CONTRATO DE TRABALHO
ESTAFETA
PLATAFORMA DIGITAL
Sumário


I – Na ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho o Ministério Público age em representação do Estado e em defesa do interesse público, e não de qualquer trabalhador em concreto;
I – Discutindo-se na ação a natureza laboral do contrato, não pode dar-se como provado na matéria de facto que um prestador de atividade foi admitido sob as ordens e direção da Ré, por tal envolver o thema decidendum;
III – Inexiste fundamento para alterar determinada matéria de facto se o recorrente a impugna apenas com base em documentos, sem força probatória plena, e o tribunal a fixou baseando-se em prova documental e em prova testemunhal;
IV – É de reconhecer a existência de um contrato de trabalho entre um prestador de atividade e a Ré que, fazendo uso de plataforma digital, desenvolve, através de distribuidores (estafetas) ao seu serviço, a recolha de refeições nos estabelecimentos de parceiros, procede ao transporte e entrega na morada dos clientes, no circunstancialismo fáctico em que, no essencial, se apura:
- após receber os pedidos dos clientes – através do sítio na internet ou por telefone – a Ré distribui os mesmos aos estafetas, através de uma aplicação denominada Tookan Agent que estes têm instalada no seu telemóvel;
- seguidamente, o distribuidor, após aceitar o pedido, em ciclomotor que lhe foi cedido pela Ré, assim como com TPA e fundo de maneio, e ostentando o logótipo “comidas.pt” e indumentária própria com os mesmos dizeres, todos fornecidos pela Ré, desloca-se ao estabelecimento de restauração do parceiro desta, recolhe o pedido e dirige-se à morada do cliente para entregar a refeição e receber o respetivo pagamento, em dinheiro ou multibanco, através de TPA;
- através de geolocalização (GPS), a Ré tem conhecimento da concreta localização e deslocações do distribuidor, bastando que este faça «login» na aplicação, o que se mostra necessário para o desempenho das tarefas contratadas, a fim de serem distribuídos os serviços;
- a Ré acordou com o prestador da atividade o pagamento de uma quantia certa por cada entrega efetuada dentro da cidade ..., ou nos arredores da mesma (€ 1,75 e € 2,50, respetivamente);
- o prestador da atividade comunica quando não pode cumprir o horário que o próprio acordou com a Ré, para que esta possa efetuar uma gestão dos recursos humanos ao seu dispor, sem necessidade de apresentar justificação para o efeito.
V – A conclusão referida em IV não é afastada pela circunstância de, em abstrato, o prestador da atividade ter liberdade para aceitar ou recusar qualquer pedido de entrega que entendesse não efetuar – mas sem que resulte dos autos que alguma vez essa recusa se tenha verificado –, ou não ter obrigação de se manter nas instalações da Ré a aguardar que esta lhe remetesse os pedidos de entrega, podendo gerir o tempo entre os pedidos como quisesse.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Proc. n.º 1620/23.0T8BJA.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora[1]:

I. Relatório
O Ministério Público instaurou, ao abrigo do disposto nos artigos 3.º, n.º 1, alínea p), e 5.º, n.º 1, alínea g), do Estatuto do Ministério Público (EMP), e dos artigos. 186.º K, n.º1 e 186.º L, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho contra G & M Works, Ld.ª, pedindo, a final, a condenação desta a reconhecer a existência de um contrato de trabalho sem termo com AA, com início em 08-09-2023, desempenhando este as funções de estafeta/distribuidor.

Alegou, para o efeito e no essencial, que entre a Ré e AA foi celebrado um contrato que denominaram de «prestação de serviços», mas que o mesmo deve qualificar-se como de trabalho porquanto o referido AA trabalha em local pertencente ou determinado pela Ré, sob as suas ordens direção e fiscalização, cumprindo horário de trabalho definido por esta, estando juridicamente subordinado, sem autonomia na definição das suas tarefas, não escolhendo os clientes, fazendo uso de farda, equipamentos e instrumentos de trabalho fornecidos pela indicada Ré, recebendo uma quantia fixada, calculada pela Ré, com periodicidade mensal e como contrapartida do seu trabalho, constatando-se ainda que através de meios digitais a Ré determina e controla o trabalho prestado pelo distribuidor.

Em contestação, a Ré negou a verificação de factos que possam qualificar o contrato que mantém com AA como de trabalho, devendo, ao invés, ser qualificado como de prestação de serviço.

No prosseguimento dos autos, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, e em 17-02-2024 foi proferida sentença que, julgando a ação improcedente, absolveu a Ré do pedido.

