PERÍCIA
OBJECTO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Sumário


1 – As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.
2 – O juiz deve recusar provas impertinentes, dilatórias ou desnecessárias.
3 – A pertinência, necessidade e não dilatoriedade do meio de prova afere-se pelo facto sobre que incide e pela relação deste com o objeto do processo.
4 – A perícia é impertinente se não respeita aos factos da causa; é dilatória se, embora respeitando aos factos da causa, o seu apuramento não exigir os conhecimentos especiais que esta pressupõe, não for idónea para provar o facto que com ela se pretende demonstrar ou se o facto já se encontrar provado por qualquer outra forma.
5 – Sendo requerida a produção de prova pericial, o juiz deve apreciar liminarmente se foi indicado o respetivo objeto e se a diligência não é impertinente ou dilatória.
6 – Verificada a falta de indicação do objeto, a impertinência ou a dilatoriedade da perícia, o juiz deve rejeitar a perícia. Só se não houver motivo para rejeitar a perícia, é que o juiz deve ouvir a parte contrária sobre o objeto proposto.
7 – Tendo sido ordenada a notificação dos réus para se pronunciarem sobre o objeto da perícia requerida pelos autores, indicada na petição inicial através de remissão para artigos daquela peça processual, carece de fundamento a decisão de indeferir a perícia por não terem «formulado os quesitos que pretendem que sejam respondidos».
8 – Além de inexistir qualquer ónus de formular quesitos, uma indicação por remissão não é o mesmo que uma falta de indicação das questões factuais que se pretendem ver esclarecidas através da perícia. Só a falta total de indicação é que constitui motivo legal de rejeição liminar da prova pericial.
9 – A falha da parte que requer a produção de prova pericial, traduzida na deficiente indicação ou concretização das questões factuais que pretende ver esclarecidas através da perícia, é suprida mediante convite ao aperfeiçoamento do requerimento.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1.1. AA e marido, BB, intentaram ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e marido, DD, formulando os seguintes pedidos:

«a) Declarar-se que os A.A. são donos e legítimos possuidores do prédio urbano composto de casa de ... e ... andar e logradouro, destinada a habitação, sita em ..., União de freguesias ... (...) e ..., desta comarca, inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...31 e descrito na Conservatória do registo predial deste concelho sob o nº ...15, onde a aquisição a favor dos Requerentes foi inscrita pela AP ...5 de 1998/01/15
b) Declarar-se que os A.A. são os únicos donos e legítimos possuidores do pátio descrito no artigo 8º da petição.
c) Declarar-se que os AA. são os únicos donos e legítimos possuidores do trato de terreno identificado no art. 20º (desvão) da petição.
d) Condenar-se os RR. a reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre o prédio identificado na alínea a), b) e c), por o terem adquirido por usucapião.
e) Sem prescindir e para o caso de os AA. não provarem a posse e propriedade plena e exclusiva do pátio e trato de terreno referidos na al. b) e c) condenar-se os RR. a reconhecer o direito de propriedade dos AA. na proporção de metade para AA. e RR., por os AA. o terem adquirido por usucapião quanto a essa metade.
f) Condenar-se os RR. a demolir as construções efectuadas sobre o referido pátio e trato de terreno identificado na al. b) e c).
g) Condenar-se os RR. a demolir a cobertura de madeira sobre o terraço identificado na alínea c) do pedido.
h) Condenar-se os RR. a pagar aos AA. quantia não inferior a 10.000,00 euros a título de dano patrimonial e não patrimonial».
No final da petição inicial os Autores requereram «prova pericial a realizar por perito a nomear pelo tribunal, para esclarecimento da matéria dos artigos 10º, 11º, 13º, 19º, 20º, 21º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º, 33º, 39º, 40º, 41º, 45º, 46º, 48º, 49º 50º e 51 da petição inicial», nos quais foi alegado o seguinte:
«10º Junto aos degraus, ao nível do ... está implantada uma cancela em ferro forjado.
11º A referida cancela abre para o referido pátio para o qual deita directamente. (…)
13º Por lá entravam para a sua casa de habitação, a pé. - cfr. doc. ...5 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos (…)
19º O referido anexo propriedade dos RR. dista da casa dos AA., a sul cerca de 1,40 metros e a norte cerca de 0,6 metros.
20º Esse trato de terreno com cerca de 1,40 metros a sul e a norte cerca de 0,6 metros entre a casa dos AA. e o anexo dos RR. faz parte integrante do prédio dos AA.
