o documento comprovativo de ser o importador e a documentação aduaneira). O conhecimento de embarque marítimo é um documento de transporte simples e inegociável que pode ser utilizado como alternativa ao conhecimento de embarque. Ao contrário do conhecimento de embarque, o conhecimento marítimo não é um documento de título, ainda quando funcione como prova de um contrato de transporte marítimo.
No regime da Convenção de Bruxelas a entrega da mercadoria transportada pode ser feita se a mercadoria for transportada a coberto de um documento de carga não negociável, i.e., de um straight bill of lading (Sea waybill).  O conhecimento não negociável não é um título de crédito, mas um mero documento probatório do contrato de transporte.
Nos termos dos arts. 45.º, 46.º e 47.º das Regras de Roterdão [Sobre a Convenção (aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 11.12.2008) cf. M. JANUÁRIO DA COSTA GOMES, Do transporte “port to port” ao transporte “door to door”, em I Jornadas de Lisboa de Direito Marítimo (Fac. de Direito de Lisboa), Almedina, 2008, p 367-405. Do mesmo Autor cf., mais desenvolvidamente, Introdução às Regras de Roterdão — a Convenção “marítima plus” sobre transporte internacional de mercadorias, em Temas de Direito dos Transportes, vol. 1, Almedina, 2010, pp. 7-83], sintetizando: no caso de ter sido emitido um documento de transporte não negociável o transportador deverá entregar as mercadorias ao destinatário, devendo este, caso isso lhe seja pedido, identificar-se e restituir o documento de transporte em seu poder, se isso resultar do teor do documento.  Na hipótese do art. 47.º (entrega em caso de ter sido emitido um documento de transporte negociável ou um documento electrónico de transporte negociável) o possuidor do documento terá uma de duas atitudes: ou restitui o documento cartular; ou faz a prova do seu direito nos termos do art. 9.º-1 das Regras. Poderá acontecer, no entanto, que do documento de transporte negociável ou do documento electrónico de transporte conste expressamente que as mercadorias poderão ser entregues sem necessidade de que seja restituído o documento que estiver em causa. Aplicar-se-ão nesse caso as regras consignadas nas extensas alíneas a), b), c), d) e e) do n.º 2 desse art. 47.º. Tratar-se-á de um sistema que, globalmente, redundará em maior dificuldade prática da transmissão das mercadorias (transportadas).
[3][3]Ressalvada a hipótese já aludida de apresentação “procedente” de articulado superveniente, sempre não caracterizada.
[4] Com efeito, irreleva a qualificação do contrato como de transporte, na decisão recorrida, ou, como se nos afigura mais correcto, de comissão de transporte ou de expedição ou trânsito, mediante o qual a empresa transitária contrata com um terceiro a realização de um determinado transporte, de acordo com as condições transmitidas e acordadas com o expedidor, actuando como mandatária deste, visto o disposto  no artigo 15.º, n.º 1 do DL 255/99,  sendo que o transitário responde pelo cumprimento do transporte contratado com terceiros, uma vez que ali se estipula que: “As empresas transitárias respondem perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado (…)”. O contrato de expedição ou trânsito vem a ser aquele em que uma parte (transitário) se obriga perante a outra (expedidor) a prestar-lhe certos serviços – que tanto podem ser actos materiais ou jurídicos – ligados a um contrato de transporte, e também a celebrar um ou mais contratos de transporte em nome e representação do cliente. O que releva é que o transitário assume a obrigação de celebrar um contrato de transporte, com um transportador, em nome próprio ou do expedidor, mas sempre por conta deste. Fundamental é o mandato. Certo também que pode o transitário efectuar o transporte por si próprio, caso em que se estará perante um verdadeiro contrato de transporte e não um de expedição, trânsito ou comissão de transporte, situação em que só caso a caso, através da análise do acervo de direitos e obrigações concreta e reciprocamente assumido, se deve qualificar o contrato assumido – neste sentido os Acórdãos do STJ, de 20/09/2007, Processo 07B1976 e de 09/09/2010, Processo n.º 6089/05.9TBMAI.P1.S1, ambos disponíveis in http://www.dgsi.pt/jstj.