Inconformado com a sentença, o Ministério Público interpôs recurso para este tribunal, tendo nas alegações apresentadas formulado as seguintes conclusões:
«1. Nos arts. 5º e 14º da PI é referido, designadamente que «..a Ré admitiu AA (…) para sob as suas ordens e direcção, desempenhar as funções de estafeta/distribuidor de refeições.» E «AA vem efectuando a distribuição de refeições, sob as ordens e direcção da Ré.»
2. Ora, na sentença em recurso tais factos (desempenho de funções sob as ordens e direcção da Ré) não resultaram provados, nem não provados, sendo os mesmos essenciais para a verificação ou não de uma relação de trabalho.
3. Pelo exposto, verifica-se omissão de pronúncia, o que configura nulidade, nos termos do art. 615º, nº1, al. d) do CPC.
4. Nulidade que expressamente se vem arguir, nos termos do disposto no art. 77º do Cód. Proc. Trabalho e cuja declaração se requer, com as legais consequências.
5. O recorrente impugna a decisão proferida quanto à matéria de facto, o que faz em cumprimento do disposto no art. 640º do CPC, considerando incorrectamente julgado o ponto b) dos factos não provados: «b) AA tem ordem para comunicar à Ré sempre que não possa cumprir o horário que lhe foi atribuído.»
6. Como meio probatório que impõe decisão diferente em matéria de facto indica-se o «contrato de prestação de serviços», celebrado entre Ré e prestador (fls. 21 e segs./ anexo 4 junto com a participação) do qual decorre, na respectiva cláusula 7ª, al. d), que o prestador de serviços se obriga, especialmente, a informar a Ré, com um mínimo de 3 dias de antecedência a sua indisponibilidade, podendo a Ré imputar ao prestador, no caso de o mesmo não comparecer no dia estipulado no horário uma indemnização pelo facto do mesmo colocar em causa o bom funcionamento da empresa.
7. Mais, decorre da cláusula 6ª do indicado contrato que o incumprimento de alguma das obrigações das partes dá lugar à resolução do contrato sem mais interpelações.
8. Ou seja, a ausência de comunicação prévia de falta do prestador pode acarretar a resolução do contrato e indemnização, estando o prestador obrigado a tal comunicação, por ordem da Ré, plasmada no contrato que ambos celebraram.
9. Pelo que, a Mmª Juíza deveria ter dado como provado que «AA tem ordem para comunicar à Ré sempre que não possa cumprir o horário que lhe foi atribuído.»
10. Mais deveria ter sido dado como provado que; «a falta de tal comunicação, atempada, pode acarretar a resolução do contrato e a obrigação de indemnizar a Ré».
11. Devendo, consequentemente, ser alterada a factualidade assente e tais factos passar a figurar nos factos provados, o que se requer.
12. Em sede de análise da prova produzida e aplicação do correspondente direito, concluiu a Mmª Juíza estarem preenchidas, pelo menos, as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 12º e alíneas a), b) e f) do n.º 1 do artigo 12º-A do Cód. do Trabalho.
13. A al. c) do art. 12º do Cód. do Trabalho refere que: «O prestador de actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma;»
14. No caso dos autos, resultou provado que a Ré tinha um horário de funcionamento previamente definido: de segunda-feira a Domingo, das 12.00 às 14.30 horas e das 19.00 às 22.30 horas.
15. A suposta disponibilidade do prestador está limitada pelos indicados períodos, podendo optar por um ou por ambos, e indicar os dias em que iria desempenhar as suas tarefas, logo cumprindo as horas de início e de termo da prestação, determinadas pela Ré e decorrentes do respectivo horário de funcionamento.
16. O prestador não tem liberdade para desempenhar as suas tarefas fora dos indicados horários.
17. Assim e contrariamente ao decidido, mostra-se, igualmente, preenchida, a al. c) do nº1 do art. 12º do Código do Trabalho.
18. Consta dos factos provados que: «10. Através de geolocalização (GPS) a Ré tem conhecimento da localização e deslocações do distribuidor, bastando que este faça «login» na aplicação, o que se mostra necessário para o desempenho das tarefas contratadas, a fim de serem distribuídos os serviços.»
19. No caso e para a efectivação da entrega de refeições, a Ré dispõe de meios (GPS e plataforma digital), que permitem o controle da actividade do prestador, sendo óbvio que tal controle é efectuado.
20. Assim e contrariamente ao decidido, mostra-se, também, preenchida a al. c) do nº1 do art. 12º A do Código do Trabalho.
21. Apesar do preenchimento das referidas alíneas a), b) e c) dos arts. 12º e 12º A (al. a), b), c) e f)) do Cód. do Trabalho e de, consequentemente, se presumir a relação laboral, a Mmª Juíza entendeu que a Ré logrou ilidir tal presunção, mormente, por valorizar a declaração do prestador feita constar dos factos provados.
22. Ora, independentemente de qualquer declaração do prestador, este está sujeito ao horário de funcionamento da Ré, ao controlo e poder de direcção que esta exerce sobre ele, designadamente por via do GPS e das aplicações Token e comidas.pt.
23. Bem assim, o prestador está sujeito ao poder disciplinar da Ré, a qual lhe impõe, contratualmente, obrigações, que podem acarretar a resolução imediata do contrato e a obrigação de indemnizar.
24. Por outro lado, não resultou provada outra fonte de rendimentos do prestador AA, o qual depende economicamente da Ré para garantir a sua subsistência e foi abrangido, por esta, numa apólice de seguro de acidentes de trabalho.
25. Assim, ao considerar ilidida a presunção de laboralidade, a Mmª Juíza incorreu em violação do disposto nos arts. 12º e 12º A do Cód. do Trabalho.
26. Em consequência, deve ser revogada a sentença proferida e substituída por outra que julgue a acção procedente por provada, e por via dela, condene a Ré a reconhecer a existência de contrato de trabalho sem termo entre a Ré e AA, com início a 7/9/2023 e desempenhando este as funções de estafeta/distribuidor, com as legais consequências».

Contra-alegou a Ré, a pugnar pela improcedência do recurso.

Seguidamente, o recurso foi admitido na 1.ª instância, como de apelação, como subida imediata, nos autos, e efeito meramente devolutivo.
A exma. julgadora a quo pronunciou-se quanto à arguida nulidade da sentença, a negar a mesma.

Subidos os autos a esta Relação, elaborado projeto de acórdão, colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso
Face às conclusões das alegações de recurso, que, como é sabido, delimitam o objeto deste (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho), são as seguintes as questões colocadas à apreciação deste tribunal:
(i) nulidade da sentença, por omissão de pronúncia;
(ii) alteração da matéria de facto.
(iii) se o contrato entre a Ré/Recorrida e AA deve ser qualificado de trabalho.