21º Perpendicular ao referido pátio existe uma parede exterior que une o prédio dos AA. ao prédio dos RR. (…)
24º As paredes exteriores dos prédio dos AA. são de alvenaria de pedra, feita com recurso a pedras de granito de grandes dimensões, que medidas na diagonal possuem entre cerca de 0,50 a 1,40 m. - cfr. doc. ...7 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos
25º As pedras de granito que compõe as paredes exteriores do prédio dos AA. apresentam uma forma próxima do retangular e encontram-se dispostas com um alinhamento também próximo do regular,
26º Prologando-se algumas das pedras desde a fachada do prédio dos AA., ao longo da parede que se encontra perpendicular ao supramencionado prédio.
27º A cancela do prédio dos AA. têm cerca de 1,40 metros e deita sobre o pátio ao longo dessa parede.
28º As pedras próximas do telhado, que compõe a fachada da parede dos AA., onde está a cancela medem 1,25 metros.
29º As que se encontram a meio da fachada e se prolongam até à parede que une os dois prédios, têm entre um 1,30 e 1,40 metros . cfr. doc. ...8 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
30º A pedra que é visivelmente mais comprida e que se situa por trás da cancela na parte superior têm a mesma medida do que esta 1,40 metros, cfr. doc. ...9 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
31º Na parte oposta dos indicados prédios, verifica-se na alvenaria a existência de pedras que compondo o prédio dos AA., se prolongam até à parede que une ambos os prédios, em cerca de 0,70 metros. - cfr. doc. ...0 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
32º São as pedras que compõe a fachada em alvenaria dos AA. que se estendem e compõe a parede exterior da frente, que une o prédio destes ao anexo dos RR.
33º Que possuí a mesma extensão, que a cancela aberta dos AA., de 1,40 metros, (…)
39º Esse trato de terreno é actualmente um desvão.
40º É um espaço não aproveitado e sem qualquer entrada de acesso mas que, não obstante, é parte integrante do prédio dos AA.
41º Encontrando-se o desvão oculto pelo prolongamento da parede da fachada sul e norte do prédio dos AA. e pelo anexo do prédio dos cfr. doc. ...1 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos. (…)
45º Os RR. aquando da requalificação do seu prédio criaram um terraço e varandas, cfr. doc. ...2 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
46º Na varanda superior estabeleceram ligação ao terraço que se encontra por cima do descrito desvão. cfr. doc. ...3 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos. (…)
48º O terraço e varandas assenta no desvão construído entre as paredes que unem os prédios dos AA. e dos RR.
49º No local onde se encontrava o anexo, os RR. construíram, ou mandaram contruir, uma varanda ao nível do ... e outra ao nível do ... andar. - cfr. doc. ...5 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
50º E ao nível do pátio referido em 8º, propriedade dos AA., estão a proceder a obras, de forma a ampliar, sobre o referido pátio as varandas.
51º Os RR. iniciaram a construção de uma cobertura em madeira sobre o referido pátio dos AA. - cfr. doc. ...5 que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.»

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Contestaram os Réus, pugnando pela improcedência da ação e a inerente absolvição dos pedidos.
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1.2. Depois de outras vicissitudes, foi convocada a audiência prévia, proferiu-se despacho saneador e o objeto do litígio foi definido do seguinte modo:

«1- Aferir da propriedade do pátio enunciado nos artigos 7.º a 9.º, da petição inicial e do trato de terreno enunciado no artigo 20.º, da petição inicial;
2- Aferir se os Autores têm direito aos danos reclamados;
3- Sempre aferir, em face da oposição expressa entre as versões apresentadas nos autos e que respeitam a factos pessoais, se as partes litigam com má fé».
Consignou-se que «a matéria referente ao direito de propriedade quanto ao prédio identificado no artigo 1.º, da petição inicial se mostra assente, por acordo.»
Nesse despacho foi ainda dispensada a enunciação dos temas de prova e ordenada a notificação «dos Réus para se pronunciarem relativamente à perícia e respetivo objeto no prazo de 10 (dez) dias.»
Os Réus pronunciaram-se no sentido de, por um lado, o objeto da perícia ser restringido e, por outro, ampliado quanto às questões de facto que então enunciaram.
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1.3. Seguidamente, foi proferido o despacho recorrido com o conteúdo que a seguir se transcreve:
«A lei, de forma expressa e clara, exige do requerente da prova pericial a indicação do objecto respectivo enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência. O incumprimento de tal ónus tem como consequência a rejeição da requerida diligência.
