IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
RESPONSABILIDADE CIVIL
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
QUEDA
Sumário


I- O art. 505º do Código Civil consente o concurso da culpa ( ou imputação) do lesado com a responsabilidade do condutor do veículo pelo risco, a qual será excluída quando o acidente for apenas imputável- isto é, unicamente devido- com ou sem culpa- ao próprio lesado ou a terceiro, ou, quando resulte ( exclusivamente) de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
II- Trata-se de um problema de ligação causal dos danos verificados ao facto do lesado ou terceiro, dever-se o acidente (tão só) a este, pelo que relevantes, na ponderação do concurso, serão os termos e o âmbito com que se deva imputar ao facto do lesado a causalidade do evento, nomeadamente em termos de exclusividade, sendo que, seguramente, a imputação exclusiva sucederá quando se conclua que os riscos criados pelo veículo se mostram indiferentes para a produção do acidente e dos danos, como ocorreu, no caso concreto, em que se provaram apenas danos corporais em consequência (tão só) da queda da passageira, quando se encontrava a sair do autocarro, sem que se apurasse a causa da mesma.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

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I. Relatório ( que se transcreve):

“AA, solteira, maior, auxiliar de ação médica, com o n.º de identificação civil ...65, contribuinte fiscal n.º ...75 e com o n.º de beneficiária da SS ...24, residente na Travessa ...., em ..., ..., veio propor a presente acção declarativa de condenação, sob a forma comum, contra EMP01..., EM, pessoa coletiva pública de direito privado com natureza municipal, contribuinte fiscal n.º ...84, com sede na Quinta ..., ..., em ..., pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 45.644,45 a título de danos indemnização pelos danos não patrimoniais (€ 45.000,00) e patrimoniais (€ 644,45), sem prejuízo de eventual indemnização a liquidar em incidente ou em sede de ampliação do pedido, sendo todas as quantias acrescidas dos juros de mora à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, veio alegar, em suma, que (i) a ré tem por objeto social principal a prestação do serviço público de transporte coletivo de passageiros, na área do Município ..., sendo proprietária do autocarro n.º ..., com a matrícula ..-VI-.., chassis n.º ...19, da marca ..., que no dia 15/08/2019, cerca das 16:05, era conduzido por BB, motorista que exercia a condução por conta, ordem e interessa da ré, dando origem a acidente de que resultaram danos para a autora; (ii) com efeito, na data e hora indicados, o aludido VI fazia o itinerário ..., circulando na Av. ..., em ..., quando a autora sinalizou a vontade de sair na paragem EMP01... da aludida avenida, tendo o motorista imobilizado o veículo na aludida paragem; (iii) quando a autora se encontrava a descer do autocarro, de forma repentina, o motorista do VI retomou a marcha do veículo, sem acautelar a saída da autora, provocando a sua queda, com projeção para o asfalto, embatendo violentamente com o joelho esquerdo e com o membro superior direito; (iv) apercebendo-se a queda da autora, o motorista do VI cessou a marcha; (v) a verdade é que nada existia que pudesse ter influenciado negativamente a visibilidade do motorista do veículo da ré (o piso era plano e em bom estado de conservação, era de dia e estava sol); (vi) havia condições para que o motorista tivesse divisado a movimentação da autora, cumprindo-se aguardar que acabasse de descer do autocarro, para retomar a marcha, pelo que só a imperícia, inconsideração e falta de destreza o levaram a iniciar a marcha sem acautelar a saída da autora; (vii) a verdade é que a queda provocou direta e necessariamente lesões graves na autora, designadamente traumatismo no joelho esquerdo e membro superior direito (com luxação do cotovelo, fratura da tacícula e fratura fechada da cabeça do rádio), originando despesas com tratamentos cirúrgicos, fisioterápicos, médicos e medicamentosos, no valor de € 644,45 e sequelas funcionais como sejam a dificuldade de permanecer muito tempo na posição ortoestática, fragilidade do membro inferior esquerdo com dor e ligeira claudicação, agravada pela marcha em pisos inclinados ou irregulares, limitação dos movimentos do braço direito e diminuição da força do mesmo e dificuldade em pegar objetos com o braço direito;   (viii)  por outro lado, provoca sequelas situacionais, como sejam maior prostração, devido às dores que a acometem, dificuldade em subir e descer escadas, dificuldade de marcha por períodos prolongados e dor no braço direito; (ix) após o acidente a autora foi conduzida à Urgência do Hospital ..., onde esteve internada 15 dias, permanecendo a autora de baixa médica desde então; (x) até à presente data a autora foi sujeita a suas cirurgias ao membro superior direito, para colocação de prótese da tacícula, e aguarda agendamento de nova intervenção, estando, ademais, a realizar sessões de fisioterapia no Hospital ... e Hospital ...; (xi) a autora, à data com 58 anos de idade, era funcionária do Hospital ..., EPE, exercendo funções, como auxiliar de ação médica, no bloco operatório; (xii) a verdade é que a autora, durante os tratamentos, foi e continua a ser, sujeita a grandes dores e incómodos, tendo, igualmente, vivenciado a grande angústia de ter temido pela sua vida; (xiii) durante 60 dias, para fazer face à necessidades básicas e diárias de vida, a autora dependeu em exclusivo de terceiros, designadamente da sua mãe, CC, e da sua irmã, CC; (xiv) a verdade é que a autora, que era alegra, comunicativa e com grande esperança no futuro, que gostava de fazer grandes passeios por ..., deixou de os poder fazer, deixando, em suma, de ter uma vida normal; (xv) tudo isto, as dores e as limitações com que passou a defrontar-se, levaram a que a autora visse diminuída a alegria de viver e passasse a viver com angústia e revolta por se ver nesta situação pela incúria de terceiros; (xvi) a autora passou a ter medo de viajar de autocarro, fazendo-o só quando estritamente necessário e vivenciando, durante todo o trajeto, temor, causando-lhe danos não patrimoniais que calcula em montante não inferior a € 45.000,00.
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Citada, a ré contestou a ação, afirmando que nem ela nem o seu motorista tiveram qualquer culpa na produção do acidente de 15/08/2019.
De acordo com a ré, tudo faz para garantir as condições de segurança essenciais à permanência e saída de passageiros, proporcionando formação contínua aos seus condutores para adotem regras de boa condução e segurança, o que sucedeu no âmbito do contrato de transpor em apreço.
Em rigor, afirma, o acidente ficou a dever-se à falta de cuidado da autora, que calculou mal a sua saída e tropeçou no próprio vestido, com o que originou a queda e as eventuais sequelas dela decorrentes, como consta, aliás, das declarações que a própria autora prestou à PSP (remetendo para a participação que junta) e como confirmaram os demais passageiros.
A ré impugna os danos alegados, por desconhecer, referindo desconhecer o estado prévio da autora, aludindo, inclusive, a documento junto pela autora que atesta que esta já teria limitações físicas previamente ao acidente.
De todo o modo e porque tinha celebrado com a EMP02... – Companhia de Seguros, S.A., contrato de seguro de exploração, titulado pela apólice n.º ...90, requereu a intervenção da aludida sociedade nos presentes autos.
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Por despacho de 14/05/2021, foi a EMP02... admitida a intervir, a título principal, ao lado da ré.
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Regularmente citada, a chamada apresentou contestação, admitindo a celebração do contrato de seguro alegado pela ré, que afirma ter prevista uma franquia do valor correspondente a 10% dos prejuízos indemnizáveis, com o limite máximo de € 2.500,00, valor que sempre ficará a cargo da ré, mais alegando estarem excluídos do âmbito de cobertura da apólice, os riscos de circulação na via pública, quando as máquinas cuja laboração é garantia sejam auto propulsoras, e considerados como próprios do risco de circulação automóvel.
De acordo com a chamada, os factos descritos na PI nunca lhe foram participados e desconhece a veracidade dos mesmos, ainda que anote resultar do auto de participação da PSP junto pela própria autora, que a queda se ficou a dever à própria autora e não a um qualquer ato ou omissão da ré ou de algum dos seus trabalhadores.
Não podendo assacar-se qualquer ato ou omissão á ré ou seus trabalhadores, causadores do evento, tão pouco as lesões decorrentes do evento lhes pode ser imputado.
Mas, mesmo que assim não fosse, atenta a versão da autora – que imputa ao motorista da ré a violação de normas estradais – sempre seria de excluir a responsabilidade da chamada, face à norma de exclusão de cobertura supra enunciada.
Conclui pugnando pela improcedência da presente ação.
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Determinada a citação do ISS, IP, foi a mesma levada a cabo, nada vindo a ser peticionado.
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Foi dispensada audiência prévia, tendo sido proferidos os despachos a que aludem os artigos 595º e 596º do CPC. 
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Foi realizada a audiência de discussão e julgamento com observância de todo o formalismo legal e gravação dos respetivos depoimentos.
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Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“Dispositivo
Em face do exposto, julgo a presente ação totalmente improcedente e, em consequência,
a) Absolvo as rés EMP01..., EM e EMP02... – Companhia de Seguros, S.A. de todos os pedidos contra si formulados pela autora.
Custas pela autora, nos termos do art. 527º nºs 1 e 2 do CPC, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia. (cfr. artigo 527, n.º 1 e 2 do CPC).
Registe e notifique.”
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Inconformada com a decisão, veio a A interpor recurso, e formulou as seguintes conclusões (que se transcrevem):