III. Factos
A) 1. A 1.ª instância deu como provada a seguinte factualidade:
1. A Ré tem como objeto social, designadamente, fornecimento de refeições para eventos e a confeção de refeições prontas a levar a casa, sendo a comercialização dos alimentos e refeições a retalho realizada por telefone ou via Internet, bem como, os serviços de recolha, transporte e entrega ao domicilio de refeições confecionadas e embaladas, e ainda, ações de marketing e publicidade off-line e on-line conexas, serviços de estafeta a empresas e particulares, nomeadamente, a recolha e entrega de encomendas, documentação, serviços de correio, transporte de peças e outros objetos, bem como, outros serviços de apoio.
2. A Ré tem como atividade principal «fornecimento de refeições para eventos» e dispõe de instalações na Rua ..., ..., ... ..., onde funcionam os serviços administrativos e de gestão de atividade dos distribuidores e onde se encontram os equipamentos utilizados por estes;
3. A Ré, que já teve a designação P... - Unipessoal Ldª, a 22/5/2017, celebrou um contrato de franquia com a sociedade D... Ldª..
4. Por efeito do mencionado contrato, fazendo uso da plataforma www.comidas.pt, a Ré desenvolve, através dos distribuidores ao seu serviço (estafetas), um serviço de recolha de refeições no estabelecimento de parceiros, o seu transporte e entrega na morada dos clientes.
5. A referida atividade desenvolve-se de segunda a domingo, das 12.00 às 14.30 horas e das 19.00 às 22.30 horas.
6. Após receber os pedidos dos clientes através do site www.comidas.pt, ou por via telefónica, a Ré distribui os pedidos aos estafetas, através de uma aplicação denominada Tookan Agent que estes instalam no seu telemóvel.
7. Para o efeito os distribuidores deslocam-se em viatura própria ou cedida pela empresa, ostentando o logotipo “comidas.pt”, fazendo uso de indumentária, como sejam, casaco e t-shirt com logótipo «comidas.pt», a fim de serem facilmente identificáveis pelos clientes, e calças impermeáveis, de um saco ou mochila térmica e de uma bolsa com TPA e fundo de maneio, bem como cartão de combustível do Intermarché, fornecidos pela ré e que nos dias em que prestam atividade vão buscar às instalações da ré.
8. Naquele local a Ré disponibiliza ainda um cacifo para cada um dos estafetas guardar os seus pertences.
9. Após aceitar o pedido o distribuidor/estafeta desloca-se na viatura/ciclomotor ao estabelecimento de restauração do parceiro da Ré, recolhe o pedido e dirige-se à morada do cliente para entregar a refeição e receber o respetivo pagamento, em dinheiro ou multibanco, através do TPA.
10. Através de geolocalização (GPS) a Ré tem conhecimento da localização e deslocações do distribuidor, bastando que este faça «login» na aplicação, que se mostra necessário para o desempenho das tarefas contratadas, a fim de serem distribuídos os serviços.
11. Com data de 7 setembro de 2023, a Ré e AA acordaram que este passaria a efetuar a distribuição de refeições para a mesma.
12. A ré e AA assinaram um documento que intitularam «contrato de prestação de serviços», «celebrado a termo resolutivo incerto» datado de 08.09.2023.
13. Desde o dia ../../2023 que AA, de acordo com a disponibilidade de horário que comunicou à gestora de pedidos da ré e dentro do horário de funcionamento desta, efetua tal serviço de distribuição.
14. Para o efeito desloca-se num motociclo fornecido pela ré, o qual dispõe de uma caixa transportadora acoplada com o logotipo “comidas.pt”.
15. A fim de efetuar o referido serviço, AA desloca-se ao armazém da ré no horário acordado, para ali recolher o motociclo, capacete, a indumentária mais adequada ao tempo, uma bolsa com TPA e fundo de maneio, e um cartão de combustível do Intermarché, para atestar o motociclo sempre que necessário.
16. A Ré acordou com AA pagar-lhe a quantia de 1,75€ por cada entrega realizada dentro da cidade ... e 2,50€ por cada entrega realizada nos arredores da cidade, como sejam, ..., ..., ..., ... e ....
17. A Ré pagava um valor mensal acrescido de 30€ sempre que aquele atingia um determinado número de entregas.
18. O pagamento das referidas quantias era efetuado de forma mensal, por transferência bancária.
19. Para o efeito a ré e AA acordaram que este emitiria, mensalmente, um recibo eletrónico.
20. AA comunica quando não pode cumprir o horário que o próprio acordou com a ré para que esta possa efetuar uma gestão dos recursos humanos ao seu dispor, sem necessidade de apresentar justificação para o efeito.
21. Foi AA quem definiu as horas diárias ou semanais a prestar, considerando o horário de funcionamento do serviço prestado pela ré, tendo, para o efeito, comunicado à ré ter disponibilidade para efetuar 6 dias de trabalho e 3 de folga, nos dois horários diários de funcionamento da ré.
22. AA tinha liberdade para aceitar ou recusar qualquer entrega que entendia não efetuar pois a aplicação Tookan Agent permitia-lhe recusar os pedidos de entrega que lhe chegavam, sendo estes atribuídos a outro estafeta.
23. AA não tinha a obrigação de se manter nas instalações da Ré a aguardar que esta lhe remetesse os pedidos de entrega, podendo gerir o tempo entre os pedidos como quisesse, designadamente na realização de tarefas pessoais.
24. A Ré celebrou um contrato de seguro de acidentes de trabalho com a Generalli Seguros SA., sob o número de apólice ...86, na qual integrou AA, tendo indicado, para o efeito, a retribuição de 350€x14meses.
25. A R. inicialmente exigia que os seus prestadores de atividade possuíssem seguro de acidentes próprios, mas tendo verificado que a maioria não o fazia ou deixava caducar, decidiu contratualizar tal seguro.
26. No dia 8/9/2023, pelas 21.15 horas, e no dia 6/10/2023, AA encontrava-se a desenvolver a sua atividade de estafeta/distribuidor, na Rua ..., em ..., concretamente na pizzaria ..., onde recolhia refeições para entrega aos clientes da Ré, quando foi abordado numa inspeção levada a cabo pela Autoridade para as Condições do Trabalho.
27. No dia 20/9/2023, AA encontrava-se a desenvolver a sua atividade de distribuidor/estafeta, na Praça ..., em ..., concretamente no restaurante Dona ..., onde recolhia refeições para entrega aos clientes da Ré, quando foi abordado numa inspeção levada a cabo pela Autoridade para as Condições do Trabalho.
28. No dia 23/10/2023, a ACT efetuou visita inspetiva, às instalações da Ré, sitas no ..., Rua ..., em ....
29. No âmbito dessa visita a ACT verificou que a Ré tem outros distribuidores, com quem celebrou contratos de trabalho e a quem paga o salário base de 770€, designadamente BB, CC e DD.
30. A Ré foi notificada pela ACT para regularizar a situação de AA ou pronunciar-se, nos termos do art. 15º-A, nº 1 da Lei nº107/2009, de 14/9 e negou a existência de vínculo laboral.
31. EE declara não pretender sujeitar-se ao controlo, a um horário pré-estabelecido e ao poder disciplinar da ré.

