O Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março, dispensou, no restrito âmbito das entidades e operações nele previstas, o incidente de habilitação de cessionário, bastando juntar ao processo cópia do contrato de cessão.
Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Coimbra:
Está em causa a seguinte decisão, de 27.11.2023:
“Requerimentos de 26-09-2023 e 9-10-2023 – Veio a cessionária juntar o aditamento do Contrato de Cessão, para prova dos requisitos da cessão em massa, que, por lapso, não foi junto com o Requerimento de Habilitação de Cessionário de forma simplificada apresentada no dia 25/05/2023.
Os executados pugnaram pela desconsideração de tal requerimento, uma vez que não só já foi proferida sentença, como o documento junto nada acrescenta aos presentes autos.
O artigo 353.º, n.º 3, do CPC dispõe que “a improcedência da habilitação não obsta a que o requerente deduza outra, com fundamento em factos diferentes ou em provas diversas relativas ao mesmo facto; a nova habilitação, quando fundada nos mesmos factos, pode ser deduzida no processo da primeira, pelo simples oferecimento de outras provas, mantendo-se, contudo, o dever de pagamento dos encargos relativos à primeira habilitação”.
Nestes termos, não obstante a decisão proferida em 13-09-2023, nada obsta à consideração do documento ora junto pela cessionária, o qual é um acordo de alteração ao contrato de cessão de créditos do qual consta que o preço da venda da carteira de empréstimos excede os € 50.000.
Por outro lado, o Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março, prevê um regime simplificado para a cessão de créditos em massa (ou seja, superior a 50 créditos distintos), através da mera junção ao processo de cópia do contrato de cessão e sem possibilidade de qualquer oposição por parte do executado.
Não assiste, pois, aos executados a possibilidade de deduzirem oposição à habilitação requerida, razão pela qual, resultando dos requerimentos de 25-05-2023, 10-07-2023 e 26-09-2023 a verificação de todos os pressupostos exigidos pelo Decreto-Lei em apreço, deve a habilitação ser deferida.
Face ao exposto, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 42/2019, de 28 de março, considero a A..., Stc, S.A. habilitada em substituição do exequente Banco 1..., S.A., para prosseguir a causa nos seus ulteriores termos.” (Fim da citação.)
1) A decisão recorrida é contraditória com uma decisão anterior, proferida nos mesmos autos, transitada em julgado, na qual se decidiu indeferir o requerimento de habilitação que a decisão recorrida agora admite…?!
2) Não pode a decisão agora recorrida alterar o entendimento de uma decisão transitada em julgado e como tal sofre a decisão recorrida de nulidade - que desde já aqui se invoca com todos os efeitos legais.
3) Ainda que tal entendimento fosse, por mera hipótese académica, admissível, ainda assim a decisão recorrida sofre de vários vícios que a enfermam fatalmente, quer em termos de facto, quer em termos de direito.
4) Chamamos a atenção para o facto de que, o que faz o tribunal mudar radicalmente de posição foi um “acordo de alteração” datado de 14.07.2023, junto pela Requerente/habilitante, junto a fls, com a referência 10092152 de 26.09.2023. Sendo certo que, analisando tal documento, verifica-se que o mesmo não acrescenta qualquer facto novo ou nova circunstância que permitisse ao tribunal rever a sua posição anterior de indeferimento da habilitação.
5) Nem se trata de qualquer elemento novo que complete ou acrescente informação de relevo à questão da habilitação anteriormente indeferida.
6) Tratando-se igualmente de documento que, tendo em conta a data em que foi assinado, podia e deveria ter sido remetido aos autos pela Requerente, antes de ter sido proferida a decisão de indeferimento de 13.09.2023.
7) Não tendo assim o tribunal “a quo” na decisão recorrida de se pronunciar sobre um documento que já tinha sido produzido em data anterior à decisão de indeferimento.
8) Acresce ainda que, ainda assim tal documento está incompleto e não assume em pleno a sua plenitude legal. E como tal, não poderia igualmente, em caso algum, ser valorado e considerado.
9) Em primeiro lugar, tal documento não refere liquidar os impostos legais devidos, a saber: imposto de selo, legalmente exigível e condição de confirmação legal perante o Estado da validação da celebração de tal documento.
