INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
CAUSAS DE PEDIR INCOMPATÍVEIS
Sumário


I- O tribunal recorrido não pode apreciar e decidir da questão da ineptidão da petição inicial, concluindo pela sua ocorrência, com a absolvição dos RR da instância, sem ouvir previamente as partes, sob pena de violar o princípio do contraditório, e determinar a nulidade processual prevista no artigo 195.º do CPC.
II- O direito de preferência que os AA pretendem fazer valer na ação pressupõe a validade do negócio celebrado, assim como a sua manutenção futura, dando-se apenas a substituição do adquirente do bem transmitido, pelo preferente.
III- Não é assim possível compatibilizar o que vem alegado pelos AA, relacionado com o seu pretenso direito de preferência - com correspondência nos pedidos formulados -, com o que vêm depois alegar, de que o negócio celebrado entre os RR é nulo (por alegada simulação ou outro vício do negócio).
IV – Estamos perante causas de pedir absolutamente incompatíveis, que levam à Ineptidão da petição inicial, com a determinação da nulidade de todo o processo, e a absolvição dos RR da instância.
V- O art.º 590º do CPC permite ao juiz formular o convite às partes para suprirem insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, mas não para a alterarem, desvirtuando o princípio basilar em direito processual civil, que é o princípio do Dispositivo, que continua vigente no nosso ordenamento jurídico.

Texto Integral


Relatora: Maria Amália Santos
1º Adjunto: Jorge Santos
2ª Adjunta: Fernanda Proença                                                      

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AA e BB, ambos melhor identificados nos autos, intentaram contra CC, DD e EE, a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, na qual pediram que:

a) Seja declarado e reconhecido o direito de preferência dos Autores na dação em pagamento do prédio referido nos artigos 1.º e 2.º da Petição Inicial feita pelo 1.º Réu aos 2ºs Réus por escritura outorgada em 23.02.2022;
b) Sejam colocados os Autores, enquanto preferentes, na posição dos 2ºs Réus beneficiários na aludida dação em pagamento, mediante o pagamento do preço acima referido;
c) Seja ordenado o cancelamento de todos os registos prediais resultantes e decorrentes da dação feita pelo 1.º Réu aos 2ºs Réus pela escritura outorgada em 23.02.2022;
d) Seja ordenado o registo predial do prédio objecto dos presentes autos a favor dos Autores; e
e) Seja ordenado o averbamento matricial do prédio objecto dos presentes autos a favor dos Autores.

Para tanto, alegaram, entre o mais, que:

Em junho de 2005 o 1.º Réu deu de arrendamento aos Autores, sem prazo e mediante o pagamento da renda mensal de € 150,00 (que ainda se mantém), o prédio urbano destinado a habitação, sito na Rua ..., ..., ..., freguesia ... (...), concelho ..., correndo por conta dos Autores o pagamento das correspondentes despesas de água, e eletricidade.
Acontece que o 1.º Réu enviou uma carta aos Autores, datada de 29/04/2022, na qual os informou que o prédio que eles habitam já não lhe pertence, sendo os atuais proprietários os 2.ºs Réus, sem lhes dizer de que forma ou por que preço transmitiu o imóvel arrendado.
Obtida certidão predial, constatou-se que os 2.ºs Réus registaram a aquisição daquele imóvel a seu favor, pela AP. ...79 de 2022/02/24.
Os Réus não comunicaram aos Autores os termos do negócio e condições essenciais do mesmo, nem ao tempo da sua celebração, nem posteriormente, em manifesta violação do disposto no art.º 416.º n.º 2 do CC ex vi art.º 1091 n.º 4 do CC.
Só com a obtenção da certidão, em 21/03/2023, é que os Autores tiveram conhecimento do negócio e dos seus elementos essenciais, designadamente o tipo de negócio, o preço e a forma de pagamento.
De acordo com a certidão obtida, a transmissão da propriedade teve por título uma escritura denominada de “DAÇÃO EM PAGAMENTO”, datado de 23 de março de 2022, outorgada no cartório Notarial da Dr.ª FF, em ....
Nessa escritura, o 1.º Réu, representado por EE, declarou ser devedor aos 2.ºs Réus da quantia de OITENTA MIL EUROS, dando em pagamento o imóvel melhor id. nos artigos 1.º e 2.º da presente peça processual, pelo mesmo valor, ou seja, a transmissão do imóvel foi efetuada pelo preço de 80.000,00 €, ao qual acresce ainda o IMT, no valor de 800,00 € e o Imposto de Selo, no valor de 640,00 €. Para o registo de aquisição a favor dos 2.ºs Réus foram pagos emolumentos no valor de 225,00 €.
Ora, os Autores são arrendatários do prédio objecto do negócio outorgado entre o 2.º e os 3.ºs Réus, há mais de 18 anos, pelo que lhes assiste o direito de preferência na mencionada transmissão – art.º 1091.º n.º 1 al. a) do Código Civil.
Para o efeito, dentro do prazo legal, será depositado o preço da venda, acrescido do IMT, Imposto de Selo e despesas com registo.