B) A 1.ª instância deu como não provada a seguinte factualidade:
a) AA cumpre um horário imposto pela Ré por meio de uma escala semanal.
b) AA tem ordem para comunicar à Ré sempre que não possa cumprir o horário que lhe foi atribuído.
c) Através de geolocalização (GPS), a Ré determina os percursos a efetuar pelos seus estafetas.
d) AA mantém, a par desta actividade, outras prestações de serviço e “biscates” que o ajudam aumentar o rendimento para si e para sua família.

IV. Fundamentação
(i) Da arguida nulidade da sentença, por omissão de pronúncia
Tenha-se presente que nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre “questões” que devesse apreciar.
Para arguir a referida nulidade, o recorrente Ministério Público sustentou que tendo na petição inicial (artigos 5.º e 14.º) alegado que a Ré admitiu AA «para sob as suas ordens e direcção, desempenhar as funções de estafeta/distribuidor de refeições», o que ele faz, «sob as ordens e direcção da Ré.», tais factos não foram dados como provados, ou não provados, e apresentam-se essenciais para a decisão da causa.
Vejamos.

Conforme resulta do disposto no artigo 607.º do Código de Processo Civil, a resposta à matéria de facto e fundamentação da sentença constam de uma única peça processual, «sentença”, englobando, pois, não só a decisão da matéria de facto como o aspeto jurídico da causa.
Todavia, a modificabilidade da decisão de facto tem um regime próprio, que consta do artigo 662.º do Código de Processo Civil.
Por isso, se o juiz deu como provados, ou não provados, os factos que considerou essenciais à decisão da causa, mas o recorrente entende que outros haveria ainda que dar como provados, ou não provados, não se pode propriamente considerar que a sentença é nula, mas sim, a entender-se a insuficiência da resposta à matéria de facto e face ao disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil, haverá que ordenar a baixa do processo à 1.ª instância, para que o juiz responda a (outros) factos (também) considerados relevantes para a decisão.
Mas esta situação não se verifica no caso em apreço.
Com efeito, só os acontecimentos ou factos concretos podem integrar a matéria de facto relevante para a decisão, admitindo-se, contudo, que sejam de equiparar a factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, mas desde que não se reconduzam à mera formulação de um juízo de valor sobre matéria que integra o thema decidendum.
Ora, no contexto em está em causa a qualificação do contrato, a afirmação de que a Ré admitiu determinada pessoa para, «sob as suas ordens e direcção, desempenhar as funções de estafeta/distribuidor de refeições» (artigo 5.º da p.i.), ou ainda que «AA vem efectuando a distribuição de refeições, sob as ordens e direcção da Ré» (artigo 14.º da p.i.), constitui o thema decidendum da ação, envolvendo, por isso, uma questão de direito que não poder ser diretamente resolvida através da matéria de facto.
Esta é, de resto, a posição que tem sido afirmada reiteradamente pelo Supremo Tribunal de Justiça [vejam-se, a título exemplificativo, os acórdãos de 07-02-2007 (Proc. n.º 3538/06 – 4.ª Secção), 14-02-2007 (Processos n.º 3955/06 e n.º 4195/06, ambos da 4.ª Secção), e de 12-03-3008 (Proc. n.º 3668/07 – 4.ª Secção), todos sumariados em disponíveis em www.stj.pt].
Por isso, por envolverem questão de direito que integra a questão essencial a decidir, jamais os factos que o recorrente convoca para arguir a nulidade da sentença podiam ser dados como provados, ou não provados (cfr. artigo 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil).
Assim se compreende, e justifica, que no final da resposta à matéria de facto (provada e não provada) o tribunal a quo tenha afirmado «[n]ão existem outros factos não provados com interesse para a causa, não sendo de considerar como tal a mera impugnação de facto, conclusões e considerações de direito».
Nesta sequência, entende-se que a não resposta a matéria conclusiva não configura nulidade da sentença, por omissão de pronúncia; mas ainda que estivessem em causa factos com relevância para a decisão, o que se verificaria era insuficiência na matéria de facto, o que face ao disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil determinaria a baixa do processo à 1.ª instância, a fim de que o juiz respondesse a esses outros factos (também) considerados relevantes para a decisão.
Improcedem, por consequência e nesta parte, as conclusões das alegações de recurso.

