VALOR EXTRAPROCESSUAL DA PROVA
Sumário


Nos termos do artigo 421.º do CPC é exigido que a utilização dessa prova se faça contra a mesma parte, o que é diferente de identidade de partes.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


Acordam os juízes da secção cível do Tribunal da Relação de Évora:

1 – Relatório.
Nos autos de processo comum ordinário que AA intentou contra BB e CC, foi proferido despacho saneador em 20/1/2023, que em parte decidiu o seguinte:
«Quanto às gravações-áudio dos depoimentos prestados pelas testemunhas na ação que corre termos sob o processo n.º 8947/21... no Juízo ... – Juiz ..., cuja junção aos autos foi requerida pela Ré, cumpre dizer o seguinte:
Segundo o disposto no artigo 341.º do Código Civil, “As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.“.
A doutrina tem vindo a salientar que o conceito de prova pode ser entendido como atividade, como meio, ou como resultado. No primeiro sentido tem-se em vista a atividade das partes tendente a convencer o julgador sobre a realidade dos factos, sendo certo que cada parte tem, como é consabido, o ónus de demonstrar os factos que integram a hipótese normativa de que depende a procedência da sua pretensão ou da exceção. No segundo sentido tem-se em vista o conjunto de meios ou elementos concretos apresentados pelas partes com vista à demonstração da realidade dos aludidos factos.
A prova ou o direito à prova, ou seja, o direito de, através dos meios de prova previstos na lei, lograr o autor a demonstração dos factos que servem de base à sua pretensão ou de o réu lograr a demonstração da inexistência desses factos ou a verificação dos factos capazes de obstarem ao julgamento do mérito da ação (exceções dilatórias) ou dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos da pretensão (exceções perentórias), constitui, pois, uma vertente do direito à ação e do direito de defesa, direitos estes que colhem proteção a nível constitucional (princípio do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva – artigo 20.º da Constituição da República) e a nível infraconstitucional no Código de Processo Civil, através do princípio da ação e do contraditório (artigo 3º, n.ºs 1, 2 e 3, do CPC).
Com efeito, como é doutrina reiteradamente confirmada pelo Tribunal Constitucional, um processo equitativo e leal deve assegurar a cada uma das partes, em condições de igualdade, o poder de expor as suas razões de facto e de direito perante o tribunal chamado a dirimir do litígio e, ainda, nas mesmas condições, o poder de exercerem uma influência efetiva no desenvolvimento do processo, o que supõe, no que ora releva, ao nível da prova, que o legislador deve assegurar a possibilidade de as partes apresentarem as suas provas, de controlarem as provas do adversário e de tomarem posição sobre o resultado de umas e outras - Vide, neste sentido, JORGE MIRANDA, RUI MEDEIROS, “Constituição Portuguesa Anotada”, I volume, UCE, 2ª edição revista, pág. 323-324 e, ainda, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 1185/96 e 1193/96, ambos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt.
No entanto, como vem advertindo a mesma doutrina constitucional, o direito à prova não implica necessariamente a admissibilidade de todos os meios de prova permitidos em direito em qualquer tipo de processo e independentemente do objeto do litígio e não exclui em absoluto a introdução de limitações quantitativas ou qualitativas na produção de certos meios de prova, designadamente o estabelecimento de prazos para o seu oferecimento, ou, ainda, o estabelecimento de condições específicas para a admissibilidade de certos meios de prova; Ponto é que essas limitações introduzidas pelo legislador, dentro da ampla liberdade de conformação do processo atribuído pelo texto constitucional ao poder legislativo, não se revelem arbitrárias ou desproporcionadas- Vide, neste sentido, ainda, J. MIRANDA, RUI MEDEIROS, op. cit., pág. 324 e os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 604/95 e 681/06, ambos disponíveis no mesmo sítio oficial.