Não tendo os AA formulado os quesitos que pretendem que sejam respondidos, indefere-se a mesma.»
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1.4. Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:
«1. Os Recorrentes solicitaram na sua petição inicial prova pericial a realizar por perito a nomear pelo tribunal, para esclarecimento da matéria dos artigos 10º, 11º, 13º, 19º, 20º, 21º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º, 33º, 39º, 40º, 41º, 45º, 46º, 48º,49º 50º e 51 da petição inicial”.
2. Nada impede os Recorrentes de indicar o objecto da prova pericial por referência aos artigos da petição inicial (ou da contestação).
3. O Tribunal a quo notificou os Réus no Despacho Saneador proferido em sede de Audiência Prévia, para “para se pronunciarem relativamente à perícia e respetivo objeto no prazo de 10 (dez) dias”
4. E, desta forma, não sendo suscitada qualquer questão na audiência prévia quanto à prova pericial, considerou o Tribunal a quo que a diligencia não era impertinente, nem dilatória, e facultou à parte contrária a oportunidade de aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição.
5. A entender o Tribunal que, as questões de facto objeto da perícia não estavam suficientemente esclarecidas, deveriam ter sido ordenada todas as diligências necessárias para as suprir.
6. A cooperação do tribunal com as partes traduz-se, essencialmente, no convite ao aperfeiçoamento dos articulados que comportem alegações de facto incompletas, ambíguas, lacunarmente concretizadas ou densificadas, bem como na ultrapassagem de obstáculos de natureza formal à realização da função substancial do processo.
7. Salvo o devido respeito, os Recorrentes têm direito a requerer os meios de prova que entende serem convenientes para esclarecimento da verdade material.
8. O Tribunal a quo, ao entender que não estavam concretizadas as questões de facto a ver esclarecidas com a prova pericial – não aceitando o objecto proposto por remissão para os articulados -, tendo dado oportunidade à parte contrária para se pronunciarem relativamente à perícia e respetivo objeto no prazo de 10 (dez) dias, deveria ter convidado os AA., a formularem os quesitos que entendessem oportunos.
9. O Tribunal a quo deveria oficiosamente ter diligenciado para tal correção, fazendo uso dos princípios de dever de gestão processual e do inquisitório mecanismo previstos respetivamente nos artigos 6º e 411º do Cód. Proc. Civil.
10. O que não fez violando o seu dever de gestão processual e bem assim o princípio do inquisitório, ilegalidade que se argui para os legais efeitos.
11. Apesar de não estar fundamentado de direito, o entendimento perfilhado pelo tribunal na norma constante no nº 1 do art. 475º, com o alcance e conteúdo ali espelhado no despacho de que se recorre, viola o nº 1 e 4º do art. 20º da CRP, que consagra o direito à tutela jurisdicional efetiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto despacho recorrido e procedendo-se à sua substituição por outro que admita a realização da perícia, em conformidade com o acima exposto.»
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Os Réus não apresentaram contra-alegações.
O recurso foi admitido.
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1.5. Questões a decidir

Atentas as conclusões do recurso interposto pelos Autores, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil[1]), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, importa apreciar da verificação do fundamento invocado para indeferir a prova pericial requerida pelos Autores e, na negativa, quais as consequências a extrair.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
Os factos relevantes para a apreciação da apontada questão são os descritos no relatório que antecede.
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2.2. Do objeto do recurso

2.2.1. As provas, diz-se no artigo 341º do Código Civil (CCiv[2]), têm por função a demonstração da realidade dos factos. O termo provas, que é polissémico, é utilizado no apontado preceito legal no sentido de meios, isto é, elementos objetivos capazes de proporcionar a demonstração da realidade de determinados factos.
Existe um nexo entre as provas na aludida aceção e o processo: a proposição e a produção da prova em juízo visam demonstrar a realidade dos factos relevantes para o processo. Daí resulta uma limitação: os factos que não interessam à decisão da causa não podem ser objeto de prova. Por conseguinte, os procedimentos probatórios, regulados no Código de Processo Civil, estão condicionados pelo objeto do processo; não se pode propor um meio de prova sobre facto que não integra o objeto do processo.
A atividade probatória é orientada pelo conceito de ónus da prova, previsto no artigo 342º do CCiv. Numa simplificação, a prova dos factos constitutivos do direito cabe àquele que o pretende fazer valer, enquanto a prova do facto em que se alicerça a exceção compete a quem a invoca. Dito de outra forma: cada uma das partes tem o ónus de alegar e provar os factos correspondentes à previsão da norma que aproveita à sua pretensão ou à sua exceção[3], o que abrange a prova de todos os pressupostos (quer positivos, quer negativos) das normas favoráveis à respetiva pretensão.