(ii) Da impugnação da matéria de facto
A este propósito, alegou o recorrente que foi dado como provado (facto n.º 20) que AA comunica quando não pode cumprir o horário que o próprio acordou com a Ré para que esta possa efetuar uma gestão dos recursos humanos ao seu dispor, sem necessidade de apresentar justificação para o efeito; todavia, não se provou [alínea b) dos factos não provados] que AA tem ordem para comunicar à Ré sempre que não possa cumprir o horário que lhe foi atribuído.
Ou seja, de acordo com o recorrente, o prestador comunica à Ré sempre que não possa cumprir o horário de trabalho estabelecido, mas não se provou que tal ocorra por determinação/ordem da Ré.
Contudo, acrescentou, no contrato de prestação de serviço celebrado consta essa obrigação de comunicação por parte do prestador de serviço [cláusula 7.ª, alínea d)], inclusive com sanção para o seu incumprimento.
Assim, se bem se intui, o recorrente pretende que, com base no referido documento, seja dado como provado o que consta da alínea b) dos factos não provados, e ainda que a falta de comunicação atempada possa acarretar a resolução do contrato e a obrigação de indemnizar a Ré.
Analisemos.

O tribunal a quo motivou assim a resposta à matéria de facto:
«Na formação da sua convicção o Tribunal analisou de forma crítica e conjugada a prova realizada em audiência e bem assim a prova documental, particularizando:
Os factos assentes nos pontos 1) a 6), 24) e 26) a 30) da matéria de facto provada resultaram de certidão comercial junta com a petição e acordo (expresso ou tácito) das partes.
Os demais factos provados resultaram das declarações do legal representante da ré conjugado com o depoimento das testemunhas AA, prestador da atividade em causa e FF, ex-sócia e gerente da ré, os quais relataram como se desenvolvia a atividade da ré e as circunstâncias em que AA presta serviços para a ré, conjugados com os demais documentos dos autos.
Os referidos depoimentos revelaram-se credíveis, no seu essencial, permitindo ao tribunal formar convicção quanto à matéria de facto provada e não resultaram abalados pelos depoimentos das testemunhas GG e HH, inspetores da ACT, os quais relataram as circunstâncias em que efetuaram as visitas inspetivas, as diligências efetuadas e os motivos pelos quais remeteram ao Ministério Público a participação prevista no artigo 15º-A da Lei 107/2009, de 14.09.
No que concerne aos factos não provados entendeu o tribunal não ter sido produzida qualquer prova ou prova suficiente quanto à aludida matéria».
Desta transcrição decorre que quer a resposta ao facto provado n.º 20, quer a resposta á alínea b) dos factos não provados assentaram, no essencial, nas declarações do legal representante da Ré, no depoimento da testemunha/prestador da atividade AA, e ainda de FF, ex-sócia e gerente da Ré, que relataram como se desenvolvia a atividade da Ré, bem como de AA para com aquela, conjugados com os demais documentos dos autos.
Ora, para os fins em vista o que releva é como o contrato foi/é(?) executado, e não o que consta do documento escrito (pense-se que muitas das vezes esses são feitos com base em contratos minuta/padrão, sem atender ao concreto contexto em que os mesmos vão ser executados).
No caso, o tribunal a quo formou a sua convicção não só com base nos documentos juntos aos autos, como também noutros meios probatórios, concretamente em prova testemunhal.
Contudo, para a pretendida alteração o recorrente arrima-se apenas nos documentos (contrato celebrado): tratando-se de documentos que, para os fins em vista, não têm força probatória plena – até porque, como se disse, o que releva é como o contrato foi/é executado, e não o que consta do mesmo –, e existindo outros meios de prova em que o tribunal se ancorou, rectius, testemunhal, quanto a estes o recorrente teria também que cumprir o ónus que a lei lhe impõe (artigo 640.º do Código de Processo Civil), maxime indicar os concretos meios probatórios constantes da gravação que impunham decisão diversa sobre os factos.
Por consequência, baseando-se o apelante apenas em documentos sem força probatória plena, inexiste fundamento para a pretendida alteração da matéria de facto.
Improcedem, pois, também nesta parte, as conclusões das alegações de recurso.