SEM PRESCINDIR,
O 1.º Réu nada devia aos segundos Réus.
O 1.º Réu não outorgou a escritura, nem pretendia transmitir o imóvel para os 2.s Réus, só tendo conhecimento da transmissão após a sua concretização.
A escritura foi, supostamente, efectuada mediante intervenção de uma procuradora, a qual refere publica e expressamente que não esteve presente em nenhum acto notarial, pelo que é nulo o acto praticado. E mesmo que tivesse outorgado tal escritura, teria extravasado os limites do seu mandato.
Nunca o 1.º Réu pretendeu transferir a propriedade do seu imóvel para os 2.ºs Réus, tendo sido estes quem engendraram o negócio, ocultando-o do próprio 1.º Réu.
Houve assim uma divergência intencional entre a vontade dos Réus e a declaração, com o intuito de prejudicar e enganar terceiros, em especial os aqui Autores.
O negócio foi, portanto, simulado e, consequentemente, nulo.

MAIS,
São formalidades comuns dos actos notariais “as assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e saibam assinar, bem como de todos os outros intervenientes, e a assinatura do funcionário, que será a última do instrumento” – Cfr. art.º 46.º n.º 1 al. n) do Código do Notariado.
O acto notarial original não continha, também, a assinatura da Sr.ª Notária, cuja consequência é a nulidade do acto – art.º 70.º n.º 1 al. f) do Código do Notariado -, podendo ser posteriormente lavrado um instrumento a sanar tal vício, mas apenas quando tal situação tiver ocorrido, o que os Autores desconhecem.
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Foi então proferida, no Despacho Saneador, a seguinte decisão (da qual se recorre):
“Dispõe o art.º 186.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Civil, que “Diz-se inepta a petição (...) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.
Conforme explicam António S. A. Geraldes et al., in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2.ª Edição, pág. 233, “sendo a causa de pedir o fundamento da pretensão deduzida em juízo, se o autor invoca em simultâneo dois ou mais fundamentos incompatíveis entre si, eles acabam por se excluir reciprocamente”.
Na verdade, a incompatibilidade substancial de causas de pedir pressupõe que estas não possam ser ambas acolhidas sem se admitir ou introduzir uma contradição interna na ordem jurídica – Cfr., neste sentido, J. de Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1987, Volume II, págs. 492 e 493.
Ou seja, nas palavras de J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª Edição, pág. 379, “A dedução cumulativa de pedidos entre si incompatíveis implica contradição no objeto do processo que impede a sua necessária identificação, algo de semelhante acontecendo quando, fora duma relação de subsidiariedade, se baseie o mesmo pedido em causas de pedir entre si incompatíveis.
Ora, pressupondo o exercício do direito de preferência a validade do negócio relativamente ao qual a mesma se exerce, existe manifesta incompatibilidade de causas de pedir quando, com vista ao seu exercício, se invocam, simultaneamente, os factos de onde tal direito deveria emergir e a nulidade do contrato relativamente ao qual se pretende preferir, como ocorre no caso em apreço – Cfr., a este respeito, Ac. da Relação de Coimbra, de 19.11.2002 (…)e de 12.10.2010 (…), e Ac. da Relação de Évora, de 11.05 .2017 (…)todos disponíveis em www.gde.mj.pt.
Ainda que assim não se entendesse, sempre a invocação da nulidade do contrato relativamente ao qual se pretende exercer a preferência implica uma contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora de ineptidão da petição inicial ao abrigo do disposto no art.º 186.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil.
A este propósito, cabe observar que a petição inicial, tal como a sentença final, deve apresentar-se sob a forma de um silogismo, ao menos implicitamente enunciado, que estabeleça um nexo lógico entre as premissas e a conclusão.
Nesse silogismo, a premissa maior é constituída pelas razões de direito invocadas, a premissa menor é preenchida com as razões de facto, e o pedido corresponderá à conclusão.
Por isso, a causa de pedir não deve estar em contradição com o pedido.
Como explica J. Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil, Volume II, pág. 381, para que exista a referida contradição, é preciso que haja oposição entre o pedido e a causa de pedir, que o pedido “brigue” com a causa de pedir: “(…) é da essência do silogismo que a conclusão se contenha nas premissas, no sentido de ser o corolário natural e a emanação lógica delas. Se a conclusão, em vez de ser a conclusão lógica das premissas, estiver em oposição com elas, temos, não um silogismo rigorosamente lógico, mas um raciocínio viciado, e portanto uma conclusão errada. Compreende-se, por isso, que a lei declare inepta a petição inicial cuja conclusão ou pedido briga com a causa de pedir”.