Neste sentido, como refere LOPES do REGO (O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil”, in “Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues”, I volume, 2001, pág. 749 e segs), o texto constitucional não impõe um determinado modelo de processo, reconhecendo-se, ao invés, ao legislador uma ampla liberdade de conformação concreta do processo e do seu regime em geral, podendo, pois, a esse nível, nomeadamente em sede de prova e sua admissibilidade, o legislador consagrar restrições ou limitações, desde que as mesmas não se revelem arbitrárias ou excessivas, ou seja, no fundo, que as opções legislativas restritivas revelem uma ponderação equilibrada, proporcionada e lógica dos interesses conflituantes que se mostram presentes em qualquer processo, nomeadamente, no processo judicial onde existe, por natureza, um dissídio e, obviamente, interesses de sinal contrário que importa compatibilizar nos melhores termos possíveis.
Tendo isto presente como enquadramento prévio, a questão que se coloca prende-se com a admissibilidade processual dos depoimentos prestados por testemunhas no âmbito de um outro processo, cuja sentença ainda não transitou em julgado e em que eram partes o aqui Autor e Ré a sociedade PBA – Gestão Imobiliária, Lda.
Vejamos.
Através do registo áudio em causa, o Autor não pretende demonstrar o facto histórico de que no dia X a testemunha Y disse A, B ou C, mas, bem pelo contrário, pretende, como aliás emerge de forma clara da sua contestação, aproveitar os depoimentos das testemunhas, prestados em sede de audiência final que teve lugar naquele outro processo, em conjunto, naturalmente, com a demais prova que venha a ser produzida neste processo, para demonstrar a base factual/legal da sua contestação e, assim, contraditar o alegado pelo Autor na petição inicial. Significa isto que, não está em causa uma qualquer questão atinente a um eventual caso julgado do decidido a nível factual no aludido processo neste processo, mas o aproveitamento para efeitos probatórios (isto é, para a formação da convicção subjetiva do julgador) de um meio de prova – depoimento testemunhal - que foi produzido no aludido processo.
Por conseguinte, a questão que se coloca prende-se com o valor extraprocessual das provas e do regime que emerge do artigo 421.º, do CPC, de acordo com o qual: “Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 355.º do Código Civil; se porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.“.
Sobre este normativo e as condições do aproveitamento neste processo da prova por depoimento realizada naquele outro processo, a nossa doutrina é unânime em considerar que têm que ocorrer quatro requisitos cumulativos para tal fim, ou seja, para que seja aproveitável no segundo processo o depoimento prestado no primeiro.
(i) Em primeiro lugar, é suposto que seja a mesma, em ambos os processos, a parte contra quem foram produzidos os ditos meios de prova;
(ii) Em segundo lugar, é suposto que a parte tenha tido a possibilidade no primeiro processo de exercer o contraditório quanto à admissão e produção daquele meio de prova;
(iii) Em terceiro lugar, é suposto que o regime de produção dessas provas no primeiro processo ofereça às partes garantias pelo menos iguais às do segundo;
(iv) Em quarto lugar, é suposto que não tenha sido anulada a parte do processo relativa à produção da prova que se pretende invocar.
Ora, desde logo, no que ao caso importa, se faltar o requisito da identidade das partes em ambos os processos, “não podem tais provas ser objecto de qualquer aproveitamento” - FRANCISCO FERREIRA de ALMEIDA, op. cit., pág. 331. No mesmo sentido, na doutrina, vide, por todos, J. ALBERTO dos REIS, “CPC Anotado”, III volume, 4ª edição, 1985, pág. 344-350, A. VARELA, op. cit., pág. 492-494, MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, Lex, 1995, pág. 256-257 e J. LEBRE de FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO, RUI PINTO, “ CPC Anotado ”, II volume, 2001, pág. 416-419.»
Por conseguinte, sendo indiscutido que as partes no processo n.º 8947/21... no Juízo ... – Juiz ... não são as mesmas que as partes do presente processo (pois que a Ré não foi demandada no dito processo), é seguro dizer-se que não ocorrem os pressupostos erigidos pelo citado artigo 421.º, n.º 1, do CPC, para a admissão do meio de prova ora em causa, falhando o primeiro e essencial pressuposto, qual seja a identidade das partes em ambos os processos em causa.
Pelo que, diante do exposto, sem relevo para o caso em apreço, não se admite a junção aos autos do registo áudio dos depoimentos prestados pelas testemunhas nos autos do processo n.º 8947/21... no Juízo ... – Juiz ..., cuja prova, ademais, sequer está perfectibilizada por força do recurso interposto.»