(iii) Quanto a saber se o contrato entre a Ré/Recorrida e AA deve ser qualificado de trabalho
A 1.ª instância, após fazer adequadas e suficientes considerações doutrinárias e jurisprudenciais em torno da distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviço, discorreu assim:
«Reportando-nos ao caso sub judice, infere-se da factualidade assente que o Ministério Público logrou provar que AA procedia à atividade de recolha e entrega de refeições a pedido da ré, efetuando a recolha e entrega em locais indicados pela mesma.
Provou-se que a tarefa era desempenhada num determinado horário, mediante o pagamento de contrapartidas pagas por tarefa e por número de entregas, mensalmente, por transferência bancária, e que, para o efeito, AA utilizava um motociclo, capacete, algum vestuário, e outro equipamento cedido pela ré.
Apesar de podermos concluir, pelo menos, pelo preenchimento das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 12º e alíneas a), b) e f) do n.º 1 do artigo 12º-A, em referência, certo, não precisava justificar a mesma; e que a retribuição apesar de mensal não era certa, é a ré logrou provar que inexistia um horário imposto pela mesma (o horário resultava da disponibilidade do prestador da atividade que a comunicava à ré dentro da janela de horário praticado por esta); que o prestador era livre de aceitar ou não o pedido de entrega (inexistindo prova de qualquer consequência que não a não remuneração da entrega objeto de recusa); que podia dispor livremente do seu horário durante a jornada escolhida (entre serviços ou preterindo serviços); que, apesar de comunicar a impossibilidade de comparência num horário acordado porquanto dependia das tarefas/entregas realizadas.
E apesar de ter a ré celebrado contrato de seguro de acidentes de trabalho referente ao prestador em causa, certo é que igualmente se demonstrou que inicialmente exigia que os seus prestadores de atividade possuíssem seguro de acidentes próprios, mas tendo verificado que a maioria não o fazia ou deixava caducar, decidiu contratualizar tal seguro.
Ora em face do circunstancialismo em que se desenvolvia a atividade de AA e que resultou apurado, e sendo certo que o próprio prestador declara não pretender sujeitar-se ao controlo, a um horário pré-estabelecido e ao poder disciplinar da ré, entende o tribunal que a ré logrou demonstrar que a tal atividade era realizada com efetiva autonomia, sem estar sujeita ao controlo, poder de direção e poder disciplinar da ré, ilidindo, assim, a presunção de laborabilidade referida».
Por consequência, julgou improcedente a ação e absolveu a Ré do pedido.

O recorrente rebela-se contra tal entendimento, sustentando, desde logo, a alteração da matéria de facto, quanto ao facto dado como não provado sob a alínea b), questão que já mereceu resposta negativa supra.
Para além disso, sustenta que no caso se mostra também preenchida a caraterística da alínea c) do n.º 1 do artigo 12.º do Código do Trabalho (o prestador da atividade observa horas de início e de termo da prestação, determinados pelo beneficiário da mesma), bem como da alínea c) do n.º 1 do artigo 12.º-A, do mesmo compêndio legal (a plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica).
Vejamos.

Decorre, no essencial, da matéria de facto:
- a Ré, fazendo uso de plataforma digital (www.comidas.pt) e através dos distribuidores ao seu serviço (estafetas), desenvolve um serviço de recolha de refeições no estabelecimento de parceiros e procede ao transporte e entrega na morada dos clientes (n.º 4);
- para o efeito, após receber o pedido dos clientes, através do referido sítio ou por telefone, a Ré distribui os pedidos de entrega aos estafetas, através de uma aplicação denominada Tookan Agent que estes instalam no seu telemóvel (n.º 5);
- por sua vez, o distribuidor/estafeta, pós aceitar o pedido, desloca-se na viatura/ciclomotor ao estabelecimento de restauração do parceiro da Ré, recolhe o pedido e dirige-se à morada do cliente para entregar a refeição e receber o respetivo pagamento, em dinheiro ou multibanco, através do TPA (n.º 9);
- através de geolocalização (GPS), a Ré tem conhecimento da localização e deslocações do distribuidor, bastando que este faça «login» na aplicação, o que se mostra necessário para o desempenho das tarefas contratadas, a fim de serem distribuídos os serviços (n.º 10);
- os distribuidores (estafetas) deslocam-se em viatura própria ou cedida pela empresa, ostentando o logotipo “comidas.pt”, fazendo uso de indumentária, como sejam, casaco e t-shirt com logótipo «comidas.pt», a fim de serem facilmente identificáveis pelos clientes, e calças impermeáveis, de um saco ou mochila térmica e de uma bolsa com TPA e fundo de maneio, bem como cartão de combustível do Intermarché, fornecidos pela ré e que nos dias em que prestam atividade vão buscar às instalações da ré, onde esta lhes disponibiliza ainda um cacifo para cada um guardar os seus pertences (n.º 7 e 8);
-a referida atividade é desenvolvida de segunda-feira a domingo, das 12.00h às 14.30h e das 19.00h às 22.30h (n.º 5);
- em 07-09-2023, a Ré e AA acordaram que este passaria a efetuar a distribuição de refeições para aquela – tendo, para esse efeito, em 08-09-2023, assinado um documento que denominaram «contrato de prestação de serviços» -, passando, desde então, AA, de acordo com a disponibilidade de horário que comunicou à Ré e dentro do horário de funcionamento desta, a efetuar o referido serviço de distribuição (n.ºs 11, 12 e 13);
- o referido AA desloca-se num motociclo fornecido pela Ré, o qual dispõe de uma caixa transportadora acoplada com o logótipo «comidas.pt», para o que no início do horário acordado vai ao armazém da Ré para recolher aquele, capacete, a indumentária adequada às condições do tempo, uma bolsa com TPA e fundo de maneio, e um cartão de combustível do Intermarché para atestar o motociclo sempre que necessário (n.ºs 14, 15);
- a Ré acordou com AA pagar-lhe a quantia de € 1,75 por cada entrega efetuada dentro da cidade ... e € 2,50 por cada entrega efetuada nos arredores da cidade, quantias acrescidas de € 30,00 mensais sempre que aquele atinja um determinado número de entregas (n.º 16, 17);
- esse pagamento era efetuado mensalmente, por transferência bancária, tendo para o efeito a Ré e AA acordado que este emitiria, mensalmente, um recibo eletrónico (n.ºs ...8 e ...9);
- AA comunica quando não pode cumprir o horário que o próprio acordou com a Ré para que esta possa efetuar uma gestão dos recursos humanos ao seu dispor, sem necessidade de apresentar justificação para o efeito (n.º 20);
- Foi AA quem definiu as horas diárias ou semanais a prestar, considerando o horário de funcionamento do serviço prestado pela Ré, para o que comunicou a esta ter disponibilidade para efetuar 6 dias de trabalho e 3 de folga, nos dois horários diários de funcionamento da ré (n.º 21);
- AA tinha liberdade para aceitar ou recusar qualquer entrega que entendia não efetuar pois a aplicação Tookan Agent permitia-lhe recusar os pedidos de entrega que lhe chegavam, sendo estes atribuídos a outro estafeta (n.º 22);
- AA não tinha a obrigação de se manter nas instalações da Ré a aguardar que esta lhe remetesse os pedidos de entrega, podendo gerir o tempo entre os pedidos como quisesse, designadamente na realização de tarefas pessoais.