10) Se tal documento fosse outorgado em cartório notarial, obviamente que haveria obrigatoriamente lugar ao pagamento dos impostos devidos - o que neste caso não sucedeu.
11) Não podia assim tal “alteração de contrato” ser validada, pelo menos até que se demonstrassem nos autos a liquidação das correspondentes e necessárias obrigações fiscais inerentes.
12) Por outro lado, tal documento não consta qualquer validação/reconhecimento ou verificação das assinaturas das pessoas que o assinaram, nomeadamente se as mesmas estavam, ou não, munidas dos respectivos poderes necessários para o ato de assinar tal contrato.
13) Não consta qualquer termo de reconhecimento lavrado por notário ou advogado, devidamente registado, que determine ou ateste da capacidade legal de tais intervenientes para assinar tal documento.
14) E como tal, não tem validade jurídica tal documento. E a decisão recorrida deveria ter indagado sobre todas estas questões - o que não foi feito.
15) A decisão recorrida não podia ser proferida, sem que fosse dada, quanto muito, oportunidade para a Requerente demonstrar toda a conformidade legal e jurisdicional de quem assinou os contratos, bem como demonstrar o cumprimento das obrigações fiscais
inerentes - como tal, sofre a decisão recorrida de nulidade – que desde já aqui se invoca e se requer a sua apreciação.
16) Por outro lado, o diploma legal que regula o regime simplificado de cessão de créditos em massa, diz-nos que para que o cessionário fique habilitado nos processos em que estejam em causa os créditos da cessão, basta que junte ao respectivo processo cópia da cessão de crédito.
17) Não havendo lugar a autuação de apenso, nem ao pagamento de taxa de justiça por desencadeamento de incidente de habilitação (cfr., neste sentido, acórdão da Relação de Guimarães, de 18.3.2021, processo 74/13.4TBGMT-G.G1).
18) Esta forma simples e célere proporcionada pelo legislador para fazer operar nos processos as transmissões de crédito efetuadas em grande escala adequa-se, afinal, ao direito substantivo, que não cria particulares dificuldades à eficácia da cessão de créditos
perante o devedor (cfr. artigos 577.º, 578.º, 583.º do CC).
19) Não tendo o legislador interferido na matriz do modelo processual. Tal significa que a parte contrária, os aqui Executados, possam exercer o seu contraditório quanto à alegada habilitação, questionando o conteúdo e a forma do mesmo.
20) Bem como, suscitar dúvidas quanto à inclusão do seu crédito na alegada cessão de créditos.
21) Tanto mais que, neste caso, de toda a documentação apresentada pela Requerente - em lugar nenhum consta o nome de qualquer um dos executados.
22) Nem se justifica, por documento ou por alegação, o motivo de se imputar tal cessão de créditos aos aqui executados.
23)A possibilidade do exercício do contraditório, enquanto elemento estrutural do processo equitativo, é um princípio fundamental do direito adjetivo, consagrado na Constituição (art.º 20.º n.º s 1 e 4) e na lei ordinária (art.º 3.º do CPC).
24) In casu, a alegada cessionária, depois de solicitado pelo Tribunal, juntou um acervo documental que suscitou dúvidas e reparos aos Executados, que os formalizou mediante a apresentação do requerimento de fls., no qual conclui e requer pelo indeferimento de tal habilitação.
25) E, colocado perante a apresentação de tais questões, o tribunal não deveria limitar-se a arredar dos autos a peça processual apresentada pelos Executados.
26) Pois, tal como alegado no requerimento anterior, os documentos juntos não servem como meio de prova daquilo que a Requerente pretende.
27) Sendo extemporâneos, e já tendo sido alvo de decisão por parte do Tribunal.
28) E, lendo tal documentação não se vislumbra qualquer implicância ou qualquer conexão com o teor dos presentes autos, nomeadamente quanto a valores, identificação das partes, notificações prévias, carteira, etc, que digam, em concreto respeito aos executados.