Como quer que seja, a A obrigou-se a celebrar um contrato de transporte marítimo - aquele pelo qual uma pessoa (o transportador) se obriga perante outra (o interessado ou expedidor) a providenciar o deslocamento de pessoas ou de bens de um local para outro (cfr. por todos, Menezes Cordeiro, Manual de Direito comercial, I, 2001, p. 527 e, na jurisprudência, v.g. ,Acórdão do STJ de 16.09.2008 – proc. nº 08A2433) –,  fazendo-o no âmbito da genérica prestação de serviços a que se obrigou, com o que, sempre em causa a prestação relativa ao preço da execução dos serviços comprovados.
Desde logo, define-se o contrato de transporte, em sentido técnico jurídico, como a deslocação voluntária e promovida por terceiros, em termos organizados, de pessoas ou de bens, de um local para outro. Assim, o contrato de transporte é caracterizado como aquele pelo qual uma pessoa – o transportador – se obriga perante outra – o interessado ou expedidor – a providenciar o deslocamento de pessoas ou de bens de um local para outro. O contrato de transporte é uma prestação de serviço que tem como finalidade a colocação da pessoa ou do bem, de forma íntegra, no local de destino, mediante uma vantagem económica. Caracterizam-se como elementos essenciais do contrato de transporte a deslocação do passageiro ou da mercadoria; o exercício de uma actividade organizacional; a autonomia e controle da actividade operativa de deslocação do passageiro ou da mercadoria por parte do transportador; a integridade, isto é, a chegada ou entrega mercadorias incólumes das pessoas ou mercadorias ao/no local de destino, a consubstanciar a obrigação por parte do transportador dos deveres de segurança e vigilância em relação ao passageiro e de custódia em relação à mercadoria transportada – cfr. Ac. TRP de 04.03.2002 (Pº 0250194)-; a remuneração, contrapartida da prestação do transporte, ou seja, o preço que deverá ser pago pela prestação do serviço, denominado de tarifa, para o transporte de passageiro, e de frete, para o transporte de mercadoria.
O que resulta da matéria provada na decisão recorrida, sob 5 a 12, definitivamente fixada, visto o objecto do recurso, caracterizado no texto, vem a ser que já no decurso do transporte, após mesmo a chegada da mercadoria ao país de destino, a ré solicitou alterações quanto às condições de entrega das mercadorias.
É o denominado direito de disposição (também designado de direito de contra-ordem ou direito de variar a consignação dos objectos em caminho) e consiste na faculdade de o carregador (também o destinatário), em qualquer momento da execução do contrato de transporte, darem novas ordens ao transportador, alterando o que inicialmente com este foi contratado. Cfr. artigo 380º CCom., aplicável também, na ausência de estatuição a propósito da Convenção de Bruxelas ou as Regras adendadas, como do DL 352/86 de 21.10, que rege quanto a particulares aspectos do transporte marítimo de mercadorias.
Naturalmente que, como já observava Cunha Gonçalves, Comentário ao Código Comercial Português, II, Empresa Editora José Bastos, Lisboa, 1916, p. 431, “o direito de dar contra ordem está subordinado à condição de (…) estar a mercadoria em viagem”, mais propriamente, como decidiu o Acórdão do STJ de 17/06/1955, no BMJ n.º 49, p. 449, podendo o carregador variar a consignação dos objectos em caminho, também poderá fazê-lo depois da chegada ao local do destino, sendo apenas essencial que o destinatário ainda não se encontre na titularidade do direito de disposição…
Ora, como resulta da matéria assente já aludida, a Autora efectuou todas as diligências que lhe eram possíveis para o cumprimento das instruções de modificação das condições da entrega da mercadoria. Contudo, já entregue a mercadoria ao destinatário, como adquirido. Donde, não pode assacar-se à Autora, se não à Ré mesma, a circunstância de a mercadoria ter sido entregue sem o pagamento do preço… Obrigação essencial do transportador é a da entrega de mercadoria à chegada do navio, nos termos previstos na Convenção e no contrato de transporte, sendo que a data da entrega precedeu as operações necessárias à sujeição desta ao Conhecimento de Embarque-título de mercadoria. Donde não resulta a ilegitimidade da entrega, por incumprimento das instruções do expedidor.
Perfeitamente correcta, pois, a apreciação jurídica da causa na decisão recorrida.
[6] A propósito de regime perfeitamente similar ao nacional, de resto alterado em 2015, à semelhança deste.
[7] Que comportam é certo uma contradição com o comportamento processual anterior e com a defesa apresentada oportunamente, sem que deixe de se relevar a forma simplificada que os autos revestem inicialmente e o menor apuramento, pois, das questões hoc sensu formais relacionadas aos princípios processuais.