É consabido que o artigo 11.º do Código do Trabalho contém a noção de contrato de trabalho, de que se realça, como sua caraterística, a subordinação jurídica, traduzida na dependência necessária do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras e orientações do empregador.
Mas, como adverte Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, 22.ª Edição, 2023, Almedina, pág. 140), «[h]á (…) uma progressiva desvalorização dos comportamentos directivos na caracterização do trabalho subordinado. Se se adoptar como critério identificativo a ocorrência de ordens e instruções pelas quais o trabalhador, em regime de obediência, paute o seu comportamento na execução do contrato, deixar-se-á à margem da regulamentação laboral um número crescente de situações de verdadeiro “emprego”, em tudo merecedoras do mesmo tratamento. Na verdade, a subordinação consiste, essencialmente, no facto de uma pessoa exercer a sua actividade em proveito de outra, no quadro de uma organização do trabalho (seja qual for a sua dimensão) concebida, ordenada e gerida por essa outra pessoa. O elemento organizatório implica que o prestador do trabalho está adstrito a observar os parâmetros de organização e funcionamento definidos pelo beneficiário, submetendo-se, nesse sentido, à autoridade que ele exerce no âmbito da organização do trabalho, ainda que execute a sua actividade, sem, de facto, receber qualquer indicação conformativa que possa corresponder à ideia de “ordens e instruções” – nem, porventura, o beneficiário estar em condições (técnicas ou práticas) de a formular».
Perante a dificuldade que, em termos práticos, se colocam na qualificação de trabalho, a lei (artigo 12.º do Contrato de Trabalho) estabelece presunções, ilidíveis (artigo 350.º do Código Civil), da existência de um contrato de trabalho: assim, presume-se a existência de contrato de trabalho desde que se verifiquem, pelo menos, duas características/presunções aí previstas.
Porém, as profundas mudanças que se têm verificado nos últimos anos na forma de organização do trabalho, designadamente o trabalho prestado com recurso a plataformas digitais, criaram enormes dificuldades na qualificação da relação que se estabelece entre a plataforma digital e o prestador de serviço.
Como se assinalou no «Livro Verde Sobre o Futuro do Trabalho», 2021, a propósito do trabalho em plataformas digitais (pág. 172), tornou-se necessário «[c]riar uma presunção de laboralidade adaptada ao trabalho nas plataformas digitais, para tornar mais clara e efetiva a distinção entre o trabalhador por conta de outrem e o trabalhador por conta própria, sublinhando que a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital».
Neste contexto, a Lei n.º 13/2023, de 03-04, aditou ao Código do Trabalho o artigo 12.º-A, que tem como epígrafe «Presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital».
De acordo com o seu n.º 1, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador da atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas (portanto, pelo menos duas) das caraterísticas indicadas nas suas diversas alíneas.
Passando à concreta análise dessas alíneas, tendo em conta a matéria fáctica assente, verifica-se que na alínea a) se prevê a situação da plataforma digital fixar a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelecer limites máximos e mínimos para essa retribuição.
Ora, como de resulta da matéria de facto (n.º 20), a Ré acordou com AA pagar-lhe € 1,75 por cada entrega realizada dentro da cidade ... e € 2,50 por cada entrega realizada nos arredores da cidade, pelo que no caso em apreço se verifica a presunção em referência.

Na alínea b) prevê-se que a plataforma exerça o poder de direção e determine regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador da atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade.
Em relação a esta última parte – apresentação e conduta do prestador da atividade – afigura-se inequívoco que se encontra bem presente, como decorre dos factos n.ºs 14 e 15 (indumentária, meio de transporte, etc.).
Já no que respeita ao exercício ou não do poder de direção por parte da plataforma – à semelhança, de resto, do poder disciplinar previsto na alínea e) –, diremos que tal se afigura ser mais uma conclusão jurídica a extrair dos factos do que uma presunção ilidível: com efeito, como de modo assertivo escreveu João Leal Amado (Colóquios do Supremo Tribunal de Justiça, XII Colóquio de Direito do Trabalho, Novembro de 2022, As Plataformas Digitais e o Novo Art. 12.º do Código do Trabalho: Empreendendo ou Trabalhando?, pág. 124), «(…) se o prestador da atividade provar que a plataforma digital exerce sobre ele tanto o poder de direção como o poder disciplinar não parece que tenha mais nada a provar para que o tribunal conclua, diretamente e sem dar um salto no desconhecido, que está perante um contrato de trabalho”.
Adiante, retomaremos a questão de saber se no caso existe ou não poder de direção da plataforma em relação ao prestador da atividade.