29) (Cfr. Ac. Rel. Lisboa de 07.12.2021 in dgsi.pt)
30) (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-05-2021, proc. n.º 348/14.7T8STS-AV.P1.S1). (Cfr. Ac. STJ de 07.09.2021 in dgsi.pt)
31) Conforme resulta do acervo da jurisprudência que destacámos em supra, bem como da legislação aplicável ao caso em concreto, nomeadamente a al.a) do n.º 1 do artigo 356º do CPC,
32) Verifica-se que, no caso dos autos, antes de ser proferida qualquer decisão como a decisão recorrida,
33) Dever-se-ia sempre, previamente notificar os Executados para exercerem o seu direito de oposição - o que neste caso não sucedeu.
34) Ou seja, no caso dos autos, não se deu à parte contrária a possibilidade de poder apresentar contestação.
35) E, por outro lado, não foi efetuado por parte do tribunal “a quo” qualquer juízo de apreciação sobre a validade da transmissão do crédito em questão, se tal crédito respeitava aos Executados,
36) Não se fez um juízo sobre a capacidade das pessoas que nela (cessão) intervieram,
37) Não se deu oportunidade dos Executados exercerem o seu direito ao contraditório.
38) Ofendendo-se de forma grave o que dispõe a Lei, nomeadamente a norma da al. a) do n.º 1 do artigo 356º do CPC.
39) É certo que vivemos tempos em que parece que a Inteligência artificial e os procedimentos automáticos e simplificados pretendem impor a sua vontade. Mas tal não significa que se possa atropelar o direito à palavra, o direito ao contraditório, matriz tão essencial na nossa cultura jurídica e social.
40) E neste caso, vedou-se tal possibilidade aos recorrentes - e tal não é compatível com o nosso ordenamento jurídico e nem com os nossos costumes como sociedade e como povo e nação!
41) Diz-se na sentença recorrida que “...Não assiste, pois, aos executados a possibilidade de deduzirem oposição à habilitação requerida..:” Todavia, o tribunal não esclarece quais as normas jurídicas em que assenta este seu raciocínio. Bem como não esclarece porque razão rejeita aplicar o disposto na Lei Processual Civil, nomeadamente o disposto no artigo 356º, n.º 1, al. a) do CPC.
42) Sofre assim a decisão recorrida de nulidade, que desde já aqui se invoca e se requer a sua apreciação.
43) Acresce ainda que o tribunal decidiu sem que houvesse lugar a apreciação de todos os elementos constantes dos autos.
44) Por exemplo, a decisão recorrida foi proferida, apesar de nos autos se verificar que a Requerente nunca se pronunciou sobre o Requerimento apresentado pelos Executados no dia 09.10.2023.
45) Bem como foi proferida a decisão recorrida sem que apreciasse o requerido pelos Executados a 24.10.2023 e a 09.10.2023.
46) Assim, de acordo com a matéria constante nos presentes autos, bem como de acordo com as normas jurídicas em vigor cremos que não estavam reunidos os pressupostos legais para que fosse proferida a decisão recorrida, nos termos em que o foi.
47) Sendo certo que a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” decidiu apesar de existirem nos autos todas as questões, nomeadamente as já referidas em supra, as quais deviam ser previamente conhecidas antes de ser proferida decisão.
48) E o Tribunal “a quo”, cometeu um erro de interpretação dos elementos constantes dos autos e efetuou uma incorreta interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis ao caso dos autos.
49) A sentença recorrida viola o disposto no artigo 154º e 615º do C.P.C., porque além de fazer uma errada interpretação e aplicação das normas enunciadas na mesma, não está fundamentada de facto e de direito, como impõem estas normas legais.
50) Daí que, tenha se ser REVOGADA a sentença recorrida.
O caso julgado formal formado com o indeferimento inicial:
A violação do contraditório;
A falta de fundamentação da decisão;
A validade da cessão.
“O presente decreto-lei corporiza uma das medidas aprovadas pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 81/2017, de 8 de junho, no âmbito daquele Programa, com vista a melhorar os processos e procedimentos conexos com as operações de cessão de créditos em massa, com recurso aos meios tecnológicos apropriados.”
“A agilização do mercado no que toca à transação de carteiras de crédito contribui significativamente para a melhoria das condições de financiamento das empresas e para a redução dos níveis de créditos não produtivos.”