Mas há ainda uma outra dimensão da atividade probatória, que é a inerente ao exercício do direito de contraprova (art. 346º do CCiv). Cabendo a uma parte provar a realidade de certo facto, aos meios de prova por ela oferecidos pode a parte contrária opor outros meios de prova com a finalidade de impedir a formação de uma convicção positiva do julgador sobre essa realidade. Daí que as provas também sirvam para tornar duvidosa a realidade do facto alegado pela contraparte ou até para infirmar tal realidade; nas duas situações o facto é considerado não provado, sendo que na primeira o é por haver dúvida fundada sobre a sua realidade e na segunda por se formar a convicção de que o facto não se verificou.
Na dinâmica do processo, opera-se a produção de prova, que não é mais do que a atividade instrutória desenvolvida em juízo versando sobre os factos relevantes. É nessa aceção que o CPC fala em instrução do processo no seu artigo 410º, onde se estatui que «a instrução tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha havido lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova».

Por regra, a proposição da prova deve ocorrer na fase dos articulados, ou seja, no momento da apresentação do articulado em que o facto seja alegado.
O autor deve no final da petição inicial produzir o seu requerimento probatório, mas pode alterá-lo, no caso de o réu contestar, na réplica, se esta existir, ou no prazo de 10 dias a contar da notificação da contestação (art. 552º, nº 6, do CPC), o que desde logo constitui a primeira exceção à regra que apontamos, relativa ao dever de proposição da prova com o articulado em que a alegação seja feita. Também o réu deve integrar no articulado o requerimento probatório (art. 572º, al. d) do CPC), mas se tiver havido reconvenção, caso o autor replique, o réu pode alterar o requerimento probatório inicialmente apresentado, no prazo de 10 dias a contar da notificação da réplica.
Na parte relevante para a apreciação do recurso, dispõe ainda o artigo 598º, nº 1, do CPC que o requerimento probatório apresentado, designadamente aquele que respeita à proposição e objeto da prova pericial, pode ser alterado na audiência prévia.

Em conformidade com o disposto no artigo 411º do CPC, na vertente em causa no recurso (iniciativa probatória das partes), incumbe ao juiz ordenar as diligências dos procedimentos probatórios relativos aos meios de provas propostos pelas partes, na medida em que sejam «necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio».
No nosso ordenamento o juiz pode recusar provas impertinentes, dilatórias ou desnecessárias (v. arts. 6º, nº 1, 411º, 443º, nº 1, 476º, nº 1, e 490º, todos do CPC). Não parece haver utilidade substancial na autonomização da figura da desnecessidade do meio de prova relativamente ao conceito de prova dilatória, da qual é uma subespécie.
O meio de prova proposto pela parte será pertinente se respeitar a factos relevantes para o exame e decisão da causa, ou seja, a factos principais (essenciais e complementares ou concretizadores) ou a factos instrumentais. Pela negativa, a prova (por exemplo, o documento ou a prestação de informação) é impertinente se destinada a provar ou a opor contraprova relativamente a facto irrelevante para a decisão da causa.
Igualmente pela negativa, embora respeitando aos factos da causa, a proposição probatória é dilatória se inidónea para provar o facto que com ela se pretende demonstrar, se não for apta para fazer contraprova de facto alegado pela contraparte ou se o facto já se encontrar provado por qualquer outra forma.
Em geral, a proposição probatória será deferida no caso de cumulativamente observar os seguintes pressupostos:
a) A parte proponente pretender provar determinado facto por recair sobre si o respetivo ónus da prova ou quiser opor contraprova a respeito de facto de que a contraparte tem o ónus;
b) O facto tiver interesse para a decisão da causa;
c) O meio probatório for apto (capaz, idóneo, adequado) para demonstrar a realidade do facto controvertido ou para opor contraprova relativamente ao mesmo.
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2.2.2. Destinando-se a prova pericial, como qualquer outra prova, a demonstrar a realidade dos factos, aquilo que a singulariza é o seu específico objeto: a perceção ou apreciação de factos que exijam conhecimentos especiais que o julgador não possua (artigo 388º do CCiv). Por conseguinte, a prova pericial pressupõe que sejam necessários conhecimentos especiais para percecionar ou apreciar factos, ou seja, conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos que a generalidade das pessoas não tem e que só quem os possuir pode compreender e valorar adequadamente.