Na alínea c) do n.º 1 do artigo 12.º-A, prevê-se a presunção do contrato de trabalho se a plataforma controlar e supervisionar a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verificar a qualidade da atividade prestada através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica.
De acordo com os factos provados (n.º 10), a Ré, através de geolocalização (GPS), tem conhecimento da localização e deslocações do distribuidor, bastando que este faça «login» na aplicação, o que se mostra necessário para o desempenho das tarefas contratadas, a fim de serem distribuídos os serviços.
Daqui parece intuir-se que a Ré pode controlar e supervisionar a atividade do prestador, o mesmo é dizer que se tem por verificada a referida presunção.

Finalmente, com eventual relevância para o caso em apreço, uma vez que o prestador da atividade utiliza equipamentos e instrumentos de trabalho pertencentes à Ré, tem-se por incontroversa a verificação da presunção prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 12.º-A.

A 1.ª instância afirmou verificarem-se as presunções previstas nas alíneas a), b) e f) do referido n.º 1: todavia, considerou também, por um lado, que a Ré provou que inexistia um horário por ela imposto e, por outro lado, que o prestador da atividade era livre de aceitar ou não o pedido de entrega, podendo dispor livremente do seu horário, daí concluindo terem sido ilididas as presunções e, consequentemente, julgou improcedente a ação.
Adiante-se, desde já, que não se anui a tal entendimento.
Expliquemos porquê.

Como se analisou, no caso verificam-se quatro caraterísticas previstas no artigo 12.º-A que fazem presumir a existência de um contrato de trabalho.
Para além disso, mas não menos relevante, note-se que a Ré, através da plataforma digital e dos estafetas, coordena e organiza toda a atividade, não só no que se refere à específica recolha, transporte e entrega de refeições, como também quanto a todo o modus operandi dos estafetas, incluindo quanto ao pagamento do preço (atente-se que previamente a Ré entrega ao estafeta uma bolsa com um terminal de pagamento automático (TPA) e fundo de maneio]: é o que se extrai, por todos, dos factos provados n.ºs 6, 7, 9, 10, 14 e 15).
Ou seja, existe uma estrutura organizativa da Ré, na qual o prestador da atividade (estafeta) se encontra inserido, em que aquela acompanha, através de geolocalização, a atividade deste; os clientes a quem o serviço é prestado são da Ré e não do estafeta: este “limita-se” a fazer a recolha, entrega e transporte das refeições nos termos organizados pela Ré e a receber uma contrapartida pela prestação dessa atividade.
É certo que o horário foi acordado entre o prestador e a Ré e que quando aquele não podia cumprir o mesmo, disso dava conhecimento à Ré para que esta pudesse efetuar uma gestão dos recursos humanos (o que denota a estrutura de direção e organização da Ré…), mas sem necessidade de apresentar justificação para o efeito; e até podia recusar qualquer entrega que entendesse não efetuar.
Porém, salvo o devido respeito por diferente entendimento, tal não é suficiente para afastar os indícios, fortes, da existência de um contrato de trabalho, tanto mais que a Ré, tendo em vista ilidir as presunções de contrato de trabalho, não provou que alguma vez se tenha verificado algum incumprimento de horário ou recusa de entrega por parte do prestador da atividade.
Além disso, importa notar que não se provou que o estafeta tivesse outro rendimento para além do decorrente da atividade prestada à Ré (alínea d) dos factos não provados).
Acresce, ainda, que a própria Ré, constatando que alguns prestadores de atividade não tinham efetuado seguros de acidentes próprios sentiu necessidade de ela própria celebrar um contrato de seguro de acidentes de trabalho, no qual integrou AA.
Como faz notar Monteiro Fernandes (obra citada, pág. 163), «[e]sta forma de organização do trabalho, não obstante as margens de autonomia que oferece aos prestadores da atividade, implica um grau de dependência destes relativamente à entidade detentora e gestora da plataforma digital (que é, afinal, uma estrutura software), o qual pode ser suficientemente elevado para que deva considerar-se a existência de subordinação – numa versão diferente da clássica, mas nem por isso menos relevante do ponto de vista da carência da tutela jurídica das pessoas sujeitas».

Refira-se, a terminar, que AA declarou não pretender sujeitar-se ao controlo, a um horário pré-estabelecido e ao poder disciplinar da Ré (facto n.º 31).
Trata-se de matéria irrelevante à presente ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, pois o Ministério Público age aqui em representação do Estado e em defesa do interesse público, e não de qualquer trabalhador em concreto: como se assinalou no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-04-2015 (Proc. n.º 175/14.1T8PNF.P1, disponível em www.dgsi.pt), nestas ações está em causa «(…) proteger essencialmente um interesse público, um interesse social em ver-se consagrada uma sociedade justa e em que o cumprimento da lei faz com que não tenhamos de ser todos penalizados pelo incumprimento de alguns».
Aqui chegados, impõe-se concluir pela procedência das conclusões das alegações de recurso, pelo que deve ser revogada a decisão recorrida e, consequentemente, declarar-se que entre a Ré e AA existe um contrato de trabalho, com início em 07-09-2023.

(iv) Vencida no recurso, deverá a Ré/recorrida suportar as custas respetivas (artigos 527.º, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).
V. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, em consequência, declaram a existência de um contrato de trabalho sem termo entre a Ré G & M Works, Ld.ª e AA, com início em 07-09-2023.
Custas pela Ré/recorrida.

Évora, 23 de abril de 2024
João Luís Nunes (relator)
Mário Branco Coelho
Paula do Paço
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[1] Relator: João Nunes; Adjuntos: (1) Mário Branco Coelho, (2) Paula do Paço.