Inconformada com tal decisão, veio a ré interpor recurso contra a mesma apresentando as seguintes as conclusões do recurso (transcrição):
«D.1) Introdução
I. O presente recurso tem por objecto o despacho saneador proferido em 20/1/2023, na parte em que indefere um pedido de aproveitamento de meios de prova pré-constituídos, formulado pela Recorrente na contestação, ao abrigo do disposto no artigo 421.º do CPC.
II. Os referidos meios de prova foram produzidos em sede de instrução da acção judicial intentada pelo aqui Autor / Recorrido contra a PBA – Gestão Imobiliária, Lda., correspondente ao processo n.º 8947/21..., que corre no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo ..., Juiz ...,
III. E consistem nos depoimentos das testemunhas DD, de EE, de FF, de GG, de HH, de II, de JJ, de KK, de LL, de MM, de NN, e no depoimento de parte do ora Recorrido / Autor.
D.2) Do erro decisório
IV. O Tribunal a quo apresentou como motivo decisório o facto de que “as partes no processo n.º 8947/21... no Juízo ... – Juiz ... não são as mesmas que as partes do presente processo”;
V. E indeferiu o pedido probatório em causa, partindo do pressuposto (errado) de que aquela identidade de partes é um dos requisitos de aplicação do artigo 421.º n.º 1 do CPC – importa demonstrar o erro decisório incorrido na decisão impugnada.
VI. Tem sido entendido, pacificamente, pela jurisprudência (e, bem assim, pela decisão recorrida) que o artigo 421.º do CPC assenta em 4 requisitos de aplicação, de verificação cumulativa: i) que a parte contra quem é invocada a prova pré-constituída tenha sido também parte no processo em que essa prova foi produzida; ii) que essa parte tenha tido a possibilidade de exercer o contraditório quanto aos ditos meios de prova, no processo em que foram produzidos; iii) que o processo no qual as provas em questão foram produzidas ofereça garantias iguais ou superiores às que vigoram no processo em que essas provas são aproveitadas; iv) que os actos de produção das referidas provas não tenha sido anulado.
VII. Ao contrário do que é propugnado pelo Tribunal a quo, o artigo 421.º do CPC exige, como requisito de aplicação, que se verifique identidade de todas as partes entre o processo no qual a prova foi produzida e o processo no qual essa prova será aproveitada;
VIII. Nomeadamente, não é exigível, à luz daquele preceito, que a parte que requer o aproveitamento dos ditos meios de prova tenha sido também parte naqueloutro processo em que esses meios de prova foram produzidos.
IX. A única identidade de partes que o artigo 421.º do CPC exige consiste em que o sujeito contra o qual os meios de prova são invocados (neste caso, o Recorrido) tenha sido também parte no processo antecedente, no qual esses meios de prova foram produzidos.
X. O entendimento aqui defendido concita o apoio expresso da doutrina (incluindo mestres como José Alberto dos Reis, Antunes Varela e José Lebre de Freitas), e é adoptado, sem reservas, pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e Tribunais da Relação.
XI. Vertendo esse entendimento para o caso concreto, conclui-se que que a aplicação do artigo 421.º n.º 1 do CPC aos meios de prova em questão não exige que a Recorrente tenha sido parte no processo n.º 8947/21..., mas apenas requer que o Recorrido tenha sido parte nesse processo: o que comprovadamente foi (v. artigo 28.º e documento nº 8 da PI, bem como documento n.º 3 da contestação).
XII. Face ao exposto, conclui-se que a decisão recorrida padece de erro decisório, por errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 421.º do CPC, devendo, por isso, ser revogada – o que desde já se requere.
D.3) Da verificação dos requisitos do artigo 421.º do CPC
XIII. O processo n.º 8947/21... consiste numa acção declarativa intentada pelo aqui Recorrido contra a PBA – Gestão Imobiliária, Lda.