A prova pericial pode ter lugar, quer por iniciativa oficiosa do juiz, quer a requerimento de qualquer parte – artigo 467º, nº 1, do CPC. Sendo requerida pelas partes, deve o respetivo requerimento ser apresentado no momento adequado para a proposição da prova, ou seja, em princípio, nos articulados - artigos 552º, nº 6, e 572º, al. d), do CPC. Em conformidade com o disposto no artigo 475º, nº 1, do CPC, a parte que requeira a realização de uma perícia, deve indicar imediatamente, sob pena de rejeição, o respetivo objeto, enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência.
Tendo presente estas regras, no caso dos autos, a produção de prova pericial foi requerida pelos Autores na petição inicial, que é um momento processual oportuno. Indicaram as questões factuais que pretendem ver esclarecidas mediante remissão para artigos da petição inicial.
O artigo 476º, nº 1, do CPC dispõe: «Se entender que a diligência não é impertinente nem dilatória, o juiz ouve a parte contrária sobre o objeto proposto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-o a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade.»
Resulta do disposto nos artigos 475º, nº 1, e 476º, nº 1, do CPC, que o juiz deve apreciar liminarmente:
i) Se o requerente da prova pericial indicou o respetivo objeto, isto é, as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da perícia;
ii) Se a diligência não é impertinente ou dilatória.
Verificada a falta de objeto, a impertinência ou a dilatoriedade, o juiz deve rejeitar a perícia.
Só se não houver motivo para rejeitar a perícia, é que o juiz deve ouvir a parte contrária sobre o objeto proposto. De outro modo, a audição da parte contrária é um ato inútil.
No caso vertente, foi ordenada a notificação dos Réus para se pronunciarem sobre o objeto da perícia requerida pelos Autores, pelo que se conclui que a Mma. Juiz entendeu que não se verificava nenhum dos três motivos legalmente tipificados para a rejeição da diligência: falta de indicação do objeto, impertinência e dilatoriedade.
A Sra. Juiz, num segundo momento, depois de ouvidos os Réus sobre o objeto da perícia, indeferiu a perícia por «os AA [não terem] formulado os quesitos que pretendem que sejam respondidos».
Sucede que os Autores tinham indicado o objeto da perícia na petição inicial, onde requereram «prova pericial a realizar por perito a nomear pelo tribunal, para esclarecimento da matéria dos artigos 10º, 11º, 13º, 19º, 20º, 21º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º, 33º, 39º, 40º, 41º, 45º, 46º, 48º, 49º 50º e 51 da petição inicial», pelo que o fundamento invocado para indeferir a prova pericial não se verifica.
Aliás, a referência feita no despacho recorrido a quesitos, cuja falta constituiu o motivo para o indeferimento da perícia, nem sequer tem qualquer correspondência no atual Código de Processo Civil, o qual apenas exige a enunciação das «questões de facto» que se pretendem ver esclarecidas através da perícia. Por isso, inexiste qualquer ónus de formular quesitos.
Como referem Lebre de Feitas e Isabel Alexandre[4], «[a] substituição da exigência de quesitos pela da indicação das questões de facto cujo esclarecimento as partes pretendem obter da perícia dispensa a formulação de perguntas precisas, deixando ao perito maior margem de manobra na elaboração do relatório e dispensando a parte de, antes de requerer a perícia, indagar dos pormenores técnicos sobre que esta poderá incidir».
Questão diversa, respeitante já à fixação do objeto da perícia, é a de saber se alguma das questões suscitadas é inadmissível ou irrelevante, o que constitui fundamento de indeferimento da respetiva questão, como prevê o artigo 476º, nº 2, do CPC.
Mas não foi esse o fundamento invocado, mas sim a falta de formulação de quesitos. A Mma. Juiz não apreciou qualquer das questões indicadas na petição inicial para integrar o objeto da perícia, antes concluiu que não foram formulados quesitos, motivo pelo qual indeferiu a diligência.