Ora, no caso, a invocação da nulidade do contrato de dação em pagamento é lógica e substancialmente incompatível com o pretendido exercício do direito de preferência, já que, pressupondo este a validade do contrato objecto da preferência, a alegada nulidade – cuja verificação não poderia deixar de acarretar a improcedência da acção –, aponta, necessariamente, em sentido oposto ao do pedido.
A ineptidão da petição inicial, produzindo a nulidade de todo o processo, constitui excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, acarretando a absolvição dos réus do pedido – Cfr. art.º 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. b), 577.º, b), e 578.º, do Código de Processo Civil. Face ao exposto, julgo inepta a petição inicial e, em consequência, absolvo os Réus da instância. Custas pelos Autores – Cfr., art.º 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil”.
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Não se conformando com a decisão proferida, dela vieram os AA interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“I- Os Autores intentaram a presente acção com fundamento na existência de um contrato de arrendamento, concluindo com o pedido de ser declarado e reconhecido o direito de preferência dos Autores na dação em pagamento do prédio referido nos art.ºs 1.º e 2.º feita pelo 1.º Réu aos 2.º Réus por escritura outorgada em 23/02/2022;
II- As restantes alíneas do petitório são consequência directa e necessária daquele reconhecimento, que é corolário lógico do alegado nos artigos 1.º a 34.º da petição inicial.
III- Em momento do seu pedido algum os Autores peticionam efeitos da nulidade do negócio jurídico, que a existir, seria sempre de conhecimento oficioso do tribunal.
IV- Não existe qualquer incompatibilidade substancial entre o pedido (preferência na dação) e a causa de pedir (existência de um arrendamento).
V- Os Autores nunca deduziram qualquer pedido de nulidade de nenhum negócio.
VI- Da leitura atenta da acta e das suas entrelinhas percebe-se que era já decisão a ser tomada a da ineptidão, como agora se vem a aperceber e que ocultou às partes.
VII- Impunha-se que, recebida a petição, o Juiz a quo convidasse os Autores a aperfeiçoar a sua petição inicial (cfr. art.º 590.º do CPC).
VIII- E ainda que não o tivesse feito, impunha-se que pelo menos na audiência prévia, agindo com a boa fé que se impõe às partes, mas também aos tribunais, de forma a evitar decisões surpresa, como foi o caso, concedesse às partes oportunidade de se pronunciarem sobre uma eventual ineptidão.
IX- O tribunal a quo optou por traçar um trajecto diferente, omisso quanto às suas intenções.
X- Ainda que nenhuma censura neste aspecto merecesse a posição do tribunal a quo, a própria Lei permite às partes fazer pedidos alternativos, subsidiários e cumular vários pedidos contra os mesmos Réus (cfr. artigos 553.º, 554.º e 555.º do CPC).
XI- E também a jurisprudência desta Relação já decidiu pela possibilidade de cumulação no mesmo processo uma acção de simulação e uma acção de preferência, por exemplo, no Processo n.º 57/21...., de 29/09/2022: “1. Nada impede nem obriga a que num mesmo processo sejam cumuladas uma acção de simulação e uma acção de preferência. (…)”
XII- Repita-se, os Autores não fazem nenhum pedido de nulidade conforme resulta do seu petitório.
XIII- Assim, impunha-se ao tribunal a quo que no despacho saneador identificasse o objecto do litígio e enunciasse os temas de prova nos termos do estatuído no art.º 596.º do CPC, fazendo prosseguir os autos até final.
XIV- Ao decidir pela ineptidão da petição inicial o tribunal a quo violou os artigos 6.º, 7.º, 8.º, 553.º, 554.º, 555.º e 590.º, 595.º e 596.º do CPC.
Termos em que, deliberando V. Ex.as no sentido de dar provimento ao presente recurso, farão V. Ex.as inteira JUSTIÇA!”
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Dos autos não consta que tenha sido apresentada Resposta ao recurso.
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Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do CPC), as questões a decidir no presente recurso de Apelação (por ordem lógica de conhecimento) são as seguintes:
I- A de saber se a decisão proferida violou o princípio do contraditório, constituindo uma “decisão surpresa”;
II- Se a petição inicial é inepta; e
III- Se em vez de proferir a decisão recorrida – julgando a petição inepta -, o tribunal deveria convidar os AA a aperfeiçoarem a petição.
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Os factos a considerar para a decisão da presente Apelação (e das questões elencadas) são os enunciados no relatório deste acórdão, e os constantes da decisão recorrida, que não são postos em causa pelos recorrentes.
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I- Da violação do princípio do contraditório:

Consideram os AA, a dado passo das suas alegações, que o tribunal tencionava já tomar a decisão recorrida – julgar inepta a petição –, aquando da Audiência prévia, quando concedeu a palavra ao ilustre Mandatário dos autores, a fim de esclarecer os temas do litígio no que concerne à invocação da nulidade na petição inicial, tendo determinado a conclusão dos autos a fim de apreciar ambas as questões tratadas na audiência prévia e proferir saneador.
Concluem daí que o tribunal a quo já tencionava julgar inepta a petição inicial, o que ocultou às partes. Impunha-se que, recebida a petição, o Sr. Juiz convidasse os Autores a aperfeiçoar a sua petição inicial nos termos do disposto no art.º 590.º do CPC, o que não fez.
E ainda que não o tivesse feito, impunha-se que pelo menos na audiência prévia agisse de boa fé para com as partes e, evitando decisões surpresa, como foi o caso, concedesse às partes oportunidade de se pronunciarem sobre uma eventual ineptidão.
A cooperação e a boa-fé processual são deveres que impendem sobre os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes ao nível da condução e da intervenção no processo judicial.
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E aqui temos de dar razão aos recorrentes.
Dispõe efetivamente o art.º 3 nº3 do Código de Processo Civil que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Como refere Lebre de Freitas (Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, 1996, pág. 96), a norma legal citada, introduzida pela Reforma de 1995/96, veio ampliar o âmbito tradicional do princípio do contraditório, como garantia de uma discussão dialética ou polémica entre as partes no desenvolvimento do processo, sendo inquestionável que não pode haver lugar a uma “decisão surpresa”, sem o respetivo contraditório das partes.
Aliás, perante decisão que tenha sido proferida com desrespeito pelo princípio do contraditório (quando se trate, por exemplo, de uma verdadeira decisão surpresa), a mesma é impugnável pela interposição de recurso, se e quando este for admissível, ou mediante a arguição de nulidade da decisão, nos demais casos.
Ora, tal verificou-se na situação dos autos, em que foi declarada encerrada a audiência prévia, com a determinação, pelo Sr. Juiz, da conclusão dos autos a fim de ser proferido despacho saneador, vindo nele a ser proferida a decisão recorrida - sobre a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial -, sem se ter dado a possibilidade às partes de discutirem a decisão que se pretendia tomar, como o impõe o citado art.º 3º nº 3 do CPC.
Ou seja, o tribunal recorrido apreciou e decidiu a ineptidão da petição inicial, concluindo pela sua ocorrência, com a absolvição dos RR da instância, sem que fossem ouvidas as partes, nomeadamente os AA (mais interessados nessa decisão) sobre a intenção do tribunal, pelo que, temos de concluir que a decisão recorrida, nos termos expostos, viola o princípio do contraditório – como foi alegado pelos recorrentes.
Trata-se de uma situação que se traduz, em nosso entender, a nível processual, na nulidade prevista no artigo 195.º do CPC (na omissão de um ato que a lei impõe), com evidente influência no desfecho da causa, o que acarreta a sua nulidade, assim como os atos subsequentes, conforme determinado no n.º 2 do citado art.º 195º do CPC, e que levaria a que fosse declarada a nulidade da decisão, com a baixa dos autos para que as partes se pronunciassem acerca da temática decidida pelo tribunal recorrido.
Consideramos no entanto, que a fim de evitar atos inúteis – que a lei proíbe (art.º 130º do CPC) -, e à semelhança da situação prevista no artigo 665.º, n.º 1 do CPC, não se afigura necessário determinar a baixa dos autos para as partes se pronunciem sobre a questão da ineptidão da petição inicial, até porque os AA/Recorrentes já expuseram, desenvolvidamente, nas suas alegações de recurso, as razões pelas quais entendem que não se verifica a referida ineptidão.
Outrossim não se vê razão útil para se convidar os AA a pronunciar-se sobre a questão, já que tal redundaria, estamos em crer, numa repetição de tudo quanto se verteu nas alegações de recurso.
Donde, não obstante a nulidade de que padece a sentença recorrida – embora assim não apelidada pelos recorrentes -, reúnem os autos todos os elementos (de facto e de direito) para que se possa conhecer do mérito do recurso, numa situação, como se disse, em tudo semelhante à prevista no artigo 665.º, n.º 1, do CPC, o que se passa a fazer.
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II- Da inexistência da ineptidão da petição inicial:

Considerou-se no despacho recorrido que na descrição dos factos feita na petição inicial pelos AA existe incompatibilidade de causas de pedir, sendo por eles alegadas duas causas de pedir absolutamente incompatíveis entre si, que levam à nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, nos termos previstos no art.º 186º nº 2, alínea c) do CPC.
  E esclarece-se: pressupondo o exercício do direito de preferência a validade do negócio relativamente ao qual a mesma se exerce, existe manifesta incompatibilidade de causas de pedir quando, com vista ao seu exercício, se invocam, simultaneamente, os factos de onde tal direito deveria emergir, e a nulidade do contrato relativamente ao qual se pretende preferir, como ocorre no caso em apreço.
Ainda que assim se não entendesse, sempre a invocação da nulidade do contrato relativamente ao qual se pretende exercer a preferência, implica uma contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora de ineptidão da petição inicial, ao abrigo do disposto no art.º 186.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil.
Ora, no caso, a invocação da nulidade do contrato de dação em pagamento é lógica e substancialmente incompatível com o pretendido exercício do direito de preferência, já que, pressupondo este a validade do contrato objecto da preferência, a alegada nulidade – cuja verificação não poderia deixar de acarretar a improcedência da acção –, aponta necessariamente em sentido oposto ao do pedido.
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Discordam os AA/recorrentes desta decisão, dizendo que na alínea