“Cria-se, assim, um regime simplificado para a cessão de carteiras de créditos, dispensando a habilitação processual dos adquirentes em cada um dos processos em que o crédito adquirido esteja a ser exigido e simplificando-se as operações registais associadas.” (Sublinhado nosso.)
De acordo com aquela motivação, a referida lei preceitua no seu artigo 3.º que o cessionário considera-se habilitado em todos os processos em que estejam em causa créditos objeto de cessão e, “para efeitos do número anterior, compete ao cessionário juntar ao processo cópia do contrato de cessão, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 356.º do Código de Processo Civil.”
Esta última ressalva serve para esclarecer que a junção/ habilitação pode ser promovida pelo transmitente ou cedente, pelo adquirente ou cessionário, ou pela parte contrária.
Nos referidos termos, concordando com o acórdão da Relação de Guimarães, de 18.3.2023 (proc.74/13), em www.dgsi.pt, entendemos que a lei dispensou, no seu restrito âmbito, o incidente de habilitação de cessionário, “não consagrando apenas a simplificação do previamente instituído no código de processo civil.”
Se a lei dispensou o incidente e se se basta com a junção da cópia da cessão, podemos tirar as seguintes ilações:
Embora notificada da junção do documento, a parte contrária não é notificada para deduzir oposição;
A qualquer momento, salvo caso de extinção do processo, o documento da cessão pode ser junto;
Não é discutida a validade da cessão, conferindo-se apenas se está em causa uma cessão de créditos em massa. Admitir-se-á, no limite, a constatação de ostensiva violação formal na contratação.
Vejamos então o caso concreto, no que respeita às questões colocadas pelos Recorrentes:
O caso julgado formal:
Não obstante a decisão proferida em 13-09-2023 (indeferimento por falta de junção da cópia do contrato), nada obsta à consideração do documento depois junto pela cessionária, o qual é um acordo do qual consta que o preço da venda da carteira de empréstimos excede os € 50.000 e que estão em causa mais de 50 créditos distintos.
No mesmo sentido vai o artigo 352, n.º 3, do Código de Processo Civil.
A violação do contraditório:
Não havendo lugar a um incidente, não há lugar à oposição.
Ainda que assim não seja, verificamos que os Recorrentes beneficiaram do contraditório.
Com a primeira notificação, do requerimento de 25.5.2023, os Recorrentes não apresentaram qualquer oposição.
Só depois, em 9.10.2023, com a junção do (novo) documento em falta, vieram dizer que o novo requerimento da cessionária é extemporâneo e que o documento não revela qualquer conexão com o crédito dos autos.
As novas questões não merecem acolhimento. Como vimos, a junção posterior ao indeferimento inicial é possível e visa apenas certificar os requisitos previstos no art.2 do DL 42/2019. Depois, facilmente se percebe a sucessão de cessões dos créditos do Banco 1..., estando em anexo ao contrato de cessão a menção ao relativo à “B..., Lda, sociedade para a qual os executados avalizaram a livrança em execução.
Já são questões completamente extemporâneas, novíssimas (apenas agora em recurso) as relativas a obrigações fiscais relativas à cessão e a poderes dos assinantes da mesma, questões sem menção de factos pertinentes. (“Os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas e não a analisar questões novas, salvo quando estas sejam de conhecimento oficioso e o processo contenha os elementos imprescindíveis.” (A. Geraldes, Recursos, 6ª edição, 2020, Almedina, página 141.)
A falta de fundamentação da decisão:
No contexto legal referido, facilmente se constata que a decisão recorrida não padece de falta de fundamentação, sendo válida, tendo verificado a junção da cessão e a certificação de que se trata de uma de “créditos em massa”.
A validade da cessão:
Junto o documento pertinente, não havendo lugar a qualquer incidente, é de presumir aquela validade, questão que diz respeito essencialmente aos seus outorgantes.
Admitindo que se pudesse colocar uma questão de ostensiva violação formal, como assinalado, verificamos que os Recorrentes não a colocaram inicialmente e, depois, apenas colocaram questões de forma lacónica, sem fundamentação factual concreta.
Em conclusão, não merece reparo a decisão recorrida.
Julga-se o recurso improcedente e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes, vencidos, sem prejuízo do apoio judiciário de que possam beneficiar.
2024-06-04
(Luís Cravo)
(Moreira do Carmo)