“1.ª – Nos presentes autos, a Autora, ora Recorrente, peticionou a condenação da Ré, ora Recorrida, no pagamento da quantia de 45.644,45 € (quarenta e cinco mil, seiscentos e quarenta e quatro euros e quarenta e cinco cêntimos), a título de indemnização pelos danos causados pela Ré, em virtude de um acidente de viação, mais o que resultar da liquidação de execução de sentença pelo dano biológico, ou seja, pela incapacidade permanente geral com relevância para a sua vida futura e a degradação do seu padrão de vida que a tem constrangido e lhe provoca grande dor moral.
2.ª - Nos autos discute-se um acidente de viação ocorrido no dia 15 de agosto de 2019, pelas 16 horas e 05 minutos, em que a Autora, ora Recorrente, era passageira do autocarro nº..., com a matrícula ..-VI-.. (nº chassis ...19), de marca ..., dos EMP01..., aqui Ré ora Recorrida.
3.ª - A Autora ora Recorrente encontrava-se a descer do autocarro pela porta lateral traseira, concretamente já com um pé fora do veículo, quando, de forma repentina e com total inconsideração, o motorista do autocarro retomou a marcha bruscamente, sem acautelar pela saída da passageira, aqui Autora ora Recorrente, por sua culpa única e exclusiva a queda da mesma, que nada pôde fazer para evitar o acidente.
4.ª - O motorista do autocarro, depois de se ter apercebido que com o precipitado arranque do veículo provocou a queda da Autora, cessou a marcha e chamou o INEM.
5.ª - No que respeita à dinâmica do acidente, a Sentença de que ora se recorre dá como provado os factos supra alegados – v. II. Fundamentação de facto; A) Factos provados: pontos 1) a 7) e 9 a 13.
6.ª – Não se aceita, como verdadeiro, o facto dado como provado na Sentença no seu ponto 8, tal como consta na redação que lhe foi conferida:
“Quando a autora, que trajava vestido comprido, se encontrava a descer pela porta lateral traseira do VI, por razão não concretamente apurada mas alheia à ação do motorista da ré, caiu para o exterior, ficando imobilizada no passeio, entre a paragem e a porta do autocarro”.
7.ª – Conforme se provou em audiência e discussão de julgamento, quando a Autora ora Recorrente já se encontrava a descer do autocarro pela porta lateral traseira, concretamente já com um pé fora do veículo, de forma repentina, com total inconsideração, o motorista BB, retomou bruscamente a marcha, sem acautelar a saída da passageira, a Autora ora Recorrente, provocando, por sua culpa única e exclusiva a queda daquela, que nada pôde fazer para evitar o acidente.
8.ª – A este propósito, atente-se nas Declarações de parte da Autora, prestadas no dia 11/10/2023, em sede de audiência e discussão de julgamento, inclusas nas alegações supra [CC - 11/10/2023 - 09:33 - 09:52] que prestou um depoimento certo, seguro e credível, tendo identificado, de forma clara e percetível, todos os pontos da dinâmica do acidente ao Tribunal a quo.
9.ª – Distintamente, o depoimento prestado pelo motorista da Ré, BB, demonstrou-se um depoimento imaturo e descomprometido com o Tribunal. Aliás, quando inquirido a propósito da queda da Autora ora Recorrente,começou por afirmar/asseverar que viu a Autora tropeçar e cair no vestido e, depois/posteriormente, disse ao Tribunal que já não tinha certeza desse facto e apenas ter presumido e concluído tal ser a única causa possível, conforme resulta do seu depoimento [BB - 11/10/2023 -10:50 - 11:09].
10.ª – Por outro lado, cumpre voltar a salientar que o auto (nº...70/2019) de participação do acidente de viação em crise nestes autos reflete, apenas e só, as declarações prestadas pelo motorista do autocarro BB, no qual a Autora não participou, atento o seu estado de saúde, e que não aceita como verdadeiras por não corresponderem à dinâmica do acidente, conforme resulta das declarações da Autora [CC - 11/10/2023 - 09:33 - 09:52].
11.ª – Ficou assim evidente que o motorista do veículo da Ré, ora Recorrida, podia e devia ter divisado a Autora, ora Recorrente, ter esperado que aquela acabasse de descer do autocarro para depois iniciar a sua marcha de forma segura, ao invés, de forma negligente, com absoluta imperícia, inconsideração e falta de destreza, ter iniciado repentinamente a marcha do veículo ..-VI-.., sem acautelar a saída da passageira, aqui Autora e ora recorrente, provocando, por sua culpa única e exclusiva, a queda daquela, que nada pôde fazer para evitar o acidente.
12.ª – Acresce, a prova produzida em audiência, não só pelas declarações da, como também da demais prova testemunhal produzida em julgamento, quer pela irmã da Autora – DD – quer ainda pela sua mãe – CC, quanto aos danos que se produziram direta e necessariamente na esfera jurídica da Autora em virtude do acidente – v. II. Fundamentação de facto; A) Factos provados: pontos 14) a 20) e 22) a 23) da Sentença.
13.ª – O acidente produziu-se por culpa exclusiva do motorista, funcionário da Ré ora Recorrida, condutor do autocarro ..-VI-.., propriedade daquela, dado ter agido com negligência, pois, se circulasse com atenção, teria seguramente divisado a Autora ora Recorrente, esperado que aquela acabasse de descer do autocarro para depois iniciar a sua marcha de forma segura. Ao invés, como acima já se alegou, com absoluta imperícia, inconsideração e falta de destreza, iniciou repentinamente a marcha daquele veículo ..-VI-.., sem acautelar a saída da passageira, Autora aqui Recorrente,
14.ª – Da prova testemunhal acima transcrita e referenciada produzida na audiência de julgamento deveria ter levado o Tribunal a quo a decidir que a Autora em nada contribuiu para o acidente, que nada pôde fazer para o evitar e que se deveu única e exclusivamente à conduta do motorista da Ré (ora Recorrida) que agiu assim com negligência, violando as mais elementares normas e princípios estradais, em particular, infringindo o disposto no artigo 11º, nº1 do Código da Estrada, bem ainda o Decreto-Lei nº9/2015, de 15 de janeiro, que estabelece as condições que devem ser observadas no contrato de transporte rodoviário de passageiros e bagagens, em serviços regulares, designadamente, o artigo 23º, n.º1 daquele decreto, bem como violou o Manual do Utilizador – EMP01..., modelo:033/..., datado de 18/05/2020, nomeadamente, os Pontos 8 e10, no seu artigo 2º, n.º3 e artigo 8º, alínea d), uma vez que aquele motorista não acautelou a saída do autocarro, em segurança, da Autora ora Recorrente.
15.ª – Nesta sequência, o direito decorrente dos factos provados v. II. Fundamentação de facto; A) Factos provados: pontos 1) a 7) e 9 a 13, adicionado da alteração quanto ao ponto 8 da matéria de facto, onde deve passar a constar:
“Quando a autora, que trajava vestido comprido, se encontrava a descer pela porta lateral traseira do VI, por razão não concretamente apurada, caiu para o exterior, ficando imobilizada no passeio, entre a paragem e a porta do autocarro”, deveria ter levado o Tribunal a quo a decidir pela culpa única e exclusiva do motorista da Ré na produção do acidente que causou os danos conformev. II. Fundamentaçãodefacto; A) Factos provados: pontos 14) a 20) e 22) a 23) da Sentença.
16.ª – Mesmo que se mantivesse o ponto 8 dos factos provados, tal como o Tribunal a quo a redigiu: “Quando a autora, que trajava vestido comprido, se encontrava a descer pela porta lateral traseira do VI, por razão não concretamente apurada mas alheia à ação do motorista da ré, caiu para o exterior, ficando imobilizada no passeio, entre a paragem e a porta do autocarro”, sempre estaríamos na presença de um caso de responsabilidade civil objetiva – que prescinde do pressuposto legal da culpa.
17.ª – Dispõe o artigo 503.º do Código Civil que: “1. Aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação. 2. As pessoas não imputáveis respondem nos termos do artigo 489.º 3. Aquele que conduziro veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do n.º 1.”
18.ª – O autocarro ..-VI-.. é propriedade da EMP01... e o motorista do referido autocarro é funcionário da Ré, porquanto é a Ré, ora Recorrida, a quem cabe a responsabilidade pelos danos causados à Autora, ora Recorrente, emergentes do acidente de viação em causa nestes autos, nos termos do artigo 483º e seguintes do Código Civil, agindo o condutor no exercício das funções que lhe foram confiadas, uma vez que, à data dos factos, era motorista da EMP01... (empresa municipal), e por conta, ordem e interesse desta.
19.ª – Porquanto, resulta cristalino que opera a responsabilidade objetiva do artigo 503.º do CC por estarem verificados, no caso concreto, os seus pressupostos.
20.ª – Numa situação semelhante, no Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, datado de 24/03/2022, proferido no âmbito do processo n.º14223/18.2T8PRT.P15, pode ler-se que:
“É manifesta a violação contratual, estabelecida no âmbito do contrato de transporte entre a autora e a S ..., por parte da motorista do autocarro; A condutora do UJ percecionou que a autora era pessoa idosa, que carregava vários sacos, que exigia especial atenção porque débil, contudo não aguardou que esta se sentasse no seu lugar, tendo iniciado a marcha com a passageira de pé a validar o título de transporte;
A conduta da motorista, agente da S ... na prestação do serviço de transporte, é violadora do dever de zelo e de especial salvaguarda por aqueles que, pela idade, ou outra razão, necessitem de cuidado, tendo concorrido necessariamente para o sinistro rodoviário que vitimou a autora.”
21.ª – Por sua vez, o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 9/2015, de 15 de janeiro – estabelece as condições a observar no contrato de transporte rodoviário de passageiros e bagagens –, que dispõe o seguinte:
“1 - O operador obriga-se a transportar os passageiros munidos de títulos de transporte ou de outro meio de prova que prove a sua aquisição, nos termos do presente decreto-lei.
2 - São obrigações do operador, designadamente:(…)
f) Prestar o serviço objeto do contrato de transporte com segurança e qualidade, nos termos da legislação aplicável; (…)
3 - São deveres do pessoal que presta serviço nos serviços de transportes: (…)
c) Prestar aos passageiros todo o auxílio de que careçam, tendo especial atenção com as crianças, as pessoas com mobilidade condicionada e os idosos;
d) Velar pela segurança e comodidade dos passageiros; (…)
4 - O condutor deve parar o veículo nas paragens de tomada e largada de passageiros, sempre que lhe seja feito sinal para esse fim, para que a entrada e saída dos passageiros se faça sem perigo para estes e sem prejuízo para a circulação. (…)
22.ª – Ademais, o Tribunal a quo não poderia ter olvidado que é da responsabilidade do operador, in casu, da Ré, quaisquer danos que venham a ocorrer na esfera jurídica dos passageiros – desde que estes tenham adquirido devidamente o título que habilita à viagem, o que sucedeu no caso sub judice, tal como dispõe o artigo 23.º do referido Decreto Lei.
23.ª – Veja-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 11/10/2022, proferido no âmbito do processo n.º 8533/17.3T8SNT.L1-76:
“I – É de admitir, em tese geral, e conforme vem sendo entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, a concorrência entre a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo e a culpa do lesado (ou imputação do acidente ao lesado), numa interpretação atualista do art. 505 do C.C., no sentido de que a responsabilidade objetiva do condutor só deve ser excluída quando o acidente for única eexclusivamenteimputável aoprópriolesado ou a terceiro ou resulte apenas de força maior estranha ao funcionamento do veículo;
(...)
III–Excluída a culpa do condutor do veículo pesado de passageiros na produção do sinistro, e apurando-se que o processo causal que gerou o evento e os danos daí emergentes não foi desencadeado exclusivamente pela conduta da A. lesada, ainda que com culpa leve, após queda da mesma junto à porta de entrada daquele pesado de passageiros onde pretendia entrar, sendo antes ampliado pelas características do próprio veículo e pelos riscos que a sua circulação envolve, é de fazer uma aplicação atualista do art. 505 do C.C., sujeitando a quantificação da indemnização devida à ponderação prevista no art. 570 do mesmo Código.”
24.ª – Nesta senda, o artigo 505.º do Código Civil dispõe que “sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”.
25.ª – Deve ser realizada uma obrigação de interpretação conforme daquela norma, o que nos leva a, de acordo com o direito comunitário e com as regras nacionais sobre a responsabilidade civil objetiva, realizar uma interpretação que abranja o concurso do risco do condutor do veículo com a conduta culposa do lesado, só podendo a responsabilidade pelo risco ser excluída quando o acidente seja da exclusiva culpa do lesado.
26.ª – In casu, em que não se deu como provada a causa do acidente, desconhecendo-se, portanto, as razões que estiveram na queda da Autora ora Recorrente – nunca se poderá concluir que esta agiu com dolo ou culpa grave – concebendo-se, apenas, por mera cautela de patrocínio, que da conduta da mesma possa resultar culpa leve.
27.ª – No caso específico dos acidentes de viação com veículos, o direito europeu vem-se pronunciando na perspetiva da proteção da vítima e, consequentemente, no caso em apreço, o facto de não ficar provada que a culpa do acidente ser deveu única e exclusivamente à conduta da Autora ora Recorrente e, estando o nexo de causalidade mais do que apurado, sempre teríamos de ter em consideração os próprios riscos associados àquela atividade perigosa e, nessa medida, sempre seria a queda enquadrada no círculo normal de perigosidade associado ao tráfego rodoviário.
28.ª – A não se conceder a aplicação do instituto da responsabilidade civil objetiva pelo risco, sempre seria obrigatório, no caso concreto, que existisse uma interpretação atualista do artigo 505.º do Código Civil, com vista a permitir um concurso de culpa (leve) da vítima, ora Recorrente, como próprio risco associado ao veículo da Ré, ora Recorrida, na produção dos danos.
29.ª – A Ré efetuava um transporte da Autora, pelo que, os danos que lhe foram causados como consequência direta e necessária da queda que sofreu ao descer do autocarro, ou seja, do veículo onde se efetuava o transporte conduzido pelo motorista da Ré, deveria ter levado o Tribunal a quo a efetuar um juízo de prognose conducente à obrigação da Ré indemnizar a Autora, independentemente da culpa, bastando ter-se provado, como ficaram: a queda ocorrida e os consequente danos - v. II. Fundamentação de facto; A) Factos provados: pontos 1) a 7) e 9 a 13; mesmo com o ponto 8 da matéria de facto tal como está redigido pelo Tribunal a quo.
30.ª – A sentença recorrida violou assim os artigos 483.º; 500.º; 503.º e 505.º, todos do Código Civil e artigos 5.º e 23.º do Decreto-Lei n.º 9/2015, de 15 de janeiro.
31.ª -Não tanto pelo alegado como pelo doutamente suprido, deverão V.Exas., Venerandos Senhores Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães, dar integral provimento ao presente recurso e revogar a douta sentença proferida na sua fórmula decisória, julgando procedente a ação e condenando a Ré, ora Recorrida, a pagar à Autora, ora Recorrente, a quantia de 45.644,45 € (quarenta e cinco mil, seiscentos e quarenta e quatro euros e quarenta e cinco cêntimos), a título de indemnização pelos danos causados pela Ré, em virtude de um acidente de viação, mais o que resultar da liquidação de execução de sentença pelo dano biológico, ou seja, pela incapacidade permanente geral com relevância para a sua vida futura e a degradação do seu padrão de vida que a tem constrangido e lhe provoca grande dor moral.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo.
O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Assim, cumpre apreciar o recurso deduzido, após os vistos.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em:

A- A impugnação da matéria de facto apresentada pela recorrente/A:
A1- Alteração da decisão da matéria de facto, quanto à dinâmica do acidente ( factos constantes nos pontos 8 dos factos provadosdos factos não provados e, se estes últimos cumprem os requisitos de impugnação da matéria de facto previstos no art. 640º n1 do CPC, por terem sido aludidos apenas nas alegações e já não nas conclusões );

B- A reapreciação de direito ( Em face da alteração de facto pretendida ou ainda que em face da matéria de facto dada como provada e mantida, qual o enquadramento jurídico do caso vertente .:
B.1 – alterando-se a matéria de facto, entende que deverá ser assacada a culpa exclusiva do condutor do autocarro; caso não se altere a matéria de facto, em face da mesma, a apelante entende tratar-se de uma conjugação entre responsabilidade objetiva com a culpa do lesado ( ou imputação ao lesado do acidente), par efeitos de indemnização dos danos.
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III. Fundamentação de facto.

A) FACTOS PROVADOS

1) A Ré é uma pessoa coletiva pública de direito privado com natureza municipal, nos termos do n.º 4 do artigo 19.º da Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto, que goza de personalidade jurídica e é dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial.
2) A Ré tem como objeto social principal a prestação de serviço público de transporte coletivo de passageiros na área do Município ... e uma das suas atribuições é assegurar a prestação eficaz do seu serviço público de transporte coletivo de passageiros dentro da área daquele município, conforme escritura de criação de empresa pública municipal e respetivos estatutos, publicada através de aviso no Diário da República – III Série, n.º 17, de 21 de janeiro de 1999.
3) A Ré é proprietária do autocarro nº..., com a matrícula ..-VI-.., (nº chassis ...19), de marca ..., que circulava no itinerário ..., na Avenida ..., união das freguesias ... (..., ... e ...), na cidade ..., no dia 15/08/2019, cerca das 16h05, conduzido por conta, ordem e interesse da Ré, pelo motorista BB. (cfr. Doc1 junto com a PI)
4) No dia 15 de agosto de 2019, pelas 16 horas e 05 minutos, a Autora era passageira do autocarro nº..., com a matrícula ..-VI-.., (nº chassis ...19), de marca ..., dos EMP01... (Cfr. Doc. nº ... junto com a PI),
5) que circulava no itinerário ..., na Avenida ..., na cidade ... (Cfr. Doc. nº ... junto com a PI).
6) A Autora, pretendendo sair na próxima paragem, concretamente na paragem da EMP01... na citada artéria EE, deu sinal dessa sua intenção, através da campainha existente para o efeito.
7) Nesta sequência, o motorista do autocarro com a matrícula ..-VI-.. procedeu à imobilização do veículo na referida paragem.
8) Quando a autora, que trajava vestido comprido, se encontrava a descer pela porta lateral traseira do VI, por razão não concretamente apurada mas alheia à ação do motorista da ré, caiu para o exterior, ficando imobilizada no passeio, entre a paragem e a porta do autocarro.
9) O motorista do autocarro, apercebendo-se do ocorrido, abeirou-se da autora e, ao encontrá-la queixosa, chamou o INEM.
10) A citada Avenida ... tem uma faixa de rodagem em cada sentido, sendo cada uma delas composta por duas vias.
11) O acidente deu-se na paragem da EMP01..., que se situa paralelamente à via mais à direita da faixa de rodagem, do sentido ....
12) Não existia qualquer obstáculo na via que pudesse ter influenciado negativamente a visibilidade do motorista do veículo da Ré, acrescendo o facto de nos encontrarmos numa via em bom estado de conservação e plana.
13) Na altura do sinistro era de dia e as condições climatéricas eram de sol.
14) Na sequência da queda, a autora apresentava luxação cotovelo direito com fratura da tacícula e fratura da tacícula radial, cominutiva, sendo referenciada pelo Centro de Saúde ..., ... para médico especialista (cfr. Registo Clínico de Consulta de 15/08/2019, pelas 18h48, junto em 21/07/2022, doc.... junto com a PI e relatório médico-legal)
15) De acordo com o Relatório Médico-Legal, a autora teve dois períodos de internamento, entre 15/08/2019 e 20/08/2019 e 13/02/2020 e 18/02/2020. (cfr. Relatório Médico Legal)
16) Por outro lado, fixa a data da consolidação médico-legal das lesões em 18/09/2020; o período de Défice Funcional Temporário Total em 389 dias; Período de Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total em 401; Quantum Doloris de 4/7; Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica em 2 pontos, afirmando ser de admitir dano futuro; afirma que as sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, ainda que reconheça que implicam esforços suplementares; fixa o dano estético em 1/7; e dá conta da necessidade de ajudas técnicas permanentes, com tratamentos médicos regulares. (cfr. Relatório Médico Legal)
17) A Autora, após o acidente, foi de imediato conduzida à urgência do Hospital ... (cfr. docs. ... e ... juntos com a PI e Relatório Médico-legal).
18) Desde a data do acidente (15/08/2019) até ao presente, a Autora continua de baixa médica, assinalando-se que teve outros períodos de baixa médica em 2018 e meados de 2019 (cfr. registos clínicos juntos em 21/07/2022).
19) Após o acidente, a autora foi submetida a duas cirurgias ao membro superior direito, designadamente para colocação de prótese da tacícula (biomet), tendo recusado terceira intervenção, bem ainda tem realizado sessões de fisioterapia no Hospital ... e no Hospital ....
20) A Autora tinha à data do acidente a idade de 57 anos, sendo que mantém dor e limitação na movimentação e utilização do braço direito.
21) A Autora era desde há muito funcionária do Hospital ... E.P.E..
22) Em consequência das lesões e sequelas que se seguiram sente dor, angústia e irritação, particularmente no período imediatamente a seguir ao acidente e às intervenções cirúrgicas a que foi submetida, carecendo do apoio de terceiros para vestir, tomar banho, calçar, preparar a comida, carregar pesos e tratar da lida da casa. 
23) A autora verbaliza sentir receio de fazer-se transportar de autocarro.
24) Foi celebrado entre a Ré e a chamada um contrato de seguro mediante o qual a ora contestante garante à Ré o pagamento de indemnizações que esta venha a ser obrigada a satisfazer, de acordo com a legislação em vigor, por danos corporais, danos materiais e suas consequências, causados a terceiros no exercícios das suas atividades de transportes urbanos de passageiros em autocarros, nos termos e condições constantes da apólice ...60, de que se junta cópia e aqui se dá por reproduzida para todos os efeitos legais (Doc. nº ... junto com a contestação da chamada).
25) O contrato de seguro tem como capital anual seguro o valor de €5.000.000,00, por sinistro e agregado anual, conforma consta Cláusula 8 das Condições Particulares.
26) Além disso, nos termos da Cláusula 7 das mesmas Condições Particulares, o referido contrato prevê ainda uma franquia correspondente a 10% dos prejuízos indemnizáveis, com o máximo de €2.500,00, valor esse que ficará sempre a cargo da segurada, conforme decorre do art. 1º das Condições Gerais.
27) Por último, nos termos do disposto no art. 2.º da Condição Especial 001 – Responsabilidade Civil Exploração, que foi expressamente contratada, ficou “expressamente acordado que a presente garantia se restringe aos riscos de laboração das máquinas, com expressa exclusão dos riscos de circulação na via pública, quando tais máquinas sejam auto propulsoras, e considerados como próprios do risco de circulação automóvel, ao abrigo do Código da Estrada”.

B) FACTOS NÃO PROVADOS

a) Que a queda a que se alude em 8 se tenha ficado a dever ao facto de o motorista do autocarro ter retomado a marcha do VI enquanto a autora descia deste e por não ter acautelado a saída da autora;
b) Que em resultado do súbito arranque do autocarro a autora tenha embatido violentamente com o joelho esquerdo;
c) Que o motorista da ré tenha iniciado a marcha do VI com absoluta imperícia, inconsideração e falta de destreza, provocando a queda da autora e as lesões que esta sofreu;
d) Que na sequência do acidente a autora tenha sofrido traumatismo no joelho esquerdo;
e) Que na sequência do acidente a autora tenha efetuado tratamentos cirúrgicos, fisioterápicos, médicos e medicamentosos do concreto valor de € 644,45;
f) Que na sequência do acidente a autora tenha dificuldade em permanecer muito tempo na posição ortoestática ou com fragilidade no membro inferior esquerdo com dor e ligeira claudicação, agravada pela marcha em pisos inclinados ou irregulares, com dificuldade em subir ou descer escadas e em marcha por períodos prolongados, com desequilíbrio;
g) Que à data do acidente a autora tivesse 58 anos;          
h) Que ainda hoje a autora tenha dores no joelho esquerdo;
i) Que antes do acidente a autora fizesse grandes passeios pela cidade ... e que tenha deixado de os conseguir fazer;
j) Que a autora sinta revolta por estar na situação em que se encontra por incúria de terceiros;
k) Que a autora tenha, concretamente, tropeçado no vestido que usava.
*
C) A demais matéria contida nos articulados não releva para a decisão da causa, é conclusiva ou de direito, pelo que não foi aqui considerada.
*
IV. Do objeto do recurso.

 A– Alteração da matéria de facto

Como resulta da identificação das questões que acaba de se efetuar, no essencial, no recurso vem impugnada a decisão sobre a matéria de facto.

Como se vê das conclusões e alegações de recurso, desde logo, e além do mais, a recorrente questiona basicamente a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido, no que respeita ao facto dado como provado no ponto 8 com a redação dada pelo tribunal ( e alguns factos não provados ( al. a), c) e k)), mas aludidos apenas nas alegações e já não nas conclusões).
Por isso e em relação a estes factos não provados e aludidos apenas nas alegações e já não nas conclusões, a doutrina e jurisprudência são unânimes em afirmar que “ o sistema que agora vigora, sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto: Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões ( cfr ” Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., págs. 165).

Destarte, considerando o disposto pelo artigo 641º do C.P.C., «a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve operar quando se verifique alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.º, n.4, e 641º, n.2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640.°, n.° 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação (…)

As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.»
Daí, que a inobservância deste ónus de alegação, implica, como expressamente se prevê, no art. 640.º, n.° 1, do C.P.C., a rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, não sendo legalmente admissível, como tem vindo a ser decidido pela jurisprudência reiterada do Supremo Tribunal de Justiça, a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, que está reservado para os recursos da matéria de direito.
Refira-se, que a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c) do referido artigo 640º conduz à rejeição do pedido de impugnação da decisão de facto na parte afetada. Já, no que se refere à falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, alínea a) do mesmo artigo, tal sanção só se justifica nos casos em que essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo tribunal de recurso.
Diga-se ainda que recentemente ficou expressa uniformização de jurisprudência pelo STJ nos seguintes termos: “ Nos termos da alínea c), do nº 1, do artigo 640º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”.

Assim sendo, no caso sub judicio, e não constando das conclusões aqueles concretos pontos de facto impugnados- quanto aos factos não provados ( al. a), c) er k))-, não se cumprem os requisitos previstos no art. 640º, nº1, al. a) do CPC, pelo que não iremos apreciá-los.
Com efeito, saliente-se que as conclusões têm a importante função de definir e delimitar o objeto do recurso e, desta forma, circunscrever o campo de intervenção do tribunal superior encarregado do julgamento.
Por isso, sendo a impugnação de matéria de facto uma autêntica questão fundamental, suscetível de conduzir a decisão diferente, deve ela ser incluída nas conclusões das alegações, de forma sintética, mas obviamente com indicação precisa dos pontos de facto impugnados, com o resumo do que a tal respeito tenha sido referido no corpo das alegações. Só assim se pode entender que é suscitada tal questão: para se impugnar matéria de facto há, forçosamente, que especificar nas conclusões, de forma concreta, quais os pontos de facto impugnados, pois de contrário o recurso não tem objeto fático.
Entende-se, por conseguinte, que para uma correta impugnação da matéria de facto, se exige a inclusão da concretização dos pontos de facto ou matéria impugnada, nas conclusões, sob pena de rejeição do recurso, inclusão essa que, in casu, não se verificou.
 É que, para o aludido feito, não basta – como fez a apelante – aludir genericamente à materialidade que se reputa erroneamente apreciada ( como faz, por exemplo, nas conclusões 7ª, 13ª, 14ª), exigindo-se antes uma indicação concreta e precisa dos pontos de facto, provados ou não provados, que se considera terem sido incorretamente julgados e em relação a cada um deles a indicação dos meios de prova que levariam à sua alteração, analisando-se tudo de forma critica de modo a colocar em causa o juízo crítico do julgador.
Daí que, em consonância com o disposto na 1ª parte da al. a) do nº 2 do citado art. 640º, impõe-se a rejeição, nessa parte, do recurso, sendo que, dada a expressão perentória da lei (através do emprego do adjetivo imediata), não cabe convite ao aperfeiçoamento no sentido de lograr suprir a inobservância desses ónus[1].

O mesmo não ocorre, em relação à impugnação do facto provado nº 8, o qual irá ser apreciado.
 A sentença entendeu considerar provado no ponto 8º o seguinte facto:
“) Quando a autora, que trajava vestido comprido, se encontrava a descer pela porta lateral traseira do VI, por razão não concretamente apurada mas alheia à ação do motorista da ré, caiu para o exterior, ficando imobilizada no passeio, entre a paragem e a porta do autocarro..”

A apelante entende que aquele ponto 8º provado deveria ter uma outra resposta com a seguinte redação:
“Quando a autora, que trajava vestido comprido, se encontrava a descer pela porta lateral traseira do VI, por razão não concretamente apurada, caiu para o exterior, ficando imobilizada no passeio, entre a paragem e a porta do autocarro”.

Tudo isto, entende a recorrente, por a sentença não ter valorizado devidamente, na sua ótica, as suas declarações de parte, as quais qualifica de credíveis por ter prestado “ depoimento certo, seguro e credível, tendo identificado, de forma clara e percetível, todos os pontos da dinâmica do acidente ao Tribunal a quo.” E ao invés, na sua opinião, o depoimento prestado pelo motorista da Ré, BB, demonstrou-se um depoimento imaturo e descomprometido com o Tribunal. Aliás, quando inquirido a propósito da queda da Autora ora Recorrente, começou por afirmar/asseverar que viu a Autora tropeçar e cair no vestido e, depois/posteriormente, disse ao Tribunal que já não tinha certeza desse facto e apenas ter presumido e concluído tal ser a única causa possível, conforme resulta do seu depoimento”
Esta questão colocada à reapreciação deste tribunal contende com a dinâmica do acidente, nomeadamente com a causa da queda da autora: saber se a queda da autora ocorre ainda quando se encontrava a sair do autocarro e este inicia marcha sem a autora ter terminado a saída do autocarro (versão da autora) ou se a queda ocorre sem qualquer conexão com início da marcha do mesmo ou qualquer movimento do autocarro( versão do motorista do autocarro): a recorrente alegou ter ocorrido a sua queda quando ainda se encontrava a sair do autocarro e o mesmo inicia marcha sem aquela ter terminado a sua saída e, o tribunal a quo considerou que não se apurou a causa da queda da autora ( nomeadamente a versão da autora, bem como a versão das RR quanto a ter tropeçado no seu vestido comprido), mas apenas se provou que a queda da autora ocorreu quando se encontrava a descer pela porta lateral traseira do autocarro, tendo-se provado ainda que, pelo menos, a queda não foi provocada por qualquer ação do motorista.
Ou seja, não se provou a alegação da autora: que o motorista iniciou a marcha sem atentar que a autora tivesse terminado a sua saída.
Igualmente não se provou a alegação das RR: que a queda tivesse sido em consequência de ter tropeçado no vestido comprido que trajava.

Vejamos.

Desde já importa notar que os factos não provados-alíneas a), c) e k) se mantêm inalterados, porquanto este tribunal ad quem rejeitou a impugnação de facto relativa aos mesmos e apenas constante das alegações e já não das conclusões.
Ou seja, mantém-se a não prova das causas da queda da autora e alegadas por ambas as partes:
- alegadas pela autora ( “quando a autora se encontrava a descer do autocarro, de forma repentina, o motorista do VI retomou a marcha do veículo, sem acautelar a saída da autora, provocando a sua queda, com projeção para o asfalto, embatendo violentamente com o joelho esquerdo e com o membro superior direito”);
- alegadas pelas RR ( “Que a autora tenha, concretamente, tropeçado no vestido que usava”).
Assim sendo, a apelante apenas pretende agora impugnar o facto dado como provado pelo tribunal a quo a respeito da ação do motorista ser alheia à queda da autora, pretendendo que se retire aquele segmento do facto provado no ponto 8.
Ora, numa primeira aproximação, seríamos tentados a dizer que se torna inútil a análise à impugnação efetivamente feita, porquanto não tendo sido impugnados os factos dados como não provados a respeito das causas da queda e apenas estando em causa afastar aquele facto negativo ( de que a causa da queda não foi por ação do motorista), tal circunstância em nada retira ou acrescenta ao que restaria do facto pretendido manter e que já consta da sentença e em nada altera o desfecho em matéria de solução de direito.
No essencial, apenas importa atentar na seguinte factualidade ( que, em qualquer circunstância, se manteria inalterada): a queda da autora ocorreu quando se encontrava a descer pela porta lateral traseira do autocarro, por razão não concretamente apurada, a qual caiu para o exterior, ficando imobilizada no passeio, entre a paragem e a porta do autocarro.
Ou seja, eliminando-se aquele segmento dos factos dados como provados não se conclui pela culpa exclusiva do motorista, porquanto esta já está arredada, conforme factos não provados.
Igualmente, eliminando-se aquele segmento dos factos dados como provados e porque o mesmo se dirige à ação ou culpa do motorista ( ou não culpa), não se conclui de forma diferente em termos de ponderação da responsabilidade objetiva do condutor da Ré transportadora, a qual a existir permaneceria igual com ou sem aquele segmento dirigido a uma (não) culpa.
Assim sendo, e como dissemos, verifica-se não somente a latere, mas na realidade e no caso concreto, o seguinte: o conhecimento da impugnação da matéria de facto daquele segmento do ponto 8 dado como provado revela-se um ato inútil.
Por outro lado, tem vindo a ser entendido de forma maioritária pelos Tribunais Superiores que, por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal da Relação não deve reapreciar a matéria de facto quando os factos objeto da impugnação não forem suscetíveis de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, terem relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe ser inútil (arts. 2º, n.º 1 e 130º, ambos do C.P.C.).
Nessa medida, e seguindo esse entendimento, temos que, no caso em concreto, não se mostra necessária a reapreciação da matéria de facto impugnada, quanto àquele concreto ponto, pelas razões apontadas.
*
Pelo que se vem de expor, conclui-se ser de manter na íntegra a decisão de facto, quanto àqueles pontos impugnados, pelo que a factualidade (provada) a atender para efeito da decisão a proferir é a já constante de III.
*
3. Reapreciação de direito.

- quanto ao ponto B1 acima identificado:

Cabe agora verificar se deve a sentença apelada ser revogada/alterada, ainda que se mantenha a decisão relativa à matéria de facto proferida pelo tribunal a quo a respeito da dinâmica do acidente.
Na sentença considerou-se que, perante os factos provados, não havia lugar ao funcionamento do regime da responsabilidade civil extracontratual e, em consequência, não responderia pelos danos decorrentes do acidente nem o detentor do veículo, nem a seguradora para quem aquele havia transferido a responsabilidade civil.
A solução do tribunal encontra-se motivada nos seguintes termos e após transcrição de boa parte do acórdão do STJ de 22-05-2013 ( proc. 3748/08):
Temos que a autora sofreu uma queda e que na sequência dela sofreu lesões/fraturas no membro superior direito, tudo quando saía de autocarro afeto ao transporte coletivo de passageiros, atividade prosseguida pela ré EMP01..., contudo, além de não se ter apurado concretamente as circunstâncias em que a autora caiu (melhor dito, as causas da queda), menos ainda se apurou uma qualquer ação causal da queda ou omissão de medidas adequadas a evitar o sinistro por parte do motorista da ré, resultando, outrossim, provável, que, qualquer que seja a causa, foi imputável à própria autora.
Nada tendo sido demonstrado quanto a um arranque prematura ou solavanco, nada tendo sido alegado quanto à eventual existência de obstáculos e ou de condições que tornavam particularmente perigosa a movimentação no interior do autocarro (por exemplo, piso escorregadio), fica absolutamente inviabilizado vislumbrar quais as regras de segurança que possam eventualmente ter sido violadas/omitidas.
Dir-se-á, pois, que falece a prova, desde logo de uma conduta/omissão da ré EMP01... (e só a responsabilização desta permitiria responsabilizar, no âmbito da apólice de seguro ...60), o que, sem necessidade de ulteriores considerações, implica o insucesso da pretensão indemnizatória da autora relativamente às rés, acrescentando-se que não foi, sequer, feita prova da totalidade dos concretos danos alegados.”.
A apelante entende que, no caso concreto, e caso fosse arredada a culpa exclusiva do condutor do veículo de passageiros, como vimos que assim ocorreu, se verifica a conjugação da responsabilidade pelo risco com a culpa do lesado ( ou imputação ao lesado do acidente) para efeitos de indemnização pelos danos ocorridos, “ fazendo-se uma interpretação atualista do artigo 505.º do Código Civil, com vista a permitir um concurso de culpa (leve) da vítima, ora Recorrente, como próprio risco associado ao veículo da Ré, ora Recorrida, na produção dos danos” ( conclusão nº 28º, 29º).
Para o efeito ainda invoca jurisprudência ( Ac da RP de 24-03-2022, proc. 14223/18) e AC da RL de 11-10-2022, proc. 8533/17).
E se neste último aresto, as particularidades do caso- ao tentar entrar no autocarro e este inicia marcha, o passageiro cai e fica com pé debaixo do rodado- impuseram precisamente a abordagem da questão da concorrência da responsabilidade pelo risco do detentor do veículo com a culpa do lesado, baseada no que ali se diz ser uma interpretação atualista do art. 505 do C.C e condenação de ambas as partes na proporção de 50%, já o primeiro daqueles acórdãos citados aprecia a questão direcionada à exclusão da responsabilidade contratual, concluindo pela não violação da obrigação decorrente do contrato de transporte, num caso em que ocorre uma queda do passageiro dentro do autocarro, quando a condutora do autocarro não aguardou que passageiro validasse o título de transporte e tomasse o seu lugar em segurança e o acidente ocorre por culpa de terceiro veículo.
Vejamos.
No que respeita à dinâmica do acidente aqui em análise, apurou-se que a autora se fez transportar em veículo pesado de transporte de passageiros afeto pela ré EMP01... à sua atividade de transporte coletivo de passageiros e que, quando dele saía, aí sofreu um acidente, na sequência da qual adveio para si lesão no cotovelo direito.
Do descrito não decorre que o condutor do pesado de passageiros tenha agido em violação de qualquer regra de conduta que lhe fosse exigível, sendo de excluir a sua culpa efetiva na produção do sinistro.
Fica, pois, também ilidida a presunção de culpa que recaía sobre o condutor do pesado (art. 503, nº 3, do C.C.), sendo inevitável concluir que, pelo menos, é de imputar à A. a sua queda para o exterior ao descer as escadas do veículo nas referidas condições, não se apurando as causas da queda.
Note-se que, como foi assinalado na sentença, não se apurou “… qualquer ação causal da queda ou omissão de medidas adequadas a evitar o sinistro por parte do motorista da Ré”,  “ …Nada tendo sido demonstrado quanto a um arranque prematuro ou solavanco, nada tendo sido alegado quanto à eventual existência de obstáculos e ou de condições que tornavam particularmente perigosa a movimentação no interior do autocarro (por exemplo, piso escorregadio), fica absolutamente inviabilizado vislumbrar quais as regras de segurança que possam eventualmente ter sido violadas/omitidas…Dir-se-á, pois, que falece a prova, desde logo de uma conduta/omissão da ré EMP01...”.
Vejamos então se as particularidades do caso impõem precisamente a abordagem da questão da concorrência da responsabilidade pelo risco do detentor do veículo com a culpa ( ou imputação ) do lesado, baseada numa alegada interpretação atualista do art. 505 do C.C..
Ana Prata, em comentário a este preceito ( CC Anotado, 2º ed, p. 703) vai logo dando nota que a interpretação que sempre deu a este preceito e tal como a recente jurisprudência vem aderindo, em nada teve que ver com qualquer “atualismo” ou “ direito comunitário”.
E assim foi.
Com efeito, aquela mencionada “interpretação atualista” é a que vem refletida no acórdão do STJ de 4 de Outubro de 2007 ( relator: Santos Bernardino), o qual rompeu com o entendimento até ali maioritário de que aquele preceito ( art. 505º) excluía a possibilidade de concorrerem culpa ( do lesado ou terceiro) com o risco, e a partir daí começaram a surgir decisões jurisprudenciais a admitir tal concorrência e a traduzir-se em que “a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo”
Trata-se, ao fim e ao cabo, de acolher e pôr em prática, relativamente à interpretação do art. 505º C. Civil – “sem prejuízo do disposto no artigo 570º, a responsabilidade fixada no n.º 1 do art. 503 só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de força maior estranha ao funcionamento do veículo” -, formulações como as propostas pelos Ilustres Profs. Calvão da Silva, Brandão Proença ou Ana Prata.
Assim, no entendimento adotado e transmitido por aquele Mestre (RLJ, A. 134º, pg. 115), «Sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a responsabilidade objetiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo».
E, explicitando, continua: “Equivale isto a admitir o concurso de culpa da vítima com o risco do próprio veículo, sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do ato lesivo”.   
Brandão Proença (“Cadernos de Direito Privado”, n.º 7, pg. 18 e ss.), propõe que “no caso de danos corporais, a responsabilidade fixada no n.1 do art. 503º só é excluída por ato culposo grave do lesado, tido por causa única do evento danoso”, admitindo, “por outro lado, uma indemnização quase automática para os lesados menores de dez anos”.
De modo convergente, Ana Prata (“Responsabilidade Civil: Duas ou Três Dúvidas Sobre Ela”, in “Comemoração dos 5 anos da F.D.U.P.”, pg. 345 e ss. (348)), depois de chamar a atenção para a confusão entre a culpa e o nexo de causalidade na interpretação do art. 505º, e de pôr em evidência que, como quase todos estão de acordo, a exclusão da responsabilidade objetiva se faz “em função da permanência ou rutura do nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e os danos verificados”, consequentemente, “Se se trata de uma norma que se refere ao nexo de causalidade, então ela deve ser interpretada assim: a responsabilidade prevista no n.º 1 do art. 503º só é excluída quando o acidente for exclusivamente resultante (ou consequência) de ato do próprio lesado …”.
Incorporando-nos nessa corrente doutrinal e jurisprudencial e que rompeu com a tradicional ( na esteira do Prof. A. Varela, “ das obrigações em geral”, p. 675 e ssgs, ed. 2000), importa aferir da aplicação da mesma ao caso concreto.
     E desde logo interessa expressar os critérios fundamentais que subjazem a essa aplicação.
“ Calvão da Silva, Brandão Proença e Ana Prata situam a questão ao nível da causalidade em termos que nos parecem particularmente incisivos: “Também se pensa que se está perante uma questão cujo núcleo essencial se centra no nexo de causalidade, na contribuição causal dos intervenientes na produção do evento, em suma, da verificação ou não de uma relação de concausalidade, a reconduzir-se a saber se o comportamento da vítima, isto é, o ser-lhe imputável (atribuível) o evento, se reveste de características tais que impliquem a destruição ou interrupção do nexo causal entre factos determinantes do risco (a atividade ou presença do veículo) e o ato do lesado e o correspondente dano. Relevante, na ponderação do concurso, serão os termos e o âmbito com que se deve imputar ao facto do lesado a causalidade do evento, nomeadamente em termos de exclusividade, sendo que, seguramente, a imputação exclusiva sucederá quando se conclua que os riscos criados pelo veículo se mostram indiferentes para a produção do acidente e dos danos.” ( in “ Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação”, Graça Trigo, p. 485).
     Por outro lado, temos que o fundamento para a responsabilidade objetiva do detentor do veículo não é apenas o perigo do mau funcionamento da máquina (risco agravado), mas também o perigo da simples circulação da máquina (risco comum), pelo que «sempre que o veículo se encontre em circulação, a respetiva força cinética faz com que seja causa adequada dos danos ocorridos, mesmo que a conduta do lesado, culposa ou não, tenha sido concausal em relação ao acidente de que resultaram os danos.» (MARIA DA GRAÇA TRIGO, op. cit., pg 486-487).
Também se pensa que se está perante uma questão cujo núcleo essencial se centra no nexo de causalidade, na contribuição causal dos intervenientes na produção do evento, em suma, da verificação ou não de uma relação de concausalidade, a reconduzir-se a saber se o comportamento da vítima, isto é, o ser-lhe imputável (atribuível) o evento, se reveste de características tais que impliquem a destruição ou interrupção do nexo causal entre os factos determinantes do risco (a atividade ou a presença do veículo) e o ato do lesado e correspondente dano.
“ Trata-se, sim, como já se deu a entender, de um problema de ligação causal dos danos verificados ao facto do lesado ou terceiro, dever-se o acidente (tão só) a este” ( comentário ao artigo 505º de Raul Guichard, in Comentário ao CC , UCP, p. 415).
Em suma, relevantes, na ponderação do concurso, serão os termos e o âmbito com que se deva imputar ao facto do lesado a causalidade do evento, nomeadamente em termos de exclusividade, sendo que, seguramente, a imputação exclusiva sucederá quando se conclua que os riscos criados pelo veículo se mostram indiferentes para a produção do acidente e dos danos.
Salvo o devido respeito, cremos que é o que sucede no caso sub judicio.
Em verdade, aceite, como tem de haver-se, para efeito de apreciação do objeto deste recurso, que a responsabilidade do condutor do veículo de passageiros, porque afastado qualquer comportamento culposo, só poderia assentar na responsabilidade objetiva contemplada no n.º 1 do art. 503º C. Civil, a questão que ainda se coloca situar-se-á na averiguação da existência de um facto imputável ao lesado e respetiva repercussão na exclusão da indemnização.
Dito de outro modo: não está aqui em causa, necessariamente, para que o evento deva considerar-se imputável ao lesado, o concurso de um facto ilícito ou mesmo necessariamente culposo do lesado, censurável a título de culpa no sentido técnico-jurídico contido no art. 487º C. Civil, ou não é necessário que esteja, bastando que o facto (censurável) deva ser “atribuível” a atuação do próprio lesado, nos termos previstos nos arts. 505º e 570º do mesmo diploma.  
Há então que ajuizar sobre o concurso desse facto “imputável”, de uma ação livre e consciente do lesado que represente um «ato constitutivo de responsabilidade pessoal», da sua autorresponsabilização, e, em caso afirmativo, sobre a medida da sua gravidade e relevância.
Ora, entende-se que o tribunal a quo julgou corretamente.
Apenas se apurou a queda da passageira para o exterior do autocarro quando a mesma estava a descer pela traseira daquele veículo e nada mais.
Em contraponto, nada se encontra na matéria de facto atinente às condições de circulação do veículo ou ao seu condutor que sugira contribuição, por via dos riscos próprios inerentes à utilização em curso na circunstância, para a ocorrência da queda da autora.
Resulta, assim, que a conduta da autora se apresenta, ela mesma, só por si, suficiente e adequada à produção do acidente, revelando-se o veículo de passageiros, do ponto de vista da sua aptidão geradora de riscos, ou seja, em termos de causalidade adequada – porque em sede de matéria de causalidade nos movemos –, indiferente àquela queda, a não ser, obviamente, sob o (juridicamente irrelevante) aspeto puramente naturalístico, o que faz com que o caso vertente tenha contornos, de todo em todo, em nada similares a qualquer uma das situações analisadas nos acórdãos citados pela apelante ( v.g., em que os veículos estão em movimento).
Diga-se, ainda mais uma vez, que igualmente está arredada qualquer responsabilidade contratual ventilada nas alegações de recurso, atenta a matéria de facto dada como provada, não logrando a autora provar os pressupostos daquela responsabilidade.
A decisão impugnada, não merece, pois, alteração ou censura, ao menos nos termos em que lhe vem dirigida pela Recorrente.
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4- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 3ª secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
A) em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
B) Custas da apelação pela apelante.
Notifique.
Guimarães, 18 de abril de 2024

Relatora: Anizabel Sousa Pereira
Adjuntos: Fernanda Proença Fernandes e
Jorge dos Santos
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[1] A este propósito, a doutrina, praticamente una voce, tem considerado que o incumprimento de tal ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento – cfr., por todos, ABRANTES GERALDES, ob. citada, pág. 134 e AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, pág. 170; LOPES DO REGO, ob. citada, vol. I, pág. 585 e LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 62. Idêntico entendimento tem sido trilhado na jurisprudência, de que constituem exemplo, inter alia, os acórdãos do STJ de 9.02.2012 (processo nº 1858/06.5TBMFR. L1.S1), de 22.09.2011 (processo nº 1368/04.5TBBNV.S1), de 15.09.2011 (processo nº 455/07.2TBCCH.E1.S1), de 21.06.2011 (processo nº 7352/05.4TCLRS.L1.S1), acórdãos da Relação de Lisboa de 13.03.2014 (processo nº 569/12.7TVLSB.L1) e de 12.02.2014 (processo nº 26/10.6TTBRR.L1) e acórdão da Relação de Guimarães de 12.06.2014 (processo nº 1218/10.3TBBCL.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Registe-se que sobre esta temática, ainda que no domínio da jurisdição penal, o Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se (v.g. acórdão nº 259/2002, publicado no Diário da República, II série, de 13.12.2002), decidindo pela compatibilidade constitucional de uma solução legislativa segundo a qual a falta de cumprimento dos ónus que impendem sobre o recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto tem como efeito o não conhecimento dessa matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir esses vícios.