a) do petitório é formulado o pedido principal de ver reconhecido o direito de preferência, sendo as restantes alíneas consequência direta daquele reconhecimento, que é o corolário lógico do alegado nos artigos 1.º a 34.º da petição inicial.
Já os artigos 35.º e seguintes da petição constituem escritos sem reflexo nos fundamentos ou no pedido dos Autores, pois em momento algum do seu pedido os Autores peticionam os efeitos da nulidade do negócio jurídico, a qual, a existir, seria sempre de conhecimento oficioso do tribunal.
Assim, dizem que não se vislumbra qualquer incompatibilidade substancial entre o pedido (preferência) e a causa de pedir (existência de um arrendamento).
Mais alegam que a própria lei adjetiva permite às partes fazer pedidos alternativos, subsidiários, e cumular vários pedidos contra os mesmos Réus (Cfr. artigos 553.º, 554.º e 555.º do CPC).
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Mas sem razão, como é bom de ver.
É certo que os AA apenas formulam contra os RR os pedidos descritos nas alíneas a) a e), todos eles relacionados com o seu alegado direito de preferência – cuja causa de pedir vem descrita na factualidade alegada de 1 a 34 da petição inicial –, que é a sua situação de arrendatários do prédio urbano destinado a habitação, sito na Rua ..., ..., ..., freguesia ... (...), concelho ..., prédio esse cujo direito de propriedade o 1º Réu transmitiu aos 2ºs RR, por negócio jurídico denominado “DAÇÃO EM PAGAMENTO”, celebrado por escritura pública datada de 23.3.2022, sem ter dado aos AA a possibilidade de adquirirem o referido prédio.
Pelo que, consideram os AA, que sendo arrendatários do prédio objeto do negócio outorgado entre o 2.º e os 3.ºs Réus, lhes assiste o direito de preferência na mencionada transmissão, nos termos previstos no art.º 1091.º n.º 1 al. a) do Código Civil, formulando contra todos os RR os pedidos vertidos nas alíneas a) a e), todos eles relacionados com o aludido direito de preferência.
Acontece que, como bem peticionam os AA – e é bem vincado na decisão recorrida -, no direito de preferência que pretendem fazer valer contra os RR, é pressuposto da sua pretensão a validade do negócio celebrado, assim como a sua manutenção em termos futuros, permanecendo o mesmo plenamente válido e eficaz, sendo apenas substituído o adquirente do bem transmitido pelo preferente, dando-se apenas uma substituição de titulares do contrato, mas mantendo-se o mesmo negócio plenamente válido em todos os seus aspetos.
 Daí o pedido formulado em b), de que “Sejam colocados os Autores, enquanto preferentes, na posição dos 2ºs Réus beneficiários na aludida dação em pagamento, mediante o pagamento do preço acima referido”, e como consequência, os pedidos formulados em d) e e), de que “Seja ordenado o registo predial do prédio objecto dos presentes autos a favor dos Autores”, e que “Seja ordenado o averbamento matricial do prédio objecto dos presentes autos a favor dos Autores”.
Ora, assim sendo, não é possível compatibilizar o que vem alegado pelos AA nos artigos 1º a 34º da petição – relacionado com o seu pretenso direito de preferência, e que tem correspondência nos pedidos formulados -, com o que vem depois por eles alegado nos artigos 35 e ss. daquela peça processual - de que o negócio celebrado entre os RR é nulo (por alegada simulação ou outro vício do negócio).
Dizem concretamente os AA a esse respeito, que o 1.º Réu nada devia aos segundos Réus, e que não outorgou a escritura nem pretendia transmitir o imóvel aos segundos, tendo sido estes que engendraram o negócio, ocultando-o do próprio 1.º Réu.
E concluem do alegado que houve uma divergência intencional entre a vontade dos Réus e a declaração, com o intuito de prejudicar e enganar terceiros, em especial os aqui Autores, pelo que o negócio foi simulado, sendo, consequentemente, nulo.
Mais acrescentam que o ato notarial original não continha a assinatura da Sr.ª Notária, cuja consequência é a nulidade do ato (art.º 70.º n.º 1 al. f) do Código do Notariado).
Ora, como bem se fez notar na decisão recorrida, pressupondo o exercício do direito de preferência a validade do negócio relativamente ao qual a mesma se exerce – no caso o negócio da Dação em Pagamento -, existe manifesta incompatibilidade de causas de pedir quando se invocam simultaneamente os factos de onde tal direito deveria emergir – os factos relacionados com o pretenso direito de preferência -, e a nulidade do contrato relativamente ao qual se pretende preferir – por alegada simulação do negócio.
E tanto bastava para se concluir pela ineptidão da petição inicial, por incompatibilidade de causas de pedir, conforme dispõe o art.º 186.º, n.º 2, al. c), do CPC.
É bem sugestiva a afirmação de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa (in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2.ª Edição, pág. 233), de que “sendo a causa de pedir o fundamento da pretensão deduzida em juízo, se o autor invoca em simultâneo dois ou mais fundamentos incompatíveis entre si, eles acabam por se excluir reciprocamente”.
Como também o é a afirmação de Castro Mendes (Direito Processual Civil, 1987, Volume II, págs. 492 e 493) de que “…a incompatibilidade substancial de causas de pedir pressupõe que estas não possam ser ambas acolhidas sem se admitir ou introduzir uma contradição interna na ordem jurídica”.
Mas o tribunal recorrido ainda acrescentou, e bem:
Ainda que assim se não entendesse, sempre a invocação da nulidade do contrato relativamente ao qual se pretende exercer a preferência implica uma contradição entre o pedido e a causa de pedir, geradora de ineptidão da petição inicial ao abrigo do disposto no art.º 186.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil.
Pois como bem referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª Edição, pág. 379), “A dedução cumulativa de pedidos entre si incompatíveis implica contradição no objeto do processo que impede a sua necessária identificação, algo de semelhante acontecendo quando, fora duma relação de subsidiariedade, se baseie o mesmo pedido em causas de pedir entre si incompatíveis”.
E como bem se referiu ainda na decisão recorrida, a petição inicial, tal como a sentença final, deve apresentar-se sob a forma de um silogismo, ao menos implicitamente enunciado, que estabeleça um nexo lógico entre as premissas e a conclusão. Nesse silogismo, a premissa maior é constituída pelas razões de direito invocadas, a premissa menor é preenchida com as razões de facto, e o pedido corresponderá à conclusão. Por isso, a causa de pedir não deve estar em contradição com o pedido.
Já José Alberto dos Reis (in Comentário ao Código de Processo Civil, Volume II, pág. 381) esclarecia a propósito desta temática, que “…é da essência do silogismo que a conclusão se contenha nas premissas, no sentido de ser o corolário natural e a emanação lógica delas. Se a conclusão, em vez de ser a conclusão lógica das premissas, estiver em oposição com elas, temos, não um silogismo rigorosamente lógico, mas um raciocínio viciado, e, portanto, uma conclusão errada. Compreende-se, por isso, que a lei declare inepta a petição inicial cuja conclusão ou pedido briga com a causa de pedir…”.
Ora, no caso, concluiu-se e bem na decisão recorrida, que a invocação da nulidade do contrato de dação em pagamento é lógica e substancialmente incompatível com o pretendido exercício do direito de preferência, já que, pressupondo este a validade do contrato objeto da preferência, a alegada nulidade – cuja verificação não poderia deixar de acarretar a improcedência da ação – aponta, necessariamente, em sentido oposto ao do pedido.
A ineptidão da petição inicial, produzindo a nulidade de todo o processo, constitui excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, acarretando a absolvição dos réus da instância (art.º 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. b), 577.º, b), e 578.º, todos do CPC).
Face ao exposto, julgou-se e bem inepta a petição inicial e, em consequência, absolveu-se os Réus da instância.
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III- Do dever do tribunal de convidar os AA a aperfeiçoar a petição inicial:
Consideram ainda os AA que se o tribunal tencionava tomar a decisão de julgar inepta a petição, impunha-se que, recebida a petição, o Sr. Juiz convidasse os Autores a aperfeiçoar a sua petição inicial nos termos do disposto no art.º 590.º do CPC, o que não fez.