XIV. Dessa premissa decorre o preenchimento dos requisitos de aplicação do artigo 421.º do CPC que consistem, primeiro, na exigência de que o Recorrido (parte contra quem a prova é invocada) tenha sido parte no processo em que essa prova foi produzida;
XV. Segundo, na possibilidade que o Recorrido efectivamente teve de, no processo n.º 8947/21..., exercer plenamente o contraditório quanto aos meios de prova que estão aqui em causa,
XVI. Terceiro, na paridade de garantias processuais vigentes, quer no processo n.º 8947/21..., quer nos presentes autos, porquanto ambos se regem pelo regime da acção declarativa.
XVII. Acresce que também o quarto requisito de aplicação, presente no n.º 2 do artigo 421.º do CPC – a ausência de anulação do acto de produção de prova – se encontra verificado, porquanto o recurso interposto pelo Recorrido quanto à sentença que julgou improcedente o processo n.º 8947/21... (v. documento n.º 3) foi por sua vez julgado improcedente por Acórdão do Tribunal da Relação ... de 24/1/2023, que confirmou a sentença recorrida, incluindo a decisão sobre a matéria de facto.
XVIII. Acresce que a matéria de facto invocada pelo Autor no processo n.º 8947/21... é, no essencial, a mesma que foi alegada na PI o que atesta a manifesta relevância dos depoimentos testemunhais e depoimentos de parte produzidos naquele processo, para a justa composição do presente litígio.
XIX. Os meios de prova em questão constituirão, por isso, prova do contrário do alegado pelo Autor na PI.
XX. Face ao exposto, revogada que seja a decisão recorrida, com fundamento no erro decisório acima identificado, deverá a mesma ser substituída por outra que determine o aproveitamento dos referidos meios de prova nos presentes autos, em conformidade com o requerido na contestação, por se encontrarem preenchidos os requisitos de aplicação do artigo 421.º do CPC.
Nestes termos, requer-se a V. Exa. admita o presente recurso, julgando-o procedente e, consequentemente, revogue a decisão recorrida com fundamento na errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 421.º do CPC, substituindo-o por outro que determine o aproveitamento, nos presentes autos, dos depoimentos testemunhais e depoimento de parte produzidos no processo n.º 8947/21..., verificados que estão os requisitos de aplicação daquele preceito.
Mais se requer seja admitia a apresentação de certidão judicial protestada juntar, ao abrigo do disposto no artigo 425.º do CPC, ex vi do artigo 651.º do CPC.
Assim se fazendo a costumada Justiça!»
Nas contra-alegações o recorrido conclui o seguinte:
«I Um dos requisitos processualmente exigíveis para a aplicação do n.º 1, art.º 421º C.P.C., é a identidade da parte passiva nos presentes autos de 1ª instância e nos autos 8947/21....
II Não se encontram preenchidos os requisitos processuais para que possa haver o aproveitamento nestes autos de 1ª instância, dos teores das inquirições produzidas pelas testemunhas no processo 8947/21....
III O Exmo. Senhor Juiz a quo bem considerou no Despacho, datado de 20 de Janeiro de 2023 que para a aplicação do n.º 1, art.º 421º C.P.C., existisse identidade de partes no processo 8947/21... e no presente processo de 1ª instância.
IV Os depoimentos produzidos numa sessão de julgamento, com exercício de contraditório pela parte contra a qual essa prova tenha aí sido produzida, podem ser invocados num outro processo, desde que a parte (contra quem seja produzida a prova), seja a mesma nesse outro processo.
V No processo 8947/21..., eram parte activa, o ora autor e parte passiva, a sociedade comercial P..., Lda..
VI Nos presentes autos de 1ª instância, relativamente ao processo 8947/21..., a parte activa é a mesma.
VII. Nos presentes autos de 1ª instância, relativamente ao processo 8947/21..., a parte passiva não é a mesma.
VIII A ré nestes autos de 1ª instância, a ora recorrente, foi testemunha arrolada pelo autor nos autos 8947/21....
IX Bem andou o Exmo. Senhor Juiz a quo, em ter considerado no Despacho, datado de 20 de Janeiro de 2023 que a parte passiva no processo 8947/21... não é a mesma da parte passiva, nos presentes autos.
X Inexiste a possibilidade processual de invocação dos depoimentos das testemunhas produzidas no âmbito do processo 8947/21..., nestes autos de 1ª instância.
XI O Despacho datado de 20 de Janeiro de 2023, proferido pelo Exmo. Senhor Juiz a quo, não incorre em erro de julgamento, devendo se mantido.
XII A prova produzida nos autos de 1ª instância 8947/21..., mediante a inquirição de testemunhas e declaração de parte do autor, foi objecto de contraditório pela contraparte respectiva.
XIII Os autor e ré nos autos 8947/21... tiveram cada um deles possibilidade de exercício do contraditório à prova produzida por cada um deles.
XIV São quatro os requisitos que cumulativamente se têm de verificar para aplicação do disposto no art.º 421º C.P.C.
XV A não verificação cumulativa dos requisitos previstos no n.º 1, art.º 421º C.P.C., torna-o processualmente inaplicável.
XVI Inexiste identidade da parte passiva entre os presentes autos e os 8947/21....
XVII A recorrente, nos pontos 41 a 53 das suas Motivações de Recurso, extravasa o objecto das Alegações de Recurso, conforme elencado no ponto 6 das mesmas.
XVIII A recorrente, nos pontos 41 a 53 das Motivações de recurso, extravasa o teor previsto no n.º 1, art.º 421º C.P.C..
XIX A recorrente, nos pontos 41 a 53 das suas Motivações de recurso, tenta argumentar de modo a fundamentar a pertinência e relevância de serem considerados nestes autos de 1ª instância as gravações de prova produzida nos referidos autos 8947/21....
XX O Exmo. Senhor Juiz a quo bem considerou no Despacho datado de 20 de Janeiro de 2023 que não se encontram cumulativamente preenchidos dos requisitos processuais para a aplicação do n.º 1, art.º 421º C.P.C..
XXI O Exmo. Senhor Juiz a quo bem interpretou e aplicou o preceito n.º 1, art.º 421º C.P.C..
XXII Bem andou o Exmo. Senhor Juiz a quo em ter no Despacho, datado de 20 de Janeiro de 2023 decidido “(…)não se admite a junção aos autos do registo áudio dos depoimentos prestados pelas testemunhas nos autos do processo n.º 8947/21... no Juízo ... – Juiz ...(…)».
Dispensados os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Os factos com relevância para a decisão do recurso são os que constam deste relatório.


2 – Objecto do recurso.
Questão prévia a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões da sua alegação, nos termos do artigo 684.º, n.º 3 do CPC: Saber deve ser admitida a junção dos depoimentos prestados por testemunhas no âmbito de um outro processo, cuja sentença ainda não transitou em julgado e em que eram partes o aqui Autor e Ré a sociedade PBA – Gestão Imobiliária, Lda.

3 - Análise do recurso.
Em causa está uma decisão que indefere um pedido de aproveitamento de meios de prova pré-constituídos, formulado pela Recorrente na contestação, ao abrigo do disposto no artigo 421.º do CPC, sendo que tais meios de prova foram produzidos em sede de instrução da acção judicial intentada pelo aqui Autor / Recorrido contra a PBA – Gestão Imobiliária, Lda., correspondente ao processo n.º 8947/21..., que corre no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo ..., Juiz ..., e consistem em depoimentos das testemunhas e depoimento de parte.
Vejamos:
Nos termos do artigo 421.º do CPC:
Valor extraprocessual das provas
1 - Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 355.º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.
2 - O disposto no número anterior não tem aplicação quando o primeiro processo tiver sido anulado, na parte relativa à produção da prova que se pretende invocar.»
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/6/2020, proferido no âmbito do processo n.º 14954/17.4T8PRT-A.P1 (disponível em www.dgsi.pt), em cujo sumário se estabelece o seguinte:
“II - São quatro os requisitos exigidos pelos n.ºs 1 e 2 do artigo 421º, do Código de Processo Civil para a subsistência do valor extraprocessual das provas produzidas num primeiro processo, a saber: a)- que seja a mesma, em ambos os processos, a parte contra quem foram produzidas; b)-audiência contraditória da parte contrária; c)- o regime de produção dessas provas no primeiro processo oferecer às partes garantias pelo menos iguais (não inferiores) às do segundo processo;
d)- não ter sido anulada a parte do processo relativa à produção da prova que se pretende invocar.”
Ou seja, a lei exige como requisito que: “a utilização dessa prova se faça contra a mesma parte” o que é diferente de identidade de partes.
Transcreve-se o que a propósito se pode ler in Danilo Candido Portero, «Valor extraprocessual das provas” FDUL Lisboa 2020, p. 22:
«Tal não significa, porém, que autor e réu devem ser necessariamente os mesmos nos dois processos, não se tratando, assim, de identidade das partes do ponto de vista da sua qualidade jurídica- PINTO, Rui. Valor extraprocessual da prova penal na demanda cível: Algumas linhas gerais esoluçãop.19.Disponívelin:https://forumprocessual.weebly.com/uploads/2/8/8/7/2887461/valor_extraprocessual_rui_pinto.pdf. Acesso em: 20/12/2020.
O n.o 1 não exige a identidade das partes no processo em que a prova é produzida e naquele em que é invocada. Exige, sim, que a parte contra quem a prova é invocada, isto é, aquela que resulta desfavorecida com o resultado probatório, tenha sido parte no primeiro [...]- FREITAS, José Lebre; ALEXANDRE, OO. Código de processo civil anotado. 4. ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2019, v. 2: artigos 362º a 626º , p. 234.
Assim, importa apenas que a pessoa contra a quem a prova é invocada tenha sido parte no primeiro processo e que exista, como visto, a realização da audiência contraditória em ambos os processos (Assim, não agiu com o melhor acerto o TRP, no seguinte acórdão: “[…] Para que os depoimentos prestados num processo possam ser invocados e valorados noutro processo, nos termos do art. 522.º, n.° 1, do Código de Processo Civil, é pressuposto indispensável que tais depoimentos tenham sido sujeitos a audiência contraditória entre as mesmas partes”. PORTUGAL. TRP, proc. 3492/09, Rel. Guerra Banha, 4/1/2011), além de outros requisitos que serão oportunamente analisados.
Desse modo, não deve o juiz deixar de admitir a prova invocada por pessoa diversa daquela que a produziu no processo de origem: “que a prova seja invocada pelo adversário dessa parte no primeiro processo ou por pessoa completamente alheia a este processo, é indiferente”- REIS, José Alberto dos. Código de processo civil anotado. 3. ed., reimp., Coimbra: Coimbra Editora, 1981. v. 3: Arts. 487º a 549º, p. 347.
Nesse mesmo sentido, já consignou o Supremo Tribunal de Justiça, ainda sob a vigência do CPC/1961:
[...] O princípio da eficácia extraprocessual das provas, consagrado no art. 522º, nº 1, do Código de Processo Civil, significa que a prova produzida (depoimentos e arbitramentos) num processo pode ser utilizada contra a mesma pessoa num outro processo, para fundamentar uma nova pretensão, seja da pessoa que requereu a prova, seja de pessoa diferente, mas apoiada no mesmo facto- PORTUGAL STJ, proc. 05B691, Rel. Araújo Barros, 12/10/2004. Como exemplo, já decidiu o TRL que: “Assistindo a qualquer das partes da acção de investigação da paternidade o direito a requerer o exame hematológico, não pode esse direito ser coarctado ao réu, com o fundamento de idêntico exame ter tido lugar na acção de impugnação da paternidade, nomeadamente quando nesta não interveio, como parte, o pretenso pai”. PORTUGAL. TRL, proc. 1355/2007, Rel. Olindo Geraldes, 8/3/2007.
(…) Ademais, o que se exige é a identidade das partes e não entre os objetos das ações, pois “o que há é uma comunhão, maior ou menor, entre a base factual que suporta duas ou mais causas, próxima daquela prevista no art. 30º no 2 primeira parte CPC”- PINTO, Rui. Valor extraprocessual da prova penal na demanda cível: Algumas linhas gerais de solução. p. 21. Disponível em:
ttps://forumprocessual.weebly.com/uploads/2/8/8/7/2887461/valor_extraprocessual_rui_pinto.pdf. Acesso em: 20/12/2020.
Nada impede, porém, que os objetos das ações sejam exatamente os mesmos, nomeadamente no caso de o primeiro processo ter sido encerrado por absolvição da instância.
Percebe-se, ainda, que a identidade das partes é requisito de admissibilidade e não de valor da prova, sendo que uma vez produzida e admitida em outro processo, o juiz não pode deixar de considerá-la, mesmo se desfavorável à parte que a invocou.
Incide, também, em matéria de valor extraprocessual das provas, o princípio da aquisição processual: “Se, por exemplo, o autor arrolou uma testemunha e esta, no seu depoimento, alegou um facto favorável ao réu e que por este devia ser provado, o tribunal não pode deixar de considerar o seu depoimento, apesar de a testemunha não ter sido indicada pela parte a quem aproveita a prova do facto”- SOUSA, Miguel Teixeira de. Estudos sobre o novo processo civil. 2. ed., Lisboa: Lex, 1997, p. 346.»
Quanto ao referido requisito também refere Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 3. ed., reimp., Coimbra: Coimbra Editora, 1981. pág. 345., “Não importa que, no novo processo, a prova seja utilizada por pessoa diferente daquela que a fez produzir ou que a aproveitou no processo em que ela se encontra. O artigo não se opõe a isso; só exige que a prova seja invocada contra pessoa que foi parte no processo respectivo e que tenha aí sido produzida com audiência contraditória dessa pessoa.”
No mesmo sentido, Antunes Varela, José Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, In “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 492, cuja posição nesta matéria é a seguinte:
“Desde que na produção da prova se tenham concedido às partes as garantias essenciais à sua defesa, nada repugna, com efeito, aceitar que a prova possa ser utilizada contra a mesma pessoa num outro processo, para fundamentar uma nova pretensão, seja da pessoa que requereu a prova, seja de pessoa diferente mas apoiada no mesmo facto.”
E ainda por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, In “Código de processo civil anotado”, 4.ª ed., Editora Almedina, 2017. pág. 234.2, que defende o seguinte, em sede de anotação ao artigo 421.º do CPC:
“O n.º 1 não exige a identidade de partes no processo em que a prova é produzida e naquele em que é invocada. Exige, sim, que a parte contra quem a prova é invocada, isto é, aquela que resulta desfavorecida com o resultado probatório, tenha sido parte no primeiro processo e que nele tenha sido respeitado o princípio da audiência contraditória, isto é, que a parte tenha sido convocada para os actos de preparação e produção de prova e admitida a neles intervir, independentemente de ter estado efectivamente presente e ter tido intervenção efectiva (art. 415).”
Do exposto resulta que não tem cabimento legal a exigência de “identidade de partes” referida no despacho recorrido.
Nomeadamente, não é exigível, à luz daquele preceito, que a parte que requer o aproveitamento dos ditos meios de prova tenha sido também parte naqueloutro processo em que esses meios de prova foram produzidos, ou seja, não se exige que a Recorrente tenha sido parte no processo n.º 8947/21....
A única identidade de partes que o artigo 421.º do CPC exige consiste em que o sujeito contra o qual os meios de prova são invocados (neste caso, o Recorrido) tenha sido também parte no processo antecedente, no qual esses meios de prova foram produzidos.
Uma vez que, o Recorrido Autor na presente acção, foi parte no processo n.º 8947/21..., e que, nessa qualidade de parte, teve aí a possibilidade de exercer o contraditório quanto aos meios de prova em questão, não há razão para o indeferimento do aproveitamento, nestes autos, dos depoimentos testemunhais e declarações de parte produzidas no processo n.º 8947/21..., em conformidade com o requerido na contestação, por estarem preenchidos todos os requisitos de aplicação do disposto no artigo 421.º do CPC, assim procedendo do recurso.

4 – Dispositivo.
Pelo exposto, acordam os juízes da secção cível deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto, revogando-se a decisão recorrida e em consequência, admite-se a junção da prova em causa.
Custas pela parte vencida a final - cfr. art. 527.º, n.º 1, do CPC.

Évora, 23.04.24
Elisabete Valente
Manuel Bargado
Maria José Cortes