É verdade que as questões factuais foram indicadas por remissão para os correspondentes artigos da petição inicial e que poderiam e deveriam ter sido objeto de especificação e concretização, essencialmente por três razões. Primeiro, a lei impõe expressamente a enunciação das questões de facto e não qualquer outra forma de as indicar; enunciar é expor com clareza, o que só se obtém com a formulação das concretas questões factuais. Segundo, essa exigência não é despicienda ou meramente formal, pois corresponde a um dever de cooperação para com o tribunal, o qual não tem de substituir-se à parte no cumprimento do ónus de enunciação das questões, mas apenas de controlar se a diligência é pertinente e não dilatória e se as questões enunciadas não são inadmissíveis e irrelevantes, juízo que se formula com base no concreto objeto proposto para a perícia. Terceiro, essa indicação é necessária para garantir o contraditório, permitir uma correta fixação do objeto da perícia e, sobretudo, facilitar a sua realização, no que respeita à inspeção (observação das coisas, vistoria do prédio) por parte do perito, e a elaboração do relatório pericial; raramente a forma como a parte alega os factos corresponde a uma apropriada formulação de uma questão factual para ser submetida a uma perícia. Essa concretização permite que o perito compreenda devidamente o que está em causa e que se pronuncie com precisão sobre cada uma das questões factuais, expurgando-se a matéria irrelevante, bem como a insuscetível de ser respondida através da prova pericial.
Depois, proceder a uma indicação por remissão não é o mesmo que uma falta de indicação das questões factuais que se pretendem ver esclarecidas através da perícia. Só a falta total de indicação é que constitui motivo legal de rejeição liminar da prova pericial.
A falha da parte que requer a produção de prova pericial, traduzida na deficiente indicação ou concretização das questões factuais que pretende ver esclarecidas através da perícia, é suprida mediante convite ao aperfeiçoamento do requerimento. Por um lado, o convite à parte para corrigir o lapso decorrente de uma indicação efetuada por remissão (e não através da enunciação legalmente exigida), é a que se mostra mais ajustada em face dos poderes/deveres de gestão processual conferidos ao juiz (cf. artigo 6º do CPC), de onde emanam pilares fundamentais do processo civil como o da instrumentalidade dos mecanismos processuais em face do direito substantivo e o da prevalência das decisões de mérito sobre as formais. Por outro lado, para a prossecução da verdade material foram conferidos ao juiz poderes de zelar pelo aproveitamento dos atos das partes que apresentem deficiências, sendo excessivo aplicar a consequência normal da não observância de um ónus processual, que é a preclusão.
Como referem os Recorrentes, com inteira razão, «[a] entender o Tribunal que, as questões de facto objeto da perícia não estavam suficientemente esclarecidas, deveriam ter sido ordenadas todas as diligências necessárias para as suprir», ou seja, «ao entender que não estavam concretizadas as questões de facto a ver esclarecidas com a prova pericial – não aceitando o objecto proposto por remissão para os articulados», deveria ter convidado os Autores a suprir tal insuficiência.
Está em causa o direito à prova, o qual determina que seja facultada a proposição de todos os meios probatórios potencialmente relevantes para o apuramento da realidade dos factos da causa. Mas, além disso, as partes também têm direito à admissão de todas as provas relevantes para o objeto da causa, não podendo o tribunal exercer neste campo um poder discricionário. Aliás, «a recusa de um meio de prova deve ser sempre fundamentada numa norma ou num princípio jurídico»[5] e no caso dos autos isso não sucedeu. O indeferimento baseou-se num fundamento que não se verifica e que o próprio conteúdo do anterior despacho proferido na audiência prévia diretamente contraria.
É preciso não esquecer que o direito à prova integra o núcleo do direito a um processo equitativo, previsto no nº 4 do artigo 20º da CRP e no artigo 6º da CEDH, e é esse direito que é posto em causa quando se decide indeferir um requerimento de prova nos termos em que se fez nos autos.
Depois de oferecida a contestação pelos Réus, com a consequente melhor definição dos exatos termos do litígio, também as questões factuais a esclarecer através da perícia podem agora ser rigorosamente concretizadas e clarificadas.
Para o efeito, deve ser concedido aos Autores o prazo de dez dias para concretizarem as questões de facto que integrarão o objeto da perícia, seguindo-se a devida tramitação da causa na 1ª instância.
Termos em que procede a apelação.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação, revoga-se o despacho recorrido e, em consequência, ordena-se a notificação dos Autores para, no prazo de 10 dias, esclarecerem quais as concretas questões factuais que pretendem ver esclarecidas através da perícia, seguindo-se a ulterior tramitação.
Custas a suportar pela parte vencida a final.
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Guimarães, 09.05.2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Alcides Rodrigues
Alexandra Rolim Mendes


[1] De ora em diante, CPC.
[2] Utilizar-se-á de ora em diante a abreviatura CCiv para designar o Código Civil.
[3] Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, pág. 455.
[4] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 324.
[5] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., pág. 214.