Mas também sem razão.
Preceitua o art.º 590º do CPC, intitulado “Gestão inicial do processo”, que incumbe ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido, acrescentando que as alterações à matéria de facto devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265.º, se forem introduzidas pelo autor, e nos artigos 573.º e 574.º, quando o sejam pelo réu.
Preceitua por sua vez o artigo 265.º, intitulado “Alteração do pedido e da causa de pedir na falta de acordo”, que na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação, sendo permitida a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida.
Ora, por aqui já se vê que não é legalmente admissível o pretendido pelos recorrentes.
O art.º 590º do CPC permite ao juiz formular o convite às partes para suprirem insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, mas não para a alterarem, desvirtuando o princípio basilar em direito processual civil, que é o princípio do Dispositivo.
Consagra esse princípio (que continua bem enraizado no nosso direito processual), a máxima de que é às partes que cabe definir os contornos da ação, alegando os factos que entendam dever submeter à apreciação do tribunal, sendo da sua responsabilidade as consequências da sua (boa ou má) alegação. Só as partes têm o domínio dos factos que trazem para a apreciação do tribunal, não podendo o juiz, sob pena de violação do princípio da sua imparcialidade, fazer convites às partes para que aleguem em determinado sentido.
O que a lei permite ao juiz é apenas o que decorre da lei: convidar as partes a suprirem insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada.
As partes haverão sempre de alegar os factos essenciais, os quais estão arredados do conhecimento oficioso do tribunal (art.º 5º nº 1 do CPC).
Como se decidiu no Ac. RC de 11-01-2011 (disponível em www.dgsi.pt), “o aperfeiçoamento do articulado apenas pode ter por objecto o suprimento de pequenas omissões, ou meras imprecisões ou insuficiências na alegação da matéria de facto, sob pena de completa subversão do princípio dispositivo…”.
Outrossim se decidiu no Ac. RL de 24.1.2019 (também disponível em www.dgsi.pt), de que “À sanação ou suprimento do vício de ineptidão da petição inicial (…) opõem-se, desde logo, os princípios estruturantes do processo civil do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes…”.
O princípio da cooperação a que os recorrentes fazem apelo, e que é de sufragar à luz do novo CPC, deve ser conjugado com os princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes, que não comporta o suprimento (ou a alteração), por iniciativa do juiz, da alegação de factos estruturantes da causa de pedir.
Como se frisou no citado Ac da RL “…o convite ao aperfeiçoamento de articulados previsto no artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b), 3 e 4, do CPC, não compreende o suprimento da falta de indicação do pedido ou de omissões de alegação de um núcleo de factos essenciais e estruturantes da causa de pedir. Tal convite, destina-se somente a suprir irregularidades dos articulados, designadamente quando careça de requisitos legais, imperfeições ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada. As deficiências passíveis de suprimento através do convite têm de ser estritamente formais ou de natureza secundária, sob pena de se reabrir a possibilidade de reformulação substancial da própria pretensão ou da impugnação e dos termos em que assentam (artigos 590.º, n.º 6 e 265.º, do CPC). De outra forma, afrontar-se-ia o princípio da estabilidade da instância, previsto no art.º 260.º do CPC, nos termos do qual, após a citação do réu, a instância estabiliza-se quanto ao objeto e às partes, sendo legalmente limitada qualquer possibilidade de alteração objetiva ou subjetiva”.
Serve tudo quanto se disse para concluir que o vício da ineptidão da petição inicial não podia ser suprido por iniciativa do tribunal, mesmo com recurso ao princípio da cooperação.
Improcedem, assim, todas as conclusões de recurso dos Apelantes.
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DECISÃO.

Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação e, em consequência, mantém-se na íntegra, a decisão recorrida.
Custas a cargo dos recorrentes (art.º 527º nº1 e 2 do CPC).
Notifique e D.N.
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Sumário do Acórdão (art.º 663º nº 7 do CPC).

I- O tribunal recorrido não pode apreciar e decidir da questão da ineptidão da petição inicial, concluindo pela sua ocorrência, com a absolvição dos RR da instância, sem ouvir previamente as partes, sob pena de violar o princípio do contraditório, e determinar a nulidade processual prevista no artigo 195.º do CPC.
II- O direito de preferência que os AA pretendem fazer valer na ação pressupõe a validade do negócio celebrado, assim como a sua manutenção futura, dando-se apenas a substituição do adquirente do bem transmitido, pelo preferente.
III- Não é assim possível compatibilizar o que vem alegado pelos AA, relacionado com o seu pretenso direito de preferência - com correspondência nos pedidos formulados -, com o que vêm depois alegar, de que o negócio celebrado entre os RR é nulo (por alegada simulação ou outro vício do negócio).
IV – Estamos perante causas de pedir absolutamente incompatíveis, que levam à Ineptidão da petição inicial, com a determinação da nulidade de todo o processo, e a absolvição dos RR da instância.
V- O art.º 590º do CPC permite ao juiz formular o convite às partes para suprirem insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, mas não para a alterarem, desvirtuando o princípio basilar em direito processual civil, que é o princípio do Dispositivo, que continua vigente no nosso ordenamento jurídico.
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Guimarães, 12